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Os sons outsiders do guitarrista baiano George Christian: as cordas experimentais que ecoam pelas Dunas do Abaeté


Cordas experimentais ecoam pelas Dunas do Abaeté nestes tempos pandêmicos e de lá chegam até os ouvidos sudestinos dos adeptos ao outsider. O estranho também é uma beleza com lugar cativo na música enquanto arte e essas cordas estranhas —— cordas de aço, de guitarras acústicas e elétricas, berimbau e outras cordas... —— são do compositor, guitarrista e experimentalista baiano George Christian, que vem lançando interessantes trabalhos experimentais nas mais variadas frentes exploratórias: peças composicionais, canções em fúria e lamento, improvisos livres próximos a uma espécie de noise music baiana e diversos projetos em parcerias com outros experimentalistas nacionais e internacionais —— e sempre com esse caráter um tanto outsider e inclassificável. George Christian lembra, um tanto, das tratativas mais experimentais com as quais guitarristas da free music como Derek Bailey, Noël Akchoté e Mary Halvorson já abordaram suas cordas de aço em outros tempos. Mas as cordas de Christian soam ainda mais singulares à medida em que elas exprimem uma certa rusticidade, uma certa aridez nordestina, com sonoridades que também lembram muito as rusticidades dos registros de Walter Smetak, mestre baiano da luthieria experimental. Estamos falando aqui de um tipo de música para quem gosta da arte do ruído sem amarras estéticas  —— como uma tela de jorros tropicalistas abstratos, mesmo —— e com uma tratativa mais rústica aos sons improvisados... E Christian vai das cordas acústicas de aço de aspecto mais "folclórico" e primitivo às cordas elétricas e psicodélicas sem nenhum esmero ou preocupação com os padrões comerciais da polidez. Sendo um dos mais ativos sujeitos da música experimental no Brasil, Christian também é graduado e mestrando pela Universidade Federal da Bahia e mantém um recheado sítio na plataforma do Bandcamp, por onde segue lançando seus estudos, peças e experimentos numa média de quatro a cinco registros ao ano. Nos últimos tempos, George Christian segue empreendendo diversas interações das suas cordas de aço com tape (fita magnética), sintetizadores e outros eletrônicos, tomando uma direção que tem sido uma constante na vida de qualquer artista criativo desse início de século 21: o uso da emulação eletrônica em tempo real e/ou a manipulação eletrônica com materiais pré-gravados. Abaixo lhes apresento quatro dos seus recentes registros. Clique nos álbuns para ouvi-los e saber mais.
George Christian & Marco Scarassatti. Este álbum, lançado pela netlabel americana MuteAnt Sounds, é um retrato sonoro das consequências pandêmicas: da distopia, do isolamento, das distâncias que se tornaram gigantescas ao mesmo tempo em que as interações nas redes sociais se tornam ainda mais frequentes e conturbadas em meio ao caos silencioso da morbidade... —— entre outras percepções que se deram no auge da Covid-19. George Christian (violão elétrico preparado, flauta doce) se junta ao músico experimental Marco Scarassatti (viola de cocho, pássaro-cocho) e grava um dueto de improvisação livre e noise music em três partes que retrata sonoricamente toda essa abstração meditativa, e ao mesmo tempo agonizante, do auge pandêmico, algo que ainda estamos tentando assimilar. A distorções estridentes e os estalos metálicos do violão elétrico preparado de Christian fornecem a maioria dos momentos de agonia, enquanto a viola de cocho de Scarassatti fornece uma atmosfera sombria de fundo em alguns momentos. Outrora, eles se revezam, ou ainda se contracenam em desalinho de forma mais frenética, incluindo a flauta doce nesses entrelaces venosos. Trata-se de um registro para os mais adeptos à noise music: mas aqui já com as sonoridades contrastantes dessas cordas dedilhadas —— viola de cocho e violão elétrico preparado —— as quais são tão incomuns mesmo dentro desse tipo de música improvisada.


