★★★★¹/2 - Anna Webber - Idiom (Pi Recordings, 2021).
O trabalho da saxofonista, improvisadora e compositora Anna Webber —— advinda dos meandros da música erudita, mas com expandida criatividade para muito além dos cânones —— tem se centrado numa verve mais "modern creative", mais elaborada, composicional e estruturalista dentro do free jazz contemporâneo. Um exemplo seminal é seu álbum Clockwise (Pi Recordings, 2019), onde ela se inspira em intrincadas e conceituais peças eletroacústicas e peças de câmera de compositores modernos como Iannis Xenakis, Morton Feldman, Edgard Varése, Karlheinz Stockhausen, Milton Babbitt e John Cage para reformular seu senso de fraseados, arritmias, improvisações, timbrísticas, sobreposições, espaçamentos e arranjos dentro de uma determinada verve jazzística constituída de certas estruturas elaboradas e composicionais, organizando, assim, os livres improvisos dos instrumentistas dentro das peças. Este álbum acima, Idiom (Pi Recordings, 2021) é a continuação desse tipo de expansão sonora a partir de uma série de seis peças, mas agora cada uma dessas peças sendo baseadas nas chamadas técnicas instrumentais estendidas: maneiras não convencionais de se produzir sons nos instrumentos, sons multifônicos (dois ou mais harmônicos sendo produzidos ao mesmo tempo no saxofone, por exemplo), formas alternativas de dedilhados e articulações, percussões nas teclas e chaves dos instrumentos de sopros, pizzicatos e ruídos nas cordas, ambiências texturais não convencionais, entre outros efeitos e formas não convencionais de se abordar os instrumentos. Para tanto, além de uma banda com saxofones, clarinetes, bateria e contrabaixo, Anna Webber também inclui sintetizador, um trio de cordas (com violino, viola e cello) e um trio de metais (com trompete, trompa e trombone), formando aí um ensemble que é propositalmente compactado para transitar entre as reminiscências do free jazz e da música erudita moderna e contemporânea, misturando livres improvisos com partes elaboradas dentro de certas escritas formais. Ou seja, para além das técnicas estendidas que esses instrumentos produzem dentro dos movimentos das peças, esse ótimo trabalho de Anna Webber também inclui criar arranjos curiosos e instigantes para esse ensemble, incluindo os sons eletrônicos no meio do molho: os sons, as interações e os ruídos até podem ser desferidos de forma mais espontânea e livremente improvisada, mas todo esses entrelaces de sons, todo esse "caos sonoro", tende a obedecer estruturas elaboradas de organização e interação entre os improvisadores. O resultado final é muito criativo!
.
★★★★★ - Matt Mitchell & Kate Gentile - Snark Horse (Pi Recordings, 2021).
Este é um dos trabalhos super inventivos no âmbito do "modern creative" que nos passou batido aqui no Instrumental Verves em 2021. Snark Horse é fruto de uma parceria com o pianista Matt Mitchell —— um dos mais requintados mestres das teclas no jazz contemporâneo, dotado de uma noção fantástica de dissonâncias coloridas e brilhantes... —— com a percussionista e baterista Kate Gentile. O projeto consiste num conjunto de 70 composições que ambos elaboraram desde 2013 e que, ano a ano, sofreram mudanças e adaptações multidirecionais, sendo, portanto, composições que foram criando formas a partir de inflexões, improvisos, experimentos e construções variadas a cada apresentação. Do mesmo modo, o elenco de instrumentistas também foi sendo desenvolvido de forma rotativa até chegar aos nomes relacionados nos registros documentados nesta caixa com 6 CD's. De forma variada e rotativa, o duo Mitchell-Gentile, explorando um mix de piano e sintetizadores com bateria e percussões, contou com instrumentistas e improvisadores tais como Kim Cass (contrabaixos acústico e elétrico), Ben Gerstein (trombone), Jon Irabagon (saxes, clarinetes), Davy Lazar (trompetes e cornet), Mat Maneri (viola), Ava Mendoza (guitarra), Matt Nelson (saxes) e Brandon Seabrook (guitarra e banjo tenor). Sendo o tipo de projeto elaborado para que cada sideman interfira no arranjo final com algum tipo de contribuição criativa através de experimentações, inflexões, improvisos idiossincráticos e interpretações pessoais do material previamente escrito, podemos considerar que este box de 6 CD's documenta uma face importante do jazz contemporâneo mais inventivo destes últimos tempos! É também uma porta aberta para conhecer a ampla proficiência de cores e sonoridades de Matt Mitchell —— tão conhecido por suas colaborações com Tim Berne, Rudresh Mahanthappa, John Hollenbeck e outros —— e sua parceira de música Kate Gentile, que nos mostra uma ampla paleta de sons e timbres em seus vários kits de bateria e percussão. Fantástico!
