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Atonalize-se! Luciano Berio, Frank Zappa, Alfred Schnittke: da colagem ao poliestilismo, eis que urge o pós-moderno

Luciano Berio (italiano), Frank Zappa (americano) e Alfred Schnittke (russo). O que esses três compositores de nacionalidades e estilos pessoais diferentes tem em comum? Resposta: eles simplesmente podem ser considerados os pais do pós-modernismo que enviesou a música erudita na segunda metade do século 20, sobretudo a partir de meados da década de 60, e que ainda hoje é período vigente. Mas essa importância nem sempre é ratificada. Aliás, nem mesmo os meandros da vanguarda erudita estão livres das consequências do midiatismo cristalizado. Se um leigo quer saber quais os principais compositores eruditos que figuram como artífices desse pós modernismo que marcou a arte da música e se recorre aos meios de comunicação e aos meios de pesquisa do Google, o nome de Luciano Berio, por exemplo, não aparecerá de imediato, algo que pode obscurecer a importância desse grande compositor -- a culpa seria dos algoritmos, mas na verdade a culpa é de alguns cérebros cristalizados pelo mainstream que veiculam esses algoritmos para fazer com que as pessoas pensem sempre dentro de uma caixa-padrão. Mas Luciano Berio teve e tem uma importância tão considerável quanto seus pares modernistas: Schoenberg, Berg, Stravinsky, Webern, Boulez, Stockhausen etc, etc. Stravinsky trabalhou a orquestração em prol de exotismos rítmicos e timbrísticos até então inimagináveis (vide a Sagração da Primavera). Schoenberg criou o método da harmonia dodecafônica baseado em séries de permutação dos 12 tons da escala cromática, levando a música para o atonalismo. Boulez foi pioneiro nas experimentações eletroacústicas e levou as séries permutativas para todos os parâmetros composicionais, formalizando aquilo que viria a ser chamado de “serialismo integral” (vide Le marteau sans maître). Stockhausen criou peças impactantes de “caos organizado” (vide Gruppen e Klavierstucke), além de intensificar suas pesquisas experimentais no ramo da música eletroacústica, influenciando não só toda a vanguarda erudita, mas outros gêneros musicais (rock, eletrônica e afins). Enquanto Berio, por sua vez,  entra em ação como um compositor de transição entre o modernismo e o pós-modernismo, contribuindo para manipular elementos e sintetizando "recortes" estilísticos em conjuntos de câmera e orquestra (vide Sinfonia), também passando com grande importância pela música eletroacústica (vide Thema: Omaggio a Joyce) e se concretizando na música vocal como um desbravador experimentalista (vide Folk Songs e A-ronne). Para além da sua obra mais conhecida, a impactante “Sinfonia” (1968-69) para 8 vozes e orquestra , Berio compôs uma pá de obras onde ele evidencia um talento e um estilo muito peculiar no que se refere a “manipular” -- reinventar, transcrever, reler, misturar -- as várias descobertas das gerações anteriores, reunindo em suas composições citações e elementos que vinham desde os tempos remotos do classicismo até as descobertas da música moderna, o que também o coloca em posição de destaque como um pioneiro das técnicas da "musical collage" ao lado do compositor americano Frank Zappa e do russo Alfred Schnittke, pai do poliestilismo pós-moderno. Nesse sentido, Luciano Berio foi um dos precursores incontestes da música pós-moderna. Para o ouvinte-leitor mais interessado, um dos escritos aprofundados a adquirir é o livro abaixo escrito pelo compositor e estudioso Flo Menezes. Neste post, iremos  abordar a importância desses três grandes compositores para o desenvolvimento do pós-modernismo musical. 

A estadia mais duradoura de Berio em solo americano, que durou de 1960 até 1970 – inicialmente como professor no Mills College (em Oakland, Califórnia) e, posteriormente, na Juilliard School (em New York) -- somada aos seus regulares retornos à Itália e outros países da Europa, seu habitat natural --, foi um dos fatores que proporcionaram, de fato, seu surto criativo em prol da miscigenação da escrita erudita com outras técnicas musicais e outras formas de arte, assimilando as várias expressões e possibilidades artísticas provenientes dos dois lados do planeta: da América e da Europa. Mas a “musical collage” evidenciada através de citações nas obras de Berio não é como um “medley” ou um “pot-pourri”, onde a intenção é simplesmente unir passagens de canções ou composições distintas sequencialmente num mesmo arranjo, fazendo com que o ouvinte tenha a real noção de que o que ele ouve são passagens sequenciais de temas conhecidos. Trata-se, então, não só de usar passagens musicais diversas, mas principalmente experimentar a mistura de recortes diversos, a mistura de diversas linguagens, diversas técnicas de arranjos, diversas formas compositivas, bem como elementos diversos de gêneros musicais diversos. Ora, veja você mesmo, caro leitor, algumas das telas com collage de artistas como Georges Braque, Kurt Schwitters, Pablo Picasso, Romare Bearden ou Hannah Höch -- alguns deles influenciados pelo jazz, diga-se de passagem --, e tente imaginar como seria uma peça musical com aquelas mesmas características em formas de sons: misturas de cores e imagens originadas de distintas formas visuais tais como fotos, anúncios de jornais ou de publicidade, palavras escritas, imagens pintadas à pinceladas, jorros e respingos não convencionais... todas essas formas e técnicas usadas numa só obra, numa mesma tela. Como soaria?
A “musical collage” ou simplesmente “colagem” (ou “colagem musical”, como queiram) foi, portanto, uma das primeiras tendências nas artes a trazer a mensagem expressa de um irônico esgotamento de invenções e experimentalismos: na música, assim como já vinha ocorrendo nas artes plásticas, muitos dos compositores a emergir em fins dos anos 60 já chegavam a um consenso de que todas as possibilidades de descobertas radicais e possibilidades inventivas –– música dodecafônica, serialismo integral, música eletroacústica, música aleatória e afins –– haviam sido consumadas e exploradas à exaustão, restando agora apenas misturá-las através de recortes e colagens. É aí daí que nasce o conceito de pós-modernidade: no final do século 20 e início do século 21, muitos músicos e compositores -- dentre eles John Zorn, Uri Caine, Thomas ÁdesJohn AdamsWynton Marsalis e outros -- começaram a misturar várias citações, colagens, desconstruções, técnicas, estilos e linguagens diferentes num mesmo álbum e até numa mesma peça, dando espaço para um hibridismo sem precedentes na história da música.  Esse hibridismo começa, então, com Berio, Zappa e Schnittke e outros compositores pós-serialistas que passaram a utilizar, já a partir de meados dos anos 60, a “musical collage” e o poliestilismo como novas formas de se fazer música, o que possibilitou o surgimento de uma onda de compositores ecléticos nas últimas décadas, ecletismo esse que pode ser considerado a principal verve do pós-modernismo. Aqui neste post, apresento textos mais expansivos, adentrando mais detalhadamente  nas obras destes três grandes ases da segunda metade do século 20. Clique nas imagens para ouvir os discos e ouça a playlist no final do post.

