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Música Instrumental Brasileira no século 21: Uakti, Naná Vasconcelos, Cyro Baptista, Caíto Marcondes, Carlos Pial


Seguindo com a série de posts sobre a música instrumental brasileira no século 21, aqui lhes apresento uma playlist com alguns dos maiores percussionistas brasileiros -- e do mundo! Uma das facetas mais ricas da música instrumental brasileira é a música feita pelos nossos percussionistas. Os percussionistas brasileiros são músicos respeitadíssimos mundo afora, pois eles carregam consigo toda a brasilidade e a riqueza rítmica que o Brasil alcançou com a miscigenação cultural de europeus, negros e índios, miscigenação esta que nos dá o privilégio de ter uma música alegríssima de muita riqueza e nostalgia cultural. Aliás, muito além da riqueza rítmica brasileira, nossos percussionistas também são peritos em dar um tratamento timbrístico bem peculiar às composições, o que lhes conferem a audácia de retratar de forma muito imagética os vários brasis deste enorme Brasil -- um país que, ao menos em sua história, ainda mantém viva a memória de uma riqueza natural e musical sem paralelos. É o caso de Naná Vasconcelos, que popularizou mundo afora o berimbau, instrumento brasileiro usado nas gingas da capoeira, e encharcou o jazz e o avant-garde de ginga, batuques e sonoridades tupiniquins, além de ser um dos pioneiros do uso dos efeitos eletrônicos para modernizar o world fusion. É o caso de Caíto Marcondes que tem um feeling que abrange da música indígena ao choro, passando pelos arranjos eruditos e efeitos vocais percussivos. É o caso de Cyro Baptista, que encharcou os happenings e as livres improvisações de músicos experimentalistas como o inglês Derek Bailey, o americano John Zorn e de outros importantes músicos da Downtown nova iorquina com afoxés, caxixis, tambores, pandeiros e quites diversos de percussão, e que mostra uma sonoridade própria, irônica e divertida em registros onde aborda sua visão antropofágica do Brasil, incluindo releituras e paródias em obras de compositores como Heitor Villa-Lobos, por exemplo. É o caso do maranhense, radicado brasiliense, Carlos Pial, que retrata as paisagens do Maranhão, da Amazônia e do Cerrado brasileiro com composições cheias de harmonias nostálgicas, efeitos eletrônicos, batuques e efeitos timbrísticos interessantes. Nossos percussionistas também são peculiares por explorar a voz de formas bem peculiares: explorando as inflexões fonéticas, onomatopeicas e percussivas da nossa língua brasileira, que é tão cheia de palavras indígenas, dizeres nordestinos e entonações melódicas. Ainda jogando um tempero mineiro nesta farofa de sons, também apresento o grupo Uakti, que uniu a musicalidade extraída das fontes do Clube da Esquina com aspectos da luthieria experimental para criar um universo bem particular dentro da música instrumental brasileira.