★★★★ - Kaja Draksler & Susana Santos Silva - Grow (Intakt, 2022)/ ★★★ - Susana Santos Silva - All The Birds And A Telephone Ringing (Thanatosis Produktion, 2022).
A trompetista portuguesa Susana Santos Silva fixou moradia em Estocolmo, Suécia, para estudar composição eletroacústica no Royal College of Music, e agora ela mostra um intercâmbio entre o free jazz que ela já explorava com as possibilidades eletrônicas recém imaginadas. Sendo uma das artistas mais proeminentes da música mais exploratória —— tendo atuado nos últimos tempos com compositores, improvisadores e bandas como Ada Rave, Mette Rasmussen, Fire! Orchestra, Fred Frith e Anthony Braxton ——, Susana Santos Silva já acumulava, portanto, uma paleta vasta de experiências e ideias. E este registro acima, All The Birds And A Telephone Ringing , surge justamente para levar essa bagagem para a nova direção da eletroacústica, onde colagens, sons previamente gravados, gravações de campo (sons da natureza, pássaros, de ambientes variados, etc) e efeitos eletrônicos vários se amalgamam aos ruídos orgânicos do trompete e da flauta irlandesa para levar o ouvinte e espectador para uma experiência musical que se dá numa outra dimensão da música. A trompetista relata que a gestação deste projeto começa quando o selo belga Matière Mémoire lhe encomenda uma peça eletrônica para sua série MMXX. É aí, então, que a artista tem a ideia de se inspirar nas relações variadas que existem entre o mundo natural e os seres humanos para explorar essa correlação entre os sons orgânicos e eletrônicos, baseando-se, também, na problemática das alterações climáticas e na degradação do meio ambiente que tão exponencialmente tem aumentado em todo o globo terrestre. O título do projeto —— "All The Birds And A Telephone Ringing" —— foi inspirado pelo clássico livro de John Cage, Silence, e os conceitos sonoros por detrás das peças abraçam muitas das teorias sobre som e audição abordadas por esse compositor e conceitualista musical. Ademais, outro projeto de Susana Silva Santos dos mais interessantes é seu recente duo com a pianista eslovena Kaja Draksler, onde ambas variam bastante entre frases mais freejazzísticas e ruídos diversos via técnicas estendidas: acontece que enquanto a trompetista desfere sinuosidades e formas variadas de sopros, e explora golpes de língua e tessituras que variam entre o ruído branco (sem colorido de sons) e notas mais melódicas, a pianista também varia bastante as possibilidades dentro da abordagem de um colorido atonal inebriante ao explorar tanto o dedilhado convencional sobre as teclas como também pizzicatos e ruídos não convencionais sobre as cordas que estão na parte interna do piano.