 
Décadas antes, Alban Berg e Charles Ives -- considerado por muitos o primeiro compositor de vanguarda de “alma” genuinamente americana (antes mesmo de Aaron Copland, esse mais nacionalista) -- já prenunciavam em suas composições, a técnica da “musical collage” através de leitmotivs, excertos e intervenções diversas que englobavam desde efeitos politonais e cacofônicos  em meio as linhas melódicas até citações de canções de cabaret e de hinos sacros em meio aos desenvolvimentos polifônicos. Mas só com as peças de Luciano Berio, "Laborintos II" e "Sinfonia", foi possível falar em “colagem” na forma extensiva tal como ela já ocorria, por exemplo, nas artes plásticas. Ou seja, Berio utilizou nessas obras não apenas citações de composições de diversos mestres da música  -- Mozart, Haydn, Beethoven, Schubert, Mahler, Shostackovitch, Gorécki, e etc --, mas ele utilizou recortes de outras formas musicais “mundanas”, utilizando-se das músicas folclóricas de vários países aos elementos do jazz, bem como utilizando "recortes crus" de todo o tipo de oralidade através de partes faladas ou cantadas em diversas línguas -- lembrando que Berio foi um aplicado estudioso de linguística, diga-se de passagem --, além de frases de livros e peças de autores como Dante, James Joyce, Edoardo Sanguineti, Samuel Beckett, Bíblia Sagrada, T. S. Elliot, Ezra Pound, Martin Luther King e muitos outros autores. Através da colagem e misturando linguagens, poéticas, estéticas, oralidades e intertextualidades, Berio começava a dar sinais de que dali para frente, após os anos 60, a arte da música estaria entrando numa fase de saturação pós-serial: na fase de não mais inventar novos métodos, experimentos e procedimentos, mas na fase de reconhecer as inovações e métodos já inventados e, portanto, misturá-los. Dessa forma, Berio também buscou celebrar e dar créditos aos vários mestres e personalidades da sociedade, das artes e da ciência os quais ele admirava. Essa mensagem de saturação soa um tanto irônica -- lembrando que a ironia e a sátira seriam dois dos principais elementos dentro desse hibridismo pós-moderno --, mas ao contrário da ironia de Frank Zappa, que usava o sarcasmo e o uso jocoso e provocativo de pastiches, a ironia de Luciano Berio se configura mais no sentido de superar aquele sisudo formalismo serialista e valorizar, também, a música folclórica, o jazz e outras interdisciplinares oralidades e as intertextualidades, criando uma conexão entre o arcaico e o moderno, bem como também conectando a música moderna de uma forma mais direta com os acontecimentos do presente, do mundo real. Há uma busca, portanto, pelo conceito pós-moderno de valorização atemporal da arte e hibridismos inter-estéticas entre as várias formas e linguagens das artes.


“Sinfonia” -- encomendada pelo maestro Leonard Berstein para o 125º aniversário da Filarmônica de Nova Iorque -- foi um dos exemplos mais contumazes de colagem musical em forma de citação e umas das obras do século XX de maior impacto de público e crítica, da mesma magnitude, por exemplo, que o impacto causado pela estreia da Sagração da Primavera de Stravinsky, em 1913 no Théâtre des Champs-Élysées, em Paris -- só que, dessa vez, ainda que algumas pessoas tenham abandonado seus assentos no ato da execução da obra, o mundo já estava acostumado com revoluções artísticas iconoclastas e os ouvidos das pessoas já estavam mais experimentados ante os ruídos e dissonâncias do mundo moderno, o que proporcionou para que o público e a crítica de Nova Iorque agisse em polvorosa, sim, mas de forma muito mais positiva, ao contrário das vaias generalizadas que Stravinsky recebeu do público parisiense em 1913, tendo até que se esconder, aflito, no camarim do teatro. A nova sinfonia de Berio constituía-se, pois, de cinco movimentos -- organizados numa estrutura totalmente herege em relação aos padrões da sinfonia clássica e romântica, diga-se de passagem -- e reunia um conjunto de material que era nada menos do que uma síntese do seu interesse em linguística e das muitas expressões artísticas, sociais e filosóficas evidenciadas até então, se configurando, de fato, numa obra que conecta passado e presente, indo da história aos acontecimentos da sua época.

