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Música Erudita do Século 21: álbuns hiper contemporâneos da Nonclassical, New Focus & New Amsterdam Records

TYONDAI BRAXTON
E vamos terminando o ano em grande estilo na seara erudita. O ano de 2022 representou um momento de retomada de grandes e inovadores projetos, sobretudo nestas três prolíficas etiquetas da música erudita contemporânea aqui indicadas —— mas não só nessas (vide outras das nossas indicações de álbuns eruditos)! A Nonclassical é um selo —— gravadora, coletivo de artistas, produtora de eventos e ponto de encontro de músicos e compositores visionários —— que nos oferece uma música erudita de sound design não menos que inovador: ela é sediada em Londres e é gerida pelo DJ e compositor russo-inglês Gabriel Prokofiev —— já falamos dele aqui, neto do legendário compositor russo Sergei Prokofiev (1891-1953) e etc... ——, apresentando uma concepção de registros onde a pop music e a eletrônica futurista dos DJ's e manipuladores de eletrônicos desse início de século 21 são elementos sintetizantes das obras. Depois temos os álbuns da New Focus Recordings, de Nova York, que é uma gravadora mais eclética e multidisciplinar quanto ao quesito de transitar com lançamentos entre o jazz contemporâneo e a eletroacústica, a livre improvisação e a música erudita, sempre mantendo uma diretriz contemporânea mais ampla geralmente rotulada como "new music". E ainda de Nova York temos os lançamentos da New Amsterdam Records —— selo fundado pelos compositores e produtores Judd Greenstein, Sarah Kirkland Snider e William Brittelle —— os quais já prezam pelo que se chama de "indie classical music" e pelo pós-minimalismo americano dos últimos tempos, um pós-minimalismo também já amalgamado com elementos do jazz contemporâneo, avant-garde, eletrônica e resquícios do avant-pop. Abaixo eu listo alguns dos mais recentes álbuns dessas gravadoras, os quais explicitam claramente a evolução da música erudita nesses últimos tempos. Clique nos álbuns para adquiri-los.

Classical Mechanics - Sealand (Nonclassical, 2022). Este EP, intitulado Seeland, documenta uma fase do projeto Classical Mechanics do compositor britânico Marcas Lancaster. Trata-se de um projeto onde o compositor elabora peças exclusivamente para o sintetizador System Moffenzeef, criado por Ross Fish da Moffenzeef Modular. As peças se baseiam na história da micronação Sealand —— também conhecida como Principado de Sealand —— a qual ainda não é reconhecida pela ONU e muito menos pelo próprio Reino Unido. Localizada no Mar do Norte a 10 km da costa de Suffolk, sudeste da Inglaterra, a micronação se resume a uma pequena base naval com apenas 30 habitantes que pleiteiam para si o direito de soberania e independência. A história de Sealand ainda inclui o uso de emissoras de rádio pirata, ataque de mercenários e um principado rebelde que não se reporta de jeito algum ao Reino Unido: o principado, inclusive, emite seu próprio dinheiro, seus próprios títulos e passaportes. Tentando criar todo um imagetismo em torno da história dessa base naval que é uma micronação em alto-mar, o compositor elabora peças onde o exclusivo sintetizador modular da Moffenzeef emita todo um conjunto de elementos, fragmentos e ruídos que façam alusão às águas escuras do mar, às ondas, aos mistérios, glitches, sinais de rádio, sirenes e etc. O projeto também incluiu uma première numa espécie de concerto misturado com workshop digital onde o compositor Marcas Lancaster e o engenheiro Ross Fish, fundador da Moffenzeef Modular, apresentaram as peças ao público presente enfatizando todo o processo de sequenciamento e síntese em torno do distinto sintetizador. 



