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121 Álbuns Vocais para Ouvidos Instrumentais: MPB, Pop, Rock, R&B. A Arte da Canção sob Arranjos e Efeitos criativos

STEVIE WONDER | DJAVAN | BJÖRK | MICHAEL JACKSON | CAETANO VELOSO | JONI MITCHELL | ITAMAR ASSUMPÇÃO | ELIS REGINA
Dedico este post aos ouvintes mais exigentes que também gostam de música popular, mas que estão a andar desanimados em submeter seus ouvidos ao baixo nível do universo pop das últimas décadas. Aqui vamos lembrar de muitos clássicos, além de conhecer diversos grandes álbuns e artistas que estão a salvar as formas de música vocal e a forma da canção popular em termos estético-qualitativos. Há muito tempo aguardo para publicar aqui no blog uma crítica e uma lista sobre a canção popular e suas adjacências. E agora, inspirado por instrumentistas inovadores que bebem muito dessa rica fonte do canto popular e seus cancioneiros —— como o baterista e cantor Antônio Loureiro, o pianista André Mehmari e o bandolinista Hamilton de Holanda, entre outros... ——, tive a ideia de inverter a aposta para buscar no meu velho baú de escutas alguns álbuns de cantores que também se inspiram nos grandes instrumentistas ou que, ao menos, valorizam o instrumental dentro dos arranjos das suas canções. Afinal de contas, tudo começa com o canto, mas tudo termina com o arranjo instrumental. O canto popular, por si só, é apenas a forma mais padronizável e mais palatável de se produzir e massificar a música. Isso porque o canto melódico, versado com letras nas estruturas poéticas populares que conhecemos, é a representação mais direta de comunicação musical entre um artista e um público leigo desprovido de instrução formal e desprovido de ouvidos musicalmente experimentados, assim como a voz —— as cordas vocais —— é o instrumento mais popular desde sempre. Aliás, a voz, as cordas vocais, pode ser um instrumento tão diverso em técnicas e abordagens quanto qualquer outro instrumento mais engenhoso já inventado. É valorizando essa abordagem da voz como um instrumento em abordagens variadas que aqui divulgamos alguns dos 👉vocalistas mais exploratórios e experimentais. Como nosso campo de pesquisa é a música instrumental, raramente divulgamos aqui discos e artistas focados apenas no canto popular: até porque a música popular cantada já é um padrão que tem enorme suporte em inúmeros outros canais e plataformas de divulgação e publicidade, portanto não necessitando que seja redundantemente abordada num espaço de mídia alternativa de baixa audiência como este blog, focado em estilos instrumentais exploratórios. São os gêneros da música instrumental que não tem sua riqueza cultural e artística reconhecida nesse mercado de capitalismo selvagem, e são os instrumentistas quem, portanto, precisam de mais espaços de divulgação para seus projetos, shows e álbuns. A lista que vos apresento a seguir centra-se, então, em álbuns de canções e outras formas vocais adjascentes, mas o foco é a simbiose entre canto e instrumental, o foco é mencionar os instrumentistas e comentar os arranjos e efeitos instrumentais abordados.

Ademais, e apesar de toda a nossa decepção com os nomes que fazem sucesso no universo da música pop dos últimos tempos, a canção popular também é uma arte inquieta. Uma arte onde, aliás, muitos dos grandes instrumentistas que amamos são chamados a colaborar como sidemans. Portanto, acredito que também é pertinente elencarmos aqui registros de música pop que tragam a participação de bons instrumentistas e o uso de bons efeitos e elaboradas instrumentações em seus arranjos. Aproveito para instigar e deixar, por outro lado, a incumbência para que nossos ouvintes-leitores façam uma ligeira reflexão a respeito do quão vulgarizada e pasteurizada a canção popular tem sido pelas tendências de mercado —— tendências das quais nenhum de nós consegue fugir completamente, pois elas estão nas estações de rádio, no streaming, nos canais de TV, em todas as mídias e redes sociais, elas estão por todos os cantos. Inclusive, uma das minhas neuras e frustrações é com o fato de que, no âmbito mercadológico da música brasileira, nossa música instrumental e nossos instrumentistas, desconsiderando as exceções, sempre foram muito dependentes e reféns da massificação alienada do canto popular e do ofício de se acompanhar cantores para conseguirem sobreviver. Essa condição mercadológica —— ainda que seja uma condição de trabalho digno —— é uma constante um tanto limitante para o desenvolvimento da arte da música instrumental. Isso porque, quando olhamos para o espectro da música brasileira, verificamos que temos muitos dos maiores músicos do mundo ávidos por darem vazão em suas carreiras e projetos solo enquanto instrumentistas, mas, a depender das condições e oportunidades desse mercado, eles ficam muitas vezes engessados, ou caiem num leilão selvagem de quem paga menos por uma participação sem créditos. Isso porque temos um rico mosaico cultural de formas e arranjos instrumentais com todos os ritmos embalados pelas nossas percussões afro-indígenas, com toda a rica tradição instrumental do choro, com toda a riqueza instrumental da música nordestina, com os excepcionais violonistas e acordeonistas gaúchos do sul...ou seja, no Brasil todo, de norte a sul e de leste a oeste, temos um rico e imensurável campo de exploração instrumental com muito campo para evoluções estéticas a partir dessas formas enraizadas na nossa gênese multi-cultural, mas o mercado sempre abocanha praticamente todos os espaços e praticamente direciona todos investimentos e oportunidades somente à música cantada mais popularesca e padronizada, subjugando muitos dos nossos grandes instrumentistas a serem meros freelancers e acompanhantes de cantores populares, quando não meros reprodutores daquele tipo de folclore passadista de fácil apreciação e apelo. No mercado fonográfico brasileiro, o espaço dedicado ao instrumentista de carreira solo é, infelizmente, muito ínfimo. E se o tal instrumentista, não contente com essas padronizações, optar por desenvolver um espírito criativo suscetível a desbravar, inovar e mostrar uma arte musical mais autoral,  composicional e contemporânea, aí então é que o mercado não valoriza mesmo. Inteligência, liberdade e inovação raramente são produtos valorizados nesse mercadão de patifarias.

CHICO BUARQUE
Mas tudo isso tem um desdobramento histórico. Esse subjugo comercial, onde apenas o canto popular padronizado e as massificações popularescas são valorizados e o instrumental é visto apenas como um apoio, é um sinal culturalmente sintomático na história cultural da emergente democracia do Brasil, e geralmente é um sintoma que passa despercebido ou não é propositalmente confessado por produtores, jornalistas, fãs e entusiastas bitolados por essas padronizações folcloristas e popularescas, bitolados esses os quais não detêm —— ou não pretendem mesmo mostrar —— nenhum pouco de reconhecimento ou empatia em relação ao nosso amplo mosaico de formas instrumentais que retratam a rica cultura nacional, e tampouco se preocupam com a pulsante necessidade de evolução a partir dessas formas. E isso acontece, talvez, pela educação limitada que obtiveram e/ou, talvez, pelo eminente medo de serem reprimidos no exato momento em que questionarem o status quo do mercado fonográfico que os alimentam. Alguns desses bitolados, os mais instruído dentre eles, até poderiam cinicamente nos dizer: "Ahh..., mas nossos cancioneiros também são enormemente ricos melodicamente, harmonicamente e ritmicamente". E nós responderíamos que isso é verdade, mas também lhes abriríamos os olhos para fazê-los enxergar o quanto as massificações e padronizações do mercado engessam esses cancioneiros, e também tentaríamos fazer com que eles entendessem que essa riqueza artístico-cultural pregressa só foi alcançada porque antes, lá atrás, houve um boom criativo de revolução e evolução instrumental que desenvolveu inovadora estrutura para a canção. E, por fim, também lhes faríamos com que entendessem que é no âmbito instrumental —— no arranjo, na composição, no improviso, na harmonia, na inflexão e na experimentação instrumental —— que residem as evoluções estéticas de um estilo musical, incluindo estilos musicais onde o canto é preponderante. Quer dizer: a própria voz precisa ser enxergada como um instrumento dentro desse processo, e ambos, canção e instrumental, precisam um do outro para se desenvolverem concomitantemente, de forma que no âmbito da cultura popular o canto precisa de instrumentistas que inovem em seus ritmos, texturas e harmonias, ao mesmo tempo em que os instrumentistas bebem muito das ricas fontes melódicas da canção para inovarem na harmonia e na composição. 

O samba, por exemplo, só tem a sofisticação melódico-rítmico-harmônica que conhecemos porque antes bebeu das evoluções de Pixinguinha e todos os regionais do choro, que é um gênero instrumental. A bossa nova só representou uma evolução harmônico-melódica para além do samba porque os respectivos cancionistas cariocas valorizavam as sofisticações instrumentais do choro, do jazz e até da música erudita —— Tom Jobim, por exemplo, foi um dedicado aluno do compositor serialista Hans-Joachim Koellreutter e trouxe desses seus estudos muitas noções de dissonâncias que lhe possibilitaram atingir cores harmônicas inéditas em suas bossas. O movimento da Tropicália só representou a revolução que hoje nos orgulha porque Gilberto Gil, Caetano, Tom Zé e toda a trupe valorizaram as características instrumentais nordestinas e sudestinas, as misturaram com o rock progressivo e com procedimentos instrumentais vanguardistas, e solicitaram que maestros como Júlio Medaglia e Rogério Duprat lhes dessem suporte parar criar arranjos com instrumentações arrojadas e experimentais que enfatizaram as mais efervescentes misturas e os hibridismos que se podiam alcançar na época. O movimento do Clube da Esquina, então, nem se compara: foi um núcleo repleto dos maiores nomes da música instrumental brasileira, com o próprio Milton Nascimento tendo uma noção harmônica avançada, uma visão ampla e instrumental da voz e se associando aos maiores instrumentistas do mundo. Definitivamente, enfim, o instrumental precisa mesmo ter seu espaço cativo, sua trilha independente a seguir e seu devido incentivo para evoluir e contribuir com as evoluções das estruturas rítmicas e harmônicas de um cancioneiro. Ok, sabemos que uma das atribuições do instrumental é servir como estrutura óssea para o canto, mas essa  não pode ser jamais a única condicionante a limitar os instrumentistas, uma vez que a própria arte da música instrumental já é, por si só, um outro universo de estéticas vivas que necessitam de se desenvolverem independentemente. Assim como no jazz, nossa música instrumental também necessita de um vívido mercado independente: e não só limitado ao underground, que é onde a Arte é geralmente valorizada por um público pequeno, mas também necessita de um mercado pujante no qual possa se desenvolver dentro de uma linha evolutiva que lhe proporcione explorar suas várias vertentes, suas várias direções estéticas, seus vários estilos, para que assim, consequentemente, surjam estruturas harmônico-rítmico-melódicas inovadoras que inspirarão nossa música a avançar como um todo, incluindo a arte da canção que usufruirá muito dos instrumentistas experimentados nesse processo.

BLONDIE
Essa percepção introduzida acima corrobora muito com o triste fato  de que inúmero dos nossos instrumentistas tiveram de optar por seguirem com suas carreiras em cenários internacionais, onde o jazz e outras formas de música improvisada, por exemplo, tem ao menos sua pequenina fatia de mercado garantida, havendo portanto um público ávido de espectadores —— logicamente numa cena de circuito mais restrito ou mais underground, mas, ainda assim, uma cena pulsante —— que apreciam o rico mosaico de formas instrumentais e todas suas inflexões, transformações e mutações artísticas. Ainda que esse post não seja, enfim, um local com espaço suficiente e adequado para nos estendermos nesse assunto em todas suas causas e desdobramentos, essa deixa de reflexão se faz necessária. De fato, o histórico de um Brasil liderado por barões e coronéis conservadores, de um Brasil ainda com traços colonialistas calcados no histórico sociocultural enraizado pela política do café-com-leite, de um Brasil que preferiu ser "a fazenda do mundo" ao invés de educar sua população e incentivar a ciência e a tecnologia, do país onde o "agro é pop" e o pop é o funk proibidão da Anitta, do país que se industrializou tardiamente e que nas últimas décadas vem se desindustrializando..., toda essa condição histórica e cultural, enfim, afetou sobremaneira nossa capacidade de desenvolver um ambiente sociocultural voltado para as vanguardas e de formar nossa visão desenvolvimentista em âmbitos gerais, incluindo tendo  afetado a capacidade de muitos artistas e músicos de saírem dessa bolha e evoluírem para além das temáticas e formas mais primais e popularescas do canto e do apego identitário com a terra, com o folclore, com o rural, com o sertão, com as estórias e modinhas de um Brasil-colônia. Contudo, quero ressaltar que meu desejo e minha crítica aqui não é para que essa identidade com o arcaico, com o ancestral, com o folclore, com o rural e com o popularesco seja extinguida, mas sim que toda nossa rica cultura de adereços brasilianistas seja ressignificada sob conceitos artísticos originais e inovadores, e sob as reais temáticas desse nosso atual cotidiano agora movido a redes cibernéticas e plataformas de inteligência artificial. Os tempos são outros e a arte precisa ser sempre ressignificada para se conectar com o tempo presente. Até porque já tivemos movimentos lá atrás em nossa história, como a Tropicália e o Clube da Esquina, que já incutiram processos artísticos similares de ressignificação, renovação e inovação. Meu desejo é, enfim, que continuem existindo os artistas populares que reproduzem e repaginam o folclore e os adereços culturais do nosso povo, mas também desejo, ao mesmo tempo e em igual medida, que músicos urbanos explorem temáticas urbanas, temáticas do nosso cotidiano, com sonoridades frescas e inovadoras que denotem e conotem essa visão crítica e atual da realidade, do aqui e agora, bem como uma visão humanista que também seja capaz de se projetar ao futuro através de inovações artísticas que estejam à frente do tempo presente. A maioria dos músicos e artistas altamente aclamados e inovadores fizeram isso: criaram obras de arte originais que transcreveram os adereços modernos do presente, mas que, ao mesmo tempo, se estabeleceram como obras à frente do seu tempo, obras que perdurariam como fontes de influência décadas e séculos à frente. Agora em pleno século 21, o desafio é irmos em busca de formas inovadoras de devotarmos patriotismo ao nosso Brasil estando conectados com as tecnologias e com a arte contemporânea dos últimos tempos e de hoje, expurgando de nós aquele velho complexo de vira-lata e colocando a cultura e a arte do Brasil alinhadas num nível mais  elevado de contemporaneidade. Por isso, a ideia deste post é priorizar álbuns de cantores e bandas que valorizaram e valorizam as temáticas contemporâneas, temáticas do tempo presente, e que valorizaram e valorizam os instrumentistas e as tratativas elaboradas para os efeitos e arranjos instrumentais —— seja no âmbito das sonoridades acústicas e orgânicas, seja no âmbito das inovadoras sonoridades eletrônicas, seja no âmbito das mais idiossincráticas misturas. Ainda há esperança! Sigamos.

ADELE
Mas atenção! O fato de que, como citei no início, o canto popular seja a forma mais direta para se atingir as pessoas, isso não significa que adquirir os dotes de cantores populares como Elis Regina, Stevie Wonder ou Milton Nascimento, por exemplo, seja uma tarefa fácil de se conseguir. Se é que o artista emergente se propõe a cantar bem, trabalhar as exigências técnicas do canto é um exercício tão difícil quanto aprender a tocar um instrumento e manter sua técnica em dia. É preciso considerar ainda que muitos desses cantores também são instrumentistas com técnicas razoáveis e musicalidade bem acima daquela média de outros cantores que tocam algum instrumento apenas para se ter um acompanhamento harmônico mediano com a mesma meia dúzia de acordes manjados. É cada vez mais raro encontrarmos cantores populares com essa completude —— de ter uma voz afinada e penetrante, a capacidade de compor e elaborar arranjos com variadas instrumentações e texturas, a capacidade de tocar instrumentos com versatilidade, a profundidade melódico-harmônica, a sensibilidade poética carregada de humanismo, as temáticas profundas e inteligentes, a fluência em ritmos variados, a capadidade de misturar diversos rítmos e linguagens —— tal como encontramos em Milton Nascimento e Stevie Wonder. A julgar por esses artistas inovadores da música popular, a música cantada também pode ser uma arte maiúscula e pode ser extremamente envolvente para o ouvinte com melhor percepção que preza por audições mais exigentes. E esse envolvimento geralmente ocorre, como já denotado, quando esse ouvinte realmente percebe que uma determinada canção dispõe de qualidade poética e melódica, profundidade harmônica, rítmicas inteligentes e, logicamente, arranjos e efeitos instrumentais que fogem do acompanhamento óbvio e dão ótima ossatura para a forma-canção. A verdade, contudo e como já dito, é que realmente existe um fator limitante na música pop cantada que são as padronizações de mercado: o nivelamento que o mercado adota para ter lucro em grande escala com produções pausterizadas e modinhas de época. No parágrafo abaixo eu detalho —— num tom de crítica mesmo, sem arrodeios —— algumas dessas padronizações que geralmente frustram qualquer ouvinte que preza por níveis elevados de qualidade musical. Música de qualidade no universo pop? E tem? Tem, sim!!! E tem muita!!! Basta-se apenas que o ouvinte de tímpanos calejados e experimentados dispa-se dos seus preconceitos. Para se ter uma ideia, até houve um tempo em que os programas de TV, os teatros, as casas de shows e os chamados "Festivais da Canção" eram nivelados e medidos pela régua qualitativa de artistas e bandas como Beatles, Stevie Wonder, Milton Nascimento, Paul Simon, Chico Buarque, Elis Regina, Earth, Wind & Fire e Djavan, por exemplo...!!! Nas últimas décadas, porém, esse nivelamento desceu ao mais baixo nível inimaginável e houve uma normalização sistematizada da falta de qualidade e do absurdo-abjeto, além de uma tendência pedante de massificações gourmetizadas, de forma que o ouvinte mais exigente precisa ter muita paciência e referência histórica, e precisa ser muito mais seletivo para compor uma playlist que condiga com sua apreciação e senso de qualidade musical. Felizmente, para quem tem esse senso crítico e cultiva o hobby de garimpar e filtrar conteúdos, a internet representou gigantesca acessibilidade e passou a ser um mar de riqueza imensurável.

MILTON NASCIMENTO
Já para o ouvinte leigo que não dispõe de tempo, paciência e não conhece as trilhas para garimpar preciosidades na world wide web, então nesse sentido os blogs, plataformas e sites alternativos mais específicos podem ajudar. E assim, com o tempo, o próprio ouvinte seguirá treinando e apurando seus ouvidos para saber filtrar música a partir do seu próprio senso de qualidade. Afinal de contas, a QUALIDADE e a FALTA DE QUALIDADE existem: não há como tapar o sol com a peneira nessa questão! Aliás, a FALTA DE QUALIDADE tem sido endêmica e tem praticamente abocanhado todos os espaços dantes destinados para a QUALIDADE. Na música pop em geral —— principalmente naquele popularesco-pastel mais voltado a reproduzir modinhas de verão, que fazem repentino sucesso de época —— sempre nos deparamos com alguns padrões um tanto cafonas, simplistas, obscenos e pedantes: falta de arranjos instrumentais; configurações onde os instrumentistas são mero acompanhantes do vocalista; músicas com as mesmas progressões de acordes (a mesma meia dúzia de acordes e os mesmos padrões pentatônicos de sempre...); letras de baixo calão ou sem nenhum requinte poético no sentido mais íntegro de poesia (geralmente letras sexistas e/ou que expressam traição, ostentação, apologia ao álcool e às drogas, objetificação da mulher e etc); reprodução massiva e padronizada de ritmos dançantes voltados apenas para bailes-baladas-raves; as mesmas batidas eletrônicas, as mesmas cadências e os mesmos padrões melódicos; a falta de temáticas inteligentes e humanistas; o apelo em dancinhas sexistas e em adereços populares chulos; sonoridade muito sintéticas e procedimentos artificiais; e por ai vai... E é assim que é e sempre será! Foi assim que as mídias e as grandes gravadoras, ansiando sempre lucrar mais, assassinaram seu senso crítico e permitiram que a música popular, quase de um modo geral, se tornasse esse antro de representações chulas afim de alcançar o maior número de jovens possível, mesmo quando —— quase sempre —— essas representações "artísticas" massivamente produzidas e consumidas foram e são o reflexo mais abjeto do emburrecimento social e da histórica falta de acesso à educação, à arte e à cultura que esses jovens das populações mais pobres sofrem. Em termos culturais quantitativos —— de costumes, tendências, mercado e etc —— não podemos incriminar ou discriminar ninguém dessas populações: as pessoas se expressam e consomem com base, sempre, no seu histórico social, cultural e educacional, e infelizmente as mídias e gravadoras se aproveitam disso —— esse ciclo é interminável e é o atalho que  as corporações midiáticas usam para lucrar. Mas podemos indicar para essas pessoas —— para os curiosos dentre elas, ao menos... —— a infinidade de música de qualidade que já se produziu e que ainda se produz fora dessa bolha. Ademais, temos que considerar, também, que cada tipo de música serve ao seu propósito, cada tipo de estado de espírito e de evento social exige um tipo de música: dependendo do momento, eu mesmo estou inclinado a curtir algumas canções popularescas mesmo quando, numa síntese ou análise musical mais profunda, tais canções não vão rígidamente de encontro aos meus níveis de qualidade musical e às minhas preferências, como é o caso das canções dos dois volumes de Músicas Para Churrasco de Seu Jorge, as quais eu e meus familiares sempre botamos no play pra animar nossos encontros. Porém quando recorremos aos termos musicais estritamente qualitativos, o senso crítico sempre falará mais alto na consciência de qualquer pessoa que teve acesso à educação, cultura e arte em níveis elevados de instrução ou em qualquer pessoa que, na sua vida adulta, percebeu e buscou se libertar da bolha emburrecedora fomentada pelo mercado e pelas mídias. Liberte-se, ilumine-se, e curta sua vida com alegria e qualidade! Isso é o que desejamos para nós e para todos!