 

George Christian, Thelmo Cristovam & Ziurmuzik. Esse é outro projeto que achei interessante em sua concepção, e depois em sua extensão. Aqui, George Christian e suas cordas se encontram com o saxofonista e artista sonoro brasiliense-pernambucano Thelmo Cristovan, um dos pioneiros da música experimental e do uso dos sons enquanto arte multimídia no Brasil, e muito considerado em circuitos experimentais no exterior. Thelmo já lançou mais de 100 registros no Brasil em vários contextos e em vários países —— alguns dos quais pela Creative Sources, de Portugal, país onde desenvolveu sólida estadia artística —— e suas explorações vai da performance com sons e multimídia à música livremente improvisada, passando por investigações de sons do cosmo, do espaço e até das explosões solares. Neste projeto acima, Christian (violão) e Thelmo (sax tenor C-melody) travam um enérgico entrelace venoso e cavernoso de improvisos livres que exprimem, com fúria e aridez, aquilo que os próprios músicos mencionam como "...um encapsulamento de uma nova época, política e socialmente adversa ao que desejaríamos de melhor". Christian ainda explana melhor: "Fomos conduzidos pela revolta contra os retrocessos e movidos pela pura vontade de avançar e se mirar no futurível presente. "Em Mangue Seco, Terra Arrasada, Aves Partidas" é um reflexo de todas essas condições e um grito de liberdade". E essa oralidade implícita faz sentido: esses sons livremente improvisados, sem nenhuma alcunha estética definível em relação aos padrões, se mostram mesmo correlatos com essa percepção angustiante de "terra arrasada", de uma busca por liberdade e por novos tempos. Não obstante, a gravação acima ainda receberia uma extensão excitante nas mãos do experimentalista e manipulador de eletrônicos Peterson Ziurmuzik (a.k.a. Peterson Ruiz), num curioso processo de isolar os fragmentos, repetir trechos, ressaltar os glitches, inventar sub-ritmos, remendar recortes e criar colagens. Para o ouvinte mais aplicado, será muito interessante esse processo auditivo de ouvir as improvisações acústicas do projeto com Christian e Thelmo e depois ouvir as manipulações eletrônicas dando novas formas para esse mesmo projeto.

George Christian & André Gurgel. O álbum O Enigma das Frequências em Pulsares é um projeto interessante no âmbito da ressonância das cordas de G. Christian em meio ao um certo vácuo cósmico-sideral. Christian e suas cordas —— aqui com guitarra elétrica e contrabaixo elétrico —— se juntam ao brasiliense André Gurgel, contrabaixista da banda Protofonia, numa espacial interação com órgão, piano, vitrola e sintetizador. O projeto funciona mais como um processo de emular imageticamente aquilo que poderia ser uma guitarra ou contrabaixo improvisando em meio aos sons cósmicos e espaciais das nebulosas, dos raios solares, com direito a ruídos satelitais e tempestades galácticas. Por ora, temos a sensação de que esses sons siderais e os glitches desses "ruídos no vácuo" criados por André Gurgel se chocam com as ásperas palhetagens que G. Christian desfenera sobre as cordas da sua guitarra elétrica, e outrora também temos a sensação que esse "vácuo" meio que agoniza a guitarra, que ressoa, sim, mas têm sua psicodelia abafada por esses sons intergalácticos. Em outros momentos, G. Christian também usa efeitos ressonantes de pedais em sua guitarra e contrabaixo, efeitos que se somam aos efeitos de André Gurgel e criam um todo denso e envolvente.

George Christian & Jeff Gburek. Aqui já temos um dueto mais visceral dessas cordas de aço, mais calcado na livre improvisação, ainda que em mais uma ressonante imersão eletrônica. George Christian faz uma parceria com o improvisador e experimentalista Jeff Gburek, que atua com um berimbau imerso em distorções eletroacústicas, sendo manipulado com vareta, arco e outras abordagens... E George Christian, por sua vez, atua com uma guitarra preparada —— alterada tanto em timbre, quanto em afinação —— e explicita muito bem essa latência da aridez sonora, da rusticidade das suas cordas de aço. As sonoridades e toda a trama sonora entre os improvisadores, aliás, são inspirações advindas do impactante curta-metragem "Mangue-Bangue" (1971) de Neville d'Almeida, ainda que o duo não tenha a pretensão de criar uma trilha sonora original para o filme, que é um marco do cinema experimental brasileiro. Tal como o filme, a trama sonora capta os extremos da vida humana: o primitivismo e a expansão, o rústico e a vanguarda, o arcaico e a eletrônica. Embora lançado mais recentemente, esse é mais um dos registros onde George Christian e seus parceiros musicais criam seus sons imbuídos de uma densa carga reflexiva proporcionada pelas consequências da pandemia e de um período conturbado de relações sócio-políticas.




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