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The Ever Fonky Lowdown - A obra-prima mais satírica, irônica, cômica, lúdica, funky e divertida de Wynton Marsalis

Era o mês de maio de 2018, quando o trompetista e compositor Wynton Marsalis estreava mais um dos seus ousados projetos de composição própria, a peça The Ever Fonky Lowdown. Sua mais recente obra-prima com a Jazz at Lincoln Center Orchestra contava com o guitarrista Doug Wamble, os vocalistas Jazzmeia Horn, Brianna Thomas e Camille Thurman, o narrador Wendell Pierce e o coreográfo Jared Grimes. Dois anos depois, aproveitando as dissensões políticas e sociais culminadas por um ano atipicamente marcado pela Covid-19, e também marcado pelas expressões violentas dos supremacistas americanos (sem mencionar o eminente processo eleitoral que se aproxima), Wynton Marsalis traz a obra em um bem editado registro pelo selo do Jazz at Lincoln Center, o Blue Engine Records, e mostra o porquê a crítica especializada ainda deve lhe considerar como sendo o maior compositor americano vivo -- trata-se de mais umas daquelas suas peças extensas, intermináveis, nos mesmos moldes da colossal Blood on the Fields, que lhe rendeu a honraria de ser o primeiro compositor de jazz a ganhar um Prêmio Pullitzer em 1997. Se fizermos uma análise fria de The Ever Fonky Lowdown, vamos convir que não há tantas novidades a se pontuar em relação à criatividade assustadora e ao estilo amalgamado que Wynton evidenciou ao mundo com a peça Blood on the Fields nos anos 90...ou seja, trata-se mais de um continuum do ousado estilo erudito wyntoniano de retratar, através de uma big band, os mais variados espectros da história e da cultura americana, bem como de conscientizar seu público de que a América é feita das múltiplas tradições oriundas dos ingleses protestantes, irlandeses católicos, negros africanos, índios nativos e hispânicos nômades. E convenhamos que Wynton conseguiu e segue conseguindo, como ninguém, eternizar as tradições musicais que perfazem a alma do povo americano através de peças grandiosas, e o faz de forma densa e contemporânea e com uma abrangência que só ele conseguiu atingir, sem abrir mão da sua implacável concepção de como tem de ser a música: acústica, orgânica, exuberante, cheia de efeitos e densamente dotada de estórias que conectam todos os adereços históricos da gênese americana em um só espetáculo musical. Contudo, algumas observações aqui precisam ser pontuadas, pois são estas observações que diferem esta peça das suas obras-primas anteriores. Utilizando um termo mais tradicional e cômico, o termo "fonky", Wynton usa como motivo principal da peça o ritmo do funk -- mais propriamente o funky de New Orleans em compassos ímpares. Wynton Marsalis também tem como palco principal do seu espetáculo a temática de um circo imaginário: com a temática circense, o compositor consegue fazer uma satírica ligação da cultura preconceituosa dos minstrels shows do século 19 com as ardilosas propagandas e manipulações capitalistas dos espetáculos modernos e contemporâneos. Wynton também imprime nesta peça uma exótica combinação de conscientização política e social por meio da sátira, da ironia, do cômico e do lúdico -- para tanto, ele utiliza-se de uma mistura de adereços e efeitos musicais que vai das tradições longínquas do gospel, blues, marching band, folk e scatting vocals aos efeitos orquestrais contemporâneos, englobando resquícios modernos das estéticas soul, funk e até free jazz, criando de forma magistral os efeitos animados que dão luz à narrativa e a estória, quase que como um musical dramático. Por fim, outro diferencial é que, apesar de se tratar de uma peça orquestral, aqui Wynton apega-se a uma maior exposição da estória por meio da narrativa vocal: o personagem principal é Mr. Game (na voz do renomado ator Wendell Pearce), um vigarista, populista e palhaço, que tenta vender seus ideais por mais contraditórios e irônicos que pareçam; e essa voz constante é contrastada por divertidas partes cantadas, com o apoio de passagens orquestrais à cabo da big band Jazz at Lincoln Center Orchestra. Abrangendo uma narrativa contemporânea que engloba do caos à democracia, da falta de fé à religião, do futebol à política, do poder à pobreza, do amor à traição e à corrupção, Wynton Marsalis mostra mais uma tentativa de conscientização por meio do seu carisma musical, evidenciando aqui um "espetáculo" que não escolhe lados, mas tenta sempre trabalhar em torno da união e de um ideal único que congreguem as diferenças do povo americano -- ou melhor, dos povos que criaram esta tão complexa união de estados que é a América.





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