STEREOLAB
Expostos esses pontos de reflexão acima, sigamos até nossa lista. A ideia, enfim, é termos aqui no blog uma lista de sequência aleatória e alternativa, onde tenhamos indicações de álbuns de canções de vários estilos com o mínimo de arranjos instrumentais e efeitos inteligentes (efeitos timbrísticos e eletrônicos, atmosferas e nuances inteligentes e etc) que possam agradar o ouvinte de percepção mais exigente —— isso de acordo com estes meus ouvidos tresloucados. Evito indicar aqui alguns medalhões e alguns clichês: Beatles, The Rolling Stones, Elvis Presley, Frank Sinatra, James Brown, Tony Bennett, Tom Jobim, Ray Charles, Tim Maia, Roberto Carlos, bandas de rock com orquestras sinfônicas (ao estilo dos Scorpions com a Filarmônica de Berlim), compilações ao estilo "Rock for Lovers", cantores acompanhados por adocicados arranjos de orquestras de cordas e/ou big bands, e outros padrões já manjados. Enfim...até indico um clichê e outro...—— Michael Jackson, Dire Straits, Eric Clapton, Simply Red... até alguma banda de dance music que possa estar em alguma daquelas compilações de "flashback" dos anos 70, 80 e 90 ——, mas a ideia aqui é formar uma lista sem muitas mesmices, uma lista mais alternativa, aleatória e mais plural de bandas e álbuns, emitindo observações, sacadas e até certo grau de análise em relação aos arranjos instrumentais. Para qualquer pessoa que tenha uma sensibilidade auditiva mais aguçada e bem treinada —— e aqui não me refiro apenas a músicos, mas qualquer pessoa que desenvolveu essa capacidade de querer sentir e perceber as riquezas e as minúcias enquanto se ouve música —— o ato de reservar um tempo da nossa vida para se debruçar em um disco ou numa playlist é um momento de retiro espiritual, sagrado e terapêutico que também envolve o exercício da busca por perceber arranjos e efeitos instrumentais criativos. Na verdade, a ideia não é elencar aqui somente canções que valorizem estritamente o arranjo no sentido mais composicional de instrumentação e orquestração —— isso a gente curte mais propriamente no jazz mesmo, na música instrumental brasileira, na música erudita... ——, mas a ideia é valorizar canções e álbuns da música pop que tenham o mínimo de boas harmonizações, grooves e ritmos envolventes, efeitos inteligentes de eletrônica, riqueza melódica, harmonias mais elaboradas, contextos abrangentes, poéticas elevadas, álbuns com participações de instrumentistas do jazz e da Música Instrumental Brasileira, álbuns com abordagens criativas gestadas fora da curva das pasteurizações e padronizações, e por ai vai... Mas estaremos falando aqui, de fato, de música popular. É outro universo. Não dá pra exigir que um artista popular deixe, por exemplo, o guitarrista ou o saxofonista da sua banda emitir um improviso ou um solo criativo de dois ou três minutos de duração quando a gravadora e a produtora lhe impõe uma estética mais sintética e uma minutagem mais limitada como pré-requisito para que suas canções sejam aceitas —— isso ainda é muito comum em canais de rádio e televisão, onde as faixas têm ter no máximo 3 a 4 minutos de duração para serem aceitas e tocadas. Nos últimos tempos, aliás, os selos e gravadoras de música pop não disponibilizam mais nem o encarte com a ficha técnica dos músicos que participam das gravações. Na lista de discos que vos apresento abaixo procuro elencar, então, álbuns onde os músicos tiveram boas participações, álbuns onde a banda de músicos não foi tratada apenas como mero backstage para acompanhamentos, álbuns com contextos musicais abrangentes e outras sacadas que vocês poderão ler nas resenhas. Clique nos álbuns para ouví-los!


 1                               Stan Getz & João Gilberto - Getz/ Gilberto - featuring Tom Jobim & Astrud Gilberto - (Verve, 1964). 

Gêneros/ Estilos: bossa nova, samba jazz | Elementos & Influências: cool jazz, west coast jazz, samba | Avaliação: ★★★★¹/2 (Crucial!)

Com composições de Antonio Carlos Jobim, Dorival Caymmi e Ari Barroso e letras de Vinícius de Morais, este álbum representou o casamento definitivo do samba —— agora renovado pela bossa nova, estética surgida no seio da boemia do Rio de Janeiro —— com o estilo do cool jazz advindo no west coast americano. Em termos estéticos-estruturais esse casamento é um tanto inovador, mas este álbum não chega a ser um registro propriamente transformador, uma vez que as bases estilísticas da bossa nova já estavam há alguns anos formalizadas. Através das gravações de Tom Jobim, a bossa nova já era, inclusive, um gênero mundialmente famoso nessa época. Mas trata-se de um álbum que pode ser considerado o documento de um ponto crucial onde a canção brasileira sob a forma da bossa nova se misturava ao improviso do jazz para formalizar definitivamente o subgênero do samba-jazz, um ponto inicial muito importante para a modernização da música instrumental brasileira e para a formalização dessa variante amplamente adotada pelos músicos de jazz a partir de então. A fluência e os improvisos elegantes e envolventes do saxtenorista americano Stan Getz casaram-se perfeitamente com o estilo suave de voz-banquinho-violão do cantor João Gilberto. Foi mundialmente um dos álbuns carros-chefes da bossa nova (cantada) e do samba-jazz (improvisado) e revelou a grande cantora Astrud Gilberto (filha de João Gilberto). Recebeu dois prêmios Grammy e é considerado um dos melhores e mais vendidos álbuns de jazz todos os tempos. Apesar dos pianistas João Donato e Sergio Mendes já estarem explorando o samba-jazz desde 1962, este álbum é o mais mundialmente afamado documento do gênero.


 2                               Chico Buarque - Construção - (Philips, 1971). 

Gênero/ Estilo: MPB | Elementos & Influências: samba, bossa, tropicália, arranjos sinfônicos, protesto | Avaliação: ★★★★¹/2 (Profundo!)

Chico tem outros álbuns emblemáticos —— lembremos dele como a voz que rasgou com acidez os ouvidos da censura da Ditadura Militar com canções não menos que incisivas, e que, por isso, até hoje ele é uma figura odiada por bitolados que desavisadamente ou descaradamente são entusiastas daquelas sombrias ideologias fascistas. Mas este álbum é singelamente soberbo! Assim como Acabou Chorare dos Novos Baianos, álbum psicodélico que será lançado um ano depois e que comentaremos abaixo, aqui Chico dá um toque de modernidade tropicalista ao enxertar algumas dissonâncias, algumas bitonalidades e algumas inflexões incomuns às formas da bossa nova e do samba —— mas, lógico, sem usar guitarras elétricas. A faixa que abre o disco "Deus lhe Pague", basicamente um refrão que se repete várias vezes, já nos imerge num clima de apreensão e de ironia que se desembocará num tom crítico a seguir: a canção é um refrão sustentado por berimbau, percussão, violão e contrabaixo com respostas de arranjos de sopros (flauta, trombone, etc) em tons dissonantes e misteriosos. O trombone anuncia a segunda faixa como algo que poderia ser uma canção romântica, mas em seguida o tema já se desemboca num tom irônico e num samba sacolejante, mostrando, aí, um exemplo de como Chico inflexiona e aplica novas cadências e sincopações sobre as formas do samba. Já a faixa título, "Construção ", arranjada pelo maestro Rogério Duprat, é um samba com arranjos sinfônicos tropicalistas, orquestrações modernistas e uma estrutura poética sofisticada em seus versos: todos os versos tem 14 sílabas e cada uma dessas sílabas terminam em proparoxítonas (palavras com acentuação na antepenúltima sílaba), sendo considerada uma das canções mais bem trabalhadas da história da MPB. E assim Chico vai variando as tratativas das canções com novas cadências, flexibilizações nas estruturas, novas inflexões e novas instrumentações, adotando arranjos camerísticos (violoncelo, cordas, flauta, trombone, etc), arranjos sinfônicos e pitadas de sonoridades tropicalistas casadas com a percussão do samba. Em termos de temáticas, Chico caminha entre a saudade que ele sentia do Brasil —— considerando que ele estava exilado na Itália na ocasião da produção deste disco —— e a crítica irônica aos males da Ditadura Militar, sempre com versos de mui elaboradas contruções poéticas. Vale à pena prestar atenção nas letras! Nos arranjos figuram Antônio Waghabi (o Magro) do MPB4 e o maestro Rogério Duprat.


 3                               Novos Baianos - Acabou Chorare - (Som Livre, 1972). 

Gêneros/ Estilos: MPB | Elementos & Influências:  samba, bossa, afoxé, baião, tropicália, rock psicodélico | Avaliação: ★★★★ (Influente!)

A Revista Rolling Stones colocou esse album como o número 1 da sua lista top 100 de "Maiores Álbuns Brasileiros" de todos os tempos, talvez pela marcante sonoridade setentista calcada numa certa transição entre os elementos de uma MPB primeira (ainda calcada no samba) e um certo rock brasileiro que já ultrapassava os limites do tropicalismo, e que já apontava para novos caminhos tanto nas letras como nas levadas rítmicas: é um álbum que mistura "Hendrix com Jacob do Bandolim e Rolling Stones com Jackson do Pandeiro" —— teria dito um crítico na época. Tendo tido sucesso comercial estrondoso em sua época, é considerado um álbum muito importante para a MPB e para o rock brasileiro, tendo se tornado influente para  vindouras gerações de cantores e bandas: de figuras e bandas de rock como Lulu Santos e Skank à cantores consagrados de MPB como Marisa Monte, há diversos relatos que atestam que este álbum é amplamente influente. Em termos de arranjo, porém, não é um álbum tão recheado de instrumentações variadas como noutros álbuns de MPB aqui indicados. A instrumentação é basicamente calcada em cordas dedilhadas e percussão com sotaques afros-nordestinos, mais propriamente baianos: violão, cavaquinho, craviola (uma espécie de viola-cravo projetada por Paulinho Nogueira), guitarra e contrabaixo elétrico misturados com bateria, maracas, triângulo, bongos e afoxé. Contudo, e para além do álbum ter conseguido amalgamar vários elementos da brasilidade com o rock psicodélico, há umas sacadas bem interessantes. A principal delas são as fusões e as ressignificações dos sambas, bossas e adereços nordestinos sob as originais tratativas protagonizadas pelos arranjos e dedilhados singulares de Moraes Moreira e pela guitarra incandescente de Pepeu Gomes: a primeira faixa do álbum, mesmo, já abre com uma cadência super original, com uma progressão de acordes um tanto singular; e depois, nas faixas seguintes, essas mesmas levadas singulares de sambas e bossas já recebem arranjos que misturam a guitarra psicodélica de Pepeu Gomes com uma percussão recheada de adereços afros, tendo, no meio desse molho, adereços nordestinos trabalhados ainda sob uma verve tropicalista. Várias das canções deste álbum se tornaram clássicos relidos por seguidas gerações da MPB e do Rock Brasileiro, tornando-o dos clássicos mais influentes.


 4                               Milton Nascimento & Lô Borges - Clube da Esquina Volumes 1 & 2 - (EMI-Odeon, 1972/ 78). 

Gêneros/ Estilos: MPB | Elementos & Influências: bossa, rock progresivo, Beatles, folclore brasileiro, jazz | Avaliação: ★★★★★ (Inovador!)

Sob temáticas humanistas, com letras baseadas em temas como amor, amizade, paz, humanidade, encontros e despedidas, imagens nostálgicas de trens, memórias de lugares e povos, Milton Nascimento e o letrista e cancionista Lô Borges concretizam neste clássico o apogeu de uma nova MPB (música popular brasileira), agora repleta de referências imagéticas de um Brasil em desenvolvimento que já tinha hibridificado várias modernidades, várias estéticas e inovações: adereços folcloristas (temáticas indígenas e afro-brasileiras, os reisados, os ritmos e melodias do calango, dos congados e da música religiosa de Minas Gerais), samba, bossa nova, harmonias modais, jazz fusion, rock progressivo, Tropicália, entre tantos outros elementos. Dessa forma, o Clube da Esquina, capitaneado pelas forças criativas de Milton e dos irmãos Borges, pode ser considerado uma terceira via condensadora a hibridificar todos esses inúmeros elementos e a surgir depois da saturação da bossa nova e do tropicalismo, representando uma direção hiper inovadora para a canção brasileira. Por ser um núcleo condensador de hibridismos, esse movimento não representou nenhum alarde de revolução em seu início, mas posteriormente, ao se concretizar numa estética homogênea, o Clube da Esquina representou uma evolução estética gigantesca, inclusive com matizes harmônicas e melódicas que até hoje se reverberam como raios de influência de longo alcance estético-temporal dentro da música brasileira como um todo, influenciando diretamente na formação do pop-rock no Brasil, bem como influenciando diretamente no desenvolvimento da própria música instrumental brasileira através dos vários grandes instrumentistas que também eram membros desse clube nascido em Minas Gerais. Talvez —— ainda mais do que a Tropicália, que levou a canção para direções mais progressistas e experimentais —— o Clube da Esquina seja o movimento mais inovador da MPB: até hoje carecemos de movimentos sucessores que representem uma evolução maior ou ao menos igual. Indico, como uma só obra, os dois volumes do Clube: lançados respectivamente em 1972 e 1978, esses dois volumes talvez formam a maior obra de arte já gestada na seara da canção brasileira. A riqueza melódico-harmônica do Clube e suas temáticas humanistas condensaram-se numa híbrida e duradoura fonte de influência!


 5                               Milton Nascimento - Angelus - (Warner Music Brasil, 1993). 

Gêneros/ Estilos: MPB | Elementos & Influências: fusion, rock, pop, world music, crossover, brazilian folk | Avaliação: ★★★★ (Universal!)

As excelentes bandas de apoio de Milton Nascimento e dos outros membros do Clube da Esquina —— sendo o Som Imaginário a maior e mais influente delas —— foram núcleos que revelaram alguns dos maiores instrumentistas brasileiros de todos os tempos. Da mesma forma, as posteriores associações e parcerias de Milton e seus amigos do Clube com músicos internacionais, como Wayne Shorter e Herbie Hancock, fizeram esse renovador clube-movimento da música brasileira a alcançar prestigiado status internacional. É por essas e outras que Milton Nascimento e o Clube são sumidades preferidas dos ouvintes de jazz que buscam por escutas mais progressivas e reveladoras —— e isso desde sempre! Nas décadas posteriores, Milton e os amigos do Clube seguiriam aumentando as parcerias e conexões não apenas com outros músicos de jazz, mas também com diversos outros músicos e cantores criativos do pop, do rock e da world music. Este álbum, declaradamente o registro preferido de Milton, é o testemunho vivo dessas conexões e apresenta diversos estilos de instrumentações, incluindo uma abertura camerística com instrumentos de sopro. Participam e colaboram diversos músicos mundialmente conhecidos tais como Pat Metheny, Jon Anderson, Wayne Shorter, Herbie Hancock, Ron Carter, James Taylor, Peter Gabriel (líder da banda Genesis), Jack DeJohnette e Naná Vasconcelos. Já até abordamos este álbum aqui na lista sobre releituras do Clube da Esquina. Sendo um LP duplo, este álbum traz um misto de temáticas, imagens e adereços que abordam desde a história mineira (com a capa inspirada nos manuscritos de Tiradentes e nas esculturas do Mestre Ataíde e do Aleijadinho), questões ambientais, cuidado com a terra-mãe, questões indigenistas (inspiradas por Ailton Krenak), religiosidade e espiritualidade (inspiradas na oração Hora do Angelus) e até temáticas sobre amizade, canções inspiradas em lugares e outros adereços  imagéticos, e etc. Tendo Milton explorando seus singulares e belos vocalises, trata-se de um magistral álbum misto de canções e instrumentais! Um álbum brasileiro e, ao mesmo tempo, de sonoridade universal, com muitos grandes músicos e cantores celebrando a genialidade de Bituca! Muito bom!


 6                               Rosa Passos - Recriação - (Chantecler, 1979). 

Gêneros/ Estilos: MPB | Elementos & Influênciasbossa, baião, bolero, tango, seresta, brazilian folk | Avaliação: ★★★★ (Diversificado!)

Com belas melodias e harmonizações, o álbum Recriação, debut de Rosa Passos, é uma espécie de tesouro que ficou há muito tempo esquecido até que nas últimas décadas, com a internet, os colecionadores resgataram o compacto. Iniciando com a bela "Recriação", uma das melodias mais nostálgicas da história da MPB, este álbum registra as canções que Rosa Passos escreveu juntamente com o talentoso letrista Fernando de Oliveira. Baiana de origem, Rosa Passos surgiu como um talento raro na segunda metade dos anos de 1970, deixando apenas este álbum gravado antes de se retirar da cena musical, só retornando em 1985. Tendo uma voz aguda das mais belas, Rosa Passos aqui ressignifica baladas, serestas, sambas, tangos, boleros e ritmos nordestinos com roupagens contemporânea para a época, gestando um registro repleto de arranjos requintados, tendo colaborações de músicos como Wilson das Neves (bateria), Luizão Maia (contrabaixo), Gilson Peranzzetta (teclados), Ubirajara (bandoneon), José Menezes (viola 12 cordas), Hermes Contesini (percussão), Jorginho (flauta), Zdenek Svab (trompa), Giancarlo Pareschi (arranjos de cordas) e Geraldo Vespar (arranjos e regência).


 7                               Caetano Veloso - Transa - (Philips, 1972). 

Gêneros/ Estilos: MPB, Tropicália | Elementos & Influênciassamba, reggae, rock, afro-brazilian rhytmns | Avaliação: ★★★★ (Descolado!)

Caetano tem outros discos mais geniais do que este. Mas Transa é, de fato, um álbum emblemático e juvenilmente descolado. Caetano Veloso e alguns músicos brasileiros estavam exilados em Londres por causa da Ditatura Militar quando gravaram este álbum. Caetano conta que Transa foi um álbum gravado de forma espontânea, sem nenhuma pretensão tão ambiciosa, apenas como um registro daquele momento de exílio. Mas o equilíbrio de ingredientes deu a este disco um toque marcante de sonoridade cult. Caetano compõe algumas canções em inglês misturadas e intercaladas com ressignificações de bossas e sambas de Carlos Lyra, Dorival Caymmi, Baden Powell e Monsueto Menezes, e ainda acrescenta outros elementos ao molho. A instrumentação, em si, é enxuta e orgânica. Mas os arranjos conseguiram misturar o concretismo tropicalista que Caetano já trazia na veia com inéditas levadas de reggae, influências do rock inglês misturadas à brasilidade do samba, canto em português intercalado com canto em inglês num interessante jogo de palavras, e um uso marcante dos elementos da capoeira, do berimbau e da percussão afro-nordestina. O resultado é um álbum de marcante sonoridade setentista, um dos álbuns mais cult de Caetano. Participam da gravação Gal Costa (vocais), Angela Ro (gaita-escaleta), Jards Macalé (violão, guitarra, arranjos), Moacyr Albuquerque (contrabaixo) e Tutty Moreno e Áureo de Souza (bateria, percussão). Cult!


 8                                Elis Regina (feat. César Camargo Mariano & Hermeto Pascoal) - Montreaux Jazz Festival - (Elektra, 1972). 

Gênero/Estilo: MPB | Elementos & Influências: clube da esquina, samba jazz, instrumental brasileiro | Avaliação: ★★★★¹/2 (Muito Swing!)

Elis Regina é considerada uma das maiores intérpretes da canção brasileira —— talvez a maior do seu tempo. Ainda que fosse contrária aos experimentalismos que o movimento da tropicália trouxera da vanguarda internacional, sendo adepta a arranjos e instrumentações acústicas e orgânicas genuinamente brasileiras, Elis praticamente fez uma transição da bossa nova para uma MPB de maior amplitude. A identificação de Elis com vários dos grandes instrumentistas da música instrumental brasileira e do jazz é um atestado da sua assustadora musicalidade. E este álbum é o documento vivo disso! Este álbum documenta a memorável participação de Elis na 13ª edição do Montreux Jazz Festival. Em sua banda tinha alguns dos maiores músicos brasileiros de todos os tempos: César Camargo Mariano (teclado e arranjos), Hélio Delmiro (guitarras), Luizão (contrabaixo), Paulinho Braga (bateria) e Chico Batera (percussão). É nesse show que Hermerto Pascoal, figura já lendária que também participava do festival, é convidado a dividir as atenções com Elis em três faixas, sendo esse um encontro dos mais memoráveis da história da música brasileira. No repertório, Elis nos mostra um misto de bossas e sambas de panteões já consagrados (como Tom Jobim, Baden Powell, Ary Barroso e Edu Lobo), passando por canções de compositores emergentes que estavam se despontando na época (João Bosco e Ivan Lins), incluindo uma canção de Milton Nascimento e finalizando  com um arranjo indigenista para Asa Branca, canção do acordeonista nordestino Luiz Gonzaga. O swing e a sinergia que Elis estabelece na relação com os músicos da banda é digno de nota! Uma das maiores gravações ao vivo de todos os tempos!


 9                                Tom Zé - Estudando o Samba - (Warner Music Group/ Continental, 1976). 

Gêneros/ Estilos: MPB, Tropicália | Elementos & Influênciassamba, avant-garde, poesia concreta | Avaliação: ★★★★ (Provocativo!)

Tom Zé nunca teve a pretensão de mostrar a riqueza melódico-harmônica de um Tom Jobim ou de um Milton Nascimento, por exemplo... Mas Tom Zé é, em termos de crítica conceitual, a mente mais intelectual da MPB e é o cancionista —— que ironicamente sempre adotou um conceito de anti-canção, aliás... —— mais idiossincrático do movimento tropicalista: essa idiossincrazia e essa intelectualidade se revelam tanto em termos de como ele usa elementos da poesia concreta em suas letras (com ele se autoconsiderando um "operário da linguagem") como nos termos dos seus arranjos rústicos e primitivistas influenciados pelo avant-garde, como também em termos de como sua arte sempre consistiu em fazer um exame dos fenômenos existentes na vida do homem retirante do nordeste que foi tentar a vida na cidade de São Paulo, como tambem em termos de como ele criou uma filosofia com críticas sobre os conceitos estéticos da forma-canção. Nesse sentido Tom Zé construiu uma persona um tanto intrigante e das mais amplamente estudadas dos últimos tempos, uma persona que combina os traços de um maltrapilho caipira do nordeste brasileiro com a psiquê de um intelectual urbano adepto das manifestações artísticas de vanguarda: ou seja, nas suas canções, o encontro dos traços sertanistas com os traços urbanos são talhados, pois, com procedimentos advindos da música experimental, do dadaísmo, da poesia concreta e doutras formas de avant-garde. Dessa forma, Tom Zé se tornou essa figura que traz ao mesmo tempo crítica e humor, estudo dos cânones e ironia aos mesmos, reflexão e paródia, contemplação e performance, cultura popular e experimentação. Não à toa, ele foi o tropicalista menos comercial e mais injustiçado dos anos de 1970. Este álbum acima reflete essa fase-faceta. Embora ainda amparado por uma grande gravadora como a Warner, Tom Zé já entrava numa fase de baixíssimas vendas, algo que, por consequência, aumenta ainda mais seu senso crítico rumo aos seus experimentais "estudos". Esses "estudos" irão desembocar num conceito filosófico que Tom Zé irá chamar de "anti-canção" ou algo como o "fim da canção". Esse conceito irá defender a premissa de que a forma-canção não é uma forma de arte estática para ser canonizada e colocada numa vitrine sob a égide nostálgica da beleza e da elitização para ficar encantando gerações e mais gerações de não-pensantes: ele praticamente vai contra essa monotonia e apregoa que a forma-canção é como um organismo vivo que, como qualquer outra forma de arte —— como qualquer expressão das artes plásticas, por exemplo... —— se satura e se renasce, se desconstrói e se remodula, se transforma e se torna uma outra coisa. Na época deste disco acima, as "formas puras" da bossa nova e do samba já eram consideradas ultrapassadas ante às novas tendências e misturas e estavam entrando nesse processo de "vitrinização canônica". Tom Zé, pois, desafia o senso mercadológico e volta-se para a pesquisa do samba e suas variáveis —— bossa nova, samba-canção, o samba do partido alto e etc ——, compondo a partir daí canções com apliques de sátira, ironia, paródia, concretismo, dadaísmo e seus próprios trejeitos singulares, chegando a usar até mesmo sons de liquidificadores, apitos e máquinas de escrever entre os arranjos. A capa do disco, constituída da imagem de uma corda embaraçada em um arame farpado sobre um fundo branco, faz referência à vigente Ditadura Militar, e também às formas canônicas de como o samba tinha se estigmatizado numa peça de vitrine carnavalesta. Este álbum teve a produção de Heraldo do Monte, a colaboração do sambista Elton Medeiros e participações de Tiago Agaripe. Álbum provocativo!


10                               Tom Zé - Danç-Êh-Sá (Dança Dos Herdeiros Do Sacrifício - 7 Caymianas Para O Fim Da Canção) (2006). 

Gêneros/ Estilos: MPB, Tropicália | Elementos & Influênciasinstrumental, avant-garde, concretismo | Avaliação: ★★★★ (Idiossincrático!)

