Por esses dias atrás, anjos e arcanjos receberam uma ordem de Deus: organizar uma festa cheia de música celestial para receber o genial multi-instrumentista, arranjador e compositor
Hermeto Pascoal, o mago dos sons que acaba de nos deixar. Enquanto isso, aqui no caos da Terra, ficamos com o privilégio de prestigiar sua ARTE cheia de ritmos com inflexões supercriativas, sons transcendentais, experimentos idiossincráticos e melodias marcantes. Os álbuns, vídeos, textos, entrevistas e outros documentos da sua ARTE ficarão cravados, portanto, como registros permanentemente cultuados nos ouvidos, mentes e corações de toda a gente que, a nível mundo, valoriza as artes da composição, da experimentação sonora e do improviso. A nível Brasil, então, Hermeto é ainda mais imprescindível: o nível artístico ao qual ele elevou a MPB somado ao esmero com o qual ele levou os adereços regionais dos nossos Brasis para os campos da composição e da experimentação é um dos pontos mais altos e de maior orgulho nacional. Não é concebível ser brasileiro, ser um verdadeiro patriota que valoriza toda a nossa riqueza cultural, e não admirar a obra de Hermeto Pascoal! Contudo, sabemos que num país tão desigual como o nosso, nem toda a gente, principalmente nas periferias, tem acesso à educação e informação de qualidade que apresente às pessoas a ARTE no seu mais elevado nível de criatividade e invenção tal qual concebida por Hermeto e outros gênios —— mesmo com a democratização da internet, os algoritmos tendem a submeter às pessoas uma overdose do popularesco e do mais medíocre pop. Faz-se necessário, portanto, que continuemos a reverberar essa arte aos quatro ventos para que ela atinja cada vez mais pessoas. Falecido aos 89 anos de idade, em 13 de setembro de 2025, o alagoano Hermeto Pascoal era mundialmente conhecido como uma figura praticamente mítica no universo da música, sendo chamado por diversos apelidos de caráter elogioso-mítico-apoteótico tais como
Campeão, Bruxo dos Sons, Mago da Música, Albino Louco (por causa da sua condição de albinismo) e tantos outros epítetos que ilustravam sua genialidade musical e sua imagem associada ao seu figurino nordestino e estilo icônico, com chapelão de baeta, barba medieval, cabelos longos e roupas largas e coloridas. E aqui no blog, homenageando e reverberando a vida e obra dessa figura lendária da música brasileira, lhes trago abaixo um podcast com 10 episódios com as principais fases e facetas do mestre —— para o fã e o ouvinte mais obstinado, indico também que ouça a série de quatro episódios sobre Hermeto na 👉
Rádio Cultura. Hermeto é um dos inventores da música brasileira: é o artista que praticamente misturou sons e ritmos de várias regiões do Brasil com elementos do jazz e do avant-garde internacional para criar uma música instrumental brasileira de altíssimo nível artístico que é valorizada como uma preciosidade da arte em todo o mundo. Contemporâneo, conterrâneo e amigo do acordeonista, violonista e cantor paraibano
Sivuca —— outro multiinstrumentista genial, também albino, que lhe ajudou e lhe inspirou no início de carreira ——, Hermeto Pascoal é aquele tipo raro de artista que já surgiu na cena musical como uma influência muito à frente do seu tempo. Músico autodidata nascido no povoado de
Olho d’Água em
Lagoa da Canoa, Arapiraca, Alagoas, Hermeto costumava dizer que já nasceu músico, e ia ainda mais além: dizia que já "nasceu música", considerando-se a si mesmo um corpo de música viva! Interessante, aliás, como Hermeto via o corpo, a vida e a simples materialidade das coisas como indissociáveis da música, aproveitando os sons dessas coisas, da natureza, dos animais, do cotidiano e de seus objetos para criar arte musical viva e pulsante. Com essa visão —— ou melhor: com essa cosmovisão —— ele construiu um conceito próprio de musicalidade que chamava de
