Chegamos no meio do ano de 2022 -- ainda tentando deixar para traz a morbidade e o espectro pandêmico destes tempos e tentando vislumbrar uma retomada definitiva de vida normal, com eleições políticas e a Copa Mundial de Futebol à vista, diga-se de passagem -- e as artes novamente são as poucas coisas desse mundo distópico a nos salvar e nos dar sentido para a vida. Neste post, quero lhes trazer uma sequência de registros criativos nas searas da música erudita contemporânea e cercanias, os quais realmente evidenciam que os momentos de lockdown nos últimos dois anos propiciaram verdadeiros rompantes criativos na arte da música -- seja pelo fato dos músicos e compositores sentirem a necessidade de revelação e autorreflexão e de manterem a sanidade pelas vias criativas, seja pelo fato dos músicos e compositores terem tempo e a oportunidade de tirar seus projetos inacabados e suas composições das suas gavetas e dos seus baús de preciosidades. Do compositor alemão Matthias Pintscher à compositora e experimentalista queniana Nyokabi Kariũki, da violinista coreana-americana Jennifer Koh ao manipulador de eletrônicos holandês Yannis Kyriakides, a ideia deste post é dar uma dedicação mais focal para a produção erudita de vários compositores ao redor do mundo nessa fase ebulitiva em que vivemos -- tanto os compositores jovens quanto os veteranos. Para quem quer ficar por dentro das últimas novidades da música erudita, clique na tag respectiva. Clique nos álbuns para ouvi-los.
No Brasil, tivemos no mês de junho a décima primeira edição do Festival Tinta Fresca, evento que prioriza estreias de peças inéditas de novos compositores. Realizada na cidade de Belo Horizonte, no Estado de Minas Gerais, o festival é gerido pela Orquestra Filarmônica de Minas Gerais e é um prato cheio para compositores -- de todas as idades -- que estão buscando exprimir sua própria voz composicional. Sendo um festival de caráter competitivo, as peças precisam ser compostas para o formato instrumental sinfônico padrão e passam pelo crivo de uma exigente banca de jurados, compostos por compositores e musicistas já aclamados. O Festival Tinta Fresca foi realizado ininterruptamente de 2008 até 2019, só sendo interrompido em 2020 e 2021 por causa dos efeitos negativos da COVID-19. Trata-se de um tipo de evento mais do que necessário para a música erudita brasileira, que até tem muitos compositores criativos, mas tem poucas oportunidades de mostras e registros das obras desses compositores. Nesta 11ª edição, os cinco finalistas foram os compositores Marcelo Butcher com a peça "Iniciação nas cores", Marcelo Bellini Dino com a peça "Isocronia", Willian Lentz com a peça "Cores Dissolutas", Jônatas Reis com a obra "Bartokianas Brasileiras" No.1 e Rubens Fonseca com a peça "Sublimações Antárticas". Fiquemos atento a esses novos compositores da música erudita contemporânea no Brasil. Clique na imagem acima e assista ao concerto com as cinco peças finalistas.
★★★★★- Perspectives (Cedille, 2022) - Third Coast Percussion.