Relutei em indicar este álbum porque o que temos aqui não é a canção da forma-padrão tal como a conhecemos. Danç-Êh-Sá é um álbum independente onde Tom Zé, agora já totalmente reestabelecido na cena musical como o músico provocativo que sempre foi, nos mostra seu conceito de pós-canção através das suas "sete caymianas para o fim da canção". Neste álbum, já temos uma verve tropicalista mais contemporânea com a exploração da eletrônica como um elemento formador da sonoridade, da voz como veículo das expressões onomatopeicas que tanto lembram suas associações com a poesia concreta, e de uma instrumentação rica formada por músicos como Lauro Léllis (bateria), Jarbas Mariz (cavaco, violão de 12 cordas, voz), Cristina Carneiro (teclados, voz), Sérgio Caetano (guitarra, voz), Daniel Maia (baixo, voz), Luanda (voz) e Paulo Lepetit (eletrônicos, produção e mixagem). Neste álbum todas as canções são experimentais no sentido de não usar letras com léxicos inteligíveis, mas usar apenas onomatopeias, efeitos e sons vocais, construções silábicas nordestinas e afro-indígenas e concretismos poéticos. A sonoridade e o instrumental deste disco evidenciam toda a profusão de misturas e alcançam a o ápice da experimentação e da rusticidade dadaísta e concretista de Tom Zé! Idiossincrático!


11                               Buddy Miles - Them Changes - (Mercury, 1970). 

Gêneros/ Estilos: Rock, Soul, Funk | Elementos & Influênciasblues, gospel, jazz, rock psicodélico | Avaliação: ★★★★ (Amalgamado!)

Anterior a este álbum acima, Buddy Miles lançou um álbum chamado Electric Church (Mercury, 1969): tem produção e participação do lendário guitarrista Jimi Hendrix e nos mostra a genuína conexão que o blues e o gospel têm com o rock'n'roll, que nessa época, em fins dos anos 60, já havia alcançado suas formas mais eletrificadas e psicodélicas. Pensei em indica-lo, mas aqui vou apenas mencioná-lo. Quero indicar, mesmo, é este álbum acima, Them Changes (Mercury, 1970), que traz Buddy Miles nos mostrando uma síntese mais completa em termos das conexões e dos elos genuínos existentes entre o blues, o gospel, o rock'n'roll, o soul, o funk e o jazz. Está tudo aí, tudo bem amalgamado: solos matadores de guitarra elétrica, grooves e funk beats, órgão Hammond, solos e improvisos jazzísticos, arranjos de metais, canções com elementos do gospel, vocais doo-wop, blues e spirituals, ótimas baladas soul, e etc! Buddy Miles, um dos músicos mais completos que se tem notícia —— baterista, multi-instrumentista, cantor, compositor e etc —— atuava como o baterista fixo na banda Band of Gypsys de Jimi Hendrix nessa época. Hendrix não está fisicamente presente aqui, mas sua energia e sua influência são sentidas. Ao invés de Hendrix, Buddy Miles conta com as guitarras incandescentes de Jim McCarty e Charlie Karp.


12                               Stevie Wonder - Innervisions - (Tamla/ Motown, 1973). 

Gêneros/ Estilos: Soul | Elementos & Influênciasgospel, jazz, funk, R&B, rock, eletrônica | Avaliação: ★★★★ (À frente do seu tempo!)

Gênio! Gênio! Gênio! Famoso como multi-instrumentista, cantor, e entusiasta músico de jazz desde tão tenra idade, com primorosos discos gravados desde a pré adolescência, Stevie Wonder já era uma sensação nacional quando gravou este disco. Mas aqui ele simplesmente vira a chave para efetuar uma transição das baladas do soul clássico para um soul mais progressivo e contemporâneo, de forma que o resultado é um disco de soul music inovador e muito à frente do seu tempo! Para além da alta capacidade de compor melodias inovadoras —— em todos os sentidos: rítmica, melódica, timbrística e harmonicamente ——, um dos fatores que explicam essa contemporaneidade à frente do seu tempo é o uso inovador de sintetizadores (ARP, Moog, Clavinet e afins) e o uso do inovador sistema de sínteses eletrônicas chamado TONTO (The Original New Timbral Orchestra), desenvolvido por Malcolm Cecil e Robert Margouleff. Dessa forma, combinando melodias inovadoras com recursos futuristas, Innervisions tornou-se um álbum extremamente influente, considerado o registro que mais expressou o "som futuro" da soul music e da black music, como um todo! Não obstante, as letras das canções ainda apresentam um rico mosaico de críticas e reflexões envolvendo questões como amor, drogas, desigualdade, racismo e a corrupção do presidente Richard Nixon. Este álbum é considerado um dos maiores registros de todos os tempos e ganhou dois Prêmios Grammy. É, com certeza, um álbum que prenuncia o nascimento do pop contemporâneo que seria sintetizado com Michael Jackson a partir do final dos anos de 1970! Stevie Wonder emplacou várias das suas canções dessa fase a se tornarem clássicos eternos! Gênio!


13                               Stevie Wonder - Songs in the Key of Life - (Tamla/ Motown, 1976) 

Gêneros/ Estilos: Soul | Elementos & Influênciasgospel, jazz, funk, R&B, rock, eletrônica | Avaliação: ★★★★ (À frente do seu tempo!)

Songs in the Key of Life, em termos de eletrônicos, não chega a ser mais inovador do que Innervisions, que representou uma virada sem precedentes para uma soul music de diretriz futurista —— no máximo mantém o frescor dessa diretriz. Mas é, com certeza, mais diversificado e mais rico instrumentalmente e esteticamente falando! É, aliás, um dos registros precursores da pop music! Conta-se que a produção deste álbum —— a composição das canções, os arranjos, a contratação dos músicos almejados, as gravações e todo o restante da produção... —— levou dois anos para se concretizar. Para as gravações, Stevie Wonder convidou uma multidão de grandes vocalistas e músicos, incluindo músicos de jazz como Ronnie Foster (órgão), Dorothy Ashby (harpa), Bobbi Humphrey (flauta), George Benson (guitarra, backing vocals) e Herbie Hancock (teclados), dentre outros... —— interessante notar que George Benson, inclusive, também estava em alta nessa época e "rivalizou" com Stevie Wonder com o disco Breezin', que perdeu um Grammy para Songs in the Key of Life. Para além da riqueza instrumental, Stevie Wonder faz um uso extensivo de palmas, backing vocals e outros vocais de apoio, incluindo a participação do Coro da Igreja de Deus em Cristo, de West Angeles. Há também vários singles que se tornaram hits de sucesso permanente, hits que evidenciaram uma estética de canção muito à frente do seu tempo, sendo posteriormente, e ainda hoje, usados em remixes e samples de músicos do pop e do hip hop. Variando muito no uso de diversos elementos estéticos, este álbum simplesmente conectou e amalgamou tudo o que de mais moderno se tinha à época. Da canção "Sir Duke" dedicada a Duke Ellington (que falecera em 1974) ao hit "Pastime Paradise", passando pela balada Isn’t She Lovely, Stevie Wonder conseguiu conectar e amalgamar tudo: gospel, soul, funk, rock, jazz, proto-pop, eletrônica, world fusion, o uso de samples e tantos outros elementos e recursos. É, com certeza, um dos discos precursores do pop contemporâneo que seria desenvolvido com Michael Jackson e Prince nos anos seguintes! Também foi uma influência inconteste para músicos do hip hop alternativo a para a geração neo-soul a surgir entre os anos 90 e 2000!


14                               George Benson - Tell It Like It Is - (CTI Records, 1969)

Gêneros/ Estilos: Soul, Jazz | Elementos & Influênciassoul, jazz, funk, bossa, latin music | Avaliação: ★★★¹/2 (Um ponto de partida!)

George Benson, virtuose guitarrista de jazz —— tendo iniciado a carreira no subgênero soul jazz inspirado por Wes Montgomery, sendo sideman do organista Jack McDuff e do trompetista Miles Davis... —— já havia mostrado seus dotes como cantor e já prenunciava uma carreira mais voltada para a produção de hits nessa época. É quando ele assina contrato com a CTI Records do produtor Creed Taylor, gravadora responsável pelo estrondoso sucesso dos hits de bossa nova nos EUA. O resultado surtiu efeito nesse disco, um dos seus álbuns onde ele dá forma definitiva para seu estilo inconfundível de intercalar versões instrumentais com solos de guitarra e versões com vocais cantados, já despontando-se nessa época como um genuíno soul singer. Sendo este um álbum claramente produzido com faixas para serem tocadas nas rádios, Creed Taylor convida o arranjador Marty Sheller da banda afro-cubana de Mongo Santamaria para dar um suporte à George Benson e ampliar seu repertório, que era mais voltado ao soul e ao jazz. Marty Sheller e Benson montam, então, uma big band com grandes músicos e criam ótimos arranjos de metais no bom e velho estilo —— bluesy e sounful —— de perguntas-e-respostas, dando vazão num variado repertório formado por canções soul, canções afro-latinas, baladas e bossa nova em rítmicas americanizadas —— vide, por exemplo, a canção "Jackie All", de Eumir Deodato. Na big band figuravam músicos como o trompetista Lew Soloff, o saxtenorista Joe Henderson, o altoísta Sonny Fortune, o flautista Hubert Laws, e vários outros grandes músicos. Benson canta três canções e aborda o restante do repertório em levadas instrumentais crossover, incluindo uma versão instrumental da balada "My Cherie Amour" de Steve Wonder. Não é o melhor de Benson, mas é um ponto de partida para o sucesso do seu estilo a partir de então.


15                               George Benson - Give Me the Night - (Warner/ Qwest Records, 1980)

Gêneros/ Estilos: Pop, R&B, Discoteca | Elementos & Influênciassoul, disco music, jazz, funk, pop | Avaliação: ★★★★¹/2 (Fantástico!)

A intenção de indicar o álbum acima, Tell It Like It Is (CTI Records, 1969), e indicar este álbum lançado em 1980 é mostrar ao ouvinte-leitor a evolução que George Benson atravessou do soul jazz mais orgânico à música disco e pop mais sintética. Embora Benson já viesse colecionando hits de grande sucesso —— tanto hits cantados quanto hits instrumentais, como pode ser atestado no seu ótimo Breezin' (Warner, 1976) ——, é neste álbum de discoteca que ele chega ao seu ápice. Com produção de Quincy Jones (que já vinha produzindo Michael Jackson) e canções compostas pelo compositor Rod Temperton —— um dos grandes hitmakers da história da música pop —— este disco não tinha como dar errado e automaticamente já emplacou os hits "Love X Love" e "Give Me the Night" no topo das paradas de sucesso. Os elementos inovadores do hit "Give Me the Night" já sugerem pontes e conexões entre um novo pop de verve disco que já surgia —— marcado por novos synths, com beats de electro-funk, drum machine e/ou bateria eletrônica, um novo pop que se tornaria viral com os álbuns de Michael Jackson a partir de então —— e a soul music e o jazz embalados por levadas e roupagens mais sintéticas, numa atmosfera mais "smoothy" e romântica. George Benson, contudo, manteve seu estilo de intercalar canções cantadas com versões instrumentais, mantendo, também, certa conexão com o jazz e com o soul mais genuíno, ainda que agora embebecido com as novas sonoridades sintéticas da época. Benson também mostra seu apreço pela música brasileira incluindo duas canções de Ivan Lins: "Love Dance" e "Dinorá, Dinorá". Participam deste álbum músicos excepcionais como o tecladista Herbie Hancock, o guitarrista Lee Ritenour e o percussionista brasileiro Paulinho da Costa. Ademais sugiro ao ouvinte observar, neste e noutros álbuns, os trejeitos do estilo inconfundível de Benson: seu timbre e toque inconfundível, o fluente scat singing que ele aplicava em uníssono com as frases da guitarra e as passagens onde ele aplica solos usando oitavas. George Benson ganhou três Grammys com esse disco.


16                               Michael Jackson - Go to Be There - (Motown, 1972)

Gêneros/ Estilos: Soul, R&B, (Pop) | Elementos & Influênciassoul, gospel, jazz, funk, rock | Avaliação: ★★★★¹/2 (Talento exacerbado!)

Os primeiros álbuns de Michael ainda trazem canções belíssimas com todo aquele acalanto da soul music e do R&B ainda regado com as minúcias do gospel e do jazz. E o melhor deles é, com certeza, este compacto Got to Be There (Motown, 1972), seu álbum de estreia lançado quando ele já ensaiava sair dos Jackson 5 para priorizar sua carreira solo. Got to Be There é impressionante porque praticamente não traz uma só canção ruim: todas as canções são cativantes e o repertório é bem variado, indo de baladas como Ain't No Sunshine, passando por uma descolada releitura do clássico hit do rock'n'roll "Rockin' Robin" (eternizada anteriormente na voz de Elvis Presley), evocando traços ainda primordiais do gospel e do soul mais genuíno, mas ao mesmo tempo já rompendo esses limites indo até hits  caracterizados por estilosas melodias em levadas funky como "I Wanna Be Where You Are". O jovem Michael tinha acabado de fazer 13 anos de idade quando gravou este clássico e sua voz incrível ainda evocava sua cativante sensibilidade musical infantil. Na verdade, seu talento para a dança e sua musicalidade exacerbada já não eram novidades há muito tempo: seu talento, como um todo, transbordara quando ele, aos 10 anos de idade, já era a estrela principal dos Jackson 5. Mas é impressionante como neste disco, aos 13 anos de idade e já assessorado por ótima equipe de produção, ele transcende e se supera em todos os sentidos: vocais, variedade de repertório, versatilidade, arranjos e contemporaneidade. Impressionante como já nessa época, em 1972, o jovem Michael já prenunciava, implicitamente, os ventos vindouros da nova estética pop da qual ele mesmo seria o Rei em absoluto! Clássico supremo da Motown!


17 Michael Jackson - Off the Wall - (Epic Records, 1979)
Gêneros/ Estilos: Pop Dance, Disco | Elementos & InfluênciasR&B, fusion, funk, rock, discoteca | Avaliação: ★★★★ (Marco Definidor!)

Não há o que questionar: Michael Jackson é, definitivamente, o maior artista pop de todos os tempos! E este álbum Of the Wall (Epic Records, 1979), produzido pelo produtor e arranjador (e ex-músico de jazz) Quincy Jones um anos antes do álbum de George Benson que abordamos acima, foi definitivamente um marco zero para a nova pop music que, neste final dos anos 70, já estourava a bolsa amniótica do show business para mudar tudo a seguir —— falo do chamado post-disco que mudaria definitivamente a direção da música pop americana nos anos 80. A partir daí, álbuns como Thriller (1982), Bad (1987) e Dangerous (1991), apesar de altamente divertidos e inquestionavelmente inovadores, podem não agradar os ouvintes com preferência por sonoridades instrumentais mais orgânicas: isso porque, apesar da participação massiva de músicos excepcionais —— como o organista Jimmy Smith, o tecladista George Duke, o percussionista Paulinho da Costa, o ex-Beatle Paul McCartney e o guitarrista de rock Eddie Van Halen ——, é a partir destes discos que Quincy e Michael revolucionam a produção musical no sentido de usar menos instrumentos acústicos e orgânicos e usar mais recursos digitais e artificiais, fazendo uso de uma infinidade de edições, mixagens, samples, ritmos eletrônicos processados em drum machines e baterias eletrônicas e uma parafernália dos mais novos sintetizadores digitais, criando uma sonoridade sintética que seria basilar para essa estética da nova pop music oitentista —— novos procedimentos que são altamente inovadores, mas que já não mais valorizam as sonoridades orgânicas dos instrumentos que tanto amamos. É diferente, por exemplo, dos álbuns setentistas de Stevie Wonder, que até podem ser considerados registros precursores a prenunciar o nascimento desse novo pop, mas são registros que ainda mantém certa organicidade em suas sínteses eletrônicas analógicas e em seus arranjos instrumentais e vocais, inclusive mantendo o parentesco com as bases do gospel e do jazz. E este Of the Wall é o ponto máximo da black music, uma extensão inconteste do fio condutor de inovações iniciado por Stevie Wonder. Of the Wall representa, pois, o auge da discoteca já extrapolando os limites do range soul, R&B e funk e já inaugurando o gênero do pop dance. Of the Wall é, definitivamente, o ponto zero do Pop como um estilo independente. Em termos de arranjo instrumental, Of the Wall subtrai ainda mais os solos e já caminha para os efeitos sintéticos, mas ainda dá pra sentir uma certa organicidade: o uso da bateria acústica ainda é presente; os slaps dos contrabaixos elétricos ainda produzem grooves quentes de funk (apesar das batidas já estarem indo em direção à pop dance); a percussão é rica e cheia de detalhes; há umas respostas um tanto divertidas com arranjos de metais (trompetes, trombone e saxes); há também respostas com arranjos de cordas; a combinação entre as guitarras sustentadas no apoio e as guitarras concentradas nos riffs são inteligentes; e o uso das vozes e dos backing vocals é cheio de falsetes e efeitos inovadores. Há também um segredo a se observar no uso dos sintetizadores. Michael disse a Quincy Jones que ele queria produzir um disco com sonoridades diferentes das sonoridades e combinações soul-funk que marcaram sua carreira com os Jackson 5 e seus primeiros discos solos. Para tanto, Quincy convida o compositor de hits Rod Temperton e coordena uma inusual combinação de músicos, escalando hitmakers e tecladistas ligados às mais diversas vertentes do pop-rock e da música de discoteca da segunda metade dos anos 70 tais como o tecladista de jazz fusion George Duke, o tecladista Greg Phillinganes (apoio de Stevie Wonder) e alguns tecladistas brancos, todos pioneiros em explorar abordagens inovadoras com os sintetizadores analógicos e modulares da época: entre eles figuravam Steve Porcaro (da banda de soft-rock Toto), David Foster e Michael Boddicker (pioneiro em explorar vocoders e os modulares da Moog). O resultado surtiu efeito neste que é considerado, indiscutivelmente, o álbum que formalizou o gênero da Pop Dance. Ademais, eu, preferivelmente, acho que este Off the Wall é muito superior ao hiper-ultra best-seller Thriller (1982): isso porque, para além do fato de ter uma instrumentação mais rica e orgânica, em Off the Wall Michael definitivamente dá forma a um novo estilo e mete bastante seu bedelho na produção e nas letras das músicas, estabelecendo um equilíbrio interessante entre faixas dançantes e baladas e usando —— agora, recém chegado na idade dos 21 anos —— suas primeiras temáticas adultas relacionadas a solidariedade, autoestima, trabalho, romance, relacionamentos, escapismo, libertação, solidão e hedonismo. Não obstante, Michael ainda tem as colaborações de gigantes como Paul McCartney (que lhe cede a canção "Girlfriend") e Stevie Wonder (que compõe para o disco "I Can't Help It"). Há um documentário bem interessante lançado pelo cineasta Spike Lee, chamado "Journey from Motown to Off the Wall", que retrata com detalhes a jornada e os processos de Michael Jackson entre seu início como cantor mirim de soul e funk junto aos Jackson 5, passando por seus primeiros discos da carreira solo, até chegar a este inovador ponto de fusão pop que foi Off the Wall.


18                               Ivan Lins - Nos Dias De Hoje - (EMI/ Odeon, 1978)

Gêneros/ Estilos: MPB, Pop | Elementos & Influênciassamba, bossa nova, clube da esquina, jazz-fusion | Avaliação: ★★★★ (Superlativo!)

Ivan Lins e Djavan são dois dos gigantes a levar a canção brasileira para abordagens mais pop —— com a diferença de que Ivan Lins transitou bastante por estilos diversos, enquanto Djavan manteve e eternizou um estilo mais homogêneo de poética e estética pessoal. Ivan Lins pode ser inicialmente sintetizado, aliás, como o cantor que colecionou hits de sucesso —— nacional e internacionalmente —— representando uma espécie de extensão mais pop dos elementos estabelecidos pela bossa nova e pelo Clube da Esquina —— é assim que, em síntese, eu o sinto. Nesse sentido de levar a canção brasileira para o território pop, assemelha-se a Ivan Lins, por exemplo, o excelente cantor e compositor Flávio Venturini, membro do Clube da Esquina. É preciso frisar, contudo, que essa diretriz de "MPB mais pop" estabelecida por esses cancionistas traz tanta qualidade em seu conteúdo e é tão superlativa em termos melódico-harmônicos, que qualquer tentativa de comparação dessa qualidade pregressa com a qualidade da música pop brasileira atual seria, no mínimo, um desaforo —— desconsiderando, logicamente, as raras exceções. E é neste disco, Nos Dias De Hoje (EMI, 1978), que Ivan Lins nos mostra um exemplo contundente de salto de qualidade, tomando uma direção fusion-crossover, sim, mas mantendo incrível conexão com a brasilidade dos nossos cânticos e ritmos. Pianista e pioneiro dos sintetizadores, Ivan Lins compôs para este álbum algumas das suas canções mais ricas em termos melódicos e harmônicos, uma riqueza que se tornou ainda mais superlativa ao associar-se às belas letras do poeta Vitor Martins. As letras evocam sentimentos sobre família, temporalidade, êxodo nordestino, lugares, fé e crença num futuro melhor, implicitamente denotando uma crítica e uma resposta otimista àqueles amargos dias de Ditadura Militar, algo que também fica evidente na capa do LP. Nas instrumentações e arranjos figuram músicos excepcionais como Gilson Peranzzetta (piano, teclados, arranjos), Fred Barbosa (contrabaixo), João Cortez (bateria), Fredera (guitarra) e Tavito (arranjos vocais), além da participação especial do gaitista Maurício Einhorn. É a partir deste disco que Ivan Lins começa a emplacar sucessivos hits no mercado internacional, transformando-se, também, num dos compositores brasileiros com mais canções executadas por grandes artistas dos EUA e do mundo.


19                               Djavan - Luz - (Sony Music, 1982)

Gêneros/ Estilos: MPB, Pop | Elementos & Influênciassoul, samba, raggae, smooth jazz, funk, pop | Avaliação: ★★★★★ (Atemporal!)

Esse clássico maior da MPB foi gravado nos EUA quando Djavan foi convidado pela CBS (Sony Music) para se lançar em território americano. Para tanto, ele teve o suporte e a produção do músico de jazz Ronnie Foster e teve até a colaboração de Stevie Wonder, que lhe presenteou com um solo de gaita na canção "Samurai", que abre o álbum. Este é um dos poucos álbuns da história da música pop onde praticamente todas as canções se tornaram hits de constante e atemporal sucesso. Na verdade, quando escutamos Luz de Djavan, temos a impressão de que as canções poderiam ter sido compostas ontem de tão atemporais e contemporâneas que ainda soam! Isso porque Djavan conseguiu criar um hiper original estilo com levadas rítmicas diferenciadas, melodismo estiloso e harmonias inteligentes que inovou sobremaneira a canção brasileira neste âmbito de estética pop. E o álbum Luz é um exemplo máximo dessa diferenciação: ele se inspira em Stevie Wonder, mas soa muito diferente de Stevie Wonder; a canção Samurai, por exemplo, poderia muito bem ser um soul em óbvia levada funky, mas ele dá a ela uma cativante e dançante cadência binária que soa muito original; a canção "Sina" também poderia ser um reggae, mas novamente ele dá uma acentuação e um cadência própria super diferenciada para esse hit; enquanto que a canção "Capim" é um samba, mas nas mãos de Djavan essa canção se torna algo diferente, ganhando acentuações quialteradas e síncopes super estilosas. Seja interpretando clássicos ou cantando seus inúmeros originais, seja cantando pop, uma balada romântica, um samba ou uma canção em levada nordestina, o alagoano Djavan soa sempre Djavan. Já na segunda metade dos anos de 1970, quando Djavan surgiu na cena musical, ele já era diferenciado, mas é neste álbum Luz que seu estilo atinge o ponto de fusão. Como se não bastasse, ele ainda tem um estilo próprio de poesia que brinca belamente com a semântica e a sintaxe fonético-musical das palavras, muitas vezes unindo signos e palavras díspares em significância, mas que, quando ele as une, formam um só sentido poético-metafórico hiper inteligente, levando o ouvinte a uma viagem não apenas musical, mas também imagética. Nos arranjos, Luz nos traz a banda de apoio de Djavan, Sururu de Capote, com figuras seminais como Moacir Santos, Oscar Castro-Neves e encontros e revezamentos entre grandes músicos brasileiros e grandes músicos americanos: Abraham Laboriel e Sizão Machado (contrabaixo); Harvey Mason e Téo Lima (bateria); Jorge Dalto e Luiz Avellar (piano, teclados); Ronnie Foster (teclados, arranjos); Ernie Watts e Zé Nogueira (saxofones); Hubert Laws (flauta); entre outros. Além das faixas que mencionei, também acho o arranjo de cordas da bela canção "Banho de Rio" um tanto primoroso! Fã de Caetano Veloso, é nesse disco que Djavan usa o verbo "caetanear" em uma das canções: posteriormente, o próprio Caetano inventaria o verbo "djavanear" para denotar e homenagear o estilo próprio do alagoano. 


