.png)
Black Codes (1985) é um dos álbuns de jazz mais fantásticos que eu já ouvi!!! Não gosto de listas com rankings, mas num futuro mundo pós-apocalíptico, esta seria uma das obras-primas, entre os grandes álbuns da história da música, que deveria ser preservada para mostrar o quão alto a arte do jazz chegou. Aliás, se a carreira do jovem Wynton Marsalis tivesse se encerrado no fim dos anos de 1980, seu nome já estaria definitivamente fixado no topo da história da música. Sendo um dos músicos e compositores mais originais e hiper criativos da história do jazz, Wynton tem uma discografia onde vários álbuns já ostentam a condição de "clássicos": os expansivos In This House, On This Morning (1994), Blood on the Fields (1997) e All Rise (2002), entre outros, são alguns dos exemplos de álbuns que evidenciam os picos de criatividade de Wynton e são registros que marcaram épocas e quebraram barreiras! Mas os anos da década de 80 deram ao jovem Wynton e seus sidemans a melhor sequência de lançamentos que um músico poderia ter: do homônimo álbum Wynton Marsalis (1981) até o enérgico Live at Blues Alley (1988) temos uma sequência de oito álbuns de jazz que praticamente dominaram as atenções da crítica especializada e do novo público que se formava nos anos 80 —— não foi à toa que ele ganhou oito Grammys nesse período! A impressão que se tem, aliás, é que dificilmente voltaremos a ter uma banda de neo-bop/post-bop tão enérgica como o Wynton Marsalis Quintet-Quartet que dominou as atenções naqueles anos! Podemos dizer isso também em relação às bandas posteriores de Marsalis: o Wynton Marsalis Septet também é um combo inigualável no estilo abrangente com o qual uniu tradição e modernidade e sua big band ellingtoniana Jazz at Lincoln Center Orchestra também lançou trabalhos incríveis, originais, expansivos e inigualáveis. Mas este quinteto dos anos 80 tem uma áurea que me parece ainda mais superlativa em termos de jovialidade, energia e impacto geracional. E Black Codes é o álbum que levará o Wynton Marsalis Quintet para esse ápice. Recentemente, a Biblioteca do Congresso Americano canonizou este álbum como um dos registros imortais na sua seleta lista de gravações icônicas do National Recording Registry. Obra-prima do neo-bop oitentista, este é o registro maior da geração "young lions", que resgatou o jazz acústico com força total após mais de uma década em que a estética fusion dominava as atenções e levava o jazz para as zonas limítrofes com a eletrônica, a psicodelia do rock, o crossover e a sonoridade sintética do pop. E foi nesse contexto de estéticas conflitantes, em uma época de efervescência do pop e do início do hip hop, que Wynton e os "jovens leões" realizaram um fenômeno até então improvável: o renascimento do jazz acústico. Um fenômeno que garantiria o futuro do jazz pelas próximas décadas.
Nem sempre um álbum clássico do jazz foi rodeado de grandes acontecimentos: muitas das vezes a gravação de um determinado clássico ocorreu num dia pacato qualquer em que os músicos, no real momento da performance e da gravação, estavam inspirados à criar algo que soasse realmente novo. Mas quase sempre um álbum clássico do jazz é rodeado por grandes encontros com grandes músicos que já estavam sendo aprimorados, consciente ou inconscientemente, por um grande contexto de conceitos, fatos históricos e fatos sociais e culturais de uma época —— muitas das vezes conceitos, fatos e concepções históricas conflitantes e contrastantes! O álbum Black Codes (From the Underground), por sua vez, é um clássico que tanto reuniu grandes jovens músicos como também foi moldado pelas grandes discussões e pelos grandes acontecimentos conflitantes de uma época, num contexto cultural e estético que aprimoraram as ideias e o fazer musical desses "jovens leões". Houveram muitas discussões acaloradas envolvendo raça, cultura e arte, houveram muitas discussões acaloradas envolvendo as críticas que Wynton fazia contra as estéticas do fusion, do pop e do hip hop, da mesma forma que havia um novo e crescente público que defendia veementemente esse fenômeno de resgate do "autêntico jazz acústico" representado por Wynton. É nessa fase também que o congressista John Conyers se sentia inspirado para escrever o texto da resolução Jazz Preservation Act (JPA), promulgada pelo Congresso Americano em 1987, que estabeleceria maior respeito ao jazz como uma arte forma de arte afro-americana e como um tesouro nacional de imprescindível importância, garantindo a partir daí enormes