 

Artista renomado e um dos grandes instrumentistas a gravar pelo selo Maritaca de Léa Freire, o paulistano Caíto Marcondes não é apenas um dos talentosos percursionistas brasileiros como também costuma mostrar sua genialidade nos terreiros da composição e arranjo. Não raramente ele arranja e compõe para a Orquestra Popular de Câmera (que ajudou a fundar junto à Benjamin Taubkin) e já deixou sua marca em várias colaborações Brasil afora: como os arranjos para a Missa Indígena “2 Ihu – Kewere” de Marluí Miranda e a Orquestra Jazz Sinfônica, além de suas próprias composições como “Danças, Jogos e Canções” com a Orquestra Popular de Câmera, a composição Dança do Sol que já foi interpretada por orquestras como Orquestra Sinfônica do Paraná e Jazz Sinfônica de São Paulo. Ademais, as suas colaborações como percussionista incluem trabalhos e apresentações em shows e gravações com Hermerto Pascoal e Grupo (com quem chegou a trabalhar por um ano), Paulo Moura, Jacques Morelenbaum, Zeca Assumpção, Milton Nascimento, Ná Ozzetti, Mônica Salmaso, Claudio Dauelsberg, Zé Eduardo Nazário, Benjamim Taubkin Teco Cardoso, Toninho Horta, Nailor Proveta, com o guitarrista americano John Scofield, entre outros. Dentre os interessantes álbuns que levam seu nome estão Porta do Templo, gravado em junho de 1995 na California, com o Turtle Island String Quartet e François de Lima, sendo indicado para o prêmio Sharp 1996, e lançado pela ACT na Alemanha; há ainda North meets South, seu segundo disco gravado em 2001, um dueto de percussão com o violinista Tracy Silverman; e Auto-Retrato de 2004, um trabalho lançado pelo selo Maritaca onde é celebrado seus 35 anos de carreira: registro onde também participam a onipresente cantora Mônica Salmaso e a a cantora indigenista Marluí Miranda. Em todos estes registros o que encontramos são arranjos idiossincráticos e divertidos, quando não exuberantes, onde Caíto Marcondes mostra uma confluência entre suas influências contemporâneas com as influências tupiniquins da MPB e do folclore brasileiro, em especial a música indígena, música afro brasileira e os aspectos percussivos-onomatopeicos da língua brasileira, que é uma língua tão cheia de musicalidade -- isso sem mencionar influências "estrangeiras", como a música erudita, a música experimental, o jazz, dentre outras estéticas. Há traços singelos de influencias vanguardistas advindos do período de aprendizado com o mestre da composição dodecafônica Hans Joachin Koellreutter, além de traços que vieram com a convivência com mestres ultra-criativos como Hermeto Pascoal, Paulo Moura e de músicos relacionados à histórica Vanguarda Paulistana. Em 2010 Caíto Marcondes se juntou a Naná Vasconcelos, Marcos Suzano e ao coletivo Coração Quiáltera para gravar o álbum Sementeira - Sons da Percussão, onde experimentam os mais diversos instrumentos percussivos para criar atmosferas inusitadas: além dos instrumentos de percussão convencionais, os percussionistas usam bricolagem, tampinhas de garrafa, conduítes e até um aquário para criar efeitos híbridos, com destaque para a faixa “Nada Mais Sério”, que é composta apenas por onomatopeias vocais, numa mixagem bastante detalhista. Recebendo elogios e admiração de músicos nacionais e estrangeiros, certa vez o grande percussionista brasileiro (radicado nos EUA) Airto Moreira, ao ouvir uma de suas obras, o chamou de “Villa-Lobos da Percussão”, salientando sua sensibilidade em elevar a percussão e suas entonações vocais-percussivas para além do aspecto meramente percussivo: isto é, atingindo uma musicalidade superior que se atinge com a confluência da percussão e do canto ou com a confluência melódica-harmônica-ritmica entre o erudito e popular. Em 2014, Caito Marcondes registrou em DVD seu projeto Brazilian Contemporary Music de aproximação entre instrumentistas e compositores brasileiros e estrangeiros, com concerto gravado na sala Stanley Kaplan Penthouse no Lincoln Center, em 2011, em Nova Iorque. O concerto contou com a participação da pianista Eva Gomyde e do baixista Leco Reis, além de Tracy Silverman e Duncan Wickel nos violinos, Lev Zurbhin na viola, Mark Summer no cello e Dana Leong no trombone.