Nascida na Coreia do Sul, Jihye Lee começou sua carreira como cantora de pop indie ainda em solo coreano, descobrindo logo seu amor pelo jazz, preferivelmente pelas big bands e arranjos jazzísticos para grandes ensembles. Em 2011 ela se muda aos EUA para estudar música na Berklee College of Music de Boston, onde definitivamente envereda sua carreira para o jazz. Não demora muito e Jihye Lee já estava ganhando seu primeiro prêmio como compositora e arranjadora: ela ganhou o Prêmio Duke Ellington da Berklee apenas alguns meses após concluir o curso de especialização em Composição de Jazz. Depois, a compositora e arranjadora seguiu-se para um mestrado na Manhattan School of Music, sob a orientação do grande bandleader e arranjador Jim McNeely. Em seguida, ela segue para fixar-se no rico cenário musical de Nova Iorque. Apoiando-se em intercâmbios com muitos dos maiores músicos de jazz e em projetos de crowdfunding, ela busca fundar sua orquestra e efetuar suas primeiras gravações solo, a começar pelo álbum April (2017). A compositora e arranjadora nos conta, então, que este álbum acima é um documento emocional dos seus primeiros anos de uma não tão fácil adaptação nessa megalópole: "Daring Mind is a documentation of my first four years in New York. Composing has been my best friend. We danced, cried, laughed, and suffered together. Music heals me by helping to release my emotions. I hope this album can take on you a similar journey as we are all human beings sharing the ups and downs of life". Daring Mind vem, portanto, para sintetizar e cimentar ainda mais seus aventurosos arranjos e orquestrações, que até trazem influências contemporâneas de líderes de orquestras renomados como Wynton Marsalis, Jim McNeely e Darcy James Argues, mas que são, notavelmente, imbuídos de preferências, idiossincrasias, sensibilidades, inflexões e tonalidades emocionais que são muito próprias e originais, decodificando musicalmente o interior e o âmago criativo da compositora. Daring Mind conta, inclusive, com a produção e acompanhamento do próprio Darcy James Argues, além da participação do renomado trompetista Sean Jones, entre os solistas. O álbum é um registro, portanto, desse conjunto de experiências, emoções e relações interpessoais que Jihye Lee vivenciou em seus primeiros anos como bandleader e orquestradora em Nova Iorque, sendo que algumas composições que ela registra aqui fazem parte de um catálogo pessoal que ela intitulou de "Mind Series" e que marcou muito sua carreira nessa busca por identidade: vide a requintada peça "Revived Mind", que é um exemplo de como suas composições são super originais, de como as passagens exprimem harmonias imagéticas e de como os arranjos são, ao mesmo tempo, aventurosos, originais e coesos; e vide também sua elaborada peça "Unshakable Mind", que já tinha sido um marco recente em sua carreira por lhe conferir o prêmio BMI Charlie Parker Jazz Composition Prize, na anual competição de compositores e big bands apoiada financeiramente pela BMI Foudation e apoiada musicalmente pelo bandleader Andy Farber e sua big band New York Jazz Orchestra. Eis aí, então, um dos ensembles a não perder de vista: Jihye Lee Orchestra!