fontes de subsídios para o fomento dessa arte nas escolas, instituições, na mídia e nas organizações —— o próprio projeto do Jazz at Lincoln Center, a ser dirigido por Wynton, seria um dos frutos dessa fase de renascimento. E é por essas e outras que este álbum é praticamente revolucionário!!! Se considerássemos que Wynton Marsalis e sua banda estavam apenas dando sequência naquele post-bop abandonado em 1967 por Miles Davis, Wayne Shorter, Herbie Hancock, Ron Carter e Tony Willams —— quando todos eles começaram a explorar os sons psicodélicos e eletrônicos do fusion, do funk e do rock ——, então nossa análise não passaria do fato de que o álbum Black Codes representa nada mais do que um continuum que trouxe algum frescor... —— e isso já seria um grande feito, mas não seria o suficiente para explicar o som e o impacto deste álbum surpreendente. Mas se considerarmos todo o contexto histórico-social-cultural da época e toda a análise musical profunda nas sete faixas deste álbum, em torno da sua sonoridade inovadora que trouxe uma nova áurea ao jazz dessa época através de uma nova energia e de uma concepção contemporânea de arranjo e interatividade, e se também considerarmos como e o quanto essa sonoridade modal, enérgica e repleta de dinâmicas até hoje inigualáveis impactou toda uma geração entre os anos 80 e 90, então temos aí o fato incontestável de que trata-se mesmo de um álbum que revolucionou a concepção e a dinâmica interativa das bandas de jazz dessa nova era. No YouTube —— 👉aqui e 👉aqui —— os pianistas Adam Maness e Peter Martin explicam o que foi este impacto!!! Não trata-se de um álbum inserido em todas as listas de clássicos: muitos críticos ainda são antiquados e suas listas tarimbadas não passam dos "10 ou 20 maiores clássicos do jazz" onde os álbuns listados são sempre os mesmos títulos que vão de Louis Armstrong à Miles Davis. Mas já é certo dizer que Black Codes já começa a ser relacionado como um grande clássico em muitas listas de críticos, experts e músicos das gerações mais novas.
![]() |
Wynton Marsalis (tp), Branford Marsalis (sax), Kenny Kirkland (p), Charnett Moffet (b), Jeff Tain Watts (d) - The Young Lions |
Neo-bop - A nova áurea e energia dos young lions:
expansão do post-bop, temas abstratos, harmonias modais, dinâmicas entre tensão e relaxamento, dinâmicas entre polirritmias e arranjos coesos, diálogos de interatividade avançada, apurado senso de discurso e de swing mesmo em improvisos complexos de frases ágeis!!!
É interessante como a maioria das composições de Wynton soam como um discurso de conscientização ou como um imersivo contar de histórias cativantes mesmo em composições abstratas que fogem ao padrão do tema-canção. Black Codes é um desses álbuns de composições abstratas no qual o jovem Wynton conseguiu conferir um surpreendente senso de discurso e consciência histórica! Hoje, ouvindo e re-ouvindo várias vezes e comparando com outros discos, vê-se nitidamente que foi particularmente paradoxal como a crítica especializada formada por haters —— pessoas que foram contra o discurso neotradicionalista do jovem trompetista nos anos 80 e 90 —— quis diminuir as marcas desta e doutras obras-primas oitentistas de Wynton comparando-as com as marcas deixadas pelo post-bop seiscentista de Miles Davis e músicos correlacionados. Contudo, é mais do que evidente como Wynton, desde seu primeiro álbum, já vinha conseguindo criar uma nova sonoridade impondo sua própria marca em meio a um turbilhão de fatos e conceitos conflitantes e contrastantes da época. E é em Black Codes que Wynton alcança o ponto mais alto com suas dinâmicas inovadoras, criando uma nova trilha com suas próprias composições, com uma ideia original de conferir um contexto de crítica social em torno de uma nova áurea abstrata e com uma concepção modal que conseguiu ser tão ou mais superlativa que a concepção de colorido modal de Wayne Shorter. Ao meu ver e ouvir, para além do novo colorido e da nova sonoridade que o Wynton Marsalis Quintet-Quartet trouxe para o novo jazz acústico nos anos 80, essas composições de Wynton expandiram sobremaneira o post-bop iniciado por músicos como George Russell, Miles Davis, John Coltrane, McCoy Tyner, Wayne Shorter e Herbie Hancock, isso lá entre fins de 1950 e meados de 1960. Black Codes é o álbum que mostra mais claramente como essas novas composições de Wynton conferiram maior expansão, maior ossatura, maior coesão e maior senso de arranjo para as concepções que o post-bop seiscentista já havia iniciado.