Dominic Murcott - Arx Duo - The Harmonic Canon - Remixes (Nonclassical, 2022). O projeto acima é interessante tanto na sua concepção quanto na sua extensão. Como vemos acima, temos o primeiro álbum lançado em 2019 que documenta a peça para sinos e percussão metálica "The Harmonic Canon" composta pelo compositor inglês Dominic Murcott para o Arx Duo, e temos o álbum lançado agora em 2022 que documenta um rework de remixes com base nos elementos dessa mesma peça. A concepção original documentada em 2019 consiste em uma peça composta em duas partes para percussão metálica e sinos afinados a um semitom de distância, sendo que os sinos foram criados exclusivamente para esse projeto em uma parceria do compositor Dominic Murcott com o escultor Marcus Vergette, que utilizou cálculos computadorizados de Análise de Elementos Finitos para determinar os padrões de vibração do sinos, manipular suas séries harmônicas e trabalhar minuciosamente a complexidade das suas frequências. Os sinos pesam meia tonelada e exigem dois percussionistas treinados e habilidosos para explorar as notas e frequências com toda a minuciosidade que o conceito da peça exige. A obra foi altamente elogiada pela crítica especializada e agora, em 2022, a Nonclassical deu de presente para o compositor Dominic Murcott um rework com manipulações e remixes criados por manipuladores talentosos como a produtora de música eletrônica Loraine James, a performer e transformista musical Natalie Sharp (f.k.a Lone Taxidermist), o multiinstrumentista e produtor americano John McEntire (membro das bandas de post-rock Tortoise e Sea and Cake) e o cantor e guitarrista irlandês Sean O'Hagan (membro das bandas de avant-pop Stereolab e High Llamas), os quais manipulam os fragmentos e elementos da peça cada um ao seu modo. O que a Nonclassical nos mostra aqui é que projetos de remixes como esses são interessantes e importantes justamente para estabelecer, na música contemporânea de hoje, uma conexão dos processos criativos da música erudita com processos de criação empreendidos por músicos e compositores de gêneros díspares como o avant-pop, o rock alternativo, a música experimental e a eletrônica. Afinal de contas, caiu-se em desuso aquela ortodoxia de compositores modernistas que se fechavam em formalismos serialistas, e hoje a maioria dos compositores contemporâneos trabalham com conexões e ingredientes da cultura pop: assim como os compositores clássicos e românticos faziam uso de danças e adereços populares —— czardas, valsas, polcas, mazurcas e etc —— para criar peças animadas para as monarquias, a nobreza e as elites das suas épocas, os compositores contemporâneos também se utiliza de elementos da música pop para turbinar a combustão criativa em torno das suas obras.
 
Alex Paxton - ilolli-pop (Nonclassical, 2022). ilolli-pop é o segundo álbum do prolífico compositor, trombonista e improvisador inglês Alex Paxton. O lançamento documenta um projeto que foi encomendado a Paxton pelos ensembles Nevis Ensemble (Escócia), Ensemble Modern (Alemanha) e Hyper Duo (Suíça) e engloba composição elaborada e escrita, técnicas estendidas, colagens, eletrônica, improvisações livres e efeitos cintilantes inúmeros. A gravação acima, contudo, foi registrada pelo Dreammusics Ensemble (Inglaterra) com solos principais de trombone e sacabuxa do próprio Alex Paxton e vem causando um verdadeiro frisson nas audiências e na crítica especializada. A obra mistura uma miríade caleidoscópica de elementos pictóricos para explorar um intrigante colorido acústico-sintético: cacofonias propositais de fitas magnéticas com sons pré-gravados, bateria freejazzística, sintetizadores, manipulação eletrônica, uso de alto-falantes, arranjos de sopros e metais estridentes e cintilantes, solos distorcidos de trombone e sacabuxa com surdina, arranjos melódicos de cordas, intervenções vocais e ruidagens acústicas e sintéticas inúmeras, entre tantos outros ingredientes e elementos. Por ora, as partes da peça soam como a junção cacofônica de todos os sons de um festivo parque de diversões —— com seu ambiente de uma multidão de pessoas, crianças, luzes coloridas, sons de brinquedos, máquinas, fliperamas, sons de circo e outros sons de efeitos pictóricos ——, com intervenções melódicas de cordas e ruídos (previamente gravados ou produzidos no ato da performance), e outrora soam com ruidagens estendidas mais próximas à noise music, mas soam sempre absurdamente coloridas. Ao ser perguntado sobre suas influências para compor uma obra tão idiossincrática, Alex Paxton cita compositores modernistas que foram mestres na arte e "manipular o caos": o teórico e compositor americano George Russell (que inventou a teoria do cromatismo modal), o compositor inglês Harrison Birtwistle, o compositor americano Anthony Braxton, a compositora inglesa Rebecca Saunders e o trombonista e compositor americano George Lewis estão entre suas principais influências. Paxton explica seu estilo de composição da seguinte forma: “The cacophony in my music isn’t haphazard, it’s very composed”. Aliado aos sons, o título "ilolli-pop", a capa, todo o figurino e o visual colorido são elementos que Alex Paxton usa para potencializar ainda mais a identidade pós-moderna da peça, uma peça que evoca, sim, um certo "colorido pop" de sons cintilantes, mas que é mais uma peça de vanguarda em sua essência. Os solos de trombone e sacabuxa medieval de Paxton também são elementos notáveis. Fantástico!