Lançando registros por gravadoras como Smalltown Supersound, Geographic North e Longform Editions, a produtora e sound designer norueguesa-mexicana Carmen Villain segue construindo um vasto universo sonoro constituído de sons ambient e elementos de world music, jazz, eletrônica, folk nórdico e subgêneros indie próximos ao shoegaze, ao lo-fi e às sonoridades da kosmische musik alemã. Sem contar os EP's e os registros compactados em singles, este álbum acima, Only Love From Now On, é seu quarto long play —— este que, como os outros registros, foi lançado em limitadíssimas edições em plataformas e circuitos mais indies e undergrounds. Não obstante seu universo sonoro já soar amplo, com tantas ambiências e colagens, a artista ainda conta, aqui neste disco, com a participação do trompete de sopro abafado e retorcido de Arve Henriksen e da flauta suave de Johanna Scheie Orellana, ambos músicos super ativos na cena do dub e do jazz da Noruega. Pegando uma trilha mais eclética e mais "avant-pop" —— com espaços para pitadas de jazz, inclusive ——, Carmen Villain tem se destacado, portanto, como uma continuadora importante das estéticas sonoras "ambient" e "fourth world", cunhadas pelo trompetista Jon Hassell e pelo histórico conceitualista e manipulador de eletrônicos Brian Eno na série de LP's que começou com os álbuns Ambient 1: Music for Aiports e Fourth World, Vol. 1: Possible Musics em finais dos anos de 1970, onde ambos começaram a explorar uma amálgama entre o primitivismo da world music, gravações de campo e as técnicas avançadas de manipulação de sons eletrônicos. Quem gosta de trabalhos históricos de musicistas da eletroacustica mais erudita e da ambient music mais minalista tais como Pauline Oliveros, Éliane Radigue, Laurie Spiegel e Annea Lockwood, também irá curtir muito as explorações contemporâneas de Carmen Villain. E as sonoridades suaves da flauta de Johanna Scheie Orellana e do trompete retorcido e abafado de Arve Henriksen vêm para, justamente, enriquecer ainda mais esse espectro explorado de forma tão ampla e pessoal pela produtora.
★★★★ - Cécile Cappozzo Quintet - Hymne d'automne (Ayler Records, 2022).
Sempre digo para nossos leitores ficarem espertos com os lançamentos da etiqueta francesa Ayler Records: o selo, uma das fontes atuais de sofisticação do free jazz e avant-garde, não é de lançar dezenas de álbuns por ano, mas seus poucos lançamentos anuais são sempre muito acertados entre a experimentação e o requinte composicional, entre o desconhecido e a inflexão inteligente do que já se conhece. Este álbum acima, da pianista Cécile Cappozzo, é um exemplo! Após seu primeiro registro em piano-trio —— vide o álbum Sub Rosa (Ayler Records, 2018) —— a pianista surge aqui com o mesmo trio agora acrescido do trompetista Jean-Luc Cappozzo e do saxofonista Guillaume Bellanger para registrar o álbum "Hymne d'automne", que traz um conjunto de composições e improvisações inspiradas no colorido do outono, estação do ano que se situa entre o verão e o inverno, sobretudo conhecida pela fase em que as folhas de muitas árvores e vegetações ganham tons avermelhados e amarelados. Combinando um certo abstracionismo enérgico com belos coloridos tonais, o álbum varia entre improvisações viscerais e temas divertidos que harmonicamente emite muitos desses tons outonais: vide por exemplo a enérgica e divertida faixa "Dance dance". Ademais, vale lembrar que Cécile Cappozzo, além de pianista, também traz o flamenco e outros tipos dança entre suas poéticas preferidas, algo que reflete sobremaneira em suas performances como compositora e pianista. Recentemente, ela deu uma entrevista onde listou seus discos preferidos à magazine 👉 Jazz.pt.
★★★★ - Patricia Brennan - More Touch (Pyroclastic Records, 2022).
A marimbista e vibrafonista mexicana Patricia Brennan, radicada nos EUA e atualmente uma das artistas de ascensão maior dentro do jazz contemporâneo, lança aqui um continuum do seu álbum anterior, Maquishti (2021), onde ela aparece sozinha empunhando apenas seus mallets e alguns eletrônicos, sem nenhum acompanhamento. Nada convencional: não há muitos registros onde vibrafonistas e marimbistas aparecem em formato solo. Mas Patricia Brennan parece disposta a levar o vibrafone para territórios pouco ou nada explorados, inclusive acoplando eletrônicos nesse instrumento e adentrando-o em novas rítmicas e inflexões. É o caso, então e de novo, deste álbum acima chamado More Touch (Pyroclastic, 2022), onde agora a vibrafonista aparece em um trio de vibrafone (acoplado, por vezes, aos eletrônicos), contrabaixo e percussões —— ou melhor: um quarteto, já que há a presença tanto de um baterista como de um percussionista. A banda é formada, então, com Patricia Brennan (vibrafone, eletrônicos, composições), Marcus Gilmore (bateria), Mauricio Herrera (percussão) e Kim Cass (contrabaixo). E alguém até poderia pensar, antes de ouvir o disco, que essa formação instrumental de banda tende a deixar a ambiência do vibrafone diminuída diante da carga percussiva da bateria e da percussão. Nada disso! Patricia Brennan cria um arranjo onde contrabaixo, bateria e a percussão salpicam o plano de fundo das peças com grooves e combinações rítmicas sem se sobreporem ao colorido de notas e ambiências do vibrafone, fazendo com que todos os membros do quarteto interajam com harmonia e sensibilidade. A eletrônica minimal, os mínimos efeitos eletrônicos usados em entrelaces, também é um ingrediente importante dentro da estética da banda: eles conferem um toque à mais de contemporaneidade às peças —— peças que, aliás, já são por si só contemporâneas em seus grooves e estruturas.