O fato é que no jazz, mesmo que uma geração de músicos se inspire nas gerações do passado, cada época produz uma sonoridade nova e diferente! Ainda que Wynton tenha se inspirado no post-bop do Segundo Grande Quinteto de Miles Davis no início da carreira —— até pelo fato dele e seu irmão Branford terem participado da banda VSOP II, banda liderada por Herbie Hancock para se fazer, justamente, um revival daquele quinteto ——, suas composições próprias e o estilo interacional da sua nova banda já sinalizavam uma áurea própria, uma nova sonoridade. Tornou-se recorrente dizer que aquele Segundo Grande Quinteto de Miles, que vigorou de 1964 até 1968, era um verdadeiro laboratório de ideias inovadoras —— como de fato era. Mas o fato mesmo é que aquele novo estilo post-bop de Miles Davis, Wayne Shorter, Herbie Hancock e músicos correlacionados —— influenciado pelo free jazz de Ornette Coleman e pela concepção de harmonias modais implementadas por George Russell —— representou mais um apanhado inicial das novas ideias, experiências e dinâmicas seiscentistas do que um estilo definitivamente definido e formalizado: o próprio conceito de liberdade implementado nos anos de 1960 pelo free jazz, o qual priorizava a espontaneidade em detrimento do arranjo pré-elaborado, influenciou direta e indiretamente aqueles músicos, de forma que nem sempre suas novas ideias soavam conjuntamente coesas dentro das peças, o que fazia com que as interações entre os músicos soassem mais soltas e mais dispersas, onde uma nova ideia poderia ser implantada a qualquer momento numa dinâmica que variava entre o tema, o rubato, frases livres e passagens com rítmicas variadas numa mesma peça. Wynton Marsalis, por sua vez, pega esse apanhado inicial de ideias abstratas e expande esse post-bop seiscentista agora sob uma nova estética oitentista onde espontaneidade, swing e coesão pudessem de fato coexistir. Wynton tenta contar uma história com uma nova sonoridade e uma nova energia, tentando criar um fluxo discursivo onde o arranjo fosse mais coeso e mais elaborado, equilibrando esse senso discursivo com espontaneidade e passagens polirrítmicas! Sim! Embora nos anos de 1960 Wayne Shorter tenha criado um mosaico que seja inigualável na forma como ele inflexionava a harmonia modal em torno da sua imaginação repletas de cores e fantasias, agora Wynton Marsalis e sua banda traziam uma nova áurea modal sob uma dinâmica inovadora que surpreendentemente conseguia combinar sobreposições de cores em arranjos bem sedimentados, dinâmica entre relaxamento e tensão, senso discursivo com improvisos complexos em frases ágeis e interações explosivas sem precedentes —— e tudo isso sem perder o senso de swing!