New Focus Recordings - Vários Lançamentos!!! O selo New Focus Recordings tem sido uma das fontes mais abundantes de gravações anuais que documentam obras e peças recentes dos mais ativos compositores americanos da música contemporânea —— subentendendo-se, aí, um leque de gêneros e subgêneros que abrange da música erudita contemporânea à livre improvisação, de obras que fazem uso de eletrônica à projetos interdisciplinares de improvisadores e músicos de jazz. Mais recentemente, no período pandêmico, o selo lançou dezenas de títulos nas mais variadas frentes desse range que eles denominam como "new music". Mas aqui foco nos projetos de verve erudita. E na impossibilidade de resenhar cada um das dezenas de ótimos registros de música nova empreendidos entre 2021 e 2022 pelo selo nova-iorquino, listo acima apenas seis álbuns focados em obras para duos, orquestras, conjuntos de cordas e ensembles e etc, e depois listo abaixo dois álbuns que documentam projetos mais específicos. Temos acima, então, o lançamento do álbum Through Broken Time da flautista Jennifer Grim, onde a musicista reúne obras para flauta solo e para duo de flauta e piano de consagrados compositores afro-americanos tais como Tânia León, Alvin Singleton, David Sanford, Allison Loggins-Hull, Valerie Colemann, e também inclui a peça "Oxygen" para 12 flautas da compositora pós-minimalista Júlia Wolfe: a ideia de Jennifer Grim foi lançar um álbum onde as mulheres, compositoras, e os compositores afro-americanos tivessem representatividade —— lembrando que a música erudita é o mais excludente gênero musical no que diz respeito a ainda ter um número muito ínfimo de concertistas e compositores negros consagrados, bem como de mulheres compositoras consagradas. Em seguida temos o interessantíssimo álbum Pareidolia do talentoso compositor turco Eren Gümrükçüoğlu (também improvisador e guitarrista de jazz) com peças densas, intrincadas e cinestésicas para conjuntos de câmara com e sem eletrônica, onde temos interpretações de ensembles como Conrad Tao, JACK Quartet, Mivos Quartet, Ensemble Suono Giallo e Deviant Septet. Em seguida temos o álbum A Series of Indecipherable Glyphs lançado pelo NakedEye Ensemble, com sede em Lancaster na Pensilvânia, onde o ensemble interpreta obras eruditas inspiradas pela estética do rock: muito inspirado pelo compositor e roqueiro Frank Zappa —— um dos grandes compositores do século XX ——, o ensemble interpreta peças de compositores como Molly Joyce, Richard Belcastro, Whitney George, Aaron Jay Myers, Rusty Banks e Nick Didkovsky, com destaque para os solos de guitarras, saxofones e para um uso mais abrasivo de percussões. Depois temos o álbum Nebraska Impromptu da consagrada compositora Marti Epstein, onde ela reúne seu conjunto de peças contemporâneas escritas e elaboradas exclusivamente para clarinete e conjuntos de câmera —— uma ótima pedida para quem gosta de clarinetes. Ainda temos o álbum Missing Words onde o compositor Eric Nathan lança um ousado ciclo de obras orquestrais interpretadas por alguns dos conjuntos mais prolíficos da new music tais como International Contemporary Ensemble, Boston Modern Orchestra Project, American Brass Quintet, Hub New Music, dentre outros. E, por fim, indico o ótimo álbum In the Brink lançado pelo quarteto de cordas Bergamot Quartet com estreia de peças de Suzanne Farrin, Tania León, Paul Wiancko e Ledah Finck, que também é violinista do grupo: o repertório inclui desde peças com entrelaces abstratos de cordas em abordagens mais rítmicas e contrapontísticas —— incluindo o uso de acompanhamento de bateria na peça de Ledah Finck —— até peças mais pós-minimalistas com divertidas repetições interativas. Clique nos álbuns para ouvi-los!


New Focus Recordings - Christopher Trapani | Arcomusical. Estes dois álbuns acima já explicitam como que a New Focus Recordings também aposta em projetos mais interdisciplinares, mais específicos. O álbum Horizontal Drift do compositor Christopher Trapani consiste em seis peças escritas e elaboradas para instrumentos alterados e personalizados, explorando afinação microtonal, distorções de timbres e processamento eletrônico: as peças são interpretadas por instrumentistas tais como Maximilian Haft, Daniel Lippel, Amy Advocat, Marilyn Nonken e Marco Fusi, os quais empunham instrumentos personalizados e alterados tais como vioara cu goarna ("violino com trompa"), guitarra afinada em quartos de tom, clarinete Bohlen-Pierce, piano scordatura, órgão Fokker controlado por interface Midi e viola d'amore, por meio dos quais o compositor nos leva a inexploráveis mundos sonoros. Por fim, temos o álbum Emigre and Exile lançado pelo conjunto de percussões Arcomusical, conjunto liderado pelo percussionista/compositor/estudioso Gregory Beyer: trata-se de um conjunto dedicado à divulgação do berimbau, instrumento afro-brasileiro intimamente associado ao jogo corporal e marcial da capoeira, e trata-se de um projeto que Beyer passou a empreender ao ter contato com o Arcomusical Brasil, sediado em Belo Horizonte, projeto que consiste em colocar o berimbau no mapa da música contemporânea —— com direito a interações com eletrônicas e instrumentos acústicos, inclusive ——, sendo que aqui este característico instrumento de arco com corda percutida ganha abordagens inéditas nas mãos de Gregory Beyer e de compositores tais como Matt Ulery (faixa-título), Alexandre Lunsqui e Jeremy Muller. Interessante!