 

Cyro Baptista é um dos maiores percussionistas brasileiros, do mundo e de todos os tempos, sendo um dos mais representativos músicos brasileiros de renome internacional no quesito da música eclética. Desde meados dos anos 80 residindo no cenário da Downtown nova iorquina, ele rapidamente se conectou ao avant-garde de músicos como John Zorn e Fred Frith e daí em diante explorou tanto o meio experimental quanto o mainstream, em amplos sentidos. Requisitado, desde sempre, por uma multidão de músicos e cantores pelo mundo afora, Cyro já colaborou com figuras das mais variadas vertentes e estéticas: da cantora americana de jazz Cassandra Wilson à cantora popular brasileira Marisa Monte, do cantor popular brasileiro Tom Zé ao violoncelista erudito Yo-Yo Ma, do improvisador e experimentalista inglês Derek Bailey ao jazzista tradicionalista Wynton Marsalis...enfim, não teríamos espaço aqui para citar a multidão de músicos, cantores e artistas com os quais o percussionista colaborou. Esta faceta eclética enfatiza, aliás, o respeito que os percussionistas brasileiros detêm e a capacidade que eles têm de transitar pelos mais variados territórios da música mundo afora. E Cyro Baptista, apesar de residir em Nova Iorque desde os anos 80, nunca perdeu o sotaque brasileiro em suas explorações sonoras. Um dos seus primeiros registros em carreira solo, inclusive, foi o divertido álbum Vira Loucos (Avant, 1997), onde ele parafraseia, de forma idiossincrática e até com uma ironia contemplativa, cantigas e peças com base na obra do compositor erudito brasileiro Heitor Villa-Lobos -- registro que, aliás, conta com a participação dos gigantes instrumentistas Romero Lumbambo (violão, cavaquinho), Marc Ribot (guitarra elétrica) e Naná Vasconcelos (outro grande percussionista), e através do qual foram produzidas alguns shows em território brasileiro, inclusive alguns deles registrado pelo SESC. Nos anos 2000, Cyro Baptista fundaria os grupos Beat the Donkey e Banquet of the Spirits, e lançaria seus álbuns pelo selo Tzadik, sendo um colaborador frequente de John Zorn tanto como compositor quanto como sideman -- vide, por exemplo, o álbum Caym: Book of Angels Volume 17 (Tzadik, 2011), que leva o seu nome do seu grupo Banquet of the Spirits dentro da série que registra as canções e peças místico-judaicas compostas por Zorn. Com ténicas que se baseiam na percussão afro-brasileira, no rock, no funk, na livre improvisação e na world music -- dos batuques africanos às sonoridades percussivas orientais e do leste europeu (balcãs) --, Cyro Baptista passou a evidenciar seu ecletismo primeiramente no álbum homônimo Beat the Donkey (Tzadik, 2002), onde ele conseguiu formar um ensemble (de mesmo nome do álbum) com diversos músicos de diferentes vertentes -- do experimentalista John Zorn ao acordeonista brasileiro Toninho Ferragutti -- para dar vazão ao seu repertório, totalmente autoral neste registro. No registro seguinte, Banquet of the Spirits (Tzadik, 2007) -- também homônimo, já que o título do álbum é o nome da sua segunda banda pós Beat the Donkey --, Cyro Baptista baseia-se no antropofagismo brasileiro e faz uma mistura desta influência com outras influências advindas do seu contato com repertórios vanguardistas de músicos e compositores como Naná Vasconcelos, Colin Walcott e Don Cherry (todos os três músicos membros do influente trio CoDoNa, diga-se de passagem). Ainda com o grupo Banquet of the Spirits, Cyro Baptista gravaria os seguintes registros: seu segundo álbum autoral Infinito (Tzadik, 2009) e o já citado Caym: Book of Angels Volume 17 (Tzadik, 2011), este com peças e canções compostas pelo compositor experimental John Zorn em sua série de obras baseadas na mística dos anjos e demônios do judaísmo ortodoxo. A música autoral de Cyro Baptista é, enfim, um misto pós moderno de influências do avant-garde, world music e do antropofagismo brasileiro tão presente no conceito tropicalista do fazer musical. Ele também usa frequentemente os artifícios vocais -- na forma do canto ou nas forma das entonações onomatopeicas -- para enriquecer suas abordagens.