O primeiro movimento traz um coral solene com uma melodia que nos remete à uma antiga missa religiosa salpicada por palavras faladas e pequenos fragmentos do livro O Cru e o Cozido (Le Cru et le cuit ), estudo que o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss escreveu baseado nos índios brasileiros. O segundo movimento é dedicado totalmente à memória do pastor e ativista americano Martin Luther King, morto em abril daquele mesmo ano de 1968: intitulada simplesmente “O King”, este movimento consiste em um coral solene que repete sempre as mesmas notas ao fundo (em intervalos de terça e quarta), enquanto o piano acrescenta ecos de notas destacadas na superfície. O terceiro movimento é mais uma composição montada do que escrita, é o emblemático ponto da composição que representa a técnica da “musical collage” ainda mais latente: os excertos sonoros usados foram recortados de quase duas dezenas de compositores -- entre eles Debussy, Ravel, Stravinsky, Schoenberg , Webern , Brahms , Pousseur , Hindemith e até Boulez e Stockausen, com maior destaque para as citações da Sinfonia nº 2 de Mahler --, enquanto as palavras e fragmentos literários foram recortados do romance "O Inominável" de Samuel Beckett, incluindo referências a James Joyce, frases recorrentemente faladas pelos graduandos de Harvard, slogans escritos pelos estudantes nas paredes da Sorbonne durante a Revolução de Maio de 1968 em Paris e palavras do próprio compositor. Já os outros dois movimentos, o quarto e o quinto (acrescentado em 1970), são como “coda” e “finale”, respectivamente. As gravações disponíveis são muitas. Há um registro raro da "Sinfonia" gravada com a Filarmônica de Nova Iorque e o grupo vocal Swing Singers sob a regência do próprio Berio, mas o registro mais fácil de ser encontrado é o gravado em por Pierre Boulez à frente da Orquestra Nacional da França e do grupo vocal New Swing Singers: neste registro ainda contém mais uma peça de Berio, essa chamada Eindrücke (escrita em 1973-74). Particularmente, eu prefiro a versão que o maestro Riccardo Chailly dá para a "Sinfonia" à frente da Royal Concertgebouw Orchestra: o CD ainda vem com as Folk Songs (1964) e uma ótima leitura da peça Formazioni (1985–87).
Mas “Sinfonia” foi precedida por uma peça igualmente espetacular em colagens, mas pouco divulgada hoje em dia: a Laborintus II, uma peça próxima ao teatro, uma espécie de música com happening que se dividia entre o dramático e o cômico. Composta entre 63 e 65, “Laborintus II” foi encomendada pelas rádios francesas e italianas para celebrar os 700 anos do nascimento de Dante e foi gravada em 1969 pelo Musique Vivant Ensemble, em Paris, sendo lançada neste mesmo ano pela gravadora Harmonia Mundi e recebendo eventuais reedições através de gravadoras como RCA, BASF e a própria Harmonia Mundi: trata-se de uma adaptação teatral e musical da obra original chamada “Laborintus”, um libreto escrito pelo poeta Edoardo Sanguineti, amigo de Berio. Nesta peça, com duração de mais ou menos 35 minutos e dividida em dois atos, Berio combina ao menos cinco elementos musicais: espasmos dissonantes de brilhantismo orquestral (com um ensemble reduzido, de mais ou menos 15 instrumentos), coral de vozes fazendo uso de resmungos e resquícios de canto lírico, efeitos de eletroacústica através de fita magnética, passagens inspiradas no jazz e, enfim, partes faladas, nas quais os narradores recitam frases não apenas do libreto de Sanguineti, mas utilizam materiais de Dante (Divina Comedia, Vita Nueva), Bíblia Sagrada, T. S. Eliot e Ezra Pound. A utilização do walking bass jazzístico na segunda parte remete às experiências auditivas que ele teve nos EUA: pois além de ter sido professor de compositores e músicos americanos que gostavam de jazz como Steve Reich (que se tornaria o grande compositor da música minimalista) e Phil Lesh (contrabaixista, amante de free jazz e fundador da banda de rock progressivo Greateful Dead), nas horas de folga ou depois das suas aulas na Juilliard, Berio pulava no seu carro, um Buick conversível, e ia “arejar” os ouvidos em clubes de jazz de New York – e dado a época dessa sua segunda estadia americana, de 1960 à 1970, é bem possível que Berio tenha “arejado” os ouvidos com as improvisações incendiárias de músicos libertários da época, como Charles Mingus, Ornette Coleman, John Coltrane, Eric Dolphy, Albert Ayler, dentre outros.
Ademais, Berio tem um conjunto significativo de obras dedicadas para instrumentos diversos as quais são genialmente relevantes enquanto marcos da composição erudita moderna e contemporânea, sendo um dos poucos compositores da vanguarda erudita que conseguiram manter suas obras sendo executadas e gravadas ocasionalmente pelos grandes músicos e grandes orquestras mundo e conjuntos de câmera do mundo. Para além de “Sinfonia”, um outro exemplo de obra que entrou definitivamente para o repertório obrigatório do século XX são as “Sequenzes”, uma série de 15 peças para 15 instrumentos – viola, violino, saxofone, guitarra, harpa, violoncelo, piano e etc –  iniciadas em 1958 e concluída em 2002: trata-se de peças de um considerável teor técnico que exploram as possibilidades e as capacidades dos instrumentos solos, englobando não apenas a velocidade ou passagens complicadas, mas visando a técnica de forma generalizada, englobando timbre, tensão, dinâmica, intervalos, harmônicos e etc. Este álbum acima, projeto da Mode Records, tem todo o total de sequenzas para instrumentos solo e instrumentações adaptadas, incluindo a gravação da estreia mundial da "Sequenza XIV para Violoncelo Solo", escrita para o ex-violoncelista do Arditti Quartet Rohan de Saram, que executa essa peça aqui. Tendo ajuda do próprio Luciano Berio antes do seu falecimento em 2003, a Mode reuniu e lançou a mais completa compilação das gravações de todas as sequenzas -- originais para solos, e alternativas com arranjos para instrumentações camerísticas -- mais todos os outros tipos de peças que o compositor italiano compôs para performance solo.
Além das obras orquestrais (sinfônica ou de câmera), das obras focadas na exploração vocal, das sequenzas para instrumentos solo e das suas pioneiras peças eletroacústicas, Luciano Berio também foi um notável compositor de óperas e um regente especialista de obras da tradição erudita, conhecendo a fundo desde Monteverdi, passando por Schubert até aportar-se em Mahler, sem contar sua vasta experiência em manipular todo o tipo de material, como já citamos anteriormente -- lembrando que em 2000 ele se tornou presidente de honra da Accademia Nazionale di Santa Cecilia, a mais antiga academia de música do mundo, tendo sua fundação datada em 1585. Para quem quer se aventurar no universo "operístico" de Berio, a peça Un Re in Ascolto é um dos melhores exemplos de Berio em relação a esse seu ecletismo estético: composta entre 1981 e 1983, a peça musical dá vida para um libreto escrito a partir  de excertos do conto "Under the Jaguar Sun" de Italo Calvino, textos de Roland Barthes, poemas de W. H. Auden  e trechos do libreto que Friedrich Einsiedel elaborou em 1778 com base na obra The Tempest de William Shakespeare (libreto esse que foi musicado em duas óperas compostas pelos compositores alemães Johann Friedrich Reichardt e Johann Friedrich Anton Fleischmann, no final do século 18).  Un Re in Ascolto foi gravada em sua estreia em 07 de agosto de 1984 no Kleines Festspielhaus, Salzburgo, e foi conduzida por Lorin Maazel à frente da Filarmônica de Viena, sendo que a gravação foi editada em LP e é relativamente fácil de ser encontrada para aquisição nas plataformas digitais. Segundo o próprio Berio, Un Re in Ascolto não é uma ópera no sentido tradicional do termo: é mais uma "ação musical". É preciso lembrar que as obras performáticas de Berio -- peças que incluem teatro musical, happenings, performances de palco e etc -- sempre foram evitadas pelas gravadoras do universo erudito: isso pelo fato de que essas peças foram compostas com ações musicais de palco mais para surpreender o espectador presente, e as gravações, logicamente, não podem fornecer a experiência da performance ao vivo. Contudo, a riqueza musical de Un Re in Ascolto é auditivamente clara em seus monólogos, árias, recitativos, duetos e solos concertantes, além de ficar claro como que Berio sintetiza, mais uma vez, formas musicais de vários períodos -- do clássico ao moderno --, organizando as passagens da peça não como uma coleção de citações fragmentadas ou sequenciais, mas como um conjunto unitário e coeso de composição idiossincraticamente estruturada.