Explorando um território musical vasto que cobre do modernismo, passando pelo minimalismo e englobando as intersecções mais abertas do pós-minimalismo com influências do jazz contemporâneo, da eletrônica e do avant-pop, o Third Coast Percussion é um dos mais aclamados ensembles de percussão dos EUA. Recentemente os ouvintes brasileiros mais antenados pôde ouvir a excelente parceria que esse quarteto de percussão empreendeu com Clarice Assad e Sergio Assad (do Duo Assad) no álbum Archetypes (Cedille Records) -- abordado aqui no blog, inclusive --, onde esses ecos minimalistas foram proficientemente misturados aos elementos do jazz, da percussão brasileira e da brasilidade ecoada na voz de Clarice e no violão de Sergio. Neste álbum acima, temos o Third Coast Percussion interpretando obras de Danny Elfman (nome maior do pop new wave nos anos 80, famoso compositor de trilhas sonoras e excelente compositor erudito entusiasta do jazz e do minimalismo), Philip Glass (um arranjo para "Metamorphosis I", composta originalmente para piano), além de uma peça composta eletronicamente pela produtora e DJ Jerrilynn Patton (aka Jlin) e uma peça elaborada pelo Duo Flutronix ("Rubix"), inovadora dupla de flauta e eletrônica. Todas as peças do álbum são dotadas de arraigada contemporaneidade e recebem excelentes interpretações, mas a peça mais surpreendente do álbum é "Perspective", uma intrincada e bem ritmada suíte de 30 minutos onde o ensemble usa os sons de tigelas de metal cheias de água, vários gongos e outros kits de percussão numa "transcrição" acústica hipnótica da peça original elaborada pela produtora de música eletrônica Jlin (Jerrilynn Patton): elaborada originalmente por meio de eletrônicos e overdubs sobrepostos -- ou seja, com cada uma das camadas sendo compostas eletronicamente e sendo sobrepostas uma de cada vez, sem notação gráfica ou escrita em papel --, os quatro músicos do Third Coast mentalizaram cada uma das camadas entrelaçadas e conseguiram uma interpretação acústica mais próxima possível da versão eletrônica, alcançando uma versão que pudessem gravar e mostrar em performances ao vivo.
★★★★ - Nemeton (Alpha Classics, 2021) - Matthias Pintscher.
O compositor alemão Matthias Pintscher é o diretor artístico do aclamado Ensemble Intercontemporain -- aclamada orquestra fundada por Pierre Boulez nos anos 70 -- e mantém uma intensa e ativa criação musical orquestral, vocal e camerística. Podemos dizer que Matthias Pintscher, nascido da escola formalista do modernismo europeu -- tendo Hans Werner Henze como um dos seus professores --, é um dos jovens compositores a renovar a criação musical em torno das estéticas modernistas europeias, exprimindo quase sempre uma escrita intrincada e uma sonoridade repleta de dinâmicas entre silêncios e rompantes, verdadeiramente tentando alcançar uma espécie de expressionismo europeu renovado. Neste álbum duplo acima, o compositor reúne um conjunto de peças que ele compôs entre 2000 e 2018 para diferentes instrumentos. A primeira peça deste álbum duplo é "Nemeton for Solo Percussion": a peça -- baseada na predileção imagética que o compositor tem por locais misteriosos de rituais sagrados, tais como o Stonehenge e a Catedral de Chartres, por exemplo -- traz um mix de timbres acústicos de instrumentos de percussão acionados em sequência ou sobreposição pelo percussionista, com uma atmosfera que a todo momento nos prende a atenção através da sua ênfase timbrística e do seu caráter misterioso. A peça seguinte é "Mar'eh for Violin and Ensemble": nesta peça de concerto o compositor evidencia que as timbrísticas que ressoam sequenciais ou sobrepostas entre variadas dinâmicas de intensidade -- de silêncio, pianíssimos, piano e rompantes de forte e fortíssimo -- são mais importantes do que o desejo de se exprimir toda a tecnicidade do instrumento solista, fazendo com que os solos de violino atuem quase sempre numa inusual função timbrística por cima dos outros instrumentos de timbres diferentes, soando quase sempre no registro agudíssimo, explorando glissandos e longas notas meditativas antes de se misturar em rompantes e entrelaces intrincados com os outros instrumentos. Já a peça seguinte, "Nur for Double Bass, Three Cellos, Instruments and Live Electronics" é um jogo semelhante de dinâmicas entre silêncios e as várias intensidades dos sons e dos timbres acústicos e eletrônicos, mas dessa vez explorando as timbrísticas dos instrumentos mais graves: as notas graves dos cellos e contrabaixos somados aos eletrônicos e aos espaçamentos misteriosos produzem efeitos de prender a atenção do ouvinte mais aplicado. O álbum segue, então, com a peça vocal "Lieder for Soprano and Piano", com "Beyond" para flauta solo e termina com a fantástica peça "Sonic Eclipse", onde o compositor leva o trompete, a trompa e outros horns metálicos para o cúmulo desse seu jogo de dinâmicas entre o silêncio, as intensidades e os rompantes inesperados.