20                               Djavan - Ária - (Biscoito Fino/ Luanda Records, 2010)

Gêneros/ Estilos: MPB | Elementos & Influênciassamba, bossa nova, baião, jazz, standards | Avaliação: ★★★¹/2 (Finesse Pura!)

Houve um tempo que, assim como Marisa Monte no universo feminino, Djavan era o cantor mais copiado de toda a música brasileira —— apesar de que só o pop excepcional de Jorge Vercilo conseguiu, de fato, se "djavanear" com sucesso. Isso porque Djavan sempre foi um músico original de essência autoral, um compositor de canções por excelência, tendo conseguido emplacar, por décadas, inúmeros hits nas paradas de sucesso. Porém, em Ária, é a vez de Djavan, saindo de um hiato, deixar de lado seu laboratório particular de canções para se arriscar apenas à arte do cantor intérprete, cantando canções advindas da sua memória de infância e do seu íntimo de preferências e pesquisas pessoais. Ária é, então, o primeiro álbum de Djavan onde nenhuma composição é sua: todas as faixas são de outros cancionistas. Para potencializar o seu canto, resgatando o estilo canto-banquinho-violão de João Gilberto, Djavan adota uma instrumentação enxuta com apenas voz, violões e contrabaixo acústico, além de um kit sutil de percussão —— ou seja, não há nem bateria. Esse tipo de arranjo enxuto e acústico coloca a sua voz sob novas nuances e perspectivas texturais, por vezes alcançando tons jazzísticos aqui e ali. No repertório há canções de panteões como Cartola, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Jobim, Beto Guedes, Luiz Gonzaga e Chico Buarque, bem como canções de nomes menos conhecidos, nacionais e internacionais, os quais ele traz das suas memórias e pesquisas: tais como Othon Russo, Mano Decio, Bart Howard, Wayne Shanklin, entre outros. Agradável, Elegante, Fino trato!


21                               Ryuichi Sakamoto - Beauty - (Virgin Records, 1989)

Gêneros/ Estilos: Pop, Eletrônica | Elementos & Influênciassynth-pop, rock, avant-garde, world music | Avaliação: ★★★ (Inovador!)

O titã-samurai Ryuichi Sakamoto foi um dos compositores e músicos mais inovadores na passagem do século 20 para o século 21: inovador inconteste da música eletrônica (sendo inspiração constante para o pop, a techno-house e o hip hop), inovador da música minimalista, compositor erudito de verve contemporânea, compositor superlativo de trilhas sonoras, compositor de canções... Escolha o seu Sakamoto preferido! Eu, particularmente, prefiro compreender o artista na sua totalidade, com todas as facetas da sua personalidade: não sou fã dessa coisa mercadológica de selecionar apenas as facetas mais palatáveis e jogar no lixo as facetas mais exploratórias, ou vice-versa. Depois de lançar álbuns que revolucionaram a música eletrônica entre fins dos anos de 1970 e início dos anos 80, Sakamoto começou a ser venerado por uma legião de cantores pop que começaram a se inspirar nas suas sínteses e combinações eletrônicas. Da mesma forma, Sakamoto começou a direcionar suas atenções para a composição de canções e peças de explorações vocais. Nessa fase ele colabora e empreende parcerias com David Byrne, David Sylvian, Cindy Lauper e Madonna, e seus discos recebem colaborações de muitos cantores de renome do universo pop e doutros gêneros de música cantada. E este álbum acima é um dos seus registros mais inovadores dessa sua diretriz. Mas é preciso frisar que os álbuns de canções de Sakamoto não são do tipo que submete o instrumental para ser apenas um mero backstage de acompanhamento para o cantor. Neste seu álbum Beauty, por exemplo, Sakamoto usa a forma-canção e os vocais apenas como ingredientes e motivos para criar peças melódicas híbridas com vários tipos de canto misturados em uma profusão de efeitos e sínteses eletrônicas experimentais, com essas várias formas de canto refletindo suas pesquisas sobre world music, música africana e música tradicional japonesa. Beauty é, portanto, um álbum que hibridifica pop, avant-garde, as sonoridades tribais e tradicionais da world music, música erudita e a eletrônica experimental e inovadora de Sakamoto. Colaboram com Sakamoto cantores como Jill Jones (R'n'b, soul), Robert Wyatt (expoente do art rock, da cena de Canterbury), Arto Lindsey (da cena no wave, pós-punk...membro das bandas DNA e The Lounge Lizards), Youssou N'Dour (cantor senegalês) e Brian Wilson (expoente do rock, fundador dos Beach Boys), além dos vocalistas de música tradicional e dos backing vocals. 


22                               Eric Clapton - Unplugged - (MTV Unplugged Series, 1992)

Gêneros/ Estilos: Blues, Rock, Pop | Elementos & Influênciasblues, folk, acoustic rock, traditional songs | Avaliação: ★★★ (Antológico!)

Um dos icônicos e mais completos artistas de todos tempos! Eric Clapton conseguiu se tornar um dos maiores cantores de blues de todos os tempos, uma lenda inconteste do rock e empreendeu significativas incursões dentro da pop music com canções não menos que antológicas. E é nesta gravação —— lançada em disco como parte da série Unplugged da MTV e captada diante de um público modesto em 16 de janeiro de 1992 no Bray Film Studios em Windsor, Inglaterra —— que Clapton faz um resumo antológico de todo esse espectro a partir de uma instrumentação acústica formada por violões, dobro, kazoo, harmonium (órgão de bomba), piano acústico, contrabaixo acústico e uma percussão enxuta com bongos e bateria sutil, alcançando uma sonoridade de renovado frescor juvenil. Considerado o álbum "live acoustic" mais vendido de todos os tempos, Unplugged vendeu mais de 26 milhões de cópias, eternizando as versões acústicas de canções autorais de Eric Clapton, tais como "Layla" e "Tears in Heaven", e popularizando canções tradicionais e gemas esquecidas do rock'n'roll e do blues tais como "Rollin' and Tumblin'" de Muddy Waters e "Walkin' Blues" e "Malted Milk" de Robert Johnson. Unplugged foi, enfim, um dos álbuns de canções dominantes nas paradas de sucesso e nos  radio charts dos anos 90 e início dos anos 2000, tendo recebido nove indicações (!) no Grammy de 1993, ganhando três delas. A canção "Tears in Heaven", composta por Clapton em decorrência da então morte do seu filho, atingiu sucesso fenomenal e se tornou emblemática na carreira do guitarrista.


23                               Jethro Tull - Songs from the Wood - (Chrysalis Records, 1977)

Gêneros/ Estilos: Prog Rock, Folk | Elementos & Influênciasfolk medieval, hard rock, classical | Avaliação: ★★★★ (Muito Criativo!)

Ser fã do Jethro Tull é adentrar um universo fantástico de fantasia e de miríades inter-estéticas. Isso se deve muito em parte pela musicalidade do vocalista e líder da banda Ian Anderson, que é guitarrista e multi-instrumentista, mas ficou conhecido por estar sempre acompanhado da sua onipresente flauta transversal. A banda vai do hard rock ao folk com versatilidade descomunal, enxertando vários arranjos instrumentais criativos e várias sonoridades da música medieval inglesa por entre suas viagens e misturas. E este álbum é um exemplo contumaz dessa miríade. Este álbum é a primeira parte de uma trilogia onde o Jetrhro Tull explora essa diretriz de ressignificar traços folclóricos: a trilogia é formada por este Songs from the Wood (1977) juntamente com Heavy Horses (1978) e Stormwatch (1979). A trilogia explora temáticas da vida rural, história medieval, equinocultura (canções sobre cavalos) e outros adereços ingleses e bretões. Na instrumentação ouvimos amálgamas sonoras das mais criativas combinando a sonoridade de uma banda de prog rock com guitarras (acústicas e elétricas), contrabaixo elétrico e bateria, somada com sintetizadores e instrumentos reverberantes e medievais tais como marimba, glockenspiel, cravo, piano, flauta medieval, bandolim medieval, gaita de foles, alaúde, órgão de tubos portátil, apitos, sinos e percussão medieval (naker e tabor). As canções também misturam estruturas e harmonizações roqueiras com as estruturas e harmonizações medievais pré-barrocas, resultando em linhas melódicas incomuns e amálgamas polifônicas que fogem completamente de qualquer obviedade. Tendo se tornado um álbum significativo da música pop inglesa, este clássico não dominou o topo das paradas de sucesso, mas adentrou o imaginário inglês e tornou a canção "Ring Out, Solstice Bells", por exemplo, um hit popular incorporado ao repertório de canções natalinas do Reino Unido. Este álbum, assim como a trilogia, é um trabalho fantástico de pesquisa e misturas!


24                               Värttinä - Vihma - (Wicklow Records, 1998)

Gêneros/ Estilos: World Music | Elementos & Influênciasfolk medieval finlandês, jazz, pop  | Avaliação: ★★★★ (Interessantíssimo!)

Värtinnä é um grupo vocal de música folclórica finlandesa, mas não só: em sua música há muito requinte instrumental, com arranjos elaborados em torno da combinação de instrumentos modernos com instrumentos tradicionais nórdicos, frequentemente misturando música folclórica com rock, jazz e música pop. Banda que começou como um projeto das irmãs Sari e Mari Kaasinen em 1983, na vila de Rääkkylä, na Carélia, região sudeste da Finlândia, o grupo ganhou notoriedade nos anos 90 após passar por diversas formações —— com entradas e saídas de vocalistas femininas, instrumentistas diversos e até um coral de crianças... —— e, nos anos 2000, chegou a trabalhar com o célebre compositor indiano A.S. Rahman na adaptação da trilogia de O Senhor dos Anéis (de J. R. R. Tolkien) para o teatro. Com forte personalidade étnica, linguística e cultural em torno do dialeto careliano e de canções dos povos fino-úgricos, o Värtinnä também se difere pelo fato de muitas das suas canções serem compostas pelas irmãs Sari e Mari Kaasinen e pelas tradicionais vocalistas mulheres da Carélia, muitas delas contratadas para colaborar com a banda. Contudo, no final dos anos 90, a partir deste álbum Vihma (Wicklow, 1998), o grupo passou a se diversificar ainda mais com muitas das composições sendo escritas pelos instrumentistas masculinos da banda, que trouxeram para os arranjos diversas influências internacionais, o que conferiu combinações instrumentais mais variadas, com efeitos eletrônicos, elementos do jazz e mudanças rítmicas mais diversas e complexas.


25                               Paul Simon - The Rhythm of the Saints - (Warner Bros., 1990)

Gêneros/ Estilos: Pop, World Fusion | Elementos & Influênciasfolclore brasileiro, world , soft-rock  | Avaliação: ★★★★ (Interessante!)

Responsável por misturar elementos do folk-country com elementos de um certo soft-rock (um rock mais suave misturado com baladas pop), Paul Simon é um dos cantores populares mais amados por músicos de jazz, isso porque suas bandas, desde os álbuns dos anos de 1970, sempre tiveram inúmeros músicos de jazz e da música instrumental brasileira, e algumas das suas canções também se tornaram standards modernos dentro do repertório jazzístico das últimas décadas. Então eu poderia indicar aqui uma meia dúzia de álbuns de Paul Simon com boas instrumentações, mas não há espaço. Em termos de gravações mais progressivas, eu indico quatro álbuns: Graceland (1986), álbum onde explora elementos da música sul-africana; o álbum The Rhythm of the Saints (1990), onde ele se inspira em adereços ritmos e folclóricos da música brasileira; o álbum experimental Stranger to Stranger (2016), onde ele usa explora eletrônica e usa os instrumentos microtonais criados pelo compositor avant-garde Harry Partch; e o álbum In the Blue Light (Legay, 2018), onde ele explora arranjos instrumentais mais orgânicos com colaborações de Wynton Marsalis e músicos da big band Jazz at Lincoln Center, do conjunto de câmera yMusic, do guitarrista Bill Frisell e do guitarrista e compositor erudito Bryce Dessner. Deixarei aqui dispostas resenhas de apenas dois desses álbuns, deixando ao ouvinte a tarefa de ir atrás dos outros álbuns. Este álbum acima, The Rhythm of the Saints (1990) faz parte de uma sequências de álbuns onde Paul Simon centra-se em elementos de world music que ele coletou em viagens e pesquisas de campo por outros países. The Rhythm of the Saints (1990) traz, então, incomuns canções com elementos afros e indígenas do Brasil, com abordagens percussivas e instrumentações bem recheadas. Participam do disco diversos músicos célebres de jazz e de rock tais como o baterista Steve Gadd, o saxofonista Michael Brecker, o trompetista Randy Brecker, o baterista Ringo Star (ex-Beatle), o guitarrista JJ Cale, e diversos grupos e grandes instrumentistas brasileiros tais como o violinista Raphael Rabello, o Grupo Uakti, o percussionista Naná Vasconcelos, o grupo de tambores Olodum e o vocalista Milton Nascimento, que tem uma das suas canções incluídas no repertório do álbum. Este álbum atingiu considerável sucesso comercial e ganhou duas premiações no Grammy de 1992.


26                               Paul Simon - In the Blue Light - (Legacy, 2018)

Gêneros/ Estilos: Soft-Rock, Baladas | Elementos & Influênciasjazz, country, folk, pop, chamber music  | Avaliação: ★★★★ (Finesse!)

Este é o álbum mais "jazzístico" de Paul Simon. Neste álbum ele reúne algumas das suas preferidas canções autorais gravadas em seus álbuns anteriores dos anos 70, 80, 90 e 2000, canções menos conhecidas do seu catálogo, para submetê-las a novos arranjos instrumentais, alterando os arranjos originais, as estruturas harmônicas e até as letras dessas canções. Para tanto, ele recebe a colaboração de Wynton Marsalis e músicos da sua big band Jazz at Lincoln Center Orchestra, do conjunto de câmera de música contemporânea yMusic, do guitarrista e compositor Bryce Dessner, e de diversos outros músicos tais como o guitarrista Bill Frisell, o baterista Jack DeJohnette, o saxofonista Joe Lovano, o baterista Nate Smith, o contrabaixista John Patitucci, os violonista brasileiros Odair Assad e Sérgio Assad, dentre outros. As roupagens que Paul Simon e seus colaboradores dão para essas canções transitam, então, entre o jazz acústico, o arranjo camerístico, o folk e o seu distinto soft-rock, com algumas dessas canções atingindo a condição de belas baladas de frescor contemporâneo. Paul Simon consegue, enfim, conferir lirismo e finesse para alguns desses seus originais sem soar pedante, passando longe do pop cafona e das manjadas baladas românticas. Um álbum de fino trato e frescor contemporâneo!


27                               Jeff Harrington - Quiet Corner - (Programme Records, 1975)

Gêneros/ Estilos: Soft-Rock, Pop | Elementos & Influênciasjazz, soul, folk, pop, Minneapolis Scene  | Avaliação: ★★★★ (Album cult!)

Este ultra-raro registro foi lançado pelo desconhecido cantor Jeff Harrington, artista que teve modesta repercussão na cena musical de Minnesota, Minneapolis, nos anos 70. Talvez por não ter tido condições de lançar tiragens em grande quantidade em gravadoras maiores, as suas duas únicas gravações conhecidas ficaram totalmente obscuras. Não há muitas informações sobre a biografia e a obra de Jeff Harrington na internet, mas quatro décadas depois os dois únicos LP's do cantor se tornaram objetos de desejo para colecionadores, e os poucos exemplares existentes estão sendo vendidos nos sites de vendas de vinis (como o E-Bay e Discogs, por exemplo) a preços que, em média, podem chegar a 1.500 dólares. As canções de Jeff Harrington são belas, peculiares e apresentam um requinte acima da média para os padrões manjados da música pop: elas apresentam um mix interessante de elementos de pop, rock, folk, soul e jazz. Os dois únicos álbuns Jeff Harrington que circulam entre os colecionadores são o Quiet Cornor (Programme Records, 1975) e o homônimo "Jeff Harrington" (Centerpiece Records, 1977), sendo esse primeiro o meu preferido. 


28                               Matthew Larkin Cassell - Pieces - (Independent, 1977)

Gêneros/ Estilos: Soul, Pop | Elementos & Influênciasjazz, pop, funk, R&B, California Scene  | Avaliação: ★★★★ (Album cult!)

Um caso semelhante de artista clandestino/marginalizado é o de Matthew Larkin Cassell, que atuou na década de 70 e 80 na Califórnia e em turnês pela Europa, mas não alcançou a fama e se tornou totalmente obscuro nas décadas posteriores. Seus três únicos compactos originais já chegaram a superar a marca de exorbitantes 2.000 dólares nos sites de leilão e vendas de LP's. Graças ao compartilhamento de discos raros na internet, nos anos 2000 sua música passou a despertar o interesse de muitos colecionadores, especialistas em rare grooves, pesquisadores e até músicos e grupos de hip hop tais como Madlib, M. F. Doom e People Under The Stairs, que passaram a samplear trechos das suas músicas. O estilo único de Matthew Larkin Cassell foi descrito como uma fusão distinta de funk, R&B, jazz e pop. Seus discos são raros porque as gravações dos seus originais em vinil foram prensadas de forma independente em poucas tiragens: os vinis originais que circulam por aí em mãos cativas são o Pieces de 1977, o EP Matt The Cat lançado em 1978 e um compacto sem título lançado em 1980. Com o interesse de colecionadores e pesquisadores curiosos por sua música, Matthew Larkin Cassell foi convidado a dar entrevistas, lançou coletâneas das suas canções e viu sua carreira ser retomada, tendo assinado contrato com a gravadora Stones Throw e voltando a se apresentar na cena musical do Norte da Califórnia, onde reside. Muito bom!!


29                                   Al Green - Let's Stay Together - (Hi Records, 1972)

Gêneros/ Estilos: Soul | Elementos & Influênciasjazz, blues, R&B, funk, gospel  | Avaliação: ★★★★ (Memorável!)

Em 1972 a canção "Let's Stay Together" alcançou o topo das paradas e se tornou um hit de grande sucesso, e nunca mais essa canção se desgrudou da figura de Al Green, um dos soul singers —— dos maiores de todos os tempos —— que mais conseguiram se manter em alta durante toda a carreira, colecionando hits que não se desgrudaram das rádios. Ou seja, depois "Let's Stay Together", suas canções não mais atingiram o número um das paradas, mas muitas delas sempre estiveram entre as mais tocadas, permanentemente. Este álbum, então, puxado pela faixa título "Let's Stay Together", é o registro que marca o início dessa permanente consolidação de Al Green. As melodias evocam o soul e o gospel mais genuíno e a instrumentação é organicamente jazzística: guitarras elétricas semiacústicas, contrabaixo, órgão, piano acústico, bateria, alguns metais (saxes, trompete e trombone) preenchendo as respostas, e aqueles vocais ao estilo do-woop no background. Natural do Arkansas e depois radicado em Michigan, Al Green moldou seu estilo cantando gospel na igreja, adquirindo um estilo vocal original cheio de sussurros e falsetes agudos, uma assinatura que o tornou reconhecidamente um dos cantores mais originais da história da soul music. Nesse disco acima, esse seu singular estilo vocal lhe permitirá, por exemplo, que ele também dê uma bela versão para a canção "How Can You Mend a Broken Heart", dos Bee Gees. Mesmo com sucesso mundial e carreira muito movimentada, Al Green nunca se dissociou do estilo de vida na igreja, posteriormente deixando os palcos, gravando álbuns de gospel e se dedicando à carreira de pastor, ganhando a alcunha de Reverendo Al Green. Clássico eterno!


30                               Kool & The Gang - Wild and Peaceful - (De-Lite, 1973)

Gêneros/ Estilos: Jazz-Funk, Proto-Rap | Elementos & Influênciasjazz, funk, R&B, soul, proto-boogie  | Avaliação: ★★★★ (Primordial!)

Entre os anos de 1977 e 1978, o jovem DJ Grandmaster Flash —— na época se apresentando com o Grandmaster Flash & the 3 MCs, um dos primeiros grupos de hip hop que se tem notícia ——, cunhou o termo "get down" como uma das primeiras gírias, uma das primeiras terminologias do rap, isso quando o termo hip hop ainda nem tinha sido inventado —— há até uma ótima série na Netflix chamada The Get Down, que conta, em forma de ficção, esse início do hip hop quando os primeiros embalos do gênero ainda eram chamados de "get down" pelos garotos do periférico bairro do Bronx, NYC. Acontece que esse termo já aparece uns anos antes na faixa "Jungle Boogie" deste icônico álbum Wild and Peaceful (1973) lançado pelo Kool & The Gang. O "get down" foi um movimento que girou em torno de estilos de funk já proto-rap, com novas batidas estilizadas (break beats) em contrapontos com "sponken words" ritmados, ou rhythm poetry, o rap em seu início. E este clássico acima é um dos primeiros álbuns a mostrar essas conexões, ainda com elementos de jazz, gospel e soul. É preciso frisar, aliás, que o Kool & The Gang era uma autêntica banda de jazz que foi incorporando estilos mais juvenis de funk beats e embalos rítmicos, incluindo já amostras onde os primordiais break beats e beatbox tinham tanta prioridade quanto as letras cantadas ou faladas: uma característica que já é, na verdade, uma gênese do hip hop. Considerado o primeiro grande sucesso comercial do Kool & The Gang, este álbum é, então, inovador por mostrar essas conexões e estabelecer esse tipo de funk mais estiloso e juvenil, um estilo jazzístico já proto-rap que embalou muitos encontros e bailes da juventude negra nos anos de 1970. Não à toa, posteriormente inúmeras músicas deste e doutros álbuns do Kool & The Gang foram sampleadas por DJ's e grupos de hip hop. O mais interessante, aliás, é que o grupo consegue estabelecer essas inovações com uma banda de jazz majoritariamente acústica, nos mostrando que, na verdade, o jazz sempre esteve na gênese formadora do hip hop —— e da pop music, como um todo...; o jazz foi uma gênese para tudo o que veio depois! Posteriormente o Kool & The Gang lançaria outros álbuns inovadores amalgamando tudo o que se tinha à época: jazz, gospel, R&B, discoteca (a disco music dos anos 70), electro, boogie, pop e afins. Mas este álbum é uma referência, um ponto primordial!