Quem, porventura, não gosta de ópera, mas gosta dos desenvolvimentos contemporâneos em termos de concertos e obras orquestrais, pode se aventurar para além de “Sinfonia” e adquirir um registro gravado em 1989 pelo Ensemble InterContemporain (lançado pela Sony Classival, em 1990), conduzido por seu próprio fundador Pierre Boulez: o LP (foto acima) é constituído de cinco peças distintas, duas delas avulsas e as outras três tiradas da série de peças chamadas “Chemins” e “Corale”, que são transcrições e adaptações orquestrais para suas “Sequenzas”, originalmente escritas para instrumentos solos. O LP traz, então, de “Corale” para violino, dois trompetes e cordas (escrito em 1981, baseado em sua “Sequeza VIII” para violino solo), “Chemins II” para viola e nove instrumentos (escrito em 1967, baseado em sua “Sequenza VI” para viola solo), “Chemins IV” para oboé e ensemble (escrito em 1969, é baseado na “Sequenza VII para oboé solo) e, por fim, as peças Ritorno Degli Snovidenia para violoncello e ensemble e Points on the Curve to Find para piano e 22 instrumentos. Por fim, outro registro fantástico é Rendering (RCA Victor, 1998) com a brilhante London Symphony Orchestra, conduzida pelo próprio Luciano Berio: o disco traz seu Concerto II (Echoing Curves) para piano e dois conjuntos orquestrais, traz ainda a impressionante peça “Rendering” (escrita em 1989/90) em três movimentos, uma recriação fantástica da bela “Sinfonia Inacabada” de Schubert (sua Décima Sinfonia em Ré maior, a qual ele estava tentando concluir antes de falecer em 1828) e, por fim, traz quatro variações originais da peça Ritirata Notturna Di Madrid, escrita no século XVIII pelo compositor Luigi Boccherini sob encomenda da corte espanhola. Com esses registros atesta-se, enfim, o enorme talento de Berio como regente e compositor, sobretudo seu talento em “manipular” materiais de várias épocas, evidenciando, aí, um contraste entre a música moderna e as músicas clássica e romântica.