★★★★¹/2 - peace places: kenyan memories (SA Recordings, 2022) - Nyokabi Kariũki.
Usando gravações de sons da natureza e outras gravações de campo em misturas com teclados, kalimbas, eletrônica experimental e recursos vocais que inclui o uso de cânticos, sons fonéticos, frases e palavras em idiomas como inglês, kiswahili (lingua oficial do Quênia), e línguas tribais como o kikuyu e o massai, a compositora queniana Nyokabi Kariũki lançou neste início de 2022 este elogiadíssimo EP peace places: kenyan memories que promete teletransportar o ouvinte para uma viagem mais do que interessante. Nyokabi Kariũki é praticamente uma nômade -- nos sentidos artístico e geográfico -- que transita com frequência nos circuitos da música exploratória de Nova York, Maryland e Nairóbi, com trabalhos que incluem música erudita contemporânea, música vocal, cinema, música experimental em geral, design sonoro, eletrônica e o uso de elementos das tradições musicais do Leste da África. Este EP, porém, foi gravado em um momento onde a artista africana se viu paralisada pela pandemia, num momento de grande saudade do Quênia e da impossibilidade de viajar para sua terra natal, e portanto funciona como um pequeno repositório de memórias sonoras da sua criação em terra natal e dos lugares físicos e emocionais que lhe trazem memórias de paz. Apesar de ser um EP curto de seis peças, o conjunto da obra nos expõe a uma viagem inebriante pelas imagens sensoriais que Nyokabi Kariũki evoca através das suas explorações e experimentos, em alguns momentos expressando uma certa letargia distópica característica das consequências pandêmicas como se a artista, impossibilitada de viajar por meio de conexões aéreas, estivesse acessando esses "lugares de paz" através de sonhos ou memórias longínquas.
★★★★★ - X: The Life and Times of Malcolm X & varios outros títulos...(BMOP/sound, 2022) - Boston Modern Orchestra Project.
A Boston Modern Orchestra Project, de Massachusetts, é uma das principais orquestras americanas dedicadas a formar um arquivo fonográfico de peças de compositores contemporâneos. Em 2008, após já dispor de um arquivo de quase doze temporadas de gravação, a Boston Modern Orchestra Project lançou a sua própria gravadora, a BMOP/sound, fornecendo ao seu público um arquivo de dezenas de gravações de peças dos compositores americanos do século 20 e deste início do século 21. Atualmente, a BMOP/sound pode ser apreciada nas principais plataformas de streaming -- com uma atrativa página no Bandcamp, por exemplo -- e é considerada uma das principais gravadoras independentes dos EUA lançada por uma orquestra a ser exclusivamente dedicada à música moderna e contemporânea, com muita ênfase em gravações de peças inéditas e peças ainda pouco exploradas que têm potencial para adentrar ao repertório contemporâneo. A coleção de registros documentados pela BMOP/sound é um bom exemplo de como as plataformas e a dinâmica do pós-modernismo vigente nos últimos tempos já não combinam com repertórios classicistas estigmatizados e, portanto, já predispõe aos músicos e ensembles maior ecletismo e flexibilidade na formação de público e repertório. Em um curto período do ano de 2020 e primeira metade de 2022, fase mais crítica da pandemia da COVID-19, a BMOP lançou em seu selo duas dezenas de novas gravações, abordando obras de compositores tais como Gunther Schuller (The Fisherman and His Wife), Eric Nathan (The Space of a Door), Harold Shapero (Orchestral Works), Charles Wuorinen (Haroun and the Sea of Stories), Elliott Carter (Ballets), John Adams (Chamber Symphony), John Corigliano (To Music), Roger Reynolds (Violin Works) e Matthew Aucoin (Orphic Moments), entre outros. Já na segunda metade de 2022, está prevista para ser lançada a gravação da aclamada peça X, The Life and Times of Malcolm X -- baseada na vida desse referido ativista dos Direitos Civis, figura de grande importância na história dos EUA --, peça que foi escrita pelo compositor Anthony Davis (também conhecido por sua carreira no jazz avant-garde) e estreada nos anos 80 em uma produção do American Music Theatre Festival, posteriormente recebendo versões revisadas e expandidas pela New York City Opera em 1986 e pela Oakland Opera Theatre em 2006 -- aliás, tendo sido primeiramente gravada em disco pela Orchestra of St. Lukes em 1992, sob regência de William Henry Curry, trata-se de uma das emblemáticas peças do final do século 20 a já tornar-se um clássico americano do repertório contemporâneo. A Boston Modern Orchestra Project é, pois, uma entidade vital para a música erudita contemporânea nos EUA!