★★★★ - Melissa Aldana - 12 Stars (Blue Note, 2022).
De Santiago, Chile, para o mundo! A saxofonista e compositora chilena Melissa Aldana foi descoberta pelo pianista panamenho Danilo Perez ainda muito jovem, em finais dos anos 2000. Nos início de 2010, a jovem saxofonista se muda para os EUA para dar sequência em seus estudos pela Berklee College of Music, em Boston, e logo em seguida se muda para o bairro do Brooklyn, Nova Iorque, sendo logo considerada uma revelação do jazz com presença cativa em muitos dos clubes nova-iorquinos. Seus primeiros álbuns foram lançados pelo selo Inner Circle Music, gerido pelo renomado saxofonista Greg Osby, um dos seus professores: e esses registros já mostram todas as proficiências de uma instrumentista que, cada vez mais, mostraria talento não apenas no manejo do seu saxofone, mas também na forma de compor seus próprios temas, na forma como produziria sua própria música. Em 2013, aos 24 anos, Melissa Aldana foi a primeira mulher musicista e a primeira sul-americana a vencer o Thelonious Monk International Jazz Saxophone Competition, ganhando um prêmio em dinheiro e um contrato para lançar seu terceiro disco pela gravadora Concord: vide o ótimo álbum Melissa Aldana & Crash Trio (2014), onde ela forma um sax-trio sem piano com o contrabaixista Pablo Menares e o baterista Francisco Mela. Em 2016, a Downbeat Magazine a incluiu numa lista chamada "25 for the Future", onde a saxofonista é relacionada como uma dos 25 jovens musicistas mais importantes para o futuro do jazz. Seu solo no tema "Elsewhere" disposto em seu álbum Visions (Motéma, 2019), esse já em quarteto com piano, recebeu uma indicação ao Grammy na categoria Best Improvised Jazz Solo. Logo, então, a saxofonista seria convidada para fazer parte do plantel de músicos mantidos pela icônica gravadora Blue Note —— que é uma gravadora que, nos últimos tempos, havia perdido um espaço considerável dentro do jazz contemporâneo diante do sucesso das gravadoras independentes, mas nos últimos anos tem aumentado significativamente seu plantel, retornando aos bons tempos de grandes lançamentos com grandes músicos. Esse contrato surtiu efeito, então, neste álbum acima, 12 Stars, um registro que capta o melhor do estilo post-bop contemporâneo. Os temas de Melissa Aldana combinam beleza e originalidade e soam sempre com o frescor daquele imagetismo contemporâneo que só é possível alcançar a partir da mistura perfeita de belas melodias e belas harmonias modais. Os temas e temáticas de 12 Stars lidam imageticamente com temáticas pessoais da saxofonista tais como a criação de filhos, o perdão familiar, aceitação e amor próprio, e seu profundo interesse pelo tarô. O álbum foi produzido pelo guitarrista Lage Lund, que também se apresenta como parte do quinteto de notáveis liderado por Melissa Aldana, e a banda inclui Sullivan Fortner no piano e Fender Rhodes, Kush Abadey na bateria e Pablo Menares no contrabaixo. Através deste disco acima, Melissa Aldana receberia sua segunda indicação ao Grammy na categoria Best Improvised Jazz Solo por seu solo no tema "Falling", na faixa que abre o álbum. Melissa Aldana, enfim, é uma saxofonista que sempre apresenta belos temas e belos improvisos, mostrando um estilo que combina ágeis fraseados com sensibilidades melódicas e harmônicas: a saxofonista consegue frasear de forma ágil e consegue atingir registros mais agudos sem aumentar tanto o volume do seu sax tenor, mostrando uma admirável sensibilidade!