Não é aconselhável aplicarmos comparativos e rankings quando o assunto é arte e música —— já que cada artista é unico e tende a criar suas próprias marcas. Mas os embates e desentendimentos em muitos comentários trocados entre Miles Davis e Wynton Marsalis nos anos de 1980 criaram um terreno fértil para esses comparativos. O fato é que Black Codes é um dos poucos álbuns da história do jazz conseguiram um equilíbrio tão superlativo entre o risco da espontaneidade e as passagens pré-escritas, entre explosividade e arranjo, entre tensão e relaxamento e com uma interatividade tão avançada na conversação entre os músicos. Se por um lado a sonoridade única do trompete de Wynton se destacava como uma voz discursiva e consciente dentro da banda —— quando não por demais virtuosística ——, por outro lado as interações entre o super pianista Kenny Kirkland e o super baterista Jeff Tain Watts eram enérgicas e cheias de dinâmicas, conferindo improvisos surpreendentes em todas as frases e vamps das peças, enquanto os saxes de Branford parecia dar novos ares para o elo entre a abstração de Ornette Coleman e o post-bop de Wayne Shorter.... —— não foi à toa, inclusive, que Branford Marsalis manteve essa base para o seu quarteto quando, entre 1986 e 1987, Wynton decidiu reformular sua banda para seguir uma trilha mais tradicionalista. A este novo jazz cheio de dinâmicas que atualizava os elementos dos estilos do bebop, cool jazz, hard bop e post-bop, a crítica especializada deu o nome de "neo-bop". Este termo é, até hoje, paradoxal. Neo-bop —— que na verdade teria de ser chamado "new bop" —— foi um termo usado pelos críticos mais detratores para dizer que o jazz dos young lions era apenas um continuum tradicionalista que repaginava o jazz acústico com uma identidade mais purista misturando elementos do bebop dos anos 40, do hard bop dos anos 50 e do post-bop dos anos 60. Mas, na verdade, esse novo estilo dos young lions criou, a partir dos anos 80, uma nova sonoridade para o jazz acústico que vai muito além da mera releitura e revisitação. E Black Codes é o álbum que melhor representa essa sonoridade. Se fôssemos elaborar um ranking dos álbuns que melhor representam esse neo-bop/ post-bop nas últimas décadas: Black Codes estaria em primeiro lugar, os álbuns de Branford Marsalis e seu Quarteto viriam a seguir e depois viriam álbuns emblemáticos de James Carter, Joshua Redman, Cristian McBride e tantos outros young lions que surgiram nos anos 90 influenciados por essa nova onda impulsionada por Wynton. É um álbum, enfim, que influenciou toda a geração de jovens gênios que viriam a seguir.
Crítica Social & Contexto Histórico:
Three-Fifths Compromise, Black Codes & Underground Railroad - as inspirações para a composição da faixa-título, as mensagens subliminares e explícitas da capa do álbum e o discurso educacional e consciente do jovem Marsalis
Os discos trazem consigo histórias e no caso dos discos de jazz muitos deles são verdadeiros emblemas sonoros da própria história americana, da própria história que marcou uma época, uma geração. No caso do álbum Black Codes, trata-se tanto de um emblema que retrata a formalização da estética do neo-bop de Wynton e dos young lions nos anos de 1980 como também se inspira na temática dos tempos sombrios da história da escravidão americana, trazendo um novo olhar para uma nova geração sobre essa questão social que tanto abriu feridas na história dos EUA e que, infelizmente, ainda era atual e se transvestia com as novas máscaras do corporativismo. E o interessante é que Wynton consegue criar este emblema histórico com composições enérgicas e com uma nova áurea que soa muito contemporânea e urbana, conseguindo revitalizar o jazz mesmo diante das novidades do pop e do hip hop —— estéticas as quais ele jamais apreciou. Wynton e seus young lions já eram de uma geração jovens nascidos entre fins de 1950 e início dos anos 60 que tiveram acesso à educação de qualidade e conseguiram estudar em ótimas universidades, então eles já começaram a carreira com elevado nível de conscientização cultural e histórica: trata-se de jovens de famílias que passaram pelas agruras da segregação, mas famílias que conseguiram vencer a miséria, vencer o preconceito e dar uma boa educação aos seus filhos após décadas de lutas por direitos civis. Ou seja, quando as passeatas e os movimentos históricos