★★★¹/2 - Alone Together (Cedille, 2021) - Jennifer Koh.
Poucas violinistas do reino clássico tem a visão eclética e contemporânea que a violinista Jennifer Koh vem evidenciando em seus últimos registros. Deixando, por ora, as "pompas e circunstâncias" dos concertos clássicos e românticos, a violinista americana -- de descendência coreana -- mais uma vez lança um projeto no qual se aventura em um repertório formado exclusivamente por compositores contemporâneos advindos de várias estéticas. Nesta gravação acima, a violinista lança uma seleção de peças curtas para violino solo escritas por compositores como Du Yun, Vijay Iyer, Tania Léon, George Lewis, Missy Mazzoli, Ellen Reid e Wang Lu, a acrescenta outras tantas peças de compositores emergentes que esses mesmos compositores já consagrados lhe recomendaram: incluindo, então, peças de Katherine Balch, Nina Shekhar, Lester St. Louis, Rajna Swaminathan, Darian Donovan Thomas e Sugar Vendil. O projeto Alone Together, amplamente influenciado pelas consequências da pandemia da COVID-19, é fruto de uma série de performances on-line nas quais a violinista se aventurava em explorar o violino solo, algo que lhe inspirou a contatar esses compositores e a gravar este registro formado por peças exclusivamente inéditas. É preciso lembrar que em 2020 Jennifer Koh já lançara um registro semelhante: uma série de peças escritas para serem exploradas em duos com alguns dos próprios compositores aqui mencionados e outros... -- registro que indiquei aos nossos leitores aqui no 👉 blog.
★★★¹/2 - Bayou-Borne/ Jitterbug (Moving Furniture Records, 2022) - Annea Lockwood performed by MAZE.
Recentemente abordamos aqui no blog a música e arte da compositora-ambientalista neozelandesa Annea Lockwood, que a partir de fins da década de 60 criou sua assinatura musical própria misturando aspectos da eletroacústica e da música conceitual inspirada pelo Movimento Fluxus com suas explorações de sons pré-gravados da natureza (sons de rios, ventos, queimadas, insetos, florestas e etc), além de incorporar o audiovisual como um ingrediente recorrente das suas amostragens. Aqui neste álbum, pois, temos a gravação de duas peças elaboradas por Annea Lockwood neste início de século 21: Bayou-born, for Pauline (2016) e Jitterbug (2007). O ensemble responsável pela gravação é o MAZE, um coletivo de Amsterdã, Holanda, que atua com várias práticas exploratórias, formas abertas, improvisação livre, partituras com notações híbridas/inusuais, e performances que subvertem os padrões usuais da música erudita -- o ensemble frequentemente colabora com compositores e improvisadores como Christian Marclay, Barbara Ellison, Robert Ashley, Alvin Lucier (falecido em 2021), Okkyung Lee, Michael Pisaro e Peter Ablinger. A peça Bayou-born, for Pauline (2016) foi composta em homenagem à compositora e experimentalista texana Pauline Oliveros para ser apresentada na mostra Still Listening: New Works in Honor of Pauline Oliveros (1932-2016), realizada na McGill University, Canadá, em 2017: imaginando a infância de Pauline no Texas, a peça é baseada na partitura gráfica de um mapa dos seis rios-igarapés que atravessam a cidade de Houston até a região de Galveston Bay, com seis músicos improvisadores representando cada um dos cursos dos rios. Enquanto a peça Jitterbug (2007), originalmente elaborada para a Merce Cunningham Dance Company, é baseada numa partitura gráfica representada por imagens de rochas e em sons pré-gravados de insetos aquáticos e terrestres, ambos captados nas Montanhas Rochosas de Glacier Park, Montana. Essas peças de Annea Lockwood misturam, então, os sons texturais dos instrumentos acústicos numa química orgânica com os sons texturais eletrônicos e esses sons da natureza pré gravados, criando uma música meditativa e profunda através dessas partituras gráficas e dessas imagens audiovisuais. O MAZE é formado por Anne La Berg (flauta, eletrônicos), Dario Calderone (contrabaixo), Gareth Davis (clarinete baixo), Yannis Kyriakides (eletrônicos), Wiek Hijmans (guitarra) e Reinier van Houdt (piano, eletrônicos).