Em 1968, mesmo ano em que Berio anunciou a sua “Sinfonia”, o genial rockeiro Frank Zappa já havia lançado o álbum Lumpy Gravy (gravado junto com uma orquestra chamada Abnuceals Emuukha Electric Symphony Orchestra), um registro pioneiro da técnica da colagem de samples variados, de fora dos meandros da música erudita, mas com elementos dela: o álbum constitui-se de peças com influências da música concreta, colagens de recortes orquestrais, manipulações elétricas e eletrônicas e palavras faladas. E esse seu debut apenas prenunciava a genialidade de um músico e compositor que teria um impacto absurdo em vários meandros da música: do rock progressivo à música erudita, passando pelo jazz e suas cercanias sessentistas e setentistas -- a influência de Zappa permeou tudo! Fanático por Igor Stravinsky, Edgar Varèse, Maurice Kagel e Eric Dolpy, Frank Zappa foi uma personalidade única e inconteste na música do século XX: sendo um dos grandes nomes do rock'n'roll e um compositor autodidata de criatividade incalculável, ele influenciava uma legião de bandas e artistas que iam dos Beatles ao compositor Pierre Boulez, um dos nomes centrais da música erudita moderna. Em termos de estilo pessoal e predileções, Zappa não apreciava o melodismo convencional da música clássica e romântica: ele achava Mozart, por exemplo, muito mecânico, muito bem “marcadinho”, um porre (!), e ainda colocava num mesmo patamar de igualdade e importância tanto as dificílimas cadências de um concerto erudito quanto as intricadas frases jazzísticas de um saxofone e quanto os solos virtuosos de uma guitarra psicodélica – e era essa postura, dentre tantas outras, que, segundo ele próprio, intrigava seus críticos e algumas pessoas conservadoras do meio musical. Mas ainda assim, Zappa transcendeu esses limites e dificuldades e tornou-se emblemático para a música pós-moderna da segunda metade do século 20. Uma pena que sua obra foi precocemente interrompida, deixando a impressão de que suas amostras de genialidade estavam apenas começando: a pergunta que fica é o quão mais longe Zappa teria ido -- se é que fosse possível ir ainda mais longe -- se aquele câncer de próstata não o tivesse levado em 4 de dezembro de 1993, aos 52 anos de idade. Com um catálogo de mais ou menos 70 obras conhecidas, escritas para orquestra, synclavier, coral, conjuntos de câmera e eletroacústica -- sem contar com as peças que ainda não foram catalogadas ou ainda estão em poder da sua família --, Zappa não conseguiu emplacar toda sua obra erudita em gravações oficiais, mas, nos últimos tempos, tem havido cada vez mais lançamentos dedicadas exclusivamente à sua obra. Registros clássicos das obras de Zappa incluem um LP gravado com Pierre Boulez e seu Ensemble InterContemporain, dois volumes com Kent Nagano e a Orquestra Sinfônica de Londres e mais uma trilogia de álbuns gravados pelo Ensemble Modern, dois deles lançados postumamente pela Família Zappa.
Os esforços que Zappa empreendeu em favor da sua paixão pela música erudita de vanguarda começaram, então, já em meados dos anos 60 com o álbum Lumpy Gravy, gravado junto com uma orquestra que ele mesmo formou e chamou de Abnuceals Emuukha Electric Symphony Orchestra. Até que se prove o contrário Lumpy Gravy foi o primeiro registro -- ao lado da peça "Sinfonia" de Berio -- a mostrar o uso da colagem de samples de forma experimental e extensiva -- algo que John Zorn, por exemplo, também faria duas décadas mais tarde no álbum The Big Gundown (Nonesuch, 1986) ao criar uma estupenda peça de colagem usando recortes das trilhas sonoras de Ennio Morricone. O fato é que Lumpy Gravy é um álbum imprescindível para entender não apenas o uso da colagem na música, mas para compreender a origem da curiosa predileção de Zappa pela música erudita. Lumpy Gravy é, também, o primeiro disco solo de Zappa, que na época era guitarrista e líder da banda de rock The Mothers of Inventions. Na verdade, o conceito do disco começou a ser trabalhado em 1966, quando o produtor Nick Venet, da Capitol Records, deu à Zappa a oportunidade de ele gravar um disco de música orquestrada, já que sua grande paixão era a música erudita. Produzido originalmente para a Capitol, a versão original de Lumpy Gravy pode ser considerado o registro mais raro de Zappa, já que ele encontrou resistências por parte da gravadora para lançar maiores tiragens, editando-o novamente no formato de cartucho para a MGM Records, que também se recusou a permitir que o disco fosse lançado com a versão original. O material é composto por peças que intercalam diálogos surreais gravados dentro da caixa de ressonância do piano e em efeitos radiofônicos com colagens transcendentais através de uma grande variedade de recortes. Sendo um álbum de essência orquestral, há influências e recortes com quase tudo o que se podia imaginar até à época: jazz, rock, músicas tradicionais, improvisações livres, efeitos eletroacústicos, música erudita moderna, blues, música africana e etc. Para a empreitada, Zappa conseguiu reunir uma grande variedades de músicos do jazz e do rock de Los Angeles, nomeando o conjunto de Abnuceals Emuukha Electric Symphony Orchestra: na ficha técnica da versão original constam, por exemplo, músicos como o guitarrista Eric Clapton (na época aclamado nos muros da Inglaterra com a expressão "Clapton is God" por causa dos seus inspiradores solos de guitarra) e o baterista Shelly Many, um dos grandes músicos do "west coast", que inclusive já havia gravado com Ornette Coleman o legendário álbum "Tomorrow is the Question", um dos álbuns precursores do free jazz. Atualmente, pode ser encontrada a versão alternativa de Lumpy Gravy pela Rykodisc, selo responsável por relançar diversas outras raridades da discografia de Zappa
Entre finais da década de 1970 e início dos anos 80, Pierre Boulez, em sua prerrogativa de diretor do IRCAM, começou a contatar alguns dos grandes gênios da música para encomendá-los a compor para seu recém fundado Ensemble InterContemporain. E Zappa estava na lista. O álbum acima foi gravado em Paris, em abril de 1984, no IRCAM (Institut de Recherche et Coordination Acoustique/Musique), instituto fundado por Pierre Boulez para ser um grande centro de estudos e pesquisa da música eletroacústica. São sete faixas intercaladas: três na execução do Ensemble InterContemporain e quatro executadas pelo próprio Zappa ao Synclavier (as quais são creditadas ao The Barking Pumpkin Digital Gratification Consort, atrelado ao seu selo independente Barking Pumpkin). Talvez, por ter sido dirigido em parceria com Boulez, um serialista fascinado pelo pontilhismo e atonalidade, ele prezou por mesclar certas nuances da música atonal (nas músicas executadas pelo Ensemble) com nuances de uma eletroacústica mais meditativa, mas sem esquecer do seu melodismo próprio, oriundo das canções do rock'n'roll: encomendada por Boulez, a faixa título The Perfect Stranger, por exemplo, traz referências temáticas e sonoras do filme 200 Motels, dirigido pelo próprio Zappa em 1971; enquanto a faixa "Outside Now Again" executada ao Synclavier, é uma transcrição do solo da guitarra de Zappa no tema "Outside Now" gravado no álbum Joe's Garage, de 1979. No entanto, longe de ser algo “psicodélico”, serial, sinuoso, caótico ou de contar com os espasmos rítmicos stravinskyanos adotados em outras obras suas, Zappa adota um discurso preponderantemente programático, quase que quadrado e com passagens e notas bem destacadas, sobretudo nas peças orquestrais "The Perfect Stranger" e Dupree's Paradise, praticamente deixando-as semelhantes às peças contemporâneas de outros compositores pós-seriais que, cansados das viagens conceituais e experimentalistas, voltaram a adotar um certo grau de classicismo no século XX (Penderecki, por exemplo). As nuances mais escuras, atonais e meditativas ficam por conta das faixas Naval Aviation in Art (com o ensemble) e Jonestown (com o Synclavier), essas ainda mais lentas e repletas de notas longas.
Outras gravações importantes incluem as versões que o aclamado Ensemble Modern deu para as peças de Zappa. A primeiras gravações do Ensemble Modern dedicadas à obra de Zappa foram realizadas, ainda sob sua própria supervisão, entre 1991 e 1992, prezando por peças encomendadas, peças mais curtas e complicadas, com elementos de improvisação livre e com partes faladas por narradores e vocalistas (textos que expressavam a sua crítica irônica): em 1992 foram realizadas, ao vivo, as gravações dessas peças sendo tocadas no Festival de Frankfurt sob a direção do maestro Peter Rundel, as quais deram origem ao extraordinário álbum The Yellow Shark (Rikodisc), atualmente considerado um dos registros “cults” da música erudita contemporânea; antes, em 1991, o Ensemble Modern havia entrado em estúdio para gravar um ensaio preparativo para o próprio The Yellow Shark, com um outro conjunto de peças gravadas que ficariam arquivadas até serem editadas e lançadas em disco em 1999, pela Família Zappa: o resultado foi o álbum Everything Is Healing Nicely (UMRK) . Recentemente, em 2003, o Ensemble Modern lançou o álbum Ensemble Modern Plays Frank Zappa: Greggery Peccary & Other Persuasions (RCA Red Seal), esse com quase as mesmas características – com arranjos eruditos e o uso de vocalistas e narradores –, só que as audições são mais acessíveis e familiares: aqui, ao contrário dos dois álbuns anteriores, constituídos de peças que foram encomendadas diretamente a Zappa, o ensemble não só toca peças de rigor erudito que estavam a muito guardadas no catálogo como também faz uma releitura de algumas canções e peças gravadas em discos da sua fase roqueira e fusionista: estão relacionados, por exemplo, temas como The Adventures of Greggery Peccary, do álbum Sudion Tan (1978), e "Night School" e "Beltway Bandits", ambas do disco Jazz From Hell (1986). Essas peças, exemplos coesos e importantíssimos para entender o pós-modernismo vigente, são amostras claras de amálgamas e hibridismo entre as formas da música erudita moderna, do rock e do jazz, dentro, claro, do estilo de composição idiossincrático de Frank Zappa, que soube, como poucos, misturar aspectos da música americana com aspectos da vanguarda europeia.