em favor aos direitos civis estavam no seu auge nos anos 60, esses jovens eram ainda eram crianças, mas agora nos anos de 1980 aquelas notícias, aquelas imagens e as histórias dessa época que seus pais contavam ainda estavam frescas em suas memórias e as reincidências de preconceito racial agora se transvestiam de discriminação nos meios institucionais e corporativos onde muitos desses negros que ascenderam à classe média haviam chegado. E a arma que Wynton usou em seu afiado discurso foi se empoderar em elevado nível de consciência em torno da valorização do jazz como a cultura e forma de arte que foi a gênese da identidade americana. Wynton lembra que mesmo depois de décadas de segregação —— vencida por líderes como Martin Luther King e pelos Movimentos dos Direitos Civis —— ainda haviam muitos casos institucionalizados de racismo estrutural, de preconceito e violência policial que violavam os direitos dos afro-americanos nos anos 80. Wynton lembra, então, que muitos desses preconceitos e discriminações violentas ainda se baseavam nos famigerados Códigos Negros do século 19, que tentaram desmascarar politicamente as conquistas da Guerra Civil (1861 - 1865) com as notórias leis que sua Louisiana natal e outros estados do Sul usaram para manter cidadãos negros subjugados ainda sob estado violento de segregação e opressão. Essa é a inspiração principal para a faixa título deste disco, peça de 9 minutos e 30 segundos que abre a set list e confere ao conceito do álbum esses novos tons de consciência e modernidade dessa nova geração de músicos fantásticos. Uma temática antiga, mas com sua problemática sempre contemporânea.
Para a capa do álbum, Wynton teve a grande ideia de deixar algumas mensagens explícitas e subliminares. Seu irmão mais novo, Jason Marsalis, então com apenas 7 anos, é o garotinho retratado na capa do álbum como um estudante diante de uma lousa numa tradicional sala de aula: uma imagem que já retrata a forte consciência educacional de Wynton, que se tornaria um grande educador e já usava um discurso pelo qual é apenas pelo poder da educação que a ascensão das crianças e jovens afro-americanos será possível. A capa do álbum trazia, então, essa imagem de sala de aula, com um trompete sobre a mesa do professor, onde uma criança negra está solitária olhando para um quadro-negro e a lição do dia escrita em giz fora sobre o “Three-Fifths Compromise”, a medida constitucional que determinou que toda a população de negros escravizados de cada estado americano deveria ser reduzida a três quintos: como o número populacional era determinante para a quantidade de assentos na Câmara dos Representantes, os estados do Sul queriam listar o total da sua população incluindo o total de escravos, mas os estados do Norte, com mais negros livres e menos escravos, perderiam muitos assentos na Câmera, impasse que levou ao acordo dessa redução do total de escravos (que não tinham direito à voto) para apenas três quintos, uma medida que foi determinante na fase histórica preliminar da Guerra Civil. Na capa do álbum, então, Wynton faz questão de apagar parte da lição escrita com uma caligrafia clássica e, no centro do quadro-negro, ele escreve com letras grandes, em forma de garrancho, "BLACK CODES (FROM DE UNDERGROUND", que foram as leis que vieram no pós-Guerra Civil para tentar a continuar com a dominação sobre os negros mesmo após a abolição da escravidão. O termo "FROM THE UNDERGROUND" entre parêntesis refere-se a história da Underground Railroad uma rede de rotas secretas e casas clandestinas de negros livres e senhores libertários que ajudavam os afro-americanos escravizados a escapar para a liberdade nesta época sombria da história dos Estados Unidos. O álbum traz, então, inspirações culturais, históricas e familiares e evidencia, de forma conceitualmente sinestésica, a grande consciência de raça e de cultura e a grande identidade composicional de Wynton. Para além da história, o trompetista também se baseou na própria história de seu pai como músico de jazz e professor em Nova Orleans. Outras inspirações que influenciaram na composição da faixa-título incluem o tema “Magnolia Triangle” de James Norbert Black e a linha de baixo que foi inspirada no standard de Nova Orleans “Hey Pocky A-Way”, da banda de funk The Meters. Abaixo analisaremos faixa a faixa toda a set list dessa obra-prima!!!