★★★★ - Jeremiah Chiu & Marta Sofia Honer - Recordings from the Åland Islands (International Anthem, 2022).
Jeremiah Chiu, tecladista, e Marta Sofia Honer, violista, se conheceram em Chicago em um ensemble que foi organizado para tocar a peça "In C" de Terry Riley, num concerto anual organizado pela banda Bitchin Bajas no Constellation, um centro de música moderna em Chicago. Logo, então, ambos firmaram uma simbiótica parceria: em duo, ambos tocam seus instrumentos de ofício e também se revezam nos eletrônicos, além de atuarem juntos em gravações de campo, manipulações e edições do design sonoro. Este trabalho acima é fruto de uma viagem e estadia que ambos realizaram no Arquipélago das Ilhas Åland, o qual é formado por milhares de mini-ilhas situadas na entrada do Golfo de Bótnia, no Mar Báltico: trata-se, aliás, de um território que é autônomo, recebe forte influência sueca, mas é pertencente à Finlândia. Durante a estadia, Marta Sofia Honer e Jeremiah Chiu tiveram a ideia de realizar diversas gravações de campo para captar todo o espírito sonoro e sensorial das ilhas, se inspirando na névoa e gravando sons do amanhecer, do entardecer, sons da natureza, sons das águas, do mar, entre outros sons e sensações captados nas inúmeras ilhinhas que eles visitaram através de balsa. Fixando moradia local, logo eles passaram a fazer parte da cena cultural das Ilhas Åland, estabelecendo um intercâmbio entre as influências estadunidenses que eles traziam em sua bagagem com as influências nórdicas locais. Em 2019, então, eles receberam uma bolsa do Departamento de Cultura da Finlândia para retornar às Ilhas Åland e realizaram um concerto na paróquia Kumlinge Kyrka, uma igrejinha nórdica medieval do século XIV conhecida por seus afrescos de grande valor histórico: o concerto foi gravado e tornou-se a base para o álbum acima, que inclui improvisações com viola, eletrônica, órgão de tubos, órgão hidráulico, piano, teclados e sintetizadores modulares, vozes e as já citadas gravações de campo que ambos já haviam captado em suas viagens pelos vários locais e mini-ilhas do arquipélago. Todo esse material foi editado, manipulado e talhado, então, dando luz a este registro acima, lançado pela International Anthem em 2022. Um dos melhores lançamentos de 2022 no quesito desse tipo de eletrônica ambient com pitadas de lounge jazz que a gravadora International Anthem tem empreendido!