"Música Universal", no sentido de que tudo no universo produz som e, portanto, tudo no universo pode ser música. Com o tempo, esse conceito de "música universal" recebeu muitos contornos artísticos, filosóficos, estéticos e até espirituais, mas as explicações de Hermeto para essa visão expandida da música eram sempre dotadas de simplicidade: ou seja, sua magia musical impressionava o mundo com suas alquimias sonoras complexas, mas nos momentos de dar entrevistas, ele se recorria a explicações simples ilustradas pelos mais variados devaneios lúdicos e pelos vários causos da sua infância no agreste nordestino. Por detrás dos seus ludismos e explicações aparentemente simples, porém, sempre houve uma genialidade melódico-rítmico-harmônica de grande profundidade e mistérios artísticos um tanto inexplicáveis quanto as suas alquimias sonoras. Para o fã de música mais obstinado que quiser adentrar mais profundamente à música universal de Hermeto, aconselho que procure dois documentários que explicitam um tanto da história de vida, da carreira e da áurea musical desse gênio através de lentes e olhares mais artísticos: um deles é
Hermeto Campeão, lançado pelo documentarista e fotógrafo húngaro-brasileiro
Thomaz Farkas em 1981; o outro é o recém-lançado
O Menino D’Olho D’Água, lançado em 2024 pelos documentaristas
Lírio Ferreira e
Carolina Sá. Ademais há diversos vídeos caseiros e amadores com Hermeto mostrando suas performances e habilidades. No YouTube há um vídeo chamado
Música da Lagoa (Sinfonia do Alto Ribeira, 1985), que é praticamente um happening onde Hermeto e seus sidemans criam música com flautas e garrafas dentro de uma lagoa no Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira Município de Iporanga, São Paulo. Para o ouvinte de "primeira viagem" que pouco ou nada conhece sobre Hermeto e agora deseja adentrar o universo do Mago, há inúmeros documentários e vídeos curtos no YouTube e várias entrevistas na web, nos quais o artista explicita sua cosmovisão musical. Esses vídeos, somados aos docs que aqui indico já são um compêndio bem completo para que o fã de música obtenha um olhar mais artístico, um overview mais panorâmico e uma assimilação mais ampliada das concepções da vida e da obra desse grande gênio da música instrumental brasileira.

O conceito musical de universalidade concebido por Hermeto Pascoal também comungava com a pós-modernidade dos encontros, das misturas, das amálgamas e fusões de estéticas. Sendo um dos músicos mais patriotas da história do Brasil, ele dizia ainda mais: "eu sou um músico brasileiro, mas minha música é universal". Esse conceito de universalidade também estava ligado, afinal, à sua premissa singular de misturar todos os sons, todos os ritmos e todos os elementos estéticos dentro do seu inovador estilo brasilianista. Da música mais árida dos pifes, das zabumbas e das sanfonas do Nordeste do Brasil ao jazz fusion mais psicodélico e eletrônico, dos cânticos dos repentistas das feiras de Arapiraca e reisados religiosos às canções modernas da MPB, dos sons afro-indígenas às violas caipiras do sertão nordestino e do pantanal do centro-oeste, do samba-jazz aos experimentos mais ruidosos à la avant-garde, dos solos mais bem polidos aos livres improvisos mais abstratos, da música erudita pós Villa-Lobos à música improvisada contemporânea, do choro ao tango argentino e aos sons sulistas dos gaúchos, dos instrumentos orgânicos aos instrumentos eletrônicos e sintetizadores, do canto e da fala ao assobio, dos sons das águas aos sons de panelas, chaleiras, apitos e brinquedos, dos sons corporais aos sons dos animais e da natureza..., Hermeto assimilou e misturou tudo isso, assimilou sons dos quatro cantos do Brasil, sons do jazz e doutros cantos do mundo e amalgamou tudo, criando arranjos com sonoridades e harmonias únicas, estruturas de composições inéditas e inovações sem precedentes. Antropofágico, Hermeto inovou em tudo: nos sons e nas misturas de sons, nas harmonias e nos timbres, nas formas e estruturas de composição, nas métricas ímpares de compassos variados em vários ritmos, nos arranjos e orquestrações e nas inflexões dos elementos das músicas regional e popular brasileira. Não foi à toa que mestres icônicos da história da música foram inspirados e influenciados por ele e lhe concederam homenagens efusivas. O bandoneonista argentino Astor Piazzolla, patriarca do tango, era um fã confesso de Hermeto Pascoal, que, por sua vez, dedicou algumas peças em sua homenagem. O icônico trompetista americano do jazz moderno Miles Davis —— que não era muito afeito a elogiar ninguém, diga-se de passagem... —— enalteceu de imediato sua genialidade e até contou com composições do Albino Louco (como Miles se referia a ele) em um dos seus discos de fusion no início da década de 1970. Tom Jobim, ao ver que sua bossa nova estava se tornando "música de elevador", logo foi inspirado por Hermeto a mudar de ares, vide as misturas evidenciadas a partir dos álbuns Stone Flower (CTI Records, 1970), Tide (CTI Records, 1970) e do quase sinfônico Matita Perê (Philips, 1973). Músicos geniais da MPB, em geral, se inspiraram nas ideias e arranjos de Hermeto e sonhavam contar com as colaborações do mago em suas gravações, sendo que apenas alguns poucos conseguiram: há participações do mago em poucos discos de cantores e instrumentistas tais como Geraldo Vandré, Tom Jobim, Edu Lobo, Elis Regina, Flora Purim, Airto Moreira, Taiguara, Fagner e Robertinho de Recife. Essas associações de Hermeto com alguns dos maiores cancionistas da história da música brasileira, entre outras poucas aparições suas em álbuns de canções, acaba por ser até um alento de esperança a partir de exemplos de como se eleva em muito o nível artístico da forma-canção através de uma estrutura de arranjos instrumentais mais exploratórios e expansivos e vice-versa —— tal como, por exemplo, Tom Zé também experimentou em seu conceito de "pós-canção"... ——, uma diretriz supercriativa da MPB que, hoje, parece estar esquecida —— para não dizer perdida. Abaixo, inclusive, dou ênfase para essa associação de Hermeto com os cancionistas, considerando que ele influenciou —— direta e indiretamente —— desde os bossanovistas até os tropicalistas, posteriormente incluindo músicos e cantores do Clube da Esquina e os artistas do Norte e Nordeste.
.jpg)
Tendo chegado ao Rio de Janeiro em 1958 aos 22 anos e tendo acompanhado importantes movimentos estéticos sudestinos no âmbito da canção popular brasileira, tais como a Bossa Nova, o Clube da Esquina, a Jovem Guarda e a Tropicália, Hermeto chegou a sofrer seguidos episódios de discriminação por causa dos seus trejeitos excêntricos e da sua aparência marcada pelo estrabismo e albinismo. Somando-se a isso, e talvez por conta disso, ele nunca se sentiu confortável com as tendências comerciais da época, nem foi atraído diretamente a esses movimentos para ganhar dinheiro, procurando trilhar um caminho próprio no qual as riquezas orgânicas dos sons, ritmos e regionalismos brasileiros —— do pife, da viola caipira, dos cânticos de reisado, dos repentistas, do baião, do frevo, das emboladas, do maracatu, do xaxado e de tantos outros —— fossem fundidas ao jazz, à bossa, ao choro, ao samba e a outros ritmos do sudeste para se criar uma nova música instrumental brasileira mais ampla em suas amálgamas. Dessa forma, Hermeto deixou sua genialidade falar mais alto e logo passou a representar, ele próprio, uma nova vanguarda da música brasileira no sentido estrito da música instrumental, tornando-se inspiração constante para músicos que estavam se descolando da cristalização da bossa nova, para os próprios tropicalistas, para a nova geração de músicos progressistas do choro e até para instrumentistas do Clube da Esquina, outro dos movimentos crescentes a partir de fins da década de 1960. O genial tropicalista Caetano Veloso, por exemplo, sempre o citou como influência e lhe dedicou ao menos duas canções, chegando a averbá-lo artisticamente com o termo "hermetismos pascoais" na canção "Podres Poderes", do álbum Velô (1984). Desde os tempos do emblemático Quarteto Novo —— uma das mais importantes bandas de transição entre a bossa nova e o samba-jazz rumo a uma expansão transformadora da música instrumental brasileira ——, Hermeto já era inspiração onipresente para os tropicalistas. Em 1967, o patriarca do tropicalismo Gilberto Gil esteve em Recife para apresentações no Teatro Popular do Nordeste e, durante essa estada, também foi levado a Caruaru, onde assistiu a uma apresentação da Banda de Pífanos de Caruaru, da família do Mestre Biano. Gil relata que o encontro o emocionou profundamente e lhe trouxe a ideia de que a sonoridade dos pífanos —— tradicional e profundamente regional ——, combinada à sua busca por arte moderna e pela sua predileção às tendências musicais da época, incluindo o rock progressivo dos Beatles, poderia funcionar como gatilho criativo inovador dentro do crescente movimento de modernização da canção brasileira. Esse