31                               Gil Scott-Heron - Pieces of a Man - (Flying Dutchman, 1971)

Gêneros/ Estilos: Soul, Jazz-Funk, Proto-Rap | Elementosjazz, funk, soul, música de protesto | Avaliação: ★★★ (Conscientizador!)

Como mencionado acima, o jazz foi primordial na gênese formadora do rap, gênero posteriormente condensado no que viria a ser chamado de cultura hip hop a partir do uso de toca-discos e instrumentos eletrônicos. O fato é que os grupos e músicos precursores do rap do final dos anos 60 e início dos anos 70, tais como o californiano The Watts Prophets, o nova-iorquino The Last Poets e o pianista e cantor Gil-Scott Heron nasceram dessa amálgama jazzy-soul-funky. Gil-Scott Heron, aliás era muito ancorado, mesmo (!), nas bases mais primordiais jazz e no blues, além de ser um fanático confesso por James Brown. Pianista de ofício em seu início de carreira, Gil-Scott Heron foi um dos moradores do Bronx, o berço da cultura hip hop, e foi um dos caras a revolucionar o procedimento do spoken word (palavra falada) rumo ao rhythm'n'poetry (rap), um estilo de rimas mais contemporâneo e urbano. E este álbum acima, primeiro álbum de estúdio de Scott-Heron, evidencia essa inovação já na primeira faixa "The Revolution Will Not Be Televised", um single cult que é considerado basilar para o Hip Hop. Nessa faixa, através da poesia de protesto com um fundo ritmado por batidas de funk e arranjos de jazz, Gil Scott-Heron expressou toda sua força conscientizadora abordando questões relacionadas a drogas, aos Direitos Civis dos negros, enaltecendo a cultura afro-americana, criticando o consumismo, o corporativismo, os vícios impostos pelos meios de comunicação e muitos outros problemas sociais. Este álbum também marca o início da frutífera parceria de Gil Scott-Heron com o tecladista Brian Jackson, pioneiro no uso do Rhodes e de outros pianos elétricos que deram uma sonoridade um tanto urbana e contemporânea à sua banda. É sobre as bases dessa sonoridade urbana de frescor contemporâneo, que Gil Scott-Heron também lançaria ótimas canções soul, canções que ainda hoje influenciam grandes figuras do neo-soul e do hip hop. E este álbum Pieces of a Man, lançado pela interessantíssima gravadora Flying Dutchman, de Bob Tiele, é um clássico nesse sentido: é um registro que traz toda essa força conscientizadora do rap "The Revolution Will Not Be Televised" seguida de belas canções num estilo de soul mais urbano, com toda a ambiência de uma ótima banda de jazz. Aqui mesmo no blog já indicamos um disco dos mais cults de Scott-Heron, lançado pela precursora gravadora independente Strata-East. Gil-Scott Heron seguiria gravando uma série de influentes discos pelo selo Arista, tendo participações de vários grandes músicos do jazz. Neste disco acima, cheio de referências jazzísticas, participam Brian Jackson (piano), o contrabaixista Ron Carter, o flautista Hubert Laws, o baterista Bernard Pretty Purdie (um dos precursores do acid jazz), entre outros. Nome seminal da música americana, Gil-Scott Heron faleceu em 27 de Maio de 2011, deixando um importante legado que por muito tempo será influente e examinado. Gosto muito da canção "Lady Day and John Coltrane", dedicada Billie Holiday e Trane.


32                               Roy Ayers & Ubiquity - Everybody Loves the Sunshine - (Polydor, 1976)

Gêneros/ Estilos: Jazz-Funk, Soul | Elementos & Influênciasjazz, funk, R&B, (acid jazz, neo soul) | Avaliação: ★★★★ (Sedutor, Influente!)

Outro clássico que inovou o soul e o jazz-funk setentista com uma sonoridade mais contemporânea foi esse disco acima. Isso porque o vibrafonista Roy Ayers e sua estilosa banda Ubiquity fazem um uso muito sedutor dos backing vocals e dos novos synths da ARP, incluindo o então recém fabricado sintetizador ARP String Ensemble. Um dos segredos deste ótimo registro consistiu em sustentar uma ambiência relaxante no background dos grooves, usando um inebriante tom harmônico em modulação "String". Esse "sustain", que muitos chamam de equivocadamente de "drone music" (pois o "drone" advém essencialmente da música minimalista de estética "ambient"), é usado em várias faixas e dita muito da ambiência desse disco. Essa ambiência, combinada com os vocais, o ARP, o Rhodes e o vibrafone de Ayers, cria todo um clima "good vibes" de relaxamento que até hoje influencia músicos do neo-soul, do hip hop alternativo, do acid jazz e adjacências. Diferente dos álbuns de canções lançado por cantores, como vimos acima nos clássicos lançados por Stevie Wonder e Al Green, a maioria dos discos de soul e jazz-funk produzidos por instrumentistas de jazz dos anos 70 —— falo de Donald Byrd, Ramsey Lewis, Lonnie Liston Smith e outros —— economizam no canto e usam os backing vocals num estilo repaginado de do-woop (coro de três ou quatro backing vocals) que atua sempre em perguntas e respostas reagindo às melodias e aos grooves. Até tem algumas faixas com melodias que até se assemelham ao padrão "canção", com a diferença de que a maioria dessas "canções" é constituída de apenas três ou quatro frases que se repetem no canto e nesse estilo de perguntas e respostas em meio aos grooves. Esse estilo é muito característico desse soul e jazz-funk setentista onde esses instrumentistas valorizavam bastante os arranjos, os efeitos e as sonoridades, sem deixar os vocais dominarem todo o espaço. A lenta faixa título "Everybody Loves the Sunshine" é um exemplo desse tipo de melodia soul com o ARP String sustentando um só tom no background, uma melodia que se eternizou e se tornou muito tocada e influente, sendo sampleada, relida e remixada por diversos músicos de jazz, neo-soul e hip hop —— lembremos que até Seu Jorge fez uma releitura dessa melodia no seu álbum Seu Jorge & Almaz (EMI, 2010), que abordaremos a seguir.


33                               Roy Ayers - Africa, Center of the World - (Polydor, 1981)

Gêneros: Jazz-Funk, Soul | Elementos & Influências: afrobeat, R&B, funk, reggae, african sounds | Avaliação: ★★★¹/2 (Encontro de raízes!)

Um álbum que celebra a Africa e convoca-nos a clamar por paz, liberdade e humanidade. "This album is dedicated to Fela Anikulapo-Kuti & Bob Marley who inspired my musical thoughts and brought me to a new reality". Essa é a mensagem que Roy Ayers deixa nas liner notes do encarte do LP. Em 1979, embarcando em uma turnê de três semanas na Nigéria, Roy Ayers —— na época imerso em uma fase de grande sucesso com suas produções já se soando numa estética disco music —— tem um encontro improvável com o saxofonista Fela Kuti, de quem já era um fã confesso. Ayers, então, não perde tempo e decide marcar algum projeto junto com seu ídolo. Ayers e sua banda Ubiquity fixaram residência próximo ao Phonodisk Studios, localizado na cidade de Ijebu Igbo, para se encontrar com Fela Kuti e sua banda Afrika 70, e juntos gravaram Music Of Many Colors, um álbum de afrobeat composto por duas composições, duas faixas longas uma para cada lado do disco, como era o costume nos álbuns de Fela. Voltando da Nigéria, Roy Ayers grava este álbum acima, "Africa, Center of the World", em homenagem à Fela e Bob Marley, mostrando o quão impactado ficara com o encontro com o ídolo nigeriano. Evidenciando uma instrumentação mais orgânica que seus álbuns de disco music, Roy Ayers explora, além do seu vibrafone, mais duas marimbas (marimba normal e marimba baixo) para criar uma sonoridade africanista, além de solicitar que seus colaboradores explorassem gaita de vidro, sinos, shekere, palmas, além de também solicitar que algumas partes fossem narradas e vocalizadas, incluindo a participação das cantoras nigerianas Jojo Lole Dawodu e Omo Yeni Anikulapo-Kuti, da familia Ransome-Kuti. Um álbum de soul e jazz-funk com uma pitada de afrobeat e cânticos afros. O percussionista brasileiro Dom Um Romão é um dos sidemans.


34                               Blondie - Autoamerican - (Chrysalis, 1980)

Gêneros/ Estilos: Pop New Wave | Elementos & Influênciaspop, punk, disco, jazz, pastiches, ska, hip hop | Avaliação: ★★★★¹/2 (Épico!)

A Blondie —— ou o grupo Blondie...eu gosto de chamar a banda Blondie —— é uma das bandas mais importantes da música pop americana. Tendo explorado e amalgamado vários estilos, a Blondie foi uma banda basilar para a transição do punk rock para o pop new wave, sendo impossível falar da formação estética da pop music sem mencioná-la. E estes álbum acima é um dos registros mais emblemáticos lançado pela Blondie! O álbum emplacou dois singles que explodiram nas paradas dos EUA, Inglaterra, Austrália e doutros países: "The Tide Is High" (uma releitura em ska-reggae do tema lançado pelo grupo jamaicano The Paragons nos anos 60) e "Rapture", que se tornou o primeiro rap a alcançar o top 1 na parada de singles dos EUA, também alcançando as primeiras posições em várias paradas de sucesso na Inglaterra e Austrália. Aliás, com "Rapture" a Blondie praticamente ajudou a popularizar o hip hop em seu início, tanto pelo single como pelo videoclipe que também foi sucesso absoluto na MTV, também sendo o primeiro videoclipe de hip hop da história: no documentário Hip Hop Evolution, da Netflix, há uma passagem que revela o interesse de Debbie Harry e Chris Stein em conhecer o novo fenômeno do hip hop, evidenciando com clareza a aproximação da Blondie com figuras como Fab 5 Freddy e o DJ Grandmaster Flash, um dos primeiros responsáveis por fundar e popularizar as bases do hip hop ainda no bairro do Bronx. O videoclipe de "Rapture" lançado pela MTV traz uma cena num set com Debbie Harry cantando e dançando na rua, passando por um grafiteiro, pela figura do Tio Sam, por um indígena americano, uma criança dançarina de balé e uma cabra, tendo participações especiais de Fab 5 Freddye e dos grafiteiros Lee Quiñones e Jean-Michel Basquiat, o misterioso grafiteiro de rua que começava a alçar seu nome na alta cultura da pintura. Mas o sucesso destes singles e do referido clipe não são mais relevantes do que todo o conjunto e o propósito deste álbum, que centra-se mesmo num irônico ecletismo voltado a explorar pastiches e elementos culturais que formam o imaginário coletivo da sociedade americana. Para esse disco, a Blondie teve, então, a ideia de misturar, intercalar e amalgamar elementos do emergente rap/ hip hop, pop new wave, punk rock, discoteca (disco music), eletrônica, arranjo sinfônico, latin music e reggae numa levada de ska (aludindo à forte presença das culturas latinas e jamaicanas em New York) e pastiches tais como o tema "Follow Me" do musical Camelot (1958) da Broadway, o jazz ao estilo dos crooners dos anos de 1930 e 1940 e o tema do filme noir American Gigolo (1980). O resultado é um dos álbuns mais conceituais da pop music americana, a começar pela peça "Europa" que abre o disco, uma composição de Chris Stein —— aficcionado por trilhas e musicais ——  que parece se inspirar em trilhas sonoras de filme noir e hibridifica traços sinfônicos com uma guitarra reverberante ao estilo surf music. Além da banda pop somada aos backing vocals, os instrumentais e arranjos contam com orquestrações de Jimmie Haskell e colaborações de grandes músicos de jazz como o contrabaixista Ray Brown ( ex-Modern Jazz Quartet, Oscar Peterson e etc), o saxofonista/clarinetista Tom Scott e o percussionista Alex Acuña. Um album épico!


35                               Dire Straits - Brothers in Arms - (Vertigo, 1985)

Gêneros/ Estilos: Pop-Rock, Folk-Rock | Elementos & Influênciasjazz, country, folk, pop new wave | Avaliação: ★★★★ (Nostálgico!)

Este é um daqueles álbuns clichês que emplacou algumas das mais nostálgicas canções do pop-rock a tocar nas rádios dos anos 80 e 90. Quem nasceu nos anos 70, 80 e até  90, provavelmente se lembra de ouvir tocar —— num daqueles aparelhos de som micro system (Gradiente/ Sharp/ Sony) do seu pai, seu tio ou seu vizinho... —— canções como "So Far Away", "Walk of Life" e "Brothers in Arms". Para este disco ser perfeito, só faltou estar inclusa a canção "Sultans of Swing", single super popular que levou o álbum homônimo do Dire Straits ao sucesso em 1978. A verdade é que o Dire Straits emplacou vários singles e hits de sucesso que se tornaram nostálgicos e inesquecíveis, o que faz de Mark Knopfler, vocalista e principal compositor da banda, um hitmaker por excelência, sem esquecer dos seus riffs e solos de guitarra sempre muito marcantes. Este disco acima, propriamente, é memorável por vários motivos. Foi o primeiro álbum da história a vender mais de um milhão de cópias no recém surgido formato CD na segunda metade dos anos 80. Ganhou um Grammy em 1986 na categoria "Best Engineered Album, Non-Classical" por ter sido o primeiro álbum a ser produzido no sistema digital de engenharia de som. Foi um álbum que já vendeu mais de 30 milhões de cópias, o que o coloca como um dos álbuns mais vendidos da história da música. E emplacou suas canções nas rádios durante décadas, sendo até hoje ocasionalmente tocadas. Com uma empolgante mistura de jazz-fusion (um tanto "smooth"), country-folk, soft-rock e uma pitada de pop new wave oitentista, os arranjos e instrumentações trazem colaboradores tais como Sting (vocal e composição na canção "Money for Nothing") e músicos de jazz tais como o saxofonista Michael Brecker, o trompetista Randy Brecker, o baterista Omar Hakim, o vibrafonista Mike Mainieri, dentre outros. Estilisticamente diversificado, indo do pop-rock mais embalado até baladas meio "smooth jazz", todas as canções do discos são ótimas! O riff de synth/teclado que se repete na canção "Walk of Life" é um dos mais mentalmente pegajosos da história da canção popular!


36                               Sting - ...Nothing Like the Sun - (A&M Records, 1987)

Gêneros/ Estilos: Pop New Wave | Elementos & Influênciasjazz, world, soft-rock, reggae, crossover  | Avaliação: ★★★★ (Hibrido!)

Apesar de eu não não ser fã da sonoridade crossover desse tipo de pop new wave, temos de convir que Sting tem uma musicalidade diferenciada. Iniciando sua carreira solo em 1985 com uma banda de apoio formada com músicos de jazz como Branford Marsalis (saxofones), Kenny Kirkland (teclados), Darryl Jones (contrabaixos) e Omar Hakim (bateria), o contrabaixista e vocalista Sting, membro da banda de pop new wave The Police, continua sua trajetória rumo ao sucesso constante. Sting já era mundialmente aclamado com o The Police. Mas agora, na carreira solo, ele começaria a lançar álbuns que conquistariam ainda mais a crítica com um estilo híbrido calcado em misturas com os mais variados elementos advindos dos mais variados estilos de música. Seus discos dessa fase centram-se preponderantemente na sonoridade do pop new wave, mas trazem elementos de jazz, reggae, pop dance, soft-rock, world music, e vários outros. Os álbuns The Dream of the Blue Turtles (A&M, 1985) e Bring on the Night (A&M, 1986) foram registros não apenas aclamados nos termos da estética do pop oitentista como também foram muito elogiados pelos arranjos e pelos solos instrumentais. O álbum The Dream of the Blue Turtles (A&M, 1985), aliás, chegou até a ser indicado ao Grammy na categoria Best Jazz Instrumental Performance, algo incomum para um registro de pop music. Mas é neste álbum acima que Sting sedimenta suas misturas através de uma diretriz mais conceitual. O álbum ...Nothing Like the Sun, lançado em 1987, foi dedicado à sua mãe, que falecera recentemente, e traz várias referências temáticas: o título do álbum advém do Soneto 130 de William Shakespeare; a canção "The Secret Marriage" é uma adaptação do tema do compositor alemão Hanns Eisler; e a canção "Englishman in New York" foi uma homenagem ao contador de histórias Quentin Crisp. Em termos musicais, apesar do caráter mais comedido, Sting consegue atingir neste álbum um hibridismo mais conciso, maduro e homogêneo. Além da natural presença do saxofonista Branford Marsalis e do tecladista Kenny Kirkland (recém demitidos da banda de Wynton Marsalis), Sting conta com participações de outros grandes músicos de jazz e de rock e de outros gêneros tais como o arranjador Gil Evans (atuando na orquestração da faixa "Little Wing", de autoria de Jimi Hendrix), os guitarristas e vocalistas Mark Knopfler e Eric Clapton, o baterista Manu Katché, o percussionista Mino Cinelu e o vocalista panamenho Rubén Blades. Foi um álbum destacado no Grammy, e emplacou alguns singles na lista das canções mais tocadas nas rádios em finais dos anos 80.


37                               Nick Drake - Pink Moon - (Island Records, 1972)

Gêneros/ Estilos: Folk-Pop | Elementos & Influências: rock, pop, folk, baladas, autobiografia  | Avaliação: ★★★¹/2 (Existencial!)

Nós, amantes de jazz, conhecemos Nick Drake principalmente pelo fato de o pianista Brad Mehldau ter incluído algumas das suas canções dentro do seu cativo repertório pianístico. Mas por aí afora, este cantor é amplamente cultuado entre os amantes de folk, Bob Dylan e adjacências. Considerado um compositor de canções existenciais e profundas, Nick Drake tem neste álbum, o seu magnum opus. Talvez esse disco tenha conquistado o caráter de álbum cult por toda a áurea existencial que rolou em torno da sua gestação numa época em que Nick Drake passava por uma crise aguda de depressão e consequente reclusão, tendo cancelado diversos shows e compromissos na época por não conseguir cumpri-los. Conta-se que nessa época, Nick Drake tinha na música seu único sentido para viver e preferia, aliás, viver sozinho: ele e suas canções, apenas. Foi assim que numa noite de outubro de 1971, à meia-noite, ele e o engenheiro de som John Wood entram no estúdio Sound Techniques, em Londres, e gravam as duas despretensiosas sessões que comporia este disco. Diferente dos álbuns anteriores onde Nick Drake está acompanhado com bandas, este é um disco que mostra o requinte das suas canções apenas com voz e guitarra acústica, no bom e velho estilo folk, tendo apenas uma faixa com o uso do piano acústico. A capa, uma pintura surrealista do artista plástico Michael Trevithick, corrobora com as letras existenciais e autobiográficas de Drake e contribui para o culto em torno do álbum. Sendo, na verdade, um fracasso de vendas, com o passar do tempo o público e as várias revisões de críticos foram reavaliando o álbum até classificá-lo como um registro emblemático do folk contemporâneo.


38                               Flávio Venturini - Nascente - (EMI Records, 1981)

Gêneros/ Estilos: MPB, Pop | Elementos & Influênciaspop, soft-rock, Clube da Esquina, crossover  | Avaliação: ★★★★ (Memorável!)

O cantor, compositor e tecladista Flavio Venturini é dono de algumas das melodias mais marcantes do Clube da Esquina. É também uma figura importante na concepção do pop e do rock brasileiro, sendo figura central em bandas seminais como O Terço e 14 Bis. Em termos de carreira solo, Venturini tem uma inconfundível assinatura sonora mais pop, com um uso mais intensivo e extensivo dos novos teclados e sintetizadores que marcaram os anos 80 e 90, uma sonoridade que pode não agradar os ouvintes com orelhas mais azeitadas em instrumentações acústicas e mais orgânicas, mas que geralmente agrada o ouvinte adepto a escutas mais progressivas e ecléticas. O fato é que realmente as gravações de Flávio Venturini marcaram uma geração e protagonizaram uma extensão mais pop da estética homogeneizada pelo Clube da Esquina, com desdobramentos estéticos que desaguarão no pop-rock brasileiro com expressiva influência. Este álbum acima é o debute da sua carreira solo e traz uma organicidade um tanto sedutora. Trata-se de um disco de canções que traz uma recheada orquestração com piano acústico, flauta, clarinete, oboé e primorosos arranjos de cordas amalgamados com uma banda com teclados, guitarras, contrabaixo e bateria —— os arranjos de cordas, aliás, sempre foi um recurso recorrente nos álbuns e shows do tecladista. Além disso, como noutros álbuns —— mesmo nos álbuns das bandas O Terço e 14 Bis ——, Venturini intercala suas belas canções cantadas com outras canções e suítes em versões instrumentais. Neste álbum, além de canções cantadas como "Nascente" e "Espanhola", as quais são inesquecíveis emblemas da sua carreira, Venturini também presenteia o ouvinte com faixas instrumentais como "Jardim das Delícias" e "Fantasia Barroca". Destaque também para os solos do violinista GianCarlo Pareschi.


39                               Sweet Smoke - Darkness to Light - (EMI Electrola/Harvest, 1974)

Gêneros/ Estilos: Rock Progressivo | Elementos & Influências: spiritual jazz, krautrock, hindustani music | Avaliação: ★★★★ (Álbum Cult!)

Sweet Smoke foi uma daquelas bandas que tiveram uma repercussão repentina que não durou muito tempo, mas que se tornou cult, inesquecível. A banda foi formada no Brooklyn, Nova York, em 1968, mas mudou-se para a Europa em 1969. Adeptos da religião hindu Ananda Marga, seus membros formaram, então, uma comuna aberta na cidade de Emmerich, na Renânia do Norte-Vestfália, região de Düsseldorf. Por lá, entraram em contato com a emergente estética do krautrock, estética experimental alemã que influenciou sobremaneira as bandas de rock e de música eletrônica no início dos anos de 1970. Dessa forma, o Sweet Smoke amalgamou uma miríade de elementos estéticos em seu estilo: o spiritual jazz de John Coltrane, a música hindustani, o rock progressivo, o krautrock alemão, dentre outras influências. Questionados sobre quais eram as suas maiores influências, os membros do Sweet Smoke sempre respondiam que eles se inspiravam em Eric Clapton, Jimi Hendrix, Frank Zappa, John Coltrane e nos Beatles. Tendo lançado apenas tiragens limitadas de dois álbuns de estúdio e um álbum ao vivo antes de se separarem em 1974, as gravações do Sweet Smoke são recheadas de instrumentações jazzísticas misturadas com sonoridades das ragas hindustanis e certa psicodelia roqueira com enxertos de sons pré gravados. O primeiro álbum, inclusive, é singular: é constituído de apenas duas faixas extensas que amalgamam arranjos instrumentais com vocais cantados. Já no segundo álbum, que é este indicado acima, o Sweet Smoke centra-se mais em canções mesmo, dessa vez com um uso mais expressivo dos violões acústicos se revezando com as guitarras elétricas, mas sempre canções bem recheadas de harmonias elaboradas e arranjos instrumentais primorosos com solos de piano, violino, violoncelo, flauta e saxofones. A banda era formada por um power trio psicodélico de guitarra, contrabaixo e bateria mais outros quatro integrantes que ficavam a cargo do piano, do violino, do violoncelo e dos saxes e flautas, além de se revezarem com cítaras, percussões hindus e o uso de efeitos e sons pré gravados em fita magnética. Uma daquelas banda cult cujos álbuns são raros e muito almejados pelos colecionadores!


40                               Quincy Jones - Body Heat - (A&M Records, 1974)

Gêneros/ Estilos: R&B, Soul (Pop) | Elementos & Influênciasjazz, blues, gospel, soul, funk | Avaliação: ★★★★ (Equilíbrio Surpreendente!)