A pianista espanhola, radicada nos EUA, Marta Sanchez capta neste álbum todo um conjunto de composições suas nas quais ela expressa suas emoções e sua essência hispano-americana regada a contemporaneidades. O conjunto de peças foi finalizado no lockdown da Covid-19, quando a pianista trocava tarefas quinzenais de composição com um amigo por correspondência, de forma remota. "Essas composições expressam todas as fases pelas quais eu passava naquela época: eu estava refletindo profundamente sobre o que é importante e como podemos dar algum sentido à vida" —— conta a pianista. Algumas das peças também foram, inclusive, apresentadas em uma exposição pública da pianista no Smithsonian American Art Museum, exposição a partir da qual ela teve a ideia do título que deu ao álbum: o registro, segundo a pianista, é uma exposição musical das suas emoções e dos seus laços hispano-americanos. Os temas revelam, portanto, o melhor do post-bop contemporâneo com um conjunto híbrido e marcante de traços, nuances, inflexões, improvisos, cores consonantes e dissonantes, sobreposições, contrapontos e fluxos rítmicos variados, variando entre baladas com texturas timbrísticas e harmônicas quentes e peças mais intrincadas e sinuosas com frescor contemporâneo. A faixa-título "SAAM (Spanish American Art Museum)", por exemplo, é uma peça mais intrincada e bem desenvolvida que transcreve o melhor da estética do post-bop jazz, mas traz inflexões tonais que foram inspiradas nas ideias cromáticas do compositor Arnold Schoenberg, pai da música dodecafônica. Contudo, mesmo nas peças mais contrapontísticas e estruturalmente desenvolvidas, a beleza e a nostalgia estão bem latentes em suas inflexões melódicas e em seus desenvolvimentos harmônicos. A pianista lidera um quinteto com Alex LoRe no saxofone alto, Roman Filiu no saxofone tenor, Rashaan Carter no contrabaixo baixo e Allan Mednard na bateria, tendo ainda como convidados Camila Meza (voz e guitarra), Ambrose Akinmusire (trompete) e Charlotte Greve (sintetizadores) na faixa "Maria", quinta faixa do álbum. Muito bom!
★★★★ - Tasha Warren & Dave Eggar - Ourself Behind Ourself, Concealed (Bright Shiny Things, 2022).
Tasha Warren é uma professora de música e concertista de trânsito internacional que já estreou dezenas de concertos e obras de câmara escritas para clarinete tanto nos Estados Unidos quanto na Europa e países da Ásia como China, Coréia do Sul e Índia. O violoncelista Dave Eggar, por sua vez, já foi cinco vezes indicado ao Grammy e tem se apresentado como colaborador e artista solo em importantes palcos e teatros como Carnegie Hall, Kennedy Center, Barbican Centre London, Sydney Opera House, Aspen Music Festival, Lincoln Center e etc. Neste projeto acima, Tasha Warren (clarinete, clarone) e Dave Eggar (cello) apresentam estreias mundiais de obras de câmara de seis dos mais dinâmicos e influentes compositores da atualidade, Nathalie Joachim, Paquito D'Rivera, Meg Okura, Martha Redbone, Pascal Le Boeuf e Cornelius Botas, alguns dos quais transitam com facilidade entre o idioma do jazz e da música erudita. O projeto —— encomenda das composições, produção, elaboração e gravação —— tomou forma na fase de isolamento pandêmico entre 2020 e 2021 e o conceito passa pela finalidade de transcrever em notas musicais estruturadas uma cartografia do mundo atual sem que, para isso, haja alusão explícita de qualquer tipo de folclore primitivista. As peças, em seus traços e tons contemporâneos, se inspiram em locais que vão do Extremo Oriente ao Caribe haitiano, passando pelas planícies da África, passando por Cuba e indo até Nova York, nos oferecendo um conjunto híbrido de elementos musicais vários.
★★★★¹/2 - Phase Duo - Generative Glimpse (Chant Records, 2022).