episódio é apontado por pesquisadores e pelo próprio Gil como uma das sementes do Tropicalismo: a percepção de que o "popular regional" podia se amalgamar ao "internacional e moderno" e ser uma fusão logo transmutada pelo nacionalismo brasileiro de viés antropofágico foi logo desenvolvendo-se e tornando-se um caminho viável, até se tornar um movimento de força cultural capaz de ser grito de resistência contra a Ditadura Militar. Nesse sentido, inicialmente Gil pretendia reunir músicos capazes de expressar essa fusão nos festivais que se aproximavam, e um dos grupos visados foi justamente o Quarteto Novo —— formado por Hermeto Pascoal, Airto Moreira, Theo de Barros e Heraldo do Monte ——, que já vinha proporcionando ao cantor Geraldo Vandré e suas canções de protesto um sopro de inovação com fusões precursoras entre ritmos nordestinos e sudestinos, inclusive lhe proporcionando prêmios e destaques em festivais da canção. A proposta de Gil e seus colegas baianos teria sido algo como "fazer uma coisa nova", misturando influências nordestinas com o rock internacional da época —— que, por influência das guitarras psicodélicas a La Jimmy Hendrix e dos experimentos de Frank Zappa, já estava, aliás, tomando as vias progressivas ——, mas, segundo o jornalista Carlos Calado no livro Tropicália – A História de uma Revolução Musical, os músicos do Quarteto Novo recusaram, talvez por considerarem que aquele novo rock internacional —— dos Beatles, Rolling Stones e das guitarras progressivas —— não combinava com sua estética estritamente brasilianista. Esses fatos revelam facetas complementares no processo de idealização da Tropicália, a maior revolução de modernização estética da canção brasileira ao lado da revolução mineira do Clube da Esquina: a inspiração de estéticas regionais, como os sons da Banda de Pífanos de Caruaru sendo experiência sensorial decisiva; a tentativa de fundir rock e regionalismos para se criar uma canção moderna nacional em estruturas inovadoras, com o Quarteto Novo sendo pleiteado, uma vez que Hermeto e seus colegas já vinham misturando regionalismos com bossa nova e jazz; as inspirações dos sons lisérgicos e progressivos de Beatles, Rolling Stones e outras bandas de rock inglesas e americanas sendo abrasileiradas pela nossa antropofagia, conceito iniciado pelo poeta modernista Oswald de Andrade já na década de 1920 através do ensaio Manifesto Antropófagico; e poemas e estéticas de vanguarda transmutando a oralidade brasileira pelas vias do concretismo sendo somados aos experimentos que transformavam as sonoridades em música livre, e todas essas artes sendo resistência contra o regime militar. Essa foi a receita tropicalista para a rica fusão de ingredientes que revolucionou a canção popular brasileira no final dos anos 60. E conta-se, então, que Hermeto já era muito admirado por artistas e cantores da época por suas misturas, ideias e arranjos experimentais que já estavam muito à frente do seu tempo. O fato é que tanto antes como depois do auge da Tropicália, Hermeto e sua música instrumental livre e experimental sempre estiveram no centro das inspirações, embora ele recusasse participar desse e doutros movimentos cancionistas. A negativa do Quarteto Novo levou Gil e Caetano a buscarem parcerias de outros músicos com atestada expertise de arranjo como os maestros Rogério Duprat e Júlio Medaglia, os guitarristas Lanny Gordin e Pepeu Gomes além de colaborações com Tom Zé e Os Mutantes, conduzindo a canção a uma revolução estética diferente do amalgamento instrumental representado por Hermeto e os membros do Quarteto Novo. Após ampliar sua visão e experiência nos EUA no início da década de 1970, Hermeto continuou a evidenciar amálgamas ainda mais experimentais, inovadoras e surpreendentes, com procedimentos que seriam assimilados e incorporados em álbuns de diversos artistas da MPB que buscavam expandir a arte da canção por meio de uma ossatura instrumental mais variada, rica, complexa e até experimental. Há até teses de musicólogos e críticos que consideram que Hermeto Pascoal representou, ele próprio, tanto um artista que inspirou os tropicalistas no início do movimento como a própria superação do Tropicalismo numa veia instrumental exponencialmente mais expandida: o próprio Gilberto