Para além de trompetista de jazz, para além de um dos maiores líderes de big band da sua geração, para além de um requisitado compositor de trilhas sonoras, para além de um dos maiores produtores da história do mercado fonográfico —— tendo levado Michael Jackson a ser o maior artista pop de todos os tempos ——, Quincy Jones também lançou uma série de álbuns de canções requintados que tiveram considerável sucesso comercial. Talvez o mais comercial deles —— e um dos mais inovadores —— tenha sido o álbum The Dude (1981), que emplacou seus singles no top 10 em vários países de língua inglesa, foi indicado para doze prêmios (incluindo Álbum do Ano) e ganhou três deles na 24º edição do Grammy Awards, em 1982. Mas este álbum acima, Body Heat (1974), é daquelas gravações de prenúncio que já fazem uma ponte entre a base de alicerces gospel-blues-jazz-soul-funky e a latência de uma nova pop music que já se esticava dentro da bolsa amniótica para nascer —— uma pop music que já vinha germinando com Stevie Wonder e Michael Jackson. Pode-se considerar que Body Heat (1974) foi o álbum que, definitivamente, impulsionou a carreira de Quincy Jones dentro do território do mainstream mais pop. Adotando um equilíbrio surpreendente, aqui neste álbum Quincy Jones ainda está com um pé nas tradições, mas já está com o outro pé no futuro! A set list mescla canções cantadas com versões instrumentais, os arranjos são belos e equilibrados, as instrumentações trazem uma sonoridade orgânica e azeitada, os backing vocals trazem ótimos spirituals e ótimas ambiências e os usos dos sintetizadores e teclas são inovadores. Só para se ter uma ideia, entre os arranjos figuram grandes músicos advindos do bebop e do jazz-funk tais como: Wah Watson (guitarra), Grady Tate e Bernard Purdie (bateria), Hubert Laws (flauta), Frank Rosolino (trombone), Chuck Findley (trompete), Jerome Richardson e Pete Christlieb (saxofones), além da participação do legendário Billy Preston (órgão) e da convocação de alguns dos principais inovadores dos sintetizadores e outras teclas (piano, Rhodes, Clavinet e etc) tais como Dave Grusin, Herbie Hancock e Bob James, entre outros. Nos vocais figuram o próprio Quincy Jones, o legendário Al Jarreau e outras ótimas vozes compondo o coro no background. Na produção e na batuta, curiosamente, quem comanda os músicos e as gravações é o contrabaixista Ray Brown —— sim, para além do contrabaixista de bebop que conhecemos com o pianista Oscar Peterson e o Modern Jazz Quartet, ele também foi produtor na seara mais mainstream e acompanhou diversos grandes artistas do R&B. Os singles deste álbum alcançaram boas posições no ranking de jazz e R&B, e o álbum ficou em sexto lugar do ranking chart geral das paradas dos EUA em 1974. O repertório vai de canções inéditas de Quincy até standards como "Along Came Betty", de Benny Golson.


41                               Rufus Wainwright - Want One & Want Two - (DreamWorks/ Geffen, 2003-2005)

Gênero: Pop-Ópera | Elementos & Influênciaspop, folk, rock, ópera, teatro, arranjos sinfônicos | Avaliação: ★★★★¹/2 (Incomparável!)

O canadense Rufus Wainwright é um cantor super singular que hibridifica elementos advindos de ópera, cabaré, musicais, teatro, Tin Pan Alley e música sinfônica com elementos advindos do pop e do rock. Dessa forma, Wainwright criou um estilo único e uma amálgama incomparável. Tendo um singular timbre vocal ambientado próximo à tessitura de um tenor, suas canções geralmente são marcadas por um melodismo mui particular envolto de harmonias singulares e arranjos e orquestrações mui elaboradas, geralmente orquestrações pensadas para se criar camadas e texturas híbridas dentro de uma abordagem estilística que os críticos costumam rotular como uma espécie de "pop-ópera", ou "pop sinfônico", ou "pop barroco". E de fato a influência do range "clássico", que vai da música erudita medieval e barroca até a ópera e a música erudita romântica e pré-moderna, é muito saliente nos primeiros álbuns do cantor, nos evidenciando amostragens de cordas sinfônicas, oboé, trompas e outros horns (trombones, tuba, flugelhorn e etc) e instrumentos e recursos complementares como banjo, mandolim barroco, flautas barrocas, concertina, corais medievais e por aí vai. Mas acima lhes trago um álbum que já traz esse estilo próprio de Rufus Wainwright já diluído em temáticas mais contemporâneas através de belas canções autorais, considerando que algumas dessas canções tornaram-se singles muito tocados nas paradas de sucesso do Canadá e dos EUA. Para quem é familiarizado com o repertório da música clássica, será relativamente fácil perceber algumas das referências hibridificadas. A singular canção "Oh What A World", que abre o álbum, faz uma curiosa interpolação com o afamado trecho do Bolero de Maurice Ravel. Já a canção "I Don't Know What It Is" traz uma citação hibridificada da ária clássica "Les nuits d'été" Opus 7, de Hector Berlioz. Da mesma forma, o arranjo de flauta na canção "Vicious World" é uma referência à ópera "Die Meistersinger von Nürnberg", de Richard Wagner. E assim Rufus Wainwright segue hibridificando elementos dessas duas dimensões equidistantes do universo da música: do pop e do clássico. Não obstante, este ciclo de canções autorais compila inúmeros adereços e referências que vão de locais e fatos até divagações subjetivas, indo de inspirações em musicais como O Mágico de Oz até temáticas medievais e mitológicas, passando por estórias marcadas por anjos, vampiros, estrelas e planetas e indo até referências contemporâneas envolvendo temática gays —— Wainwright é gay e um diletante defensor dessa causa —— e figuras pop como Elvis Presley, Britney Spears, John Lennon, Leonard Cohen e Natasha Lyonne, atriz americana que se tornou polêmica por revelar sua luta contra a dependência de drogas. Compilando outros dois álbuns lançados anteriormente, Want One e Want Two, este álbum duplo é constituído praticamente de um musical sinfônico-pop que levará o ouvinte a viajar numa amálgama incomparável de alegorias, temáticas e adereços díspares.


42                               Arthur Verocai - Arthur Verocai - (Continental Records, 1972)

Gênero: MPB | Elementos & Influências: bossa nova, Clube da Esquina, Tropicália, samba, soul, jazz, funk | Avaliação: ★★★★¹/2 (Cult!)

O atualmente venerado produtor e compositor brasileiro Arthur Verocai reativou sua carreira como cantor e adquiriu boa parte do seu reconhecimento como um gênio musical ante ao novo público do século 21 por intermédio desta pedrada setentista acima. Este compacto homônimo não vendeu quase nada em seu ano de lançamento, forçando Verocai a concentrar sua carreira somente no ofício da  produção musical. Ele já vinha produzindo grandes artistas como Elis Regina, Jorge Ben Jor, Ivan Lins e Gal Costa: daí, então, para focar neste ofício e migrar para uma carreira internacional na intenção de produzir outros grandes artistas...bem...deve ter sido uma decisão difícil, mas foi a decisão mais prática que lhe aprouve após a referida decepção. Conta-se que na, ocasião da produção deste álbum, Verocai vinha ouvindo muito soul, jazz e funk, mais propriamente artistas como Frank Zappa, Miles Davis, Stan Kenton e Wes Montgomery, o que o influenciou nos arranjos das suas canções, que trazem uma miríade de influências, incluindo elementos da bossa nova, tropicália e Clube da Esquina. O resultado foi um álbum muito bem amalgamado e muito bem arranjado, com um conjunto de pérolas que mesclam-se entre canções memoráveis e instrumentais bem orquestrados com pitadas de ambiências soul e levadas funky. Nos anos 2000, com a massificação da internet, o disco caiu no radar dos DJ's e dos colecionadores de rare grooves, tornando-se um LP muito procurado: em plataformas como eBay e Discogs, uma cópia original deste compacto já chegou a ultrapassar a marca de 2.500 dólares! O uso de samples das canções do disco por DJs e grupos de hip hop tais como Madlib, MF DOOM e Little Brother o tornaram ainda mais procurado e cultuado entre os garimpeiros e colecionadores. De fato, é um grande álbum! Com ótimos arranjos e instrumentações, o time de músicos que colaboram e participam da produção deste registro é fantástico: conta com instrumentistas como Paulinho Tapajós (compositor), Robertinho Silva (bateria, percussão), Pascoal Meirelles (bateria), Oberdan Magalhães (flauta, saxofone), Paulo Moura (saxes alto e soprano), Nivaldo Ornelas (sax tenor), Hélio Delmiro (guitarra), Serginho Trombone (trombone), Paulinho Trompete (trompete, voz) e vocalistas como Célia, Carlos Dafé, Gilda Horta e Toninho Horta, dentre outros. Álbum raro e cult!


43                               Yes - Fragile - (Atlantic Recordings, 1971)

Gêneros/ Estilos: Prog Rock | Elementos & Influênciasrock, eletrônica, classical, folk, flamenco | Avaliação: ★★★ (Muito Criativo!)

Um álbum inovador! Este talvez seja o álbum mais composicional do Yes, banda imprescindível do rock progressivo. Trata-se de um registro que marca a chegada do tecladista Rick Wakeman em substituição a Tony Kaye. Conta-se que Tony Kaye não queria expandir as abordagens das teclas para incluir novos sintetizadores, então a banda teve de chamar Rick Wakeman. O resultado foi uma expansão não apenas do uso de novos synths e teclas eletrônicas nas instrumentações da banda, mas também uma expansão no raio de temáticas e influências e uma expansão da diretriz composicional de Jon Anderson. Além do piano acústico, dos pianos elétricos e do órgão Hammond, os quais o Yes já vinha explorando desde fins dos anos 60, Rick Wakeman chega para incluir ao naipe das teclas instrumentos como o synth portátil da Moog, o Melotron da Bradmatic e o RMI 368 Electra, esse último um synth que também emulava eletronicamente o som de um cravo. Dessa forma temos aqui um disco que é tridimensionalmente hiper criativo: nas sonoridades, nas formas e estruturas e na versatilidade rítmica. A primeira faixa é uma canção que soa mais como uma peça com abertura, tema e desenvolvimento, e traz uma combinação matadora de guitarras acústicas, contrabaixo elétrico bem funkeado, guitarra psicodélica, um fritante órgão Hammond e vocais em duas vozes. Segue-se a segunda faixa "Cans and Brahms", uma adaptação de um trecho do terceiro movimento da Sinfonia nº 4 em Mi menor de Johannes Brahms, com o piano elétrico usado no lugar da seção de cordas, piano acústico no lugar dos instrumentos de sopro, órgão Hammond fazendo os metais, o cravo emulado pelo RMI Electra no lugar das palhetas e o Minimoog fazendo o contrafagote. A terceira faixa "We Have Heaven" é um interessante experimento com vozes em loops sobrepostos e sons pré gravados em fita magnética —— lembra os experimentos com fases, loops e camadas minimalistas repetitivas que Steve Reich vinha realizando com fitas magnéticas uns anos antes. A partir da quarta faixa a banda volta-se para as canções, mas novamente as canções soam envoltas de elaborados efeitos eletrônicos, às vezes começam com aberturas experimentais, passam por ritmos em métricas alienígenas, por vezes recebem desenvolvimentos inusuais e elaboradas intervenções... e finalizam em formas um tanto inesperadas! Ou seja: trata-se de um álbum onde as faixas não foram compostas para serem ouvidas como meros riffs, ou como canções e temas palatáveis (no esquema tema-refrão-solo-tema ou algo do tipo), mas foram compostas para serem encaradas como criativas peças estruturadas em formas e sequências inusuais! Ainda assim, singles como "Roundabout", "Long Distance Runaround" e "Heart of the Sunrise" se tornaram emblemáticos ante ao público. Seguindo a mesma diretriz, as sonoridades e as combinações dos timbres também foram pensados para soarem com um "quê" a mais do que se espera em termos das sonoridades psicodélicas de uma banda de rock progressivo: além das teclas eletrônicas e dos novos sintetizadores usados pelo tecladista Rick Wakeman, o virtuoso guitarrista Steve Howe usa distorções e delays com fita Echoplex e também usa uma combinação de guitarras flamencas no meio do molho. Já as letras das "canções" refletem questões que envolvem religião, crítica à Guerra do Vietnã, o fatídico tiroteio ocorrido em 4 de maio de 1970 na Kent State University, Ohio, entre outras questões e temáticas. Na versão remasterizada lançada em CD em 2003 foram incluídas mais duas faixas: uma versão da canção "America", de Paul Simon, e a mix inicial de "Roundabout". Muito criativo!


44                               Jimmy Cliff - House of Exile/ Music Maker - (EMI/ Parlophone Records, 1974)

Gêneros/ Estilos: Reggae, Soul | Elementos & Influências: rock, soul, funk, ska, rocksteady | Avaliação: ★★★★ (Encontro de Raizes!)

Sendo um melodista talentoso, Jimmy Cliff é, talvez, o cantor de raggae que mais produziu hits mundialmente reconhecidos, não esquecendo que muitas outras canções do folk, rock e pop dos EUA e Inglaterra se tornaram ainda mais célebres a partir dos seus covers. Se Bob Marley popularizou o reggae a nível mundial —— parte pela música, parte pelas engajadas letras humanistas do rastafari ——, podemos dizer que Jimmy Cliff levou o raggae para novas fusões, novos territórios e estilos. E este álbum é um dos primeiros documentos sonoros a representar essa diretriz. Este álbum marca uma fase em que Jimmy Cliff está rodando o mundo e está profudamente influenciado pelas tendências do rock, soul e funk, sendo portando um registro com faixas captadas em Nova Iorque, Jamaica e Londres. Para além da influência do rock, do soul e do funk, este álbum também marca a inserção de sintetizadores nas abordagens de Jimmy Cliff, mais propriamente o sintetizador Moog, já evidenciando uma roupagem mais moderna em relação às sonoridades mais regionais da Jamaica. Jimmy Cliff varia, então, entre levadas de ska, rocksteady e reaggae e evocações soul com modernidade e grande fervorosidade musical. A instrumentação é formada por uma banda de raggae convencional com guitarras rítmicas, contrabaixo elétrico e bateria, mais sopros (trompete, saxofone, flauta e etc), backing vocals aos estilos do doo-woop americano e do singjaying jamaicano, e mais o naipe de teclas com piano, órgão e sintetizador Moog. Embora as canções deste álbum não sejam das mais célebres dentro do repertório de Jimmy Cliff —— ao menos a nível mundial, algumas delas podendo ser mais populares na Jamaica ——, este ótimo álbum tem sido seguidamente reeditado por gravadoras como Parlophone Records, EMI (Warner) e Reprise Record e pode ser encontrado em duas edições com títulos diferentes: "Music Maker" (com esta bela senhorita na capa) e "House of Exile" (um estiloso LP com Jimmy Cliff de óculos escuros). É um dos discos a trazer uma versão mais moderna do reggae e suas adjascências marcadas por ska e rocksteady. As letras das canções de Jimmy Cliff são praticamente um protesto humanista!


45                               Van Halen - MCMLXXXIV - (Warner Bros., 1984)

Gêneros/ Estilos: Hard Rock | Elementos & Influênciassynth-pop, pop, heavy metal, glam rock  | Avaliação: ★★★★★ (Épico e inovador!)

Álbum inovador e um dos títulos de hard rock mais vendidos! Com este álbum os irmãos Van Halen levaram a banda para um patamar de criatividade elevadíssimo. Isso porque, além da guitarra matadora de Eddie Van Halen, a banda inaugura o uso dos novos sintetizadores da Oberheim, mais especificamente os polifônicos Oberheim OB-Xa e Oberheim OB-8. O caráter épico dos riffs, dos solos, da sonoridade fritante da guitarra ultra-eletrificada e as melodias marcantes somados à sonoridade inovadora desses sintetizadores polifônicos fazem deste registro uma das gemas mais inovadoras do hard rock, um registro que se repercutiu para muito além dos limites estéticos desse subgênero! Na Wikipédia está relatado que na época os críticos tentaram descrever esta obra-prima com vários rótulos: glam-pop, metal rock, synth rock, heavy metal e etc. O fato de Eddie Van Halen ter usado esses sintetizadores e ter colaborado, um pouco antes, no épico álbum Thriller de Michael Jackson, ficando a cargo da marcante guitarra ouvida na faixa "Beat It", também contribuiu para que a crítica ficasse tentando associar a nova sonoridade da banda com o synth-pop e com a eminente tendência do pop dance que explodia na época. Este álbum, inclusive, emplacou alguns singles entre os mais tocados nos rankings charts de 1984, sendo que a faixa "Jump", por exemplo, só não conseguiu superar mesmo o hit Thriller, de Michael, que já estava há algum tempo liderando as paradas e ficou mais de 37 semanas no top 1. Para quem é fã de rock e da banda, sugiro que acompanhe uma série de cinco partes a ser lançada no YouTube pelo documentarista Alan Berry —— que em 2022 lançou o documentário "Steve Vai: His First 30 Years" ——, série a qual retratará a construção do 5150 Studios, local onde o Van Halen gestou este álbum, bem como as turnês e os shows desse momento de glória que a banda viveu entre os anos de 1983 e 1984, entre outros fatos e destaques da época que envolveram a banda e este álbum inovador. Este álbum não chega a ser uma gravação conceitual no sentido mais profundo do termo, mas o caráter irônico e um tanto distópico-futurista das temáticas, com a arte da capa marcada por um bebê-anjo segurando um maço de cigarros e pela grafia em álgarismos romanos (MCMLXXXIV) evocando o título relacionado ao ano de 1984, é um fator que colabora para torná-lo permanentemente épico.


46                                O Terço - Criaturas da Noite - (EMI/ Underground Records, 1975)

Gêneros: MPB, Prog Rock | Elementos & InfluênciasClube da Esquina, violas caipiras, rock, Tropicália | Avaliação: ★★★★★ (Obra-prima!)

Este compacto é uma obra-prima do rock progressivo brasileiro! A banda O Terço foi formada em 1968 por Jorge Amiden (guitarra), Sérgio Hinds (baixo) e Vinícius Cantuária (bateria) e passou pela mesma transição protagonizada pela bandas de rock do cenário internacional (Beatles, Yes, Pink Floyd, entre outras): surgiu no rock clássico, passou pelas sonoridades psicodélicas e desembarcou no rock progressivo. Entre os anos de 1973 e 1974 a banda passa por uma reformulação com a saída de Vinícius Cantuária (que estava indo tocar com Caetano Veloso) e com a entrada de Sérgio Magrão (baixo) e de Flávio Venturini (piano e teclados). A entrada de Venturini foi uma indicação de Milton Nascimento a pedido Sérgio Hinds e traria um toque a mais de contemporaneidade ao já ultra-moderno rock progressivo que Amiden e Hinds já vinham explorando. Estava concluída, então, a formação que gravaria este clássico maior do rock brasileiro. Com uma capa conceitual elaborada por Antônio e André Peticov, uma imagem tridimensional que eles chamaram de "A Compreensão", este disco nos revela uma amálgama muito bem azeitada em ao menos quatro pilares principais: rock progressivo já imerso numa eletrônica elaborada (ao estilo das criações de bandas como Yes e Pink Floyd ), tons de Clube da Esquina, resquícios da Tropicália e uma certa diretriz mais "folk" que a banda desenvolveria ainda mais no próximo disco (Casa Encantada). Ainda assim, nenhum desses pilares de influência se sobressai tanto na relação de uns com os outros na sequência das faixas ou dentro das composições, de forma que o disco, num todo, soa mesmo muito bem amalgamado. O compacto começa com a canção "Hey Amigo", de Cezar de Mercês, que se tornou o afamado hit que impulsionou o disco. A seguir, a sequência das faixas traz uma viagem fantástica cheia de paisagens diferentes. Segue-se a canção "Queimada", de Flávio Venturini e Cézar de Mercês, que inaugura a nova diretriz "folk" e "rural" que a banda exploraria ainda mais nos próximos álbuns: nesta faixa, a sonoridade das violas caipiras —— a exemplo de como o paraibano Zé Ramalho também estava explorando na época —— é um elemento basilar e dá até um certo toque sertanista amalgamado por entre tons mineiros a La Clube da Esquina, uma amálgama que Venturini e César de Mercês repetirão na entusiasmante canção "Jogo das Pedras", que soa numa levada mais "pop" e ritmada. A faixa-título, "Criaturas da Noite" (de Flávio Venturini e Luiz Carlos Sá), conta com os arranjos orquestrais do maestro Rogério Duprat, que aqui deixa seus resquícios tropicalistas soarem bem mínimos para dar uma tratativa mais "sinfônica" à essa canção. Por fim, o disco traz duas engenhosas peças instrumentais: "Ponto Final", composta pelo baterista Luiz Moreno (que toca piano na introdução) e a suíte cheia de paisagens sonoras "1974", composta por Flávio Venturini. Esse é mais um dos criativos álbuns de rock progressivo que não pode ser visto e ouvido como meramente um álbun de canções. Este álbum deve ser visto e ouvido como um híbrido entre canção e instrumental, um híbrido repleto de imagetismos e paisagens musicais.


47                               Gilberto Gil - Gilberto Gil - (Philips, 1968)

Gêneros/ Estilos: MPB, Tropicália | Elementos & Influênciasrock psicodélico,  popular brazilian folk | Avaliação: ★★★★★ (Primordial!)

Este álbum é a chama primordial do Tropicalismo, movimento estético que revolucionou a canção brasileira! Foi Gilberto Gil quem, em 1967, acendeu a fagulha desse movimento de inovação quando, ao ter visitado o Nordeste do Brasil e ver e ouvir por lá a Banda de Pífanos de Caruaru, teve a ideia de unir as sonoridades e os traços dessa brasilidade primal com traços das então sonoridades contemporâneas do rock psicodélico que os Beatles já evidenciava em seus álbuns Revolver (1966) e Sgt. Pepper (1967). Em seguida, a brasa criativa do movimento foi rapidamente acendida e potencializada com novas ideias advindas dos cérebros geniais de Caetano Veloso, dos Mutantes, do poeta Torquato Neto e de Tom Zé, entre outros cancionistas, poetas e artistas que fomentaram as inovações e os experimentos em torno do movimento: a partir daí foi-se resgatando o conceito brasileiro de antropofagia que se misturou com traços da então psicodelia que inebriava os ouvidos e mentes da revolucionária juventude de 1968, repaginação essa que também abraçou traços de pop art, concretismo, dadaísmo, teatro do absurdo, música dodecafônica e outros conceitos de avant-garde para cimentar, enfim, a mistura que deu liga ao Movimento Tropicalista. Mas, definitivamente, foi Gilberto Gil a acender essa fagulha. E este álbum é o documento vivo disso. Este álbum homônimo é o primeiro registro a formalizar a estética da Tropicália: antes disso, temos apenas as primeiras fagulhas mesmo, que foram as primeiras canções cantadas por Gil e Caetano na 3ª edição do Festival de Música Popular Brasileira, realizado pela Rede Record em outubro de 1967. Acontece, pois, que já nos meses iniciais de 1968, Gilberto Gil e o poeta Torquato Neto já compunham as primeiras canções desse disco, canções as quais logo ganhariam toda a ossatura dos arranjos geniais do maestro Rogério Duprat. Em maio de 1968, então, Gil já lançava este seu magnum opus que logo instigaria o lançamento de mais dois outros discos-manifestos: Tropicalia ou Panis et Circencis (lançado em julho de 1968) e A Banda Tropicalista do Duprat (lançado em agosto de 1968), esse último de caráter instrumental. Logicamente que, a partir daí, os membros do movimento foram, um a um, lançando seus próprios álbuns e projetos, todos imbuídos dessa nova estética. Mas esses três discos —— Gilberto Gil (maio, 1968), Tropicalia ou Panis et Circencis (julho, 1968) e o instrumental A Banda Tropicalista do Duprat (agosto, 1968) —— formam uma espécie de trilogia-manifesto que cimentou a estética tropicalista em 1968. E dentre esses dois outros álbuns subsequentes da referida trilogia, este primeiro álbum homônimo de 1968 é o que mais mantém o equilíbrio entre a forma-canção e os arranjos e arroubos experimentais de Duprat, tendo evidenciado algumas das canções de Gil que mais seriam amplamente resgatadas e interpretadas por outros artistas.