Análise faixa a faixa
Wynton Marsalis Quintet: Wynton Marsalis - trompete; Branford Marsalis – sax tenor, sax soprano; Kenny Kirkland – piano; Charnett Moffett – contrabaixo; Ron Carter – contrabaixo; Jeff “Tain” Watts – bateria
1. "Black Codes" (9:31) (composição de Wynton Marsalis) - escrita em medium swing, o tema é iniciado em compasso incomum de 5/8 com enérgicos blocos de conversações e sobreposições e depois, nos improvisos, a peça decai para a usual cadência em 4/4 onde o walking bass dita o fluxo discursivo de cada um dos músicos. Essa é faixa título e a peça que dita a temática desta obra-prima. A peça inicia o álbum como um chamamento denso e marcante através de um interessante blocos de acordes (clusters) intercalados por diálogos e potencializados pelas baquetas da bateria. Dessa forma inicia-se um tema marcante e abstrato que vai se desenhando em contrapontos, sobreposições, perguntas e respostas, conversações e blocos aparentemente intercalados entre os músicos, formando uma peça coesa e imagética em sua construção final. Curiosamente, como já dito acima, Wynton se inspirou de forma abstrata no tema “Magnolia Triangle” do veterano baterista James Norbert Black e inflexionou uma linha de contrabaixo que foi inspirada no clássico standard de Nova Orleans “Hey Pocky A-Way”, da banda de funk The Meters. Em seguida, após a exposição do tema, o trompete de Wynton entra solando com impressionantes frases melódicas que trabalham dentro de uma dinâmica discursiva entre energia e serenidade: com essa dinâmica, os solos de Wynton conseguem realmente oscilar entre licks melódicos mais serenos e passagens mais agudas e densas para contar uma história imagética e ditar os momentos de subjetiva tensão e consciência, e conseguindo soar verdadeiramente como se tivesse num discurso e num contar de histórias, atingindo o grande objetivo de nos levar para a imaginação da história dos Black Codes e das Underground Railroads, as redes secretas e marginais que vigoraram nos tempos do século 19 e ajudaram inúmeros negros a fugir da escravidão. E é interessante como Wynton e seus sidemans conseguem contar essa história a partir de uma estética tão sonoramente contemporânea e urbana como bem exigia os coloridos anos de 1980. Nesta peça, todos os músicos seguem essa mesma dinâmica de contar uma história equilibrando polirritmias com swing, equilibrando improvisos abstratos com esse aspecto discursivo dentro de um certo senso melódico-harmônico calcado no modal jazz, explorando bem as tensões e distensões modais. E de repente contrabaixo, piano e bateria sustentam-se num só acorde para que o sax soprano de Branford improvise, sob um static vamp, aplicando alguns devaneios num certo rubato que é sustentado com licks inusitados e espontâneos até voltarem-se para o aspecto discursivo sob um swing inebriante —— Branford, aliás, representará um contraste mais espontâneo com solos mais "livres" em muitos momentos. Mas quem assusta mesmo é o piano brilhante de Kenny Kirkland, que consegue aliar-se telepaticamente à bateria polirrítmica de Jeff "Tain" Watts e flutuar de forma muito colorida entre essas tensões e distensões modais, com um colorido cromatismo pianístico que é realmente surpreendente. É uma das peças mais marcantes da história do jazz pela capacidade que Wynton e sua banda tiveram de contar uma história mesmo com uma construção composicional tão abstrata. Quais os segredos para isso? Resposta: justamente a interatividade e as conversações entre os músicos, a dinâmica entre tensão e relaxamento, o equilíbrio entre polirritmia e swing, o equilíbrio entre abstração e discurso, bem como as dinâmicas entre explosividade e arranjos muito inteligentes, além das modais progressões de acordes coloridos, os contrapontos, as perguntas e respostas e as sobreposições bem elaboradas. E o fato do tema começar em 5/8 e depois, nos improvisos, os músicos decaírem para um fluxo discursivo em 4/4 foi uma sacada inteligente de Wynton como compositor: é algo que deu um contraste interessante entre um chamamento de imagética abstrata e o fluxo discursivo inerente ao propósito de contar atemporalmente a história dos Black Codes e das Underground Railroads.