Maranhense radicado em Brasília, o percussionista virtuose Carlos Pial traz em sua veia as influências culturais do índio e do negro, tendo uma infância marcada pelas toadas de boi bumbá, pregoeiros, folias do divino, tambor da crioula, dentre outras festividades e danças maranhenses -- mas também traz influências latinas e afro-cubanas, sendo um dos grandes entusiastas das variedades de tambores e do cajón (instrumento de origem peruana). Com uma carreira que já passa de duas décadas de atuação, o percussionista refere-se à sua música como "um latin jazz que, além dos ritmos brasileiros, tem como finalidade apresentar mais coração, emoção e beleza do que apenas virtuosismo". Com uma musicalidade fora de série, suas composições também apresentam interessantes conexões com o jazz contemporâneo e com a música eletrônica, frequentemente usando efeitos eletrônicos para enriquecer suas abordagens percussivas e suas texturas sonoras, que bebe das fontes amazônicas e das poéticas da natureza, do cerrado e da música indígena. Recentemente, Carlos Pial passou por São Paulo com o elogiadíssimo show “Alquimia dos Sons”, acompanhado por Hamilton Pinheiro (contrabaixo), Misael Silvestre (piano e teclados), Westonny Rodrigues (trompete), Agilson Alcântara (violão) e Pedro Almeida (bateria) -- a turnê nacional também incluiu as cidades do Rio de Janeiro e São Luís, com patrocínio do edital do Fundo de Apoio à Cultura (FAC) da Secretaria de Cultura do Governo do Distrito Federal. “Alquimia dos Sons”, o show, é título do espetáculo gravado e lançado em dvd, onde o músico faz uma fusão de percussão com efeitos e elementos eletrônicos, na intenção de modernizar a batida dos seus tambores. Além de muitos shows e oficinas ministrados pelo Brasil adentro e das aulas que ministra em seu Instituto Carlos Pial, o percussionista conta quatro CDs autorais gravados: Maranhafricanizado (2002), Perfusão (2005), Etnia (2012) e Misturado (2014). Ele também já lançou dois DVDs, sendo um deles uma video-aula, “Cajon – Ritmos Brasileiros” (2013) e o citado outro Alquimia dos Sons, registro de um show gravado ao vivo em 2015 no SESC Ceilândia, em Brasilia. Carlos Pial é, talvez, o maior percussionista em atividade no Brasil que é dedicado quase exclusivamente ao público brasileiro -- apesar de também ter reconhecimento internacional. Sua música é um retrato da flora e fauna brasileiras, das paisagens do cerrado e das cidadezinhas que marcaram sua vida, da poética amazônica, da cultura da pesca maranhense, entre outras temáticas, inspirações e adereços.


 
 Apesar de terem anunciado o fim do grupo em 2015, o Grupo Uakti é preciso ser lembrado em nossa compilação dos músicos e grupos representativos da música instrumental brasileira neste início de século 21, já que lançou alguns dos seus melhores registros a partir dos anos 2000. Com um nome indígena advindo de uma lenda da etnia Tukano, o grupo foi criado em 1978 pelo violoncelista Marco Antônio Guimarães, que na época foi fortemente influenciado pelo professor e luthier experimental Walter Smetak, e começou a criar instrumentos com tubos de PVC no porão da sua casa. Marco Antônio Guimarães, então, reuniu alguns de seus colegas da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais -- os percussionistas Paulo Sérgio Santos e Décio de Souza Ramos e o flautista Artur Andrés Ribeiro -- com a proposta de formar um grupo que criasse composições próprias através de instrumentos artesanais. Nas últimas décadas -- passando por diversas formações e mudanças --, o grupo lançou 13 discos próprios, participou de um aclamado projeto de intersecção entre música e teatro com o Grupo Corpo e participou de gravações de diversos artistas de reconhecimento mundial, entre eles Milton Nascimento, Philip Glass e Paul Simon. Com um conceito experimental de