Arquivo do Blog

Matthew Shipp - Novo Álbum & Livro: seu pianismo cósmico e a mística dos pianistas negros que transcenderam o jazz

 
O pianista Matthew Shipp fará 65 anos neste ano de 2025 e mantém seu espírito inquieto e criativo, sempre tendo vários lançamentos e projetos paralelos sendo gestados ao mesmo tempo. O pianista acaba de lançar, numa fornada só, um álbum de piano solo pela gravadora Cantaloupe Music —— uma associação curiosa, visto que essa gravadora é baseada em música erudita contemporânea ——, um outro álbum em parceria com o saxofonista Ivo Perelman, chamado Armageddon Flower (Tao Forms), e um livro sobre pianistas afro-americanos que transcenderam a arte da música. Isso sem contar as entrevistas e polêmicas. Em uma recente entrevista para o 👉 The Village Voice, o pianista falou sobre sua arte, suas concepções, sua trajetória, sobre o pintor Mark Rothko e sua apresentação na Rothko Chapel e falou sobre o como muitas pessoas curiosas estão procurado ouvir sua música após a polêmica causada por sua declarada indignação com o álbum 7 Piano Sketches (Epic, 2025) do ex-rapper André 3000, jogando lenha numa fogueira sobre até onde vai o limite da insipidez na arte da música. A crítica de Shipp demonizando o álbum do ex-vocalista do Outkast —— que agora tenta mostrar que é um instrumentista de profundidade —— viralizou e ecoou em vários sites e canais tais como Stereogum, Variety, Consequence of Sound e foi abordado até mesmo pelo popular youtuber Anthony Fantano. O fato é que, embora muitos não concordem com suas opiniões, Shipp tem alguma propriedade e alguma autoridade para entrar nessas polêmicas, pois além de apresentar um pianismo bem fundamentado nas artes do jazz e da improvisação livre, Shipp tem sido um artista —— assim como André 3000 vislumbra agora ser —— que já conseguiu transitar e conquistar mentes e ouvidos dentro do hip hop e da eletrônica e nos mais variados circuitos, mesmo mantendo fidelidade em uma concepção própria mais arraigada no free jazz. E agora, em 2025, o pianista mais uma vez nos surpreende ao lançar um álbum em piano solo pela exitosa gravadora Cantaloupe Music, um dos núcleos mais importantes de música erudita contemporânea nos EUA. Abaixo falaremos desse tento, mas antes falaremos um tanto da capacidade de Shipp criar conexões.

Desde os anos de 1990 Matthew Shipp tem conquistado uma gama diversificada de admiradores e de público. Tendo começado sua carreira apadrinhado pelo contrabaixista William Parker que o indicou para ser pianista fixo do grande Quarteto do saxofonista David S. Ware, Shipp bebeu da fonte enriquecida pelos afluentes do free jazz e da spiritual music e, desde já, apresentou um pianismo próprio dotado de densa espiritualidade e ampla versatilidade. Esse pianismo dotado de notável densidade espiritual —— muito pelo motivo das suas origens familiares serem advindas do seio da espiritualidade gospel —— logo incluiu conexões com o hip hop e participações com outros artistas e bandas de outros gêneros, e não demorou para que Shipp fosse admirado por uma gama de outros artistas interessados em jazz: o rockstar David Bowie elogiou seu trabalho no álbum Nu Bop (2002); Thurston Moore elogiou sua versatilidade dizendo que Shipp tinha a capacidade de atrair as mesmas pessoas interessadas em projetos e bandas experimentais tal como o Merzbow; o ícone do punk-rock Henry Rollins lançou alguns discos de Shipp em seu selo 213, justamente porque gostou muito da sua música cativante e imersiva; e Shipp também teve a admiração e amizade de Cat Power, célebre cantora de folk e indie rock. Entre finais dos anos 90 e primeira metade dos anos 2000, Shipp teve forte aproximação com a comunidade do hip hop alternativo e músicos de eletrônica e chegou a tocar e gravar com figuras e grupos tais como Antipop Consortium, FLAM, DJ Spooky e El-P. É nessa fase que ele lança os aclamados álbuns da sua Série Blue pela gravadora Thirsty Ear, onde efetuou fusões de spiritual jazz com hip hop e efeitos eletrônicos, alcançando uma vibe que amalgamou elementos orgânicos com uma estética mais urbana: vide os incríveis álbuns Nu Bop (2002), Equilibrium (2003) e Antipop vs Matthew Shipp (2003) e Harmony and Abyss (2004). Essa fase criativa de múltiplas conexões criou um vínculo forte com a gravadora Thirsty Ear e também lhe foi inspiradora no campo do piano solo, surtindo em lançamentos de títulos incríveis tais como One (2005), 4D (2010), Art of the Improviser (2011) e Piano Sutras (2013) —— alguns dos meus preferidos álbuns na seara do piano solo. Após essa fase, Shipp enveredou-se para projetos solos e parcerias mais arraigadas no free jazz —— estritamente ——, mas em todas suas fases da carreira o pianista demonstra uma busca musical incessante pela espiritualidade, sendo um dos poucos contemporâneos a desenvolver um continuum do spiritual jazz na seara do piano acústico.