48                               Gilberto Gil - Refavela - (Warner Music, 1977)

Gêneros/ Estilos: MPB | Elementos & Influênciasblack rio, afrobeat, juju, reggae, funk, afoxé  | Avaliação: ★★★★¹/2 (Diaspórico!)

Gilberto Gil foi o músico que misturou os estilos e rítmos brasileiros com outros rítmos e estilos de música internacionais, sendo um dos pioneiros em nos mostrar misturas com, por exemplo, o raggae e a discoteca americana. E isso fica evidente já na chamada "Trilogia RE", uma trinca de discos lançados por Gil nos anos de 1970. Os outros dois álbuns que compõem essa trilogia são: Refazenda, de 1975, que mistura uma releitura de ritmos e adereços do sertão nordestino com adereços e temáticas ambientalistas e de culto à natureza pleiteadas pelo movimento psicodélico hippie; e Realce (1979), onde Gil faz uma fusão dos adereços brasileiros com o pop e a discoteca americana do final dos anos 70, já imbuído pelas influências de Quincy Jones, Michael Jackson, Earth, Wind and Fire, e etc. Já este Refavela, por sua vez, é um projeto que tomará como inspiração o efervescente cenário do Rio de Janeiro, que na época estava imerso num movimento chamado "Black Rio", um movimento germinativo do samba-soul e do brazilian funk protagonizado pela febre dos chamados "bailes charme" e "bailes da pesada" —— promovidos tanto em espaços das favelas como em casas de shows do centro do Rio de Janeiro ——, também protagonizado pelo sucesso da seminal Banda Black Rio, entre outras bandas que fundiam soul-funk-R&B com música brasileira no cenário carioca. Em 1977, Gilberto Gil também participa do 2º Festival Mundial de Arte e Cultura Negra (FESTAC 77) em Lagos, Nigéria, onde se reúne com muitos artistas e figuras seminais da diáspora negra, sendo influenciado, então, a criar um álbum que fizesse uma ponte entre a negritude brasileira e outras manifestações musicais da diáspora negra ao redor do mundo. Neste álbum, então, Gilberto Gil aproveita para fazer misturas e releituras com elementos advindos do movimento Black Rio do Rio de Janeiro, do afoxé e doutros ritmos da Bahia advindos da matriz afro dos blocos carnavalescos Ilê Aiyê e Filhos de Gandhy, e de rítmos internacionais como o reggae, popularizado pelos jamaicanos Bob Marley e Jimmy Cliff (com quem Gil também se encontraria em 1980), e como o juju e o afrobeat, popularizados pelo saxofonista e ativista nigeriano Fela Kuti. Interessante notar, então, que o álbum Refavela traz algumas canções com inflexões um tanto singulares resultadas dessas misturas de ritmos da diáspora afro, gestando novas acentuações polirítmicas e novos sotaques estéticos. Da referida "Triologia RE", então, acredito que Refavela seja o álbum mais bem elaborado, inclusive por ter uma instrumentação mais rica com arranjos mais quentes e orgânicos. Participam dos arranjos, inclusive, alguns dos maiores instrumentistas brasileiros: Djalma Corrêa (percussão), J. T. Meirelles (flautas), Mauro Senise (saxofones), Márcio Montarroyos (trompete), Jessé Sadoc (trombone), Nivaldo Ornelas (sax tenor), Robertinho Silva (percussão), dentre muitos outros. Disco diaspórico!


49                               Jards Macalé - Jards Macalé - (Philips/ Phonogram, 1972)

Gêneros/ Estilos: MPB, Tropicália | Elementos & Influênciasjazz, funk, rock psicodélico, bossa, samba  | Avaliação: ★★★★¹/2 (Singular!)

Este disco mostra o quão genial foi o irreverente Jards Macalé nos tempos mais ebulitivos da MPB: cancionista experimental —— que, aliás, continua genial, em plena atividade ——, ele sempre foi muito solicitado para musicar versos de poetas revolucionários tais como Capinan, Torquato Neto e Waly Salomão e para dar formas aos arranjos nos bastidores do movimento tropicalista. Esse homônimo Jards Macalé de 1972 é praticamente uma extensão ao álbum Transa, de Caetano Veloso, que convidou Macalé para viajar à Inglaterra para ficar à cargo da direção musical do seu tento. Por lá, Macalé encontra o baterista Tutty Moreno e recebe uma proposta da Philips/Phonogram para gravar seu primeiro long play. Ao voltar da Inglaterra, então, Macalé junta-se ao baterista Tutty Moreno e ao guitarrista Lanny Gordin e forma o trio que gravaria este clássico acima. Trata-se de um disco intrigante porque o trio consegue, mesmo com essa formação enxuta, estabelecer uma sonoridade um tanto singular para as canções. Interessante que Lanny Gordin assume a guitarra e também assume o contrabaixo, atuando em overdub e estabelecendo um bass line cheio de "groovy" que preenche bem o background junto ao baterista Tutty Moreno, enquanto Jards Macalé canta e também assume a guitarra no overdub, de forma que em nenhum momento a banda soa esvaziada. As abordagens das guitarras acústicas, embora esse recurso fosse um contraponto às eletrificações da época, aqui soam quase psicodélicas, reverberando uma certa transição entre os ecos passadistas da bossa nova e os ecos ainda vigentes da tropicália: posteriormente, o próprio Macalé explicaria o disco como um "misto de João Gilberto com Jimi Hendrix", passando por Baden Powell e influências de blues, jazz e o funky da época. Importante frisar, contudo, que esses ecos de influências se reverberam por entre inflexões um tanto singulares, nos chamando atenção para o fato de como Jards Macalé soa único e incomparável. Musicando versos e poemas de Waly Salomão, Capinam e Torquato Neto —— todos poetas revolucionários que formaram a base da experimental oralidade tropicalista ——, Jards Macalé gesta, então, um impactante álbum repleto de canções autorais super singulares, sendo que apenas duas faixas são de releituras de canções de outros autores: "Farrapo Humano" de Luiz Melodia e "A Morte" de Gilberto Gil. Ademais, é sabido que este álbum enfrentou sofrida censura por parte do órgão fiscalizador da Ditatura Militar na época. Muito em parte, a censura foi por causa da letra da canção Revendo Amigos, composta por Waly Salomão: conta-se que, para escrever os versos, que claramente são versos com críticas metafóricas à Ditatura Militar, o poeta sofreu grande influência do fato dele ter sido preso no presídio do Carandiru, em São Paulo, numa ocasião em que ele portava apenas uma banana e umas gramas de maconha no bolso. Ao todo, o material foi reprovado 12 vezes até ser liberado para, de fato, ser lançado em álbum. Este álbum, enfim, acabou por ser um fiasco de vendas em sua época, mas resistiu ao tempo como um dos registros mais cult e emblemáticos da história da MPB. Um álbum com poesia crítica, rítmicas diversas e singularidade avessa nadando contra todas as correntes de uma época adversa. Cult!


50                               Simply Red - Stars (Collector's Edition) - (EastWest Records, 1991/ 2008)

Gêneros/ Estilos: Pop, Blue-Eyed Soul | Elementos & Influênciasjazz, blues, soul, pop new wave  | Avaliação: ★★★★¹/2 (Empolgante!)

Essa é uma daquelas bandas clichês, muito comum nas compilações de "flashback", e este foi um daqueles álbuns que lançaram hits dominantes nas paradas de sucesso dos anos 90 —— e hits que duraram por muitos e muitos anos entre as mais tocadas nas rádios. Particularmente, ainda que essa estética mais pop não seja o ambiente em que eu procure estar —— muito raramente passo por ele, como quem viaja e, de vez em quando, decide fazer uma escala de desembarque antes de retornar para viagens mais exploratórias ——, eu considero este álbum como um dos melhores álbuns de pop music já produzidos. A versão estendida "Collectors Edition" é ainda melhor! O Simply Red é uma banda pop britânica que começou a se despontar na segunda metade dos anos 80 com uma mistura singular de sonoridades new wave, jazz e soul numa diretriz muito marcada pelo uso dos novos teclados e sintetizadores digitais oitentistas, colaborando para a repaginação de um estilo que os críticos rotulam de "blue-eyed soul": e de fato, esse "soul de olhos azuis", esse pop inglês de sonoridade sintética com ecos no soul e no jazz, não deixa de fazer jus ao estilo do Simply Red e à figura do singular vocalista Mick Hucknall e seus traços fisionômicos marcados por seus olhos azuis e sua cabeleira dotada de um marcante ruivo natural. Aliás, o próprio nome da banda faz alusão à marcante cabeleira ruiva do vocalista. Pois é assim que no final dos anos 80 a banda alcança as paradas de sucesso com hits como "It's Only Love" e a romântica pop ballad "If You Don't Know Me by Now", ambos hits do álbum A New Flame (Elektra/ WEA, 1989). Mas é neste álbum acima, Stars (EastWest Records, 1991), que a banda definitivamente explode a nível mundial, se tornando uma das bandas emblemáticas do pop dos anos 90. Este álbum, principalmente sua versão "Collectors Edition", é interessante pelos seguintes motivos: primeiro que as canções são quase todas autorais, fator que realmente é um divisor de águas para a definição do estilo pop da banda; segundo que, para este disco, a banda procurou temperar os eletrônicos com um pouco mais de sonoridades acústicas, recrutando para a empreitada o programador e baterista Gota Yashiki, um músico afeito ao acid jazz que logo se tornou membro fixo da banda; terceiro que, aqui, a banda adota levadas rítmicas mais empolgantes e dançantes, realmente formalizando definitivamente seu estilo de pop dance inglês; e em quarto lugar, destaco o fato de que, mesmo com essa sonoridade pop um tanto sintética, há mostras evidentes do uso de elementos do jazz e o do blues durante o percurso do álbum, inclusive com Mick Hucknall se aventurando em cantar canções do bluesman Robert Johnson, faixas essas que surgem como bonus tracks na versão "Editions Collectors", de 2008. Sugiro, então, que o ouvinte-leitor emirja nessa edição de 2008, que traz essas bonus tracks e outras faixas gravadas ao vivo na turnê que a banda realizou em decorrência ao explosivo sucesso em 1992. Além de Mick Hucknall nos vocais e da presença dos guitarristas, do contrabaixista e dos tecladistas, a banda é formada pelo guitarrista brasileiro Heitor Pereira e pelo saxofonista Ian Kirkham, por vezes o responsável por dar aquele toque mais jazzístico com solos improvisados em meio ao distinto pop "blue-eyed soul" da banda. Ademais, uma última curiosidade é que em 1998, uma pesquisa da revista Melody Maker, realizada junto a estrelas pop, DJs e jornalistas, classificou este álbum como o segundo pior disco já produzido. Paralelamente, em outras listas, ele já surge como algo entre os "100 melhores álbuns britânicos de todos os tempos". Decidam vocês!!


51                               Marisa Monte - Verde, Anil, Amarelo, Cor-de-Rosa e Carvão - (EMI Odeon, 1994)

Gênero: MPB | Elementos & Influênciasjazz, afoxé, rock, pop, samba, choro, ritmos nordestinos  | Avaliação: ★★★★ (Renovador!)

Clássico inconteste, este álbum nos atesta o papel marcante e renovador que Marisa Monte representou para a MPB nos anos 90. Não há o que questionar quanto ao fato de que Marisa Monte e os Tribalistas —— trio criativo que ela logo formaria com Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown —— trouxeram um novo pico de criatividade e renovação para a canção brasileira. Depois de Elis Regina, Marisa Monte representa o mais alto cume criativo e o mais elevado ponto de encontro das miríades estéticas dos nossos rítmos e canções. Particularmente, sem querer cair no simplismo da comparação para influir demérito, considero Marisa Monte mais completa do que Elis Regina e outras gigantes divas antecessoras. Sua noção holística da cultura brasileira alcançou uma amplitude inovadora já neste seu segundo álbum, de forma que ela é tão eclética em termos de pesquisa como também é coesa em termos de estética mpbista, e também considerando que ela é tão original em seu material inédito quanto é proficiente no papel de intérprete. E este disco atesta isso. Com produção de Arto Lindsay, este álbum mistura traços genuínos da MPB de Gilberto Gil com canções inéditas escritas em parcerias com Arnaldo Antunes, Nando Reis e Carlinhos Brown, passando por releituras a pérolas preciosas do samba de partido alto de Paulinho da Viola e do sambalanço de Jorge Ben Jor, e vai até influencias advindas de expoentes internacionais do avant-garde como Lou Reed e Laurie Anderson. O resultado é um álbum inovador que comunga o tradicional e o novo num só corpo, de fato trazendo ares de renovação para a canção brasileira através de misturas, ressignificações e intercalações de MPB e rock sudestino com o afoxé da Bahia, com samba-rock, com o pagode nordestino, com seresta, com samba de partido alto, com o pop, com ecos no jazz e pitadas de choro. Com instrumentação rica, e adotando uma sonoridade mais orgânica sem  uso de sintetizadores e guitarras elétricas, Marisa Monte convoca para as gravações mestres instrumentistas tais como os músicos de choro do Época de Ouro (regional de Paulinho da Viola), o percussionista Marcos Suzano, o contrabaixista Arthur Maia, o contrabaixista americano Greg Cohen (parceiro de John Zorn), os organistas americanos Fred Hammond e Bernie Worrell (ex Parliament-Funkadelic, Talking Heads) e os ritmistas da Velha Guarda da Portela. E ainda tem arranjos de cordas aqui e alí. Nos vocais, há participações especiais com Gilberto Gil, Laurie Anderson, Carlinhos Brown, Nando Reis e Paulinho da Viola. Clássico! Poucos cantores conseguiram forjar uma assinatura de requinte tão único, esteticamente coeso e original amalgamando tantos ingredientes díspares e variados tal como Marisa Monte conseguiu neste álbum!!!


52                               Arnaldo Antunes - Nome - (BMG Brasil, 1993)

Gêneros/ Estilos: MPB, Rock | Elementos & Influências: poesia neoconcreta, avant-garde, art-rock, pop  | Avaliação: ★★★★ (Experimental!)

Este é um dos álbuns mais interessantes de Arnaldo Antunes. É um dos álbuns onde ele inicia sua carreira solo já fazendo uma transição entre o Rock e a MPB, mas principalmente deve ser considerado um álbum onde ele explicita a plasticidade da sua arte poética. É um album conceitual, mas também pode ser divertido para quem curte essa MPB mais experimental e para quem curte poesia contemporânea. Arnaldo Antunes aqui está seguindo as trilhas anteriormente cimentadas por Tom Zé e Arrigo Barnabé, onde a canção sofre mutações metalinguísticas num limiar entre a palavra falada e a palavra cantada, quando não com a palavra deformada e inflexionada em neoconcretismos que exploram questões metafísicas: a existência do ser, a existência dos seres, o sexo, o nome como signo da existência..., sem deixar de passar por subjetividades, lugares e coisas. No final das contas, o que temos aqui não é nem um álbum de canções na forma-canção tal como estamos acostumados, mas um álbum de curtos poemas escritos e cantados sob estruturas variadas, estruturas livres e distribuição irregular das fonéticas na palavras e das palavras nos versos, com arranjos instrumentais esparsos, sobreposições vocais interpoladas, ruidos eletrônicos e efeitos percussivos pontilhistas. Para quem curte poesia contemporânea e já entrou em contato visual com os livros de poemas de Arnaldo Antunes, talvez a música aqui lhe soe mais familiar. Isso porque, Arnaldo Antunes tem um jeito um tanto singular e fluido de interpolar sua poética com música e de explorar as pontes entre o neoconcretismo e os signos e semanticas populares que ele traz da canção, muitas das vezes usando distribuições ilógicas das palavras dentro do texto, mas pontes e distribuições que comungam para que o ouvinte fique curioso quanto ao contexto, a sintaxe, a semântica e a fonética. Os jogos fonéticos de Arnaldo Antunes, aliás, exploram a musicalidade das palavras de uma forma mais roqueira, urbana e contemporânea, diferindo-se dos traços onomatopeicos nordestinos e afros-indígenas explorados, por exemplo, por Tom Zé, Naná Vasconcelos e Marlui Miranda. Mas trata-se, afinal, dessa mesma diretriz brasileira que desenvolveu foco em interpolar música e poesia, sons e fonética. Este disco foi produzido por Rodolfo Stroeter e marca o encontro de Arnaldo Antunes com Arto Lindsay e Marisa Monte, com a qual empreenderia longa parceria. Arnaldo também tem a colaboração de Péricles Cavalcanti e de músicos e artistas como o guitarrista Edgard Scandurra (da banda Ira), o pianista bossanovista João Donato, o baterista Edson X, o guitarrista e vocalista Paulo Tatit, o vocalista Peter Price, o contrabaixista Rodolfo Stroeter, a artita plástica Zaba Moreau e o baterista Zé Eduardo Nazario. Há também um DVD que documenta a performance ao vivo das faixas deste projeto "Nome", onde Arnaldo Antunes trabalha uma performance audiovisual com um conceito chamado de "clipoema", uma união de música, videoclipe e poesia.

53 Lula Côrtes & Zé Ramalho - Paêbirú -  (Rozenblit/ Polysom/ Solar/ Mr Bongo, 1975)
Gêneros/ Estilos: MPB, Udigrudi | Elementos & Influências: baião, cânticos nordestinos, psych rock, free jazz | Avaliação: ★★★★ (Cult!)

Aqui temos um álbum misto de canções e instrumentais que é decorrente do underground movimento psicodélico recifense chamado Udigrudi, do qual já falamos aqui na nossa lista de Álbuns Essenciais da Música Instrumental Brasileira. Conceitualmente com faixas divididas entre seções chamadas de Terra, Ar, Fogo e Água, os quatro elementos da Natureza, este álbum duplo é o segundo projeto de Lula Côrtes e o primeiro da carreira de Zé Ramalho. Aqui eles exploram o rock psicodélico misturado aos rítmos e adereços do agreste nordestino, e apimentam essa farofa lisérgica com free jazz e outros elementos avant-garde. É um álbum, portanto, experimental e conceitual por excelência, com elementos cancionistas imergindo por entre esses experimentais arames venosos durante o percurso do disco. O album duplo foi lançado numa tiragem limitada a poucas cópias pela gravadora da extinta fábrica de discos Rozenblit, então localizada no bairro de Afogados, em Recife. Sendo assim, o colecionador interessado só conseguira adquirir um dos LP's originais, um dos poucos bolachões prensados pela Rozenblit, por módicas quantias de algo em torno de US$ 6.000,00 a US$ 8.000,00, quantias as quais se tornam ainda mais assustadoras quando convertidas para o real (R$), podendo este ser o álbum cult mais valorado da história da música brasileira. Conta-se que quase todas as cópias originais do álbum foram destruídas numa enchente, tornando incrivelmente difícil de encontrar um dos LP's originais em bom estado de conservação. Sobre os conceitos e inspirações que alimentaram a chama criativa de Lula Côrtes e Zé Ramalho, é relatado que eles começaram a gestar a obra sob efeitos de cogumelos alucinógenos quando foram em uma expedição até a Pedra do Ingá, monumento arqueológico do agreste nordestino, no interior da Paraíba, por lá tendo a idéia de explorar temáticas sobre lendas e adereços mitológicos brasileiros  tais como as lendas de Sumé (entidade mitológica em que os indígenas acreditavam antes da colonização) e Iemanjá (entidade cultuada nas religiões de matriz afro-brasileira). O título do álbum faz referência ao Caminho da Montanha do Sol, ou "Caminho do Peabiru" ou "Caminho para o Peru", uma lendária estrada construída pelos indígenas guarani há mais de mil anos, que teria ligado o Oceano Atlântico ao Oceano Pacífico, saindo de Santa Catarina e indo até Machu Picchu, passando pelo Vale do Ivaí. Ademais, da mesma forma que o álbum é rico de temáticas mitológicas ele tambem o é em termos de instrumentação. Na seção da "Terra", os músicos exploram elementos ruidosos e percussivos com um final de violas melódicas. Na seção do "Ar", Lula Côrtes e Zé Ramalho mistura ambiências etéreas com cordas dedilhadas e percutidas de guitarra, viola caipira, harpa, berimbau com flauta, saxofone e vocais. Na seção do "Fogo", temos a psicodelia nordestina mais saliente com a combinação de guitarra elétrica e órgão. Na seção de "Água" temos uma louvação afro-brasileira a Imenjá, violas caipiras imersas em ruídos de águas, e cânticos repentistas sobre sereias do mar. Outros dois músicos e cancionistas que foram convidados a colaborar com o projeto foram Geraldo Azevedo e Alceu Valença. Atualmente encontra-se, mais acessível, cópias lançadas por selos como Polysom, Somar, Somax e Mr Bongo, selo indie que lançou o álbum na Europa. A parte gráfica original do LP foi elaborada por Katia Mesel, então esposa de Lula Côrtes, e o encarte traz imagens dos músicos e da Pedra do Ingá, sendo que hoje a edição de luxo do LP ou CD com toda essa arte gráfica pode ser encontrada em edições com preços mais acessíveis pelos selos mencionados. Eis aí, então, uma das gemas preciosas da psicodelia brasileira nordestina das mais almejadas por colecionadores. A quem se interessar, sugiro ir atrás, no YouTube, para assistir o documentário "Nas Paredes da Pedra Encantada", dirigido pelo cineasta gaúcho Cristiano Bastos, onde são resgatadas histórias sobre a gravação do álbum por meio de entrevistas com artistas envolvidos. Registro superlativo, experimental, cult, soberbo!


54                               Lenine - O Dia em que Faremos Contato - (Sony BMG, 1997)

Gêneros/ Estilos: MPB | Elementos & Influências: rítmos nordestinos, alt-rock, manguebeat, pop, samples  | Avaliação: ★★★★ (Estiloso!)