2. "For Wee Folks" (9:06) (composição de Wynton Marsalis) - essa faixa em 3/4 nos causa uma prazerosa sensação de relaxamento e nostalgia. No início do tema Wynton utiliza a maciez de uma surdina em seu trompete, Branford utiliza um tom mais relaxante de sax soprano, a bateria explora os efeitos dos pratos e o piano apenas oferece uma prazerosa tapeçaria harmônica modal. Além do mais, Wynton usa diferentes sensações rítmicas para criar diferentes climas e utiliza a seção A para criar um diálogo em rubato entre os instrumentos de sopro. Em termos de improviso, quem brilha é o solo do sax soprano de Branford que leva a peça para regiões melódicas realmente prazerosas! A rítmica e a fluidez também é interessante, pois soa compassado de forma intimista em pulsos ternários onde o contrabaixo ponteia de forma inusitada o bassline, enquanto os músicos apenas flutuam entre as partes escritas e seus improvisos diluídos em rubatos. É uma faixa que que mescla um certo aspecto mais intimista e "cool" com a fluidez imprevista do post-bop, sempre numa fluidez de rubatos onde a peça parece não ter rítmica definida, onde mudanças podem acontecer a qualquer momento. Ainda assim, o fluxo soa coeso e contínuo. O tom singelo e ao mesmo tempo lúdico se alia à temática do título "For Wee Folks" ("para as criancinhas") e sugere conotação à infância, uma temática recorrente nos álbuns de Wynton e na sua carreira como educador.
3. "Delfeayo's Dilemma" (6:46) (composição de Wynton Marsalis) - essa composição Wynton a escreveu inspirando-se ironicamente num dilema pelo qual seu irmão mais novo, o trombonista Delfeayo Marsalis, ficou conhecido como produtor: ele sempre foi um crítico entre o dilema de se usar as novas tecnologias de produção e o calor de uma produção mais orgânica. Delfeayo Marsalis inclusive disse que, para obter um som mais amadeirado do contrabaixo, este álbum teria de ser gravado com o uso de um microfone e sem o uso do temido direct input, evitando que o contrabaixo fosse conectado diretamente à mesa de som. Delfeayo não participa diretamente do disco, mas esse seu dilema e purismo enquanto produtor foi inspirador, de forma que ele trabalharia em vários outros álbuns de Wynton e outros músicos. Começa com um tema abstrato curto que se desenvolve em improvisos dentro do padrão de métrica em 4/4 com walking bass bem ponteado na linguagem bebop. Para aplicar contrastes, Wynton aborda a mudança de sonoridade entre o acorde maior e o menor e aplica modulações onde cada músico, em frases de seis compassos, improvisa sobre uma base tonal diferente. É a faixa que melhor repagina a linguagem bebop, agora sob uma nova áurea melódico-harmônica modal. O tema curto que inicia a peça é marcante: é um dos "standards" mais tocados dentro da discografia imensa de Wynton. Aqui quem se destaca é o sax tenor de Branford.
4. "Phryzzinian Man" (6:48) (composição de Wynton Marsalis) - nessa faixa, discorrida num medium swing que lembra muito aquele hard bop mais compassado conduzido com chimbal e pratos, Wynton e banda oscilam em compassos de 4/4, 3/4 e 2/4 e retomam a dinâmica inicial entre frases e licks que se desenham entre a abstração e o senso melódico discursivo, mas sem soar tão denso como no início do álbum. É, em minha opinião, a segunda melhor faixa do álbum depois da faixa título. Tanto o tema principal como os improvisos são discorridos sob uma interessante áurea modal em modo frígio, ou seja, numa escala menor com segunda menor, mas com outros cromatismos modais para conferir um imersivo sombreado. De fato, a harmonia nos soa muito contemporânea! O solo de Wynton, mais uma vez tentando aqui contar uma história, é curto mas diz muita coisa! Mas é o solo de Kenny Kirkland ao piano leva a peça para voos ainda mais altos: com improvisos longos cheios de frases e licks variados, improvisos discursivos, flutuando inteligentemente em torno do cromatismo modal da peça sem perder o senso de swing e de melodia!!! Branford, ao sax tenor, parece nao querer enfeitar muito o pavão depois desses solos fantásticos, mas dá sua contribuição para os retoques finais no desenho da peça flertando com os acordes de forma mais inusitadamente comedida para aplicar um contraste. A peça termina de forma inusitada com trompete e sax enfatizando as primeiras notas do tema principal e com o piano e contrabaixo ponteando um "finale" de notas graves que é salpicado pelos sutis efeitos de contraponto da bateria de Jeff Tain Watts. E esse finale se esvai num fade-out que nos deixa com vontade de ouvir a peça outra vez... O título é um jogo de grafia relacionado ao modo harmônico frígio. Para mim, é a peça com o melhor final de toda a set list.