Esse retrospecto que aqui vos apresento delimita apenas um pedaço pequeno da carreira sempre criativa de Matthew Shipp, mas é marcante o suficiente para introduzir o ouvinte e leitor na áurea espiritual desse grande pianista. Compenetrado no mantra advindo de John Coltrane e influenciado por pianistas como Thelonious Monk, Sun Ra, Andrew Hill e Cecil Taylor, Shipp construiu um estilo de piano próprio, cósmico, livre e profundo que o coloca na lista dos pianistas históricos e legendários que buscaram transcender a arte do jazz para além da materialidade das técnicas advindas da cultura afro-americana em fusão com a música erudita e a música popular. Essa busca pessoal de Matthew Shipp por diferenciação e transcendência lhe fez começar a pesquisar e estudar a história e a música de vários pianistas afro-americanos que inovaram e transcenderam a arte do piano moderno, o que lhe surtiu efeito no excelente livro recém lançado Black Mystery School Pianists and Other Writings (2025). Abaixo lhes trago, então, uma sinopse desse livro antes de mergulhar na concepção do novo álbum de piano solo desse grande pianista. Leiam, comprem, apreciem sem moderação.


 Matthew Shipp - Black Mystery School Pianists and Other Writings (2025)
Este é um dos livros que deverão enriquecer as escutas dos jazzófilos e curiosos musicais neste 2025 —— na verdade um livreto de 94 páginas com ensaios instigantes. Não é a primeira vez que Matthew Shipp se aventura na faceta de escrever ensaios ou livros. Em 2011 ele escreveu e publicou "Logos and Language: A Post-Jazz Metaphysical Dialogue" junto ao poeta Steve Dalachinsky pela editora RogueArt —— uma serie de dialogos filosóficos abordando jazz, crítica musical filosofia, arte e espiritualidade —— e ele também já escreveu ensaios para jornais, periódicos e magazines tais como Burning Ambulance, The Wire e Point of Departure: vide, por exemplo, os ensaios "The Inside View of the Outside" e "Myth Science Jazz and the New Age". Em 2020, Matthew Shipp escreveu um outro curioso ensaio, dessa vez no site da organização NewMusicUSA, dentro da seção de “statements”: o pianista intitulou o texto de "Black Mystery School Pianists". O ensaio foi publicado no X —— na época Twitter —— e foi veiculado em alguns periódicos e locais da internet dedicados o jazz e à avant-garde music. Nesse ensaio, Shipp abordava pianistas que transcenderam a arte do piano jazz pelas vias da diferenciação, deixando latente que esses pianistas afro-americanos deixaram um legado misterioso de inovação e exotismo e estabeleceram uma áurea praticamente mística em torno das suas obras ao densenvolverem técnicas estendidas e linguagens livres dotadas de caráter iconoclasta e radicalmente pessoal, fora dos cânones acadêmicos e/ou mainstream. Foi a gênese, então, para este novo livro, "Black Mystery School Pianists and Other Writings" lançado agora em 2025 pela Autonomedia. Na capa desse novo livro, Shipp colocou uma criança negra vestida com algum tipo de manto cerimonial —— muito comum na tradição gospel —— para denotar o elemento da espiritualidade que é tão basilar