Battle Trance - Green of Winter (New Amsterdam Records, 2022). Green of Winter é o novo lançamento do quarteto de saxofones Battle Trance, que tem neste título uma continuação para os álbuns Palace of Wind (2014) e Blade of Love (2016), fechando aqui uma trilogia lançada pela New Amsterdam Records. O quarteto mantém suas inspirações num range que vai da música erudita contemporânea de verve pós-minimalista ao jazz de vanguarda e a livre improvisação. A primeira faixa, por exemplo, começa com vozes e com um farfalhar de sons agudos emitidos do sons das boquilhas, sendo que em outras partes os membros do quarteto desmontam seus saxofones no ato da performance para explorar sons mais desconhecidos. Porém, as técnicas estendidas —— sons do sopro sem melodia, respiração circular, multifônicos, sons com a boquilha e etc —— são pontualmente estratégicas e não tiram o foco do grupo em explorar melodias paisagísticas, repetições motívicas e efeitos ressonantes aventurosos. O compositor Travis Laplante, membro do quarteto, explana que cada um dos álbuns da trilogia foi resultado de testes que eles fizeram em diversos espaços e ambientes com diversas acústicas diferentes, na possibilidade de testar novas ressonâncias que potencializassem as escutas e os efeitos entre os quatro saxofonistas. Este terceiro álbum da trilogia, por exemplo, foi gravado na instalação do galpão de The Big Barn, Putney, Vermont, onde tiveram o retiro perfeito e a ressonância perfeita para dar vazão nas gravações que decorreram no auge dos momentos pandêmicos de então. Green of Winter é, pois, um álbum que caminha entre melodias misteriosas e explorações com efeitos de repetitivos arpejos, escalas e improvisos pirotécnicos, com direito a pontuais técnicas estendidas aqui e ali.

Tyondai Braxton - Telekinesis (New Amsterdam Records, 2022). Telekinesis é uma obra elaborada e escrita pelo hiper criativo compositor Tyondai Braxton (filho do iconoclasta mestre Anthony Braxton) a qual consiste em um conjunto de peças para guitarra elétrica, orquestra, vozes e eletrônica. O ensemble que dá vida à obra é o Metropolis Ensemble, conduzido por Andrew Cyr, junto ao Brooklyn Youth Chorus conduzido por Dianne Berkun Menaker e o coro de câmara The Crossing conduzido por Donald Nally. Inicialmente, a obra foi comissionada pelo Southbank Centre London e pelo Festival Musica Nova, de Helsinki, Finlândia, tendo sua première mundial em 18 de abril de 2018 no Queen Elizabeth Hall com a BBC Concert Orchestra e o BBC Singers, seguida por uma apresentação no Festival de Helsinque pela Orquestra Sinfônica da Rádio Finlandesa. A peça é, então, uma comunhão densa de solos de guitarra elétrica (de cordas mais cristalinas, não psicodélicas) com criativas e brilhantes dissonâncias orquestrais —— com uma orquestra ampla mesmo, com todos os naipes (cordas, sopros, metais, madeiras, percussão e etc) ——, além de coral de vozes e eletrônica contemporânea, criando uma trilha cinematográfica de suspense com vários ambientes, ressonâncias e atmosferas. Tyondai Braxton conta que a inspiração inicial para a criação da peça se deu pela sua predileção pelo cinema de horror e ficção científica e pelo seu fascínio com a história do emblemático mangá japonês Akira: “As a science fiction and horror fan, the initial idea was to write an opera based on the Japanese manga masterpiece Akira, although over time, I realized I was more interested in the story as an invisible thematic guide rather than something more literal. Among a number of storylines in Akira is the idea that a young boy comes upon the ability to move objects and generate energy with his mind. Entirely enthralled with his own power and apparent limitless potential, and despite his inability to physically and mentally control this force, he launches unrestrained into its use. Ultimately, his hubris overtakes and destroys him. The power of the mind has been a compelling consideration for me and is an underlying theme in this piece”. Ouçam: é fantástico! Não seria exagero dizer que Telekinesis se estabelece, pois, como um dos registros orquestrais mais interessantes dos últimos anos!





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