★★★★ - La Mode (2021) - Yannis Kyriakides & Tomoko Mukaiyama.
O compositor e manipulador de eletrônicos Yannis Kyriakides -- nascido no Chipre, radicado na Holanda -- é um dos mais interessantes criadores dos ramos da música erudita contemporânea e música experimental em geral. Em 2021, Kyriakides aproveitou o recesso pandêmico para lançar o registro de um projeto chamado La Mode. Trata-se de uma obra executada em parceria com o pianista Tomoko Mukaiyama e o diretor de fotografia Reinier van Brummelen, onde Yannis Kyriakides faz uma justaposição entre o design musical e o design da moda: inicialmente sendo apresentada como instalação audiovisual no National Taichung Theater, Taiwan, a peça procura exprimir em sons aspectos inerentes ao mundo fashion tais como o glamour, o consumismo, o desejo, e o diálogo interior de insegurança, autoimagem distorcida e alienação social. Quatro anos depois, aproveitando o isolamento social provocado pela COVID-19, Yannis Kyriakides aproveita para registrar em CD a peça de La Mode e alcança uma ótima conexão com esse momento pandêmico onde a moda se torna ainda mais efêmera em um mundo distópico marcado quase que totalmente pelos ambientes virtuais dos celulares, das lives, das câmeras e dos computadores.
★★★★ - Michael Oesterle: Quatuors (DAME, 2022) - Quatuor Bozzini.
Com sede em Montreal, Canadá, o Quatuor Bozzini é um dos mais importantes quartetos de cordas da América do Norte especializados em música erudita contemporânea e música experimental. Neste álbum acima, o quarteto empreende mais uma comissão para algumas peças compostas por Michael Oesterle, compositor alemão radicado em Quebec e naturalizado canadense -- a parceria entre o quarteto e o compositor remonta-se, aliás, desde finais da década de 90. As peças de Michael Oesterle são inventivas, lúdicas, meditativas e têm uma criativa pré disposição para os efeitos e as combinações do pós-minimalismo. Neste álbum acima temos, então, quatro obras escritas para esse formato de cordas: String Quartet No. 4, Daydream Mechanics, Three Pieces for String Quartet e String Quartet No. 3 “Alan Turing”. Para além da natural necessidade de compor, Michael Oesterle também costuma se inspirar em temáticas específicas ou conferir certos contextos às suas peças. A peça Daydream Mechanics, por exemplo, é inspirada no livro Mécanique Jongleuse da poetisa canadense Nicole Brossard e explora figuras hipnóticas, brincando na fronteira entre memória e percepção. O Quarteto de Cordas nº 3 “Alan Turing” é uma homenagem ao cientista inglês que foi o principal precursor e pioneiro da ciência da computação nos anos 50 -- vide o filme The Imitation Game (O Jogo da Imitação), estrelado por Benedict Cumberbatch, com roteiro de Graham Moore e sob direção de Morten Tyldum. Já o String Quartet No. 4 é uma obra que exprime um interessante horizonte atmosférico de calmaria e se dinamiza entre sketches melódicos e efeitos singelos. Como o Quatuor Bozzini bem explicita na plataforma do Bandcamp sobre a música de Michael Oesterle,"...in all his music, the search for balance in the musical materials, which are geometric and expressive, is at the forefront".