O duo italiano Phase Duo é formado por Eloisa Manera (violinista, compositora e improvisadora) e Stefano Greco (produtor, DJ e sound designer). Eloisa Manera tem carreira paralela no mundo da música clássica e também explora elementos do jazz, tendo tocado, entre outros, com Herbie Hancock e Skunk Anansie. Stefano Greco é um músico de eletrônica que explora desde temáticas sonoras em exposições de arte, passando por performances ao vivo em clubes até projetos instrumentais mais específicos como seu projeto solo chamado Fana e sua participação como membro do ensemble italiano Sonata Islands, que junta avant-rock, jazz, música erudita e eletrônica numa roupagem hibrida e hiper contemporânea. Neste projeto acima, especificamente, Eloisa Manera e Stefano Greco produzem um trabalho que está no limiar entre o analógico e digital, entre a música sintética e a música orgânica, entre a eletrônica e a música erudita, entre o antigo e o moderno, sempre com a premissa de uma escultura sonora de design hiper contemporâneo. Eloisa Manera fica a cargo do violino acústico, violino elétrico de 5 cordas, synths e vocais, enquanto Stefano Greco fica a cargo de toda a eletrônica e também usa monocórdio. Ambos também contam com vocalistas convidados na faixa "Burning Sea", que explora uma simbiose entre o canto de verve medieval e a eletrônica contemporânea. Interessantíssimo!
★★★★ - Houeida Hedfi - Fleuves de l’Âme (Phantasy Sound, 2022).
Este registro acima documenta um projeto da percussionista e multi-instrumentista tunisiana Houeida Hedfi e o produtor Olof Dreijer. A percussionista conheceu Olof Dreijer em 2011 quando ele visitou a Tunísia e produziu uma compilação de mulheres musicistas tunisianas. Esse encontro desencadeou uma colaboração de nove anos que culminou neste registro chamado Fleuves de l'Âme, uma interessante mistura de música folk-tradicional do Norte da África e Oriente Médio e sound design contemporâneo, com referências maiores passando pela experiência da rica percussão de Hedfi e suas texturas ambientadas na música tunisiana. Baseado na temática das águas e rios, cada faixa deste álbum é referenciada a um nome de rio diferente. Também fazendo uma alusão sonora aos rios, o desenvolvimento dos temas, por vezes, começa com melodias calmas e meditativas para ir ganhando contornos sinuosos até alcançar um êxtase sonoro repleto de tensão e emoção. A instrumentação é rica e engloba, além dos eletrônicos de Olof Dreijer, alguns vocais pontuais, conjunto de cordas e participações de outros músicos como Radhi Chaouali nos violinos, Jalal Nader no bouzouki, Anissa Hammami no alaúde, Fadhel Boubaker no oud, Saloua Ben Salah no violão (guitarra acústica), entre outros. Houeida Hedfi também toca piano, além dos seus vários instrumentos de percussão. Este é, enfim, um álbum que traz um misto de world music árabe-tunisiana com sound design contemporâneo e arranjos eruditos, onde a eletrônica soa um tanto minimalista para dar aquele toque à mais de contemporaneidade.
★★★★ - Laura Cocks - Field Anatomies (2022).
Trabalho experimental interessante da flautista americana Laura Cocks, líder do aclamado TAK Ensemble e com uma carreira solo de intérprete já bem solidificada no ramo da música mais exploratória. A flautista trabalha com uma ampla variedade de estilos, mas quase sempre como intérprete de músicas criativas e experimentais, além de compor suas próprias obras exploratórias. Neste álbum acima, a flautista interpreta um conjunto de composições para flauta escritas e elaboradas por compositores como David Bird, Bethany Younge, Jessie Cox, DM R e Joan Arnau Pàmies. Todas as composições tem em comum o fato de que um dos principais elementos explorados são as técnicas estendidas que são possíveis de se explorar na flauta. Algumas composições incluem a interação da flauta com eletrônica e objetos, mas o foco central das peças é levar a flauta para o campo das técnicas estendidas e para territórios pouco ou nada explorados. Em alguns momentos, para além da interferência dos eletrônicos, a flautista também usa efeitos e interferência vocais —— grunhidos, ruídos guturais, chiados, canto e etc —— ao mesmo tempo em que desfere sopros no bocal da flauta para produzir notas que podem ser melódicas ou apenas ruidosas, produzindo efeitos um tanto alienígenas! Em outros momentos a flautista explora glissandos, notas agudas e frases sinuosas em combinação com objetos como alumínio, garrafas de vidros, balões e etc. Fantástico!
Tweet