5. "Aural Oasis" (5:35) (composição de Wynton Marsalis) - essa bela faixa em 4/4, a mais relaxante da set list, evoca de forma muito moderna o aspecto cool das baladas, mas o faz através de um tema abstrato, já distante da forma-canção que caracteriza as baladas tradicionais. É natural que antes e depois de faixas mais densas e cheias de informações musicais, haja uma peça que cause mais relaxamento para o ouvinte, afim de que o álbum não soe enfadonho com muitas peças densas e nem muito monótono. E essa peça tem esse papel de equilibrar e causar um relaxamento para que o ouvinte —— ao ouvir o álbum na sequência original da set list —— possa se impactar com a explosiva faixa que virá a seguir. Aqui temos a participação do legendário contrabaixista Ron Carter. Wynton sola com surdina e Branford retoma o sax soprano em improvisos melódicos. O piano apenas aplica notas cristalinas que embelezam ainda mais a peça. E a bateria e o contrabaixo apenas fluem de forma indeterminada no background. Um oásis antes da explosão que viria a seguir.
6. "Chambers of Tain" (7:38) (composição de Kenny Kirkland) - é a faixa mais densa e explosiva da set list! A densidade e explosividade sinalizadas na faixa-título "Black Codes" aqui são levadas à exaustão com improvisos densos, abstratos e polirrítmicos que já fogem do senso discursivo e beiram a insanidade. Todos os músicos brilham aqui! É também uma faixa que enfatiza a grande dupla que o pianista Kelly Kirkland formava com o baterista Jeff Tain Watts dentro da banda —— e não é segredo que juntos, dentro dessa e doutras bandas, eles formaram uma das cozinhas mais explosivas da história do jazz! Conta-se que Wynton solicitou a composição à Kenny Kirkland para, justamente, enfatizar as explosivas conversações e interações que eles desenvolveram nos cinco anos em que vinham tocando juntos. Wynton e Kirkland protagonizam improvisos que estão entre os mais impressionantes das suas carreiras. As polirritmias e os improvisos de bateria de Jeff Tain Watts são surpreendentes e se tornaram históricos. É o maior ponto de erupção deste álbum icônico!!!
7. "Blues" (5:21) (faixa improvisada em duo por Wynton Marsalis e Charnett Moffett) - se este disco tem algum defeito, este defeito se encontra aqui no encaixe desta faixa na set list, principalmente como a faixa que finaliza o álbum. Trata-se de um blues improvisado, com apenas Wynton ao trompete e Charnett Moffett ao contrabaixo, e a a única explicação para isso é que, já nessa época, Wynton estava com os ouvidos voltados para a tradição de New Orleans, para a tradição do blues e do swing do jazz tradicional das décadas de 1920 e 1930. Talvez tenha sido uma forma que Wynton enxergou de terminar este álbum já sinalizando essa mudança de rumo a seguir... Mas este blues, improvisado na forma de padrão, se destoa um tanto das composições complexas e modais do restante da set list. Quem conhece a obra de Wynton e está por dentro de como ele avançou em sua carreira rumo ao passado, não estranhará. Mas o marinheiro de primeira viagem poderá se perguntar o porquê de se terminar um álbum de composições abstratas cheios de variadas entonações modais com um blues tradicional. No álbum que viria a seguir, J Mood, Wynton já eleva sua paixão pelo blues para formas mais impressionistas e modernas, trabalhando o blues com cores modais e outras inflexões harmônicas. Uma clara sinalização de rumo.
Tweet