em sua busca pessoal, elemento também tão internalizado e externalizado por músicos de jazz em geral, principalmente por esses pianistas iconoclastas abordados no livro. Nesse livro Shipp aborda basicamente três listas: a lista dos que pertencem ao que ele chama de "Black Mystery School Pianists", lista que inclui gênios que desenvolveram esse viés iconoclasta e esse misticismo musical inovador tais como Thelonious Monk, Herbie Nichols, Mal  Waldron, Randy  Weston, Cecil  Taylor, Andrew  Hill, Hasaan  Ibn Ali, Sun  Ra e Horace  Tapscott; a lista de pianistas que bebem dessa fonte e, em certa medida e em certos aspectos e contextos, se inspiram nesse misticismo e exotismo iconoclasta desses gênios precursores, lista que inclui figuras como Ran  Blake, Dave  Burrell, Geri  Allen e Rodney  Kendrick; e, por fim, a lista de pianistas inovadores que foram super influentes para todos os outros pianistas que vieram depois, mas que não se encaixam nos critérios iconoclastas citados, lista composta por figuras legendárias como Duke Ellington, Bud Powell, Mary Lou Williams, Horace Silver (enquadrado em alguns critérios) e McCoy Tyner, entre outros. Para argumentar e expor o embasamento necessário, Shipp não se limita a listar esses e outros nomes. Ele define critérios específicos tais como "toque diferente ou alternativo", "recusa ao conservatório ou à escolarização musical convencional", "postura iconoclasta", "harmonias angulares e exóticas", "espiritualidade", entre outros critérios e diferenciações. O ensaio equilibra, então, análise histórica, interpretação sobre a estética desses pianistas, faz uma ponte entre música e espiritualidade —— e não é a espiritualidade denominacional ou religiosa, mas sim a espiritualidade musical-cósmico-humanista-existencial de cada músico —— e vai até a crítica socio-cultural, oferecendo uma visão envolvente tanto para músicos quanto para leitores curiosos que são interessados nesses bastidores mais alternativos da história jazz. Esse tipo de análise é interessante e deveras importante porque, de fato, resgata o interesse de um público por figuras que são conceituadas entre os músicos e menos reconhecidas ante à massa de ouvintes fermentada pelas tendências e convenções do mainstream. Ademais, Shipp também enriquece o restante do livro com ensaios sobre sua visão de mundo, improvisação, poemas, tributos a músicos como Sun Ra e David S. Ware, crônicas sobre shows e turnês, reflexões culturais e outros escritos. Este livro, enfim, foi escrito para levar o ouvinte e leitor que é fã de jazz para fora da caixa do que mais se veicula nos sites, canais e outros espaços midiáticos que prezam sempre as mesmas listas "top 10" convencionais com os mesmos músicos de jazz que já são normalmente listados. Sim, Matthew Shipp reconhece e respeita o talento e a influencia desses pianistas mais reconhecidos, mas o que ele quer dizer para o ouvinte e leitor fã de jazz é que existe uma outra estirpe formada por outros pianistas que mostraram transcendências que estão além do talento, do alcance midiático e dos padrões identitários da cultura.