criação artesanal dos instrumentos aliado à uma brasilidade e uma sensibilidade musical adquirida inicialmente através do contato com a música do Clube da Esquina -- deixando-se influenciar por aspectos que vão da música indígena à MPB, passando pela música erudita e por esse aspecto mais de luthieria experimental, "smetakiano" e mais "instrumental-tropicalista" --, o Grupo Uakti criou uma obra dotada de identidade própria que, sem dúvidas, merece estar no topo da memória musical brasileira. Entre os instrumentos criados artesanalmente que foram usados pelos músicos em gravações estão: as flautas pans de tubos de PVC; as marimbas de vidro e as marimbas d'Angelim (feita de Angelim, uma madeira usada na construção civil, o que dá uma sonoridade rústica bem característica); a iarra, uma espécie de violoncelo, com arco e dois pares de cordas que devem ser pressionadas simultaneamente pela mão esquerda; e o chori smetano, instrumento de corda de arame com a cabaça ressonante, que foi adaptada por Marco Antonio Guimarães para ter as dimensões e a dinâmica de um violoncelo -- segundo Smetak, este instrumento pode transmitir simultaneamente sentimentos antagônicos como o choro e o riso, daí seu nome cho-ri (chora e ri). O grupo também possui um rico arsenal de instrumentos de percussão, o que nos fez incluí-lo nesta compilação: além dos surdos, atabaques e tablas orientais, o grupo fez muito o uso de membranofones para construir sua sonoridade. Neste início do século, podemos citar pelo menos dois registros do Uakit no âmbito da música instrumental brasileira que são imprescindíveis: Mulungu do Cerrado (2001), com o Grupo Tabinha e Oiapok Xui (2005), sendo este último mostrando um conceito mais completo de brasilidade. Mulungu do Cerrado oferece um repertório de canções de domínio público, além de temas assinados por Milton Nascimento em parceria com Marco Antônio Guimarães e Ronaldo Bastos. Já o álbum Oiapok Xui contém temas folclóricos e clássicos da MPB, como "Aquarela do Brasil" (Ary Barroso), "Águas de março" (Tom Jobim) e "Cravo e canela" (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos). Após grande reconhecimento internacional, também foi natural que o grupo explorasse o vasto território do ecletismo musical tão comum nas últimas décadas, o que pode ser averiguado nos seguintes álbuns: Clássicos (2003), com adaptações de temas da música erudita para a instrumentação do grupo; Ensaio Sobre a Cegueira (2009), que documenta a trilha instrumental do filme dirigido pelo cineasta brasileiro Fernando Meireles, baseado no livro homônimo do escritor português José Saramago; e Uakti Beatles (2012), com adaptações da música dos Beatles para o grupo.


 

 A contribuição musical e cultural que o percussionista pernambucano Naná Vasconcelos deixou para a música brasileira -- no Brasil e no exterior -- é gigantesca! Com enorme sensibilidade musical e sem delimitações de fronteiras, sua música explora elementos que bebem tanto da percussão afro-brasileira como do jazz, tanto do avant-garde como do canto popular brasileiro, passando pelas explorações fonéticas e onomatopeicas da língua brasileira e pelo uso da música eletrônica para enriquecer suas abordagens -- sendo um dos músicos que detém uma obra das mais ricas em timbres, sonoridades e variabilidades afins. Sendo um dos pioneiros das correntes do fusion, world fusion e avant-garde, sua imagem no exterior vai além das famosas fotos em que ele aparece empunhado de um berimbau, instrumento brasileiro que ele popularizou mundo afora. Seus feitos incluem, por exemplo, ter aumentado o espectro do jazz no que diz respeito à um maior uso, de fato, da riquíssima percussão brasileira -- uma vez que até os anos 50, o jazz era mais afeito à percussão afro-cubana. Nos anos 60, ele iniciou sua trajetória tocando com ninguém