Aqui vamos novamente de anos 90, época onde a MPB adquiriu uma sonoridade renovadoramente orgânica ao incorporar elementos da eletrônica e do rock alternativo. E Lenine, ao lado de Chico Science e Chico César, foi um dos cancionistas nordestinos que trouxeram um toque mais urbano e contemporâneo para a MPB. Chico Science inaugura o subgênero do manguebeat —— uma revolucionária liga estética com funk, rock, hip hop, afrobeat e rítmos nordestinos ——, Chico César explorará uma veia mais africanista com uma poética cheia de metáforas inovadoras, e Lenine será o tipo de cancionista estiloso, cheio de classe, que congregará e diluirá várias influências, vários causos e adereços, com alguns dos seus temas e canções invadindo os horários nobres da TV parar serem trilhas de novelas da Rede Globo. Particularmente vejo nessa MPB dos anos 90 —— Marisa Monte, Zeca Baleiro, Lenine, Chico César...etc —— um exemplo épico de como foi e continua sendo possível adotar sonoridades, temáticas e misturas inovadoras, urbanas e contemporâneas sem renegar nossa brasilidade, sem renegar nossos adereços mais vernaculares. E este disco de Lenine é soberbo nesse sentido! Ainda marca uma influência muito forte da sua parceria com o grande percussionista Marcos Suzano —— parceria genial que gestou o ótimo álbum anterior, Olho de Peixe (1993) ——, mas já dilui influências do manguebeat e do rock alternativo brasileiro, e acrescenta rítmos ímpares e pitadas estilosas de samples e efeitos eletrônicos ao tacho. Dessa forma diluída, aqui em O Dia em Que Faremos Contato, seu terceiro disco da carreira, Lenine já dá um novo design sonoro para sua amálgama formada a partir do amplo portfólio de rítmos, temáticas e sonoridades advindas dos cenários nordestinos e da sua aberta mente-visão a explorar o mundo, adotando uma roupagem urbana e estilosa. É um disco majoritariamente de canções autorais. Lembremos que a descolada canção "Hoje Eu Quero Sair Só" foi muito tocada na MTV (o clipe) e nas estações de rádio focadas em MPB, e não nos esqueçamos que outros desses temas autorais de Lenine foram trilhas de novelas: a canção "Candeeiro Encantado" foi trilha sonora da novela Cordel Encantado e a canção "Dois Olhos Negros" foi trilha sonora da novela Era Uma Vez..., ambas produções da Rede Globo. Lenine ainda aplica releituras em meio aos seus originais, dando versões descoladas para canções de mestres como Luiz Bandeira, Capiba, Alceu Valença, Chico Science (falecido naquele ano de 1997) e Pedro Osmar. No demais, Lenine acerta muito bem nas escolhas e misturas dos samples, efeitos e arranjos, tendo colaborações de instrumetistas tais como Toninho Ferragutti (acordeon), Marcos Suzano (percussões), Liminha (contrabaixo), Edu Morelenbaum (clarinete), Carlos Malta (saxofones), João Barone (baterista dos Paralamas do Sucesso), Fernando Vidal e Pedro Sá (nas guitarras) e participações especiais da dupla de repentistas Caju & Castanha e do grupo francês Les Fabulous Trobadors, dentre outros.


55                               Alceu Valença - Espelho Cristalino - (Som Livre, 1977)

Gêneros: MPB, Psych-Rock | Elementos & Influências: baião, pife, frevo, violas nordestinas, psicodelia | Avaliação: ★★★★¹/2 (Alto Nivel!)

Compacto espetacular! Um clássico do rock psicodélico nordestino! Alceu Valença tem outros álbuns com canções mais afamadas que se tornaram hits amplamente conhecidos e reconhecidos do público em geral e repetidamente cantados por outros artistas —— canções tais como "Anunciação", "Tropicana", "La belle de jour", "Girassol" e tantas outras ——, mas este álbum é, ao meu ver, onde ele alcança um ponto de fusão criativo para além do alto nível que ele já comumente nos apresenta. Nessa fase setentista Valença está totalmente imerso nas influências psicodélicas que ele já vinha deglutindo no seio do underground Movimento Udigrudi, em Recife —— aliás, este álbum, apesar de ser preponderantemente de canções com muito apelo melódico, não deixa de ser fruto do experimental movimento Udigrudi. Lançado em 1977, neste álbum acima Alceu mistura traços do baião, do pife, das cantigas nordestinas, dos versos dos repentistas e do frevo com a psicodelia setentista, temperando o molho com as belas sonoridades das violas nordestinas. A instrumentação fica por conta de Paulo Rafael (guitarra elétrica, viola nordestina), Ivinho (viola nordestina), Herman Torres (viola nordestina), Dicinho (contrabaixo elétrico), Israel Semente (bateria), Chiquinho (acordeom), Beto Saroldi (flauta, pífanos), Agrício Noya (percussão), Louro (percussão), dentre outros. Três desses músicos faziam parte da emblemática banda de rock psicodélico Ave Sangria: caso do baterista Israel Semente, do guitarrista Paulo Rafael e do guitarrista e violista Ivinho. Sendo quase todas as canções autorais, Alceu Valença mostra aqui suas belas e potentes entonações vocais com as quais ele tanto potencializa a melodiosidade do canto nordestino. Não seria exagero dizer que, entre os cantores nordestinos que conhecemos, a voz repleta de entonações marcantes de Alceu Valença é onde a riqueza melódica nordestina melhor se expressa! Das canções presentes neste álbum, apenas a faixa-título não é de autoria de Alceu Valença: trata-se de uma releitura de uma tradicional cantiga do folclore alagoano, conhecida por ser anteriormente incorporada por Capiba e Ariano Suassuna na canção A Cantiga de Jesuíno, em 1967. Também participa deste disco o grande Zé Ramalho, que co-assina a canção "Dança das Borboletas" e ajuda na concepção sonora quanto ao uso das violas nordestinas.


56                               Chico Science & Nação Zumbi - Da Lama ao Caos - (Chaos Records, 1994)

Gênero/ Estilo: Manguebeat | Elementos & Influênciasalt-rockcoco, maracatu, afrobeat, funk, hip hop | Avaliação: ★★★ (Inovador!)

No início dos anos 90 emerge na movimentada cena de Recife, Pernambuco, Brasil, um movimento musical contemporâneo que misturava funk —— a exemplo de como a cena do Rio de Janeiro ja vinha moldando seu "funk carioca" ——, rock alternativo, hip hop e afrobeat com rítmos nordestinos como o coco, os ritmos de reisados e folguedos e o maracatu, dando início ao movimento Manguebeat. Esse movimento teve como carro-chefe o jovem Chico Science e sua banda Nação Zumbi, que —— antes da morte precoce de Science, em 1997, aos 30 anos —— lançaram dois álbuns os quais são considerados verdadeiros manifestos do movimento, verdadeiras pedras angulares da estética manguebeat. Este álbum acima é considerado, sobretudo, um manifesto não apenas estético, mas político: são basicamente raps e canções com letras revolucionárias em seu teor, indo num sentido de protesto e crítica que faz muito uso das tematicas anticapitalistas, anti sistema e do "banditismo por uma questão de classe", da rebeldia por uma questão de sobrevivência. Particularmente, não é o tipo de oralidade artística que eu defenda: até porque essa justificativa do banditismo como única saída de lutar contra o sistema —— e aqui, por exemplo, eles se inspiram muito na figura do Lampião, repaginando alguns adereços do cangaço —— pode surtir efeito mais como uma apologia ao banditismo e à violência, influenciando negativamente crianças e jovens, do que propriamente significar algum tipo de consciência rumo a algum tipo de avanço social. Mas, as letras são de fato muito inteligentes e são muito bem fundamentadas em emblemas e figuras revolucionárias tais como Emiliano Zapata, Augusto César Sandino, Zumbi dos Palmares, Antonio Conselheiro e o Movimento dos Panteras Negras. Aliás, o Manguebeat, para além de um movimento musical, é também um movimento de contracultura social e ambientalista, então esse tipo de oralidade fundamentada em figuras revolucionárias sempre será o cerne das letras e dos versos: a juventude ligada ao movimento pregavam, então, a valorização das culturas regionais nordestinas como identidade, o desenvolvimento de um senso local de orgulho e identidade nordestina —— que vai muito contra o preconceito histórico que setores fascistas e reacionários tem contra os nordestinos ——, além de pleitear em suas canções de protesto melhores condições de vida para a população do agreste e do sertão nordestino e defenderem a conservação ambiental do manguezal. Da mesma forma, as misturas musicais efetuadas no tacho desse movimento são incrívelmente ricas! A liga formada pelo frescor da psicodelia dos anos 90 com a percussão do manguebeat foi realmente muito inovadora e contemporânea, de forma que logo se tornaria uma grande influência dentro dos meadros da MPB e do rock alternativo brasileiro. A mistura de sonoridades do coco, dos reisados e folguedos, dos carnavalescos blocos de rua, do berimbau e de kits da percussão do maracatu, tais como os tambores alfaias, com beats de uma bateria bem seca muito sustentada na caixa (no snare drum), já conferem uma identidade sonora um tanto marcante ao manguebeat. Quando Science e seus músicos acrescentam nesse salseiro o frescor ultra-psicodélico da guitarra do alt-rock noventista e um marcante bassline de contrabaixo elétrico alimentando grooves semelhantes a uma espécie de afrobeat em meio a batidas de funk e hip hop, e coloca samplers por entre as polirritmias geradas nessas misturas, então daí temos uma liga poderosa e marcante que atestará o manguebeat como uma verdadeira revolução rítmica e inovação estética a influenciar a música brasileira. Ademais, este clássico noventista traz outras sacadas. A capa do disco, por exemplo, explicita toda a contemporaneidade conceitual de Science e do Nação Zumbi ao usar a figura de um caranguejo sujo com a lama do mangue num efeito computadorizado de despixelização, processo de desfoque de imagem usando aumento dos pixels —— isso em 1994! Álbum conceitual, revolucionário e à frente do seu tempo! Album produzido pelo experiente Liminha e com participação destacada do influente engenheiro de som mineiro Chico Neves nos samplers.


57                               Chico César - Cuscuz Clã - (MZA Music, 1996)

Gênero: MPB | Elementos & Influências: sons nordestinos, afrobeat, ska, pop, manguebeat, samples | Avaliação: ★★★★¹/2 (Metafórico!)

Com o paraíbano Chico César os elementos das folias nordestinas, dos reisados e cânticos sertanistas vão diretamente de encontro à inflexão de crítica poética cheia de letras com metáforas inteligentes, sarcásticas e divertidas, assim como os ritmos nordestinos se encontram com o afrobeat e outros ritmos africanos numa direção extensiva que amplia ainda mais as fusões iniciadas por Gilberto Gil. E isso, já dentro de uma roupagem noventista urbana e extensiva. Definitivamente —— tal como Marisa Monte, Lenine, Zeca Baleiro, Chico Science e etc ——, Chico César é um dos cancionistas mais importantes a surgir nos anos 90 entre aqueles que renovaram a MPB com esses traços e objetivos de empreenderem novas misturas e novas ressignificações dentro de uma roupagem urbana, sem renegar a brasilidade rústica do nosso agreste, do nosso sertão, dos ritmos afros-nordestinos e doutros dos nossos ingredientes culturais vernaculares. Inicialmente, Chico César moldou muito dos seus jeitos e trejeitos através sua incursão no grupo Jaguaribe Carne, onde imergiu-se nas inflexões poético-musicais experimentais. Junte-se a isso o fato de nos anos 80 ele ter mudado para São Paulo e ter sido abrigado pela turma do Lira Paulistana, núcleo vanguardista capitaneado por Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé e Tetê Espíndola. Essa propensão em sempre rumar para direções experimentais e inflexivas talvez tenha retardado seu sucesso comercial, mas essa busca comercial alinhada com essa propensão mais experimental foi uma liga que aos poucos moldou seu estilo até alçá-lo ao status de um cancionista e músico com genialidade ímpar um tanto comercialmente reconhecido. Pegue traços, cânticos, folias e reisados nordestinos, misture-os com uma poesia crítica-sarcástica cheias de metáforas experimentais e inteligentes, acrescente uma profusão de ritmos afro-nordestinos e africanos (o carimbó nortista, o afoxé baiano, o afrobeat, o maracatu, o forró, o xote paraibano e etc), coloque umas mínimas pitadas de soul, funk, reggae, manguebeat, samples eletrônicos..., enxerte nessa mistura arranjos de metais meio ao estilo do ska jamaicano... e aí começa a surgir o simbionte sonoro ao qual Chico César dá a luz neste disco! E o título do álbum também tem tudo a ver com as misturas e com a inteligência de Chico César em criar metáforas divertidas: é um trocadilho inteligente que refere-se tanto ao cuscuz, prato tipicamente nordestino (e também muito popular em São Paulo), como também faz uma referência sarcástica à seita racista do Klu Klux Klan. Esse título "Cuscuz Clã", na verdade, era nome que Chico César já tinha dado à banda com a qual vinha se apresentando constantemente em São Paulo. Então, este álbum surge, na verdade, como um registro documental a eternizar essa impressionante assinatura de fusões que ele e essa sua banda vinham gestando. Na época, Chico e sua Banda Cuscuz Clã tinham colaborações fixas e rotativas de músicos tais como Hugo Hori (sax), Simone Julian (sax/flauta), Tiquinho (trombone), Cotarelli (trompete), Swami Júnior (baixo), Webster Santos (guitarra), Mauro Sanches e Simone Soul (bateria/percussão). Já para as gravações do álbum, Chico César também contou com colaborações de renomados instrumentistas tais como o maestro Gil Jardim (arranjos), Oswaldinho Do Acordeom, André Abujamra (percussão), Bakithi Kumalo (contrabaixista sul-africano), Lanny Gordin (guitarra), Mingo Araújo (percussão), Naná Vasconcelos (percussão) e Walmir Gil (trompete), dentre outros. Além desses instrumentistas, vocalistas importantes tais como Alceu Valença, Elba Ramalho, Lenine, Renata Arruda, Tata Fernandes e Totonho, entre outros, também participam das gravações. Em termos de repertório, Chico César junta nesse disco canções que ele já vinha difundindo com grande sucesso, tais como "Mama África" e "À Primeira Vista" —— duas canções que explodiram no seu primeiro álbum Aos Vivos (1995), com "Mama África" sendo sucesso absoluto na MTV —— com canções autorais inéditas que também seriam seminais para sua carreira na época, tais como "Mand'Ela", "Benazir" e "Pedra de Responsa", uma canção em ritmo de lambada que ele gravou com seu amigo Zeca Baleiro. Divertido!


58                               Sebastião Tapajós & Nilson Chaves - Amazônia Brasileira - (Outros Brasis, 1997)

Gênero: MPB | Elementos & Influências: Amazonas, carimbó, boi-bumbá, sons afros-indígenas | Avaliação: ★★★★ (Tesouro Inexplorado!)

E de repente me lembro que este foi um dos álbuns que me fizeram pesquisar mais sobre a cultura musical do Norte do Brasil, onde existe um rico e pouco explorado campo de pérolas e jazidas preciosas em termos de ritmos, melodias, temáticas e adereços do nosso país. Sendo este um álbum de canções com conotações mais folcloristas, temos aqui representações fidedignas dos cânticos e ritmos que perfazem o território nortista: mais especificamente do Estado do Pará, com algumas entonações que também tem certa correlação com os estados do Amazonas e do Amapá, e até Maranhão. Celebrando as poéticas em torno da Amazônia Brasileira, nossa Floresta-Mãe, o cancionista Nilson Chaves se junta ao extraordinário violonista Sebastião Tapajós —— ambos paraenses —— para gestar um dos álbuns mais bonitos já gravados nas intermediações amazonenses. Ritmos e manifestações culturais tais como o carimbó, os folguedos, as cantigas e levadas de boi-bumbá, ritmos afros e indígenas amazonenses, o tambor de crioula, o marabaixo, a guitarrada, o siriá, a cultura marajoara, a seresta, as canções dos pescadores, e etc, aqui são ressignificados através dessas belas canções que recebem arranjos orgânicos, quentes, acústicos e acalentadores através de uma instrumentação formada com guitarras elétricas (de timbres nortistas semiacústicos), violões e kits de percussão constituídos de tambores amazonenses, ganzá, maracás (chocalhos indígenas), entre outros instrumentos. Não seria apelativo dizer que, aqui, a bela voz de Nilson Chaves nos soa como os sons das águas de rios amazonenses resvelando-se e deslizando-se por entre os galhos, pedras, tocos e vegetações representados pelos violões, ritmos e timbres percussivos! Registro de uma grande parceria! Nilson Chaves, certa feita, afirmaria que a influência do violão de Sebastião Tapajós —— um dos grandes nomes da música instrumental brasileira —— foi muito importante na sua formação musical.


59                               Patricia Bastos - Zulusa - (Tratore, 2013)

Gênero: MPB | Elementos & Influências: Amazonas, Amapá, marabaixo, fado, cumbia, cacicó, zouk | Avaliação: ★★★★¹/2 (Preciosidade!)

Falando em ritmos amazonenses e nortistas do nosso Brasil, não há como deixar de fora esse grande álbum lançado pela cantora amapaense Patricia Bastos em 2013. Aqui a cantora explora um território regional-folclorista que segue em direção a uma verve mais contemporânea para ressignificar ritmos e adereços musicais do Amapá e suas adjacências com os estados do Amazonas e do Pará e com as águas musicais afros-caribenhas que desaguam neste mais afastado limite da geografia brasileira. Patricia Bastos explica que esse título, "Zulusa", tem a ver com a junção dos "zulus" (negros trazidos de Angola, Senegal, Moçambique e etc) mais os lusitanos (os portugueses), junção que foi somada ao índio para se tornar a origem ancestral do Norte do Brasil e a essência do povo do Amapá. Dessa forma, Patricia Bastos aqui cria canções com pitadas mínimas de eletrônica e arranjos contemporâneos para inflexionar e ressignificar ritmos e manifestações tais como o batuque amapaense, o marabaixo, o cacicó, o zouk, a guitarrada, a embolada nortista, as cantigas ribeirinhas, englobando também resquícios de cúmbia, fado e ritmos crioulos e latino-caribenhos indiretamente presentes na música amapaense. Para conferir tons mais contemporâneos aos arranjos e canções, Patricia Bastos fez questão de efetuar um intercâmbio entre artistas do norte e do sudeste do Brasil, contando com encomendas feitas a grandes músicos e cancionistas tais como Alan Carvalho, Ronaldo Silva, Joãozinho Gomes, Dante Ozzetti, Luiz Tatit, Vítor Ramil, Guinga e Paulo César Pinheiro. O projeto também contou com a direção musical de Dante Ozzeti e com a participação dos grandes músicos paraenses do Trio Manari, os quais exploraram vários instrumentos de percussão típicos da região amazônica, como os tambores curimbó, o tambor d´água, além do saba, dos tambores de marabaixo, entre outros. Considero este álbum, enfim, como um dos grandes projetos da Música Popular Brasileira da década de 2010. Além de ter tido ótima repercussão nos circuitos artísticos e culturais do Norte do Brasil, esse disco conquistou duas premiações no 25º Prêmio da Música Brasileira de 2014: uma na categoria de "Melhor Álbum Regional" e outra na categoria de "Melhor Cantora Regional". Também foi um álbum que definitivamente deu maior projeção ao nome e à música de Patricia Bastos. Superlativo!


60                               João Bosco (& Aldir Blanc) - Galos de Briga - (RCA Victor, 1976)

Gênero: MPB | Elementos & Influências: samba, bossa, bolero, tropicalia, balada, latin music | Avaliação: ★★★★ (Irônico e Diversificado!)

Quando falamos de João Bosco, imediatamente nos remetemos a Elis Regina que, ao que parece, lhe influenciou um tanto no suingue e no jeito de cantar após popularizar seu nome cantando o samba "Bala Com Bala" e o bolero "Dois pra lá, Dois pra cá", duas das suas primeiras canções mais famosas. Isso foi já no início dos anos de 1970. Mas João Bosco logo desenvolveria um estilo muito singular, muito malandro, debochado e cheio de ginga. João Bosco é um cancionista superlativo e versátil! Com um estilo muito levado, debochado, empolgante e cheio de groovy na sua abordagem ao samba —— e após ter passado por um período inicial em que a Tropicália também lhe influenciou em muito ——, ele frequentemente se variabilizou entre bossas, fados, rumbas, boleros e baladas, muitas vezes com levadas latinas e pitadas de jazz aqui e ali. E este álbum é um exemplo. Não obstante, este álbum é uma das pepitas setentistas que marcam sua parceria super frutífera com o letrista Aldir Blanc, uma das parcerias mais preciosas da MPB, além de ser um registro que marca essa confluência de estilos, ainda sob os ecos daquele tropicalismo de protesto que tanto incomodou os faróis auditivos da Ditadura Militar. Um certo recado implícito contra a Ditadura, aliás, até chega a ficar latente nas canções "Galos de Briga" e o "O Ronco da Cuíca". E a capa do LP, com um olho sob uma mancha vermelha por detrás de um São Jorge tentando dominar um dragão e as unhas de galo com espora em primeiro plano, também já dá todo um tom crítico da rinha sócio-política em voga na época. Mas a dupla não vai muito a fundo na canção de protesto, especificamente. O conceito do álbum centra-se, mesmo, em narrar com ironia e bom humor o cotidiano e os perrengues desse frustrado brasileiro setentista e seus amores, a relação homem x mulher, passando pelo casamento, pelos perrengues do trabalhador comum, pelas odes ao futebol e aos causos do malandro adepto ao boteco e à vida noturna. Ademais, a instrumentação também sugere influência de Elis Regina, que vinha utilizando uma banda com formação similar —— vide a banda de Elis no aqui já resenhado Live at Montreaux! A produção deste fantástico álbum é marcada então por músicos excepcionais tais como Rildo Hora (produção), Luizinho Eça e Radamés Gnattali (piano, arranjos), Toninho Horta (guitarras, violões), Luizão Maia (contrabaixo), Dino 7 Cordas (violão) Paschoal Meirelles (bateria), percussionistas tais como Luciano Perrone, Dom Chacal e Chico Batera, dentre vários outros músicos que compuseram os naipes de metais e outros naipes. O grande gaitista Toots Thieleman também é um dos convidados, deixando seus solos e acompanhamentos na penúltima faixa. Um clássico de João Bosco & Aldir Blanc!


61                              José Miguel Wisnik - Pérola aos Poucos - (Circus Produções, 2003)

Gênero: MPB | Elementos & Influências: ritmos afro-brasileiros, baião, bossa, poesia, Vanguarda Paulista | Avaliação: ★★★★¹/2 (Poético!)

Pérolas aos Poucos é o terceiro álbum solo do pianista, compositor, escritor e educador José Miguel Wisnik. Ao lado dos registros dos dois volumes de "Piano e Voz" de André Mehmari e Ná Ozzetti, este álbum é um dos melhores registros de canto com acompanhamentos de piano de toda a MPB!!! Mas a instrumentação não pára no piano. Há pitadas e apliques requintados de eletrônica sutil, percussão afro-brasileira, violão, contrabaixo acústico, bateria, gaita, e outros instrumentos —— tudo e todos em nuances delicadas e singelas. Trata-se de um álbum de finesse pura!!! A faixa "Baião de Quatro Toques" até destoa um tanto do restante da set list, pois temos aí um divertido e sacolejante forró-baião em instrumentação originária do sertão nordestino —— com sanfona, zabumba, triângulo, pandeira e flauta —— combinando com um trecho de linha melódica tirado da Quinta Sinfonia de Beethoven, mas é apenas uma das duas ou três faixas quem quebram um pouco o clima de finesse e acrescentam mais brasilidade e farra ao compêndio! No geral temos aqui, mesmo, um álbum preponderantemente de belas canções com poesias e poéticas hiper sofisticadas com acompanhamentos cristalinos de piano —— uma obra-prima do gênero!!! A riqueza do compêndio de canções, para além da beleza melódico-harmônica, também centra-se nas letras inteligentes versadas em parcerias com poetas e músicos do calibre de Paulo Neves e Luiz Tatit, considerando que o próprio José Miguel Wisnik também mostra seu lado mais poético no ofício literato de unir versos e música de forma mais sofisticada e conceitual. Aliás, o título da canção "Pérola aos Poucos" traz exatamente um trocadilho baseado num dos versos bíblicos —— da passagem em que Jesus ensina, numa alusão metafórica, a não dar o que é sagrado aos "porcos" —— para denotar que esse conceito de "canção popular" é intencionalmente destinado aos poucos ouvintes que, no seio dessa massa humana de manobra, buscam a arte da canção sob um conceito mais refinado —— não é um conceito idealizado para atingir afamadamente todos os ouvidos. Sendo professor de literatura na Universidade de São Paulo e tendo recebido influências do movimento underground que vigorou em São Paulo nas décadas de 70 e 80 sob os olhares agonizantes da censura militar, não seria de