Gil relaciona Hermeto dentro dessa linha evolutiva, onde a visão é de que seu inovador instrumental de fusões representou uma espécie de extensão do tropicalismo em algo que transcendeu para além dos limites estéticos desse movimento —— uma espécie de pós-tropicalismo. Por consequência, Hermeto Pascoal obtém a rara façanha de ser um músico experimental pioneiro e inovador do gênero "música instrumental brasileira" e também ser enxergado pela mídia como um ícone do gênero que se convencionou rotular como "MPB". De fato, ainda que Hermeto não tenha priorizado parcerias com cantores, pois seu foco era a revolução dos sons, dos arranjos, harmonias e das misturas de timbres e métricas rítmicas ímpares no campo estritamente instrumental, ainda assim suas poucas participações em álbuns de cancões aqui mencionadas —— entre outras de suas parcerias pouco valorizadas pela mídia... —— foram emblemáticas e enriquecedoras, mostrando que a forma-canção já foi veículo de arte inovadora na história da música popular brasileira. Neste podcast, como já dito, incluo alguns exemplos de álbuns nos quais Hermeto é citado ou influencia diretamente nos arranjos em parcerias com cantores icônicos da MPB.
Na amplitude e profundidade da riquíssima música instrumental brasileira propriamente dita, não seria exagero dizer que, de fins dos anos 60 até hoje, Hermeto tenha sido o mestre mais influente para a maioria —— senão para todos —— dos músicos e improvisadores que se dispuseram a criar música instrumental nova. Aliás, a influência de Hermeto reverberou no tempo e hoje atinge inúmeros músicos das novas gerações e dos mais variados estilos e gêneros ao redor do mundo. A começar pelos próprios músicos ligados ao universo particular de Hermeto, temos grandes instrumentistas que seguiram desenvolvendo arte musical inovadora fora de série em suas carreiras, tais como o pianista e tecladista Jovino Santos Neto, o saxofonista e flautista Carlos Malta, o baterista Nenê, o contrabaixista Itiberê Zwarg, os irmãos Lelo e Zé Eduardo Nazario (do emblemático Grupo Um) e músicos das novas gerações como o pianista André Marques, o saxofonista e flautista Jota P., e a clarinetista Joana Queiroz, entre tantos outros. Para além dos instrumentistas admiradores de Hermeto que participaram das inovações da bossa nova, da tropicália, do Clube da Esquina, do choro, do samba-jazz e das fusões transformadoras dos anos 60, 70 e 80, nas últimas décadas inúmeros grupos, ensembles e músicos mais jovens, de diversos gêneros musicais do Brasil e do mundo passaram a enaltecer a arte do Mago dos Sons como inspiração e influência inconteste: da orquestra Vintena Brasileira à orquestra interdisciplinar alemã Andromeda Mega Express Orchestra, do multi-instrumentista britânico Jacob Collier ao pianista americano Jason Moran, do produtor e DJ holandês Jameszoo ao pianista galês Huw Warren e ao saxofonista e compositor japonês Naruyoshi Kikuchi... há inúmeros grupos, bandas e músicos das gerações mais jovens que se inspiram em Hermeto e o citam como influência universal inconteste. Em um dos episódios de podcast abaixo, inclusive, dedico-me a mostrar peças e tributos gestados por esses e vários outros artistas que se inspiram no Mago. Com uma obra tão diversa quanto vasta, de milhares de composições, Hermeto ainda deixou um inexplorado —— ou pouco explorado —— catálogo de criações chamado Calendário do Som, um projeto no qual ele teve a generosa ideia de "homenagear todos os aniversariantes do mundo compondo uma peça para cada dia do ano", incluindo o 29 de fevereiro do ano bissexto: idealizado entre 1996 e 1997, o projeto gestou 366 peças registradas em partituras, que foram publicadas num book em 2000 lançado pelo selo SENAC em parceria com o Itaú Cultural e encontra-se disponível para venda nos principais marketplaces. Recentemente o pianista erudito Uaná Barreto imergiu nesse catálogo e lançou um álbum requintado com suas leituras para as peças dedicadas ao mês de Janeiro, álbum que tem sido bem elogiado e foi reconhecido pela Billboard Brasil como um dos 50 melhores discos brasileiros de 2025 —— uma dica fresca para os fãs de piano. Esse raio de influência mostra, aliás, o quanto a mídia brasileira ainda não valoriza Hermeto com a grandeza que ele merece.