★★★★ - Nine Numbers (Cantaloupe Music, 2022) - Jason Treuting.
Jason Treuting -- percussionista já abordado aqui no blog, no post onde abordamos a história da percussão na música moderna e contemporânea -- é membro do aclamado ensemble americano Sō Percussion e criativo compositor de música nova não categorizável. Assim como seu ensemble, que vem dando novas abordagens para a percussão contemporânea -- muito alinhado com as possibilidades pós-minimalistas, mas também com a música eletrônica mais atual --, Jason Treuting segue empreendendo projetos solo onde novas intersecções estéticas e novas sonoridades são experimentadas. Baseando-se nos mistérios do sudoku, um jogo japonês de quebra-cabeça, Treuting expõe neste projeto acima criativas explorações rítmicas e faz um curioso uso percussivo da voz e das palavras em interação com instrumentos eletrônicos e kits sortidos de percussão (marimba, blocos, sinos e outros itens). Para além do rico uso da oralidade vocal e dos sons fonéticos, a riqueza de detalhes também se dá pelas parcerias que agregam um ainda maior valor às peças. Participam do projeto musicistas e ensembles como o Tigue, o Troika Percussion, o aclamado duo de percussão formado por Todd Meehan e Doug Perkins (o Meehan/ Perkins Duo) e os percussionistas experimentais Shelby Blezinger-McCay, Yang Chen e Yumi Tamashiro.
★★★★★ - Tús (New Focus Recordings, 2022) - Finola Merivale.
A pianista e compositora irlandesa Finola Merivale tem neste lançamento acima um debut de assustadora criatividade. Este é o primeiro lançamento a levar seu nome na capa, mas a compositora já tem ao menos uma década de atuação em que suas composições vêm sendo comissionadas e gravadas por grandes conjuntos e ensembles tais como a St. Louis Symphony Orchestra, o International Contemporary Ensemble (ICE), o Talea Ensemble, o Crash Ensemble, o ~Nois Saxophone Quartet, o PRISM Saxophone Quartet, o Bearthoven, entre outros -- alguns desses já abordados aqui no blog, inclusive. Neste álbum acima, a compositora faz uma parceria com o Desdemona String Quartet e reúne cinco peças nas quais aborda variadas formações de cordas -- duo, trio, quarteto e afins --, e nos mostra uma maestria fora de série no manusear das texturas e sutilezas sonoras que violinos, viola e cello são capazes de produzir. O álbum começa com a peça Do You Hear Me Now? para quarteto, com uma inacreditável abertura de hipnóticos efeitos de glissandos (efeitos produzidos pelo deslizar dos dedos nas cordas) e segue com peças onde técnicas de glissando (deslize dos dedos nas cordas), pizzicato (cordas sendo tangidas com os dedos) e ponticello (efeito timbrístico produzido pelo arco mais próximo ao cavalete), entre outras técnicas, produzem efeitos que servem sempre para propósitos criativos curiosos, quando não surpreendentes. A segunda peça do álbum, "Arbores Erimus", é um duo para violino e eletrônica, onde a compositora parte de alguns esboços elaborados em notação musical convencional apenas como uma base para a capacidade improvisativa do violinista, que modula a peça ao seu modo e tem seus improvisos modulados pela eletrônica. A terceira peça, "Release" para violino e piano, se dinamiza entre passagens misteriosas e espasmos e trabalha as sensações de confinamento que muitos artistas sentem dentro das instituições através de breves frases e momentos motívicos que tentam se libertar desse quadro de agonia. E assim as inventivas peças seguem, sempre com muitos momentos de inesperados efeitos criativos: Finola Merivale deixa claro que os pizzicatos, glissandos, ponticellos e até os efeitos de sonoridades àsperas produzidos pela intensidade com a qual as cordas são friccionadas, todos são elementos técnicos e estilísticos a servirem propósitos criativos específicos e singulares.
Tweet