★★★★ - Matthew Shipp - The Cosmic Piano (Cantaloupe Music, 2025)
Já ouvi alguns dos vários álbuns de piano solo de Matthew Shipp e meus preferidos são os que foram gravados em sua fase que girou em torno da Série Blue pela gravadora Thirsty Ear. Mas aqui neste álbum acima também há ecos daquela áurea espiritual que Shipp construiu e externalizou em seus álbuns do período dos anos 90 até o início da década de 2010 e, somado a esses ecos espirituais, há uma inspiração cósmica mais profunda que não é somente retórica, mas basilar. O primeiro fato que diferencia este álbum dos álbuns previamente lançados por Shipp é seu lançamento pela gravadora Cantaloupe Music, selo vinculado ao coletivo de música erudita contemporânea Bang on a Can, fundado pelos compositores pós-minimalistas Julia Wolfe, Michael Gordon e David Lang. Houve um encontro prévio entre Matthew Shipp e David Lang, onde o pianista explicou sua visão musical e em seguida Lang, então, o convida para lançar um álbum totalmente improvisado pela Cantaloupe. Os compositores e diretores da Cantaloupe e do Bang on a Can já lançaram, sim, obras de outros músicos de jazz, mas sempre foram obras com estruturas composicionais pré-elaboradas sob o ethos da música erudita contemporânea, diferente deste álbum de Shipp que é realmente e totalmente improvisado. Então essa conexão de um artista que criou seu espectro musical pelas vias da música totalmente improvisada com uma gravadora de música erudita contemporânea que preza por músicos e compositores que trabalham com estruturas composicionais pré-elaboradas ou com estruturas mistas (composição escrita em pauta, mais experimentos, mais improvisos) é deveras curioso e incomum. Contudo, e embora o álbum tenha sido gravado numa só tomada e seja totalmente improvisado, temos de considerar que o próprio Matthew Shipp salienta que ele precisou, sim, de uma preparação prévia para buscar em seu interior as inspirações cósmicas necessárias para seus improvisos. E talvez, essa preparação prévia já confira substrato para uma aproximação ao viés erudito sempre veiculado pela Cantaloupe, numa tentativa de Shipp reposicionar sua música solo dentro de um certo contexto da música erudita contemporânea, não apenas dentro do jazz. Depois, temos de reiterar que aqui em Cosmic Piano, Shipp não apenas traz ecos daquele seu lado espiritual que ele vinha construindo e externalizando em sua carreira pregressa —— quando ele tocava com David S. Ware e se inspirava muito no gospel e no spiritual jazz de John Coltrane e Albert Ayler, por exemplo... ——, mas aqui o próprio Shipp diz se inspirar mais profundamente em um tipo de espiritualidade que conecta o seu interior humano com a energia e a mística do cosmo, onde a existência e a vida de alguma forma se conecta com a energia da Terra, das estrelas, dos planetas e do universo como um todo, remetendo-se a uma áurea que é mais advinda da espiritualidade de Sun Ra, por exemplo. Gravado em 8 de setembro de 2024 no EastSide Sound, em Nova York, e lançado em 20 de junho de 2025, The Cosmic Piano condensa numa set list de 56 minutos uma síntese, então, dessa visão místico‑cosmológica de Matthew Shipp aliada à uma inspiração advinda do espectro do blues e do piano jazz que emana diretamente do subconsciente do músico para ser externalizada sob formas abstratas.  Ao todo, são doze peças totalmente improvisadas, para as quais Shipp precisou ter —— e ele relata isso em entrevistas —— grande compenetração e imersiva preparação para que seu toque fosse tão espontâneo quanto profundo na hora da gravação, de modo que ele compara essa preparação prévia com a rotina de um pugilista disciplinado: ..."road work, speed bag, sparring"..., Shipp cita esses termos para dizer que ele teve que "estudar" e refinar aspectos e elementos tais como escalas que trouxessem do seu âmago esse viés cósmico, contrastes entre ataques rápidos e dedilhados sutis, contrastes entre explosão e silêncio e treinos próprios para deixar seu fluxo improvisacional fluído, da mesma forma que um pugilista precisa treinar socos fortes em um saco de pancadas, corridas e exercícios de cárdio para aumentar a resistência, dança com os pés para aguçar o reflexo e socos rápidos no treino de "speed bag". Matthew Shipp soa, enfim, com estilo único e compenetrado no vácuo do cosmo onde o tempo é relativo e a matéria se curva e se molda ante aos níveis de gravidade, mas podemos sentir ecos de inspirações que vão de Thelonious Monk, passa por Mal Waldron, passa por Sun Ra e traz até reverberações de Morton Feldman, influente compositor de música erudita moderna. Para celebrar o lançamento, inclusive, Shipp fez concertos (matutino e vespertino) na Rothko Chapel, em Houston, a mítica capela que guarda as pinturas de Mark Rothko e inspirou o compositor Morton Feldman a escrever uma das suas peças mais aclamadas. Para Shipp, esse espaço octognal da capela e as densas pinturas de Rothko ali dispostas lhe proporcionaram uma atmosfera meditativa, dimensional e contemplativa, lhe inspirando a tocar suas abstratas peças cósmicas numa tessitura onde a materialidade da vida e do tempo se dilui no vácuo do cosmo. Um detalhe a se notar é o encarte do álbum escrito pelo próprio David Lang, que salienta a intenção de levar esse tipo música a enriquecer o catálogo da Cantaloupe Music. Álbum candidato a estar na lista dos bons lançamentos de 2025.




TOP 10 — POSTS MAIS LIDOS ——————————————————————————————————————