Ademais, Hermeto Pascoal foi um artista tão ativo e elogiado, e dono de uma arte musical tão atemporal, que sua vida e obra chegam a passar a impressão de que ele jamais esteve fora dos holofotes e das menções honrosas, isso desde quando se despontou como um gênio até hoje, e mesmo em fases da carreira dedicadas ao descanso, ao retiro e à família. Nas últimas duas décadas, Hermeto vinha recebendo frequentes homenagens, honrarias e exposições. Em dezembro de 2010, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em seu segundo mandato, concedeu a Hermeto a prestigiada Ordem do Mérito Cultural, honraria do governo federal destinada a personalidades que contribuem para o desenvolvimento da identidade cultural brasileira. Mais recentemente, o grande trompetista e compositor Wynton Marsalis enalteceu de forma entusiasmante a música de Hermeto no Jazz at Lincoln Center, em Nova Iorque, e foi o anfitrião que lhe concedeu, em 2023, o título de Doutor Honoris Causa pela Juilliard School, a mundialmente renomada escola de música e artes sediada no complexo do Lincoln Center. Já em seu aniversário de 80 anos, ele foi celebrado com exposições em Curitiba e Rio de Janeiro, e, em seu aniversário de 88 anos, em 2024, recebeu em São Paulo a exposição Ars Sonora, sob curadoria do poeta Adolfo Montejo Navas. Essas exposições mostraram, de forma visual e sensível, o universo lúdico-imagético de Hermeto por meio de mostras de seus inúmeros objetos usados para fazer música, seus desenhos, de suas partituras coloridas, da sua coleção de chapéus pintados com notas musicais e de vários outros adereços de seu universo pessoal. Nos últimos anos, Hermeto também foi figura frequente no Grammy Latino, tendo recebido o prêmio por três dos seus últimos álbuns da carreira: Natureza Universal (2017), vencedor na categoria Melhor Álbum de Jazz Latino; Hermeto Pascoal e sua Visão Original do Forró (2018), vencedor na categoria Melhor Álbum de Música de Raízes em Língua Portuguesa; e Pra Você, Ilza (2024), vencedor novamente como Melhor Álbum de Jazz Latino. Esses três discos, ainda que não percorram toda a vastidão da obra de Hermeto, são três excelentes exemplos da sua amplitude e das facetas complementares de sua invenção. Em Natureza Universal, um projeto de big band que abraça uma das poucas formações ainda ausentes na lista de grupos formados pelo Mago, destacam-se arranjos e sobreposições não menos geniais de frases melódicas que se desdobram em compassos ímpares e formas singulares, alternando-se em motivos cantáveis e elementos motívicos entre o paisagístico e o abstrato, com arranjos e sobreposições rítmico-melódicas não menos que imprevisíveis, oferecendo uma supercriativa leitura orquestral para as composições que Hermeto escreveu para seu Grupo e para outras formações menores. Em Hermeto Pascoal e sua Visão Original do Forró, o compositor reafirma a amplitude de sua leitura do forró como uma espécie de um "gênero guarda-chuva" que engloba subgêneros do regionalismo nordestino, e alcança até outras referências regionais: o disco mostra que Hermeto entendia o forró —— que originalmente é, sobretudo, um termo para se denominar uma espécie de festa popular com vários tipos de danças nordestinas —— como um campo que abarca estilos que vão das cirandas e arrasta-pé ao baião, passando pelo frevo bailado (como na faixa em "Sivucando no Frevo", por exemplo) e chegando até a moda de viola pantaneira e a rancheira e os bailados gaúchos, evocando diversos trejeitos, sotaques e práticas dos sanfoneiros brasileiros que dialogam com danças regionais, tendo a sanfona de oito baixos como instrumento central. Por fim, Pra Você, Ilza surge como obra última do seu emblemático Hermeto Pascoal & Grupo, uma obra de despedida e afeto: o álbum reúne peças que aludem à memória afetiva e familiar na figura da sua esposa, Dona Ilza, que inspirou várias composições e ficou marcada como anfitriã generosa para todos que visitavam Hermeto, recebendo com alegria inúmeros músicos, amigos, jornalistas e celebridades na casa do casal no bairro Jabour, em Bangu, Rio de Janeiro, e sempre servindo os amigos, convidados e visitantes com seus saborosos quitutes e com a sua inesquecível feijoada. Também em 2024, um ano antes de seu falecimento, nosso querido Mago recebeu de presente a publicação de um excelente livro escrito pelo diletante jornalista e pesquisador paulistano Vitor Nuzzi chamado Quebra Tudo – A Arte Livre de Hermeto Pascoal. De fato, podemos afirmar que tivemos na figura de Hermeto um ícone da música brasileira que desconheceu limitações mercadológicas sobre o que significa estar "no auge" ou não, pois Hermeto nunca foi comercial, nunca dependeu de tendências e esteve no auge desde o início da carreira. Hermeto já nasceu músico, já nasceu música e, enquanto houver vida inteligente colocando algo para tocar no streaming ou na vitrola, sua arte nunca morrerá. Viva o legado de Hermeto Pascoal, viva o Brasil e seus ritmos, viva a cultura e a música brasileira! Aqui, neste podcast, em homenagem a esse mestre icônico, apresento 10 episódios que percorrem seu conceito de “música universal” e sua influência no Brasil e no mundo. Ouçam!
Fase pós Bossa Nova (1965-1969) - Encontros com Sivuca, Heraldo do Monte e Airto Moreira, cena pré-Tropicália e a transição do samba-jazz para um novo instrumental brasileiro: Sambrasa Trio, Quarteto Novo e Brazilian Octopus
Estadia nos EUA (1970–1972) – Trabalhos com Donald Byrd, Miles Davis e outros grandes músicos do jazz-fusion, com Airto Moreira e Flora Purim, sua introdução aos instrumentos eletrônicos e seu primeiro disco solo 'Hermeto' (1970)
Retorno ao Brasil & fase mais Experimental (1973–1981) – Música Universal: misturas exploratórias de eletrônica, avant-garde, sons da natureza, ruídos e ritmos vários: samba, choro, baião, frevo, maracatu, coco, adereços nordestinos
Hermeto Pascoal & Grupo no bairro Jabour (1982-92) - Música Universal: concisão composicional, sons lúdicos e Som da Aura: explorações de vozes e versos, bandinhas (de pife, frevo, coreto), pássaros, métricas, efeitos bitonais, etc
"Hermetismos Pascoais" - A influência de Hermeto na MPB: inspirações, participações e arranjos do mago em discos com Vandré, Caetano, Taiguara, Edu Lobo, Elis Regina, Tom Jobim, Fagner, Robertinho de Recife e Alceu Valença
Hermeto ao piano solo e sozinho tocando todos instrumentos: os álbuns Por Diferentes Caminhos e Eu & Eles
Chimarrão com Rapadura - Fase em Curitiba, parceria com Aline Morena e incursões gaúchas, pantaneiras, latinas e regionais: do forró ao tango de Astor Piazzolla, incluindo chamamé, milonga, traços caipiras e sul-americanos
A influência mundial de Hermeto: grandes músicos contemporâneos (de vários gêneros) que se inspiram nele: Délia Fischer, Jacob Collier, Jameszoo, Huw Warren, Naruyoshi Kikuchi, Jason Moran, Andromeda Express Orchestra, etc
Hermeto com Big Band e com a Vintena Brasileira: as geniais composições do Mago em arranjos orquestrais
Hermeto Pascoal & Grupo - Anos 2000, 2010 e 2020: os álbuns Mundo Verde Esperança (2002), No Mundo dos Sons (2017) e Pra você, Ilza (2024) e os últimos anos de carreira com exposições, honrarias e seu livro "Quebra Tudo"