menos que o mineiro Milton Nascimento, por meio do qual teve acesso à extrema musicalidade dos músicos da banda Som Imaginário e do movimento Clube da Esquina, um dos mais importantes movimentos da MPB ao lado da Bossa Nova e da Tropicália. A partir daí, passou a ser requisitado pela maioria dos cantores da MPB: de Milton à Caetano. No início da década de 1970, formou o Trio do Bagaço, com Nélson Angelo e Maurício Maestro, com o qual, à convite de Luis Eça, foi se apresentar no México. Foi nesta ocasião que conheceu o grande saxofonista argentino Gato Barbieri, que já tinha uma sólida carreira em solo americano, e o qual lhe convidou para fazer parte do seu grupo que em poucos dias se apresentaria em Nova York e na Europa, com destaque para o Festival de Montreaux, na Suíça, onde a performance arrebatadora de Naná encantou público e crítica. A partir daí, Naná mudou-se para os EUA e seguiu sua movimentada carreira como instrumentista e compositor sem fronteiras. Deste então foi eleito oito vezes o melhor percussionista do mundo pela revista americana Down Beat (votação feita pelos críticos musicais da revista) e ganhou oito prêmios Grammy, sendo até hoje o brasileiro com mais prêmios Grammy, contando os as nomeações latinas e americanas. Ainda em fins dos anos 70, formou o peculiaríssimo trio de "avant-world-fusion" CoDoNa, ao lado de Don Cherry e Collin Walcott, com o qual lançou uma primorosa trilogia de registros pelo selo ECM, gravadora alemã onde foi requisitado por instrumentistas como Jan Garbarek, Egberto Gismonti, Pat Metheny, Don Cherry, Pierre Favre, entre outros. Ademais, Naná também ficou conhecido por atuar com os mais distintos artistas e bandas das mais variadas vertentes: da banda de rock Talking Heads ao bluesman B.B. King, da banda brasileira Mutantes ao saxofonista experimentalista John Zorn, sempre reafirmando sua sina em fazer música pela música, sem delimitações. Sendo um dos músicos com uma das agendas mais cheias, Naná ainda conseguia sempre vir ao Brasil para valorizar a música brasileira, sobretudo a MPB, a música regional nordestina e a percussão afro-brasileira, sendo um dos sempre presentes artistas nos carnavais e festivais de maracatu em Recife. Nestas idas e vindas ao Brasil, antes de falecer em 2016, Naná lançou uma sequências de bons registros em solo brasileiro -- ou fora do país, mas dedicados à música brasileira --, mantendo um equilíbrio entre a música instrumental e sua forte ligação com uma MPB vocal mais criativa. Destacam-se: Fragmentos, com o grupo Domínio Público (Núcleo Contemporâneo, 2011); Minha Lôa (Net Records, 2002), dedicado ao canto e às suas explorações vocais mais elásticas; Vasconcelos e Assumpção - Isso vai dar repercussão (Elo Music, 2004), em parceria com o cantor Itamar Assumpção; os registros instrumentais Chegada (Azul Music, 2005) e Trilhas (Azul Music, 2006); o encontro de percussionistas registrado no álbum Sementeira: Sons da Percussão (pelo selo Tratore, 2010, com Caito Marcondes, Marcos Suzano e Coração Quiáltera); o registro de intersecção entre música popular e erudita Sinfonia & Batuques, gravado em 2011 com a Orquestra Experimental de Câmera de Recife; e o Projeto Café no Bule, gravado em 2015 com o cantor Zeca Baleiro e o contrabaixista Paulo Lepetit, pelo Selo Sesc. Destes, indico -- como um registro instrumental que mostra a brasilidade sempre à flor da pele, a completude cultural e a enorme criatividade do percussionista -- o álbum Chegada: trata-se de um dos mais instigantes retratos musicais brasileiros a representar a saudade e o reencontro que o percussionista teve com a música brasileira após uma longa estadia no exterior -- um álbum que vai da música pernambucana às explorações baianas do afoxé, do canto e das explorações fonéticas e onomatopeicas ao uso de efeitos eletrônicos.