   
Após as fases criativas de Stravinsky, Prokofiev (os quais também exilaram-se na Europa e nos EUA por causa das agruras da censura russa) e Shostackovich (esse mais concernente com o regime soviético), e já passado a Primeira e a Segunda Guerra Mundial -- dentre tantos outros turbilhões de guerras culturais, políticas, bélicas, científicas... da primeira metade do século XX --, o mundo passaria a conhecer outro grande e idiossincrático compositor russo: Alfred Schnittke (1934-1998), um dos últimos dos maiores compositores russos do século XX. Agora, o mundo nem bem tentava assimilar as consequências da Segunda Guerra Mundial e já sofria com as ameaças atômicas da Guerra Fria proporcionadas pela medição de forças entre EUA e União Soviética. Diante deste cenário, as artes já haviam passado pela maioria das grandes transformações, descobertas e experimentos, com as estéticas de vanguarda praticamente esgotando-se ao chegar na década de 70. A União Soviética já não estava sob as mãos de ferro de Stálin -- falecido em 1953 --, mas ainda destilaria o socialismo leninista e as políticas de censura stalinistas mesmo com a tendência de uma moderada abertura política, que foi "esfriando" o regime até ele ser derrubado em 1991, após as políticas de Gorbachev. No campo da música, por exemplo, o novo mandatário responsável por censurar obras que não se encaixassem com o tal Realismo Soviético era Tikhon Khrénikov, que, após a morte de Jdànov em 1948, fora empossado por Stálin para presidir a União dos Compositores da URSS: e este diabo ficaria no poder desta instituição exatamente até o fim do regime, em 1991! Uma grande maioria dos compositores russos desse período sofreria com o gajo.

Schnittke, por sua vez, começou sua carreira como compositor em meados dos anos 50,e já distanciando-se daquele nacionalismo de outrora, ou seja, do tal "Realismo Soviético" imposto pelas "políticas culturais" do Estado nos momentos áureos do socialismo. Enquanto jovem, ele chegou até mesmo a aderir às técnicas do serialismo integral disseminadas pelos compositores vanguardistas da Alemanha, Itália e França, uma prática que, nos tempos de Stalin, nunca lhe seria permitida. No entanto, por causa da indissociável influência de Shostakovich, que se tornaria um mestre para muitos jovens compositores russos, um pouco daquele exotismo e das entonações da música russa ainda se fazem presentes na música de Schnittke, embora, como já citado, ele não tenha forjado suas composições com temáticas socialistas, como fizera o mestre. Se Shostakovich ficara conhecido por seu estilo nacionalista baseado no grotesco e na exaltação da glória soviética, Schnittke ficaria conhecido por um estilo indiferente aos fórceps do regime: um discurso musical ilógico que combinaria sombreamentos mahlerianos com seu grande fascínio pela escrita e formas da música barroca e clássica, tudo isso inflexionado com seu próprio manejo visionário de intercalar as tradicionais técnicas dos séculos anteriores com as novas técnicas vanguardistas ocidentais -- absorvendo menos as heranças provenientes da música russa. Contudo é indiscutível que Schnittke tenha enfrentado uma natural herança "shostakovitchiana" no sentido de ter se tornado representante maior da amplamente reconhecida grandeza musical russa.
As intenções estéticas e o desdém do compositor à censura russa ficaram patentes quando, enfim, entre 1969 e 1974, ele escreveu sua primeira obra de grande impacto, a sensacional Sinfonia Nº 1, uma peça encrustada de recortes tirados de obras de compositores europeus e trabalhada através de um espinhoso entrelace de várias formas compositivas: formalizava-se, então, a sua técnica do poliestilismo, o que lhe conferiria respeito e maturidade. Essa peça acabou lhe tirando a virgindade em relação às perseguições do Estado russo, pois além dela ter sido banida pela União dos Compositores da União Soviética, posteriormente o próprio compositor foi impedido de viajar para fora do país, só sendo liberado para viajar após as implementações das novas liberdades proporcionadas pelas medidas políticas da Glasnost & Perestroika, quando, indignado, mudou-se definitivamente com a família para Hamburgo, na Alemanha --  destino mais que natural, já que ele nascera no Volga Alemão, na cidade russa de Engels, onde viviam uma grande quantidade de alemães; sem contar que foi nesta época, justamente na Alemanha, que o Muro de Berlim, símbolo maior da Guerra Fria e do império socialista soviético, seria derrubado. Mas apesar de Khrénikov ter mantido o banimento de algumas obras de Schnittke na União dos Compositores da URSS, posteriormente o próprio Ministério da Cultura, já amolecido pelas novas políticas de abertura econômica-política-cultural, compreendeu os propósitos estéticos de Schnittke, autorizando o maestro Gennady Rozhdestvensky a gravar o conjunto de sinfonias do compositor frente à própria orquestra do ministério. Essas gravações históricas com Gennady Rozhdestvensky são relativamente acessíveis e se tornaram um tanto importantes na disseminação da genialidade musical de Schnittke.


Quando analisamos mais minuciosamente a Sinfonia No. 1 de Schnittke verificamos que, a exemplo de como Luciano Berio fizera, o compositor usa diversos recortes e citações diretas de Tchaikovsky (Concerto para Piano em Si Menor), Johann Strauss Jr. (Valsa Danúbio Azul), Chopin (Segunda Sonata para Piano), dentre outras diversas citações em meio aos desenvolvimentos. Ele também adiciona à peça uma abertura barroca (algo semelhante a um rondó de Händel ou Bach), partes referenciadas na orquestração de Mahler, cacofonias extremas sob o despejo do conceito da "música aleatória" (algo que ficou parecendo com uma das orquestras de livre improvisação europeias: uma Globe Unity Orchestra, por exemplo) e até uma parte improvisada com piano e violino evocando a poética do jazz -- mostrando que até em pleno território russo o jazz teve influência. Fosse nos tempos de Stálin, Schnittke seria levado direto pra um dos gulags siberianos (campos de concentração russos) somente por causa desta sua ruidosa, híbrida e controversa Sinfonia Nº 1: trata-se de um dos mais perturbadores exemplos de cacofonia sinfônica e colagem musical que já pôde ser registrado em toda a música do século XX -- e por isso, como já citado, a peça foi rechaçada pela União dos Compositores da União Soviética sob a caneta poderosa de Khrénikov; e o compositor passaria a ser perseguido pelo regime, sendo até impedido de sair para fora do seu país. Mas a Sinfonia Nº 1 foi apenas uma das suas peças de anunciação do poliestilismo, um caminho que lhe renderia muitas outras composições seminais. Aliás, a sua primeira peça autenticamente poli-estilista foi a Quasi una sonata (1967-1968), uma sonata para violino e piano. E para dar embasamento nesta sua nova técnica, Schnittke foi muito além dos seus contemporâneos: ele usou não apenas a técnica da colagem na forma de citações diretas (através de recortes de peças de outros compositores: barrocos, clássicos, românticos e etc...), mas especializou-se -- ele mesmo: com a sua idiossincrasia -- em escrever música usando todas as linguagens já conhecidas séculos anteriores -- do canto gregoriano renascentista, passando pelo barroco, classicismo, romantismo, música dodecafônica, música serial, música aleatória e etc...e chegou até mesmo usar resquícios da livre improvisação e de culturas musicais mais populares, como o jazz e o rock, impondo, em suas peças, discursos com linguagens intercaladas e entrelaçadas os quais são totalmente atemporais e ilógicos em relação à qualquer programática dantes estabelecida. E é este um dos novos procedimentos, que junto à música minimalista, inicia o pós-modernismo na segunda metade do século XX.
Para entender a obra de Schnittke é preciso constatar, enfim, de que ele foi gênio não apenas dos mais ecléticos, mas também foi um dos mais completos da história da música erudita, lhe valendo tanto da infinidade de técnicas e formas composicionais já dantes conhecidas como também das mais recentemente descobertas: escreveu concertos magníficos para instrumentos solos (para piano, cello e violino), especializou-se no resgate e na modernização dos concertos grossos (forma de concerto barroco, geralmente composto por solistas na linha de frente e baixo-contínuo ao fundo), escreveu sonatas e suítes (nas quais usava "motivos" e ritmos clássicos como rondós, valsas, marchas, entre outros), escreveu óperas, balés, peças camerísticas (trios, quartetos, quintetos e etc), compôs corais e canções litúrgicas (réquiens, missas e hinos), várias trilhas para o cinema e presenteou o repertório da música do século XX com sinfonias de grande carga expressiva. Aliás, é nos concertos e nas sinfonias onde o compositor mais se destaca. Assim como Shostakovich -- que escreveu, ao todo, quinze (!) sinfonias --, acredito que Schnittke ainda possa ser considerado um dos cinco maiores sinfonistas do século XX, embora suas sinfonias -- assim como toda a sua obra -- ainda estejam em processo de serem amplamente reconhecidas e executadas com mais regularidade pelas maiores orquestras do mundo -- os outros três maiores sinfonistas, dentre os poucos compositores desse século que ainda se propuseram a serem especialistas nesta já manjada forma musical, seriam Mahler, Sibélius e Prokofiev, os quais não representam, necessariamente, o vanguardismo moderno pró e pós Schoenberg, ou seja, são criadores do início do século que ainda evocam a poética do romantismo tardio sem romper com o cromatismo tonal. Ao todo, Schnittke compôs dez sinfonias:

A primeira sinfonia de Schnittke, chamada Sinfonia Nº 0, foi escrita em 1954; a última delas, a Sinfonia Nº 9, é uma peça que ficou inacabada em apenas três movimentos, sendo reconstruída entre os anos de 1996 e 97 por Alexander Raskatov -- já que, além de inacabada, os manuscritos da peça estavam praticamente ilegíveis, por causa de um dos vários derrames cerebrais que paralisou o lado direito do compositor, obrigando-o a escrever sofrivelmente com a mão esquerda, não destra. Essa sua última sinfonia pode ser apreciada, inclusive, em sua versão de estreia através do álbum Alfred Schnittke: Symphony No. 9; Alexander Raskatov: Nunc dimittis, lançado pela gravadora ECM em 2009. E para quem quiser, enfim, ter todas as dez sinfonias numa única compilação, basta adquirir o box-set Alfred Schnittke: The Ten Symphonies (foto acima), lançado pela Naxos através do selo BIS (com várias orquestras europeias) ou garimpar a série de gravações realizadas pelo maestro russo Gennady Rozhdestvensky à frente da Orquestra Sinfônica do Ministério da Cultura da URSS. Para o ouvinte mais completista, o interessante mesmo é notar como que estas dez sinfonias, por serem obras orquestrais extensas e ricas de recursos compositivos, retrata nitidamente, ao longo da sua cronologia, os rumos estéticos do compositor ao longo dos anos: de um poliestilismo ruidoso, atonal, cacofônico e intrincado, presenciado nas primeiras quatro sinfonias, para um estilo mais sóbrio, serene e melodicamente sombrio presenciado nas sinfonias escritas nos anos 90, já evocando a poética dos movimentos neo-clássicos e neo-românticos.


Depois das sinfonias, o outro ponto que mais merece destaque dentro da obra de Schnittke é os concertos: tanto os concertos grosso (escrito para dois, três ou quatro instrumentos solistas) como os concertos para apenas um instrumento solista. Os concertos grosso do compositor -- já lembrando que, ao todo, são seis: alguns deles exemplos seminais da técnica do poliestilismo -- são baseados nos concertos grosso barrocos, forma da qual o compositor foi um dos entusiastas e modernizadores no século XX. Fascinado pela música barroca -- principalmente por Bach, lógico! --, o compositor usou quase o mesmo arranjo instrumental do concerto grosso barroco original para criar os seus próprios concertos grosso: nos primeiros concertos desta espécie ele faz referências diretas à polifonia barroca -- onde ele mesmo escreveu partes na linguagem barroca, mas ao seu modo --, intercalando-a com as intrincâncias da música moderna, ou seja, da música atonal e serial do século XX; enquanto nos posteriores, a partir do Concerto Grosso Nº 4 (que também é usado como base para sua Sinfonia Nº 5, escrita em 1988), ele deixa de lado sua escrita referenciada na polifonia barroca e começa a evoluir para uma escrita estritamente moderna mesmo, imprimindo toda aquela atonalidade e sinuosidade provenientes da música moderna. Em ambos os casos, porém, o formato instrumental é um só: o concerto grosso só é assim chamado porque é escrito para dois, três ou quatro instrumentos solistas, os quais atuam na linha de frente sobre um fundo orquestral que geralmente é constituído de orquestra de cordas (podendo ter uma adição tênue de instrumentos de sopro: com oboé, flauta e trompa) com violinos, violas e um baixo-contínuo formado por sessão de violoncelos que sustenta o fundo harmônico (lembrando que na configuração barroca original, o baixo-contínuo é "temperado" pelo cravo, que tanto pode soar como um instrumento de fundo como também pode ser um solista). 

O Concerto Grosso Nº 1 (1977) para dois violinos, cravo e piano preparado -- um piano personalizado, uma invenção do experimentalista John Cage, diga-se de passagem -- é um dos exemplos mais acessíveis da técnica do poliestilismo, um dos exemplos mais claros de como Schnittke sabia revirar o passado e o presente do avesso, misturá-los, transfigurá-los ou reconfigurá-los ao seu modo, criando, assim, peças preponderantemente atemporais(!): o primeiro movimento desta peça é um prelúdio de sonoridade moderna que inicia-se com uma introdução de notas bem pontuadas através do desafinado piano preparado e, logo em seguida, segue com um lento entrelace dos dois violinos solistas, tendo um fundo temperado por leves sombreamentos dissonantes -- aí, o fluxo segue ora serene, ora surge num lampejo de volume intenso, mas sempre lento e constante; já o segundo movimento surge com a polifonia na forma barroca e em andamento allegro: é uma tocatta aguda protagonizada pelos violinos, que vai aos poucos se deformando em entrelaces contrapontísticos até beirar a cacofonia, enquanto o acompanhamento ao fundo -- protagonizada por violas, cellos e cravo -- sai da consonância barroca até chegar à dissonância moderna, quase beirando a atonalidade. Ou seja, o resultado geral deste concerto é um encontro de nostalgias onde o ouvinte é surpreendido por fluxos e espasmos diferentes em cada andamento que se segue: é como se viajássemos da doçura do barroco francês ou do lirismo do barroco italiano ao amargor vienense dos tempos modernos, com direito a paradas no exotismo russo. Só que não fica sempre assim: a partir do Concerto Grosso Nº 4 (1988), como foi dito, a polifonia e o contraponto ao estilo barroco começam a desaparecer: da mesma forma como acontece na cronologia das sinfonias, os concertos grossos saem de um poliestilismo intrincado e rumam para um estilo unicamente modernista.
Em paralelo aos concertos grosso, Schnittke também se dedicou a escrever concertos para apenas um instrumento solista: escreveu vários deles para violino, viola, cello, piano e oboé. Porém, nas obras relacionadas a esta espécie de concerto, o compositor resolveu deixar seu poliestilismo menos saliente, expressando mais a sua veia modernista e as conexões clássicas e românticas trazidas pelas escolas tecnicistas relacionadas a esses instrumentos. Seus concertos para violino, por exemplo, tendem a respeitar a melodiosidade romântica, o brilhantismo e os padrões técnicos clássicos deste instrumento ao mesmo tempo em que valoriza, também, as intrincâncias e a atonalidade da música do século XX. De um modo geral, os concertos para instrumentos como violino, violoncello e piano, independentemente de serem escritos sob a linguagem do romantismo ou modernismo, naturalmente tendem a respeitar determinados padrões de dinâmica e técnica inerentes ao desenvolvimento do instrumento ao longo dos séculos -- e é por isso que no caso dos concertos de violino, por exemplo, poucos deles foram apresentados como obras rebeldes e ruptoras, pois ainda tendem a levar em consideração o conjunto sofisticado de técnicas adquiridas através dos grandes mestres violinistas que surgiram ao longo da história da música erudita. 

GIDON KREMER
Isto é, se partirmos das sonatas e concertos barrocos de violinistas como Corelli e Vivaldi, passarmos pelos caprichos e concertos de Paganini, e aportarmos no romantismo de Wieniawski, veremos que, a partir dos estudos técnicos destes compositores-violinistas, o violino adquiriu uma abrangência enciclopédica incomensurável de técnicas e conceitos, rivalizando apenas com o piano no quesito de instrumento com maior tecnicidade, maior repertório e maior público. Dito isto, nem é preciso ressaltar com muita ênfase que nem todos os compositores não-violinistas foram capazes de escrever concertos para violino com a mesma maestria -- de explorar o virtuosismo a melodiosidade do instrumento -- e a mesma abrangência técnica que os próprios compositores-violinistas conseguiam expressar: Bach, Beethoven, Mendelssohn, Brahms, Bruch, Sibelius, Prokofiev e Shostakovich foram alguns dos entusiastas do violino que, mesmo não sendo violinistas, conseguiram escrever concertos magníficos para esse instrumento; mas, dos compositores vanguardistas e experimentalistas surgidos após o advento do dodecafonismo, que naturalmente surgiram para ignorar os padrões e escrever obras ruptoras e rebeldes, muitos deles não se interessaram em escrever concertos desta espécie -- justamente pelo fato de 
que nunca vai ser fácil escrever um concerto para violino que chegue perto do brilhantismos dos concertos de outrora e, ao mesmo tempo, seja uma peça ruptora, já que existem essas dinâmicas e esses padrões técnicos inerentes à arte do instrumento. Mas Schnittke, que era pianista e cravista, foi uma exceção neste quesito: foi um dos únicos compositores do século XX que tiveram a capacidade de escrever concertos para violino e violoncello verdadeiramente magistrais, como bem exige a tradição de concertos virtuosísticos relacionados a estes instrumentos, evocando tanto os ecos do romantismo como também as intrincâncias do modernismo.
 
O seu Concerto Nº 1 para Violino e Orquestra (1957), por exemplo, ainda traz um pouco dos ecos do romantismo tardio "shostakovitchiano": trata-se de um trabalho de quando o compositor ainda estava estudando composição, aos 23 anos de idade -- tanto que ele mesmo sentiu a necessidade de revisá-lo em 1963. Já o Concerto Nº 2 para Violino e Orquestra de Câmera (1966) é ultra-moderno (!): trata-se de um concerto num andamento único de 21 minutos, onde os solos angulares do violino atua quase sempre com pouco acompanhamento, sendo interrompido por intervenções orquestrais um tanto ruidosas -- detalhe: a obra é uma homenagem à história de Jesus Cristo e seu célebre discurso no Sermão da Montanha, como se o extenso e angular discurso do violino representasse um dos extensos discursos do próprio Cristo frente à multidão de seguidores. Para quem, enfim, é fascinado pela arte do concerto, há a coletânea de concertos de Schnitkke para violino que segue até o Concerto Nº 4: os quatros concertos foram gravados na íntegra pelo célebre violinista Gidon Kremer (um verdadeiro entusiasta de Schnittke) e pelo maestro Christoph Eschenbach à frente da NDR Symphony Orchestra of Hamburg (ou Orquestra Sinfônica da Rádio do Norte da Alemanhã, com sede em Hamburgo), da Chamber Orchestra of Europe e da Philharmonia Orchestra. Além destes -- os concertos grosso e os concertos para violino --, a não perder, também, são os concertos para violoncelo: a gravação da estreia do Concerto Nº2 para Cello e Orquestra (1990) pode ser encontrada facilmente num disco de 1992 com o célebre violoncelista Mstislav Rostropovich e o icônico maestro Seiji Osawa à frente da brilhante London Symphony Orchestra, uma das orquestras mais adeptas às obras do século XX e, por isso, uma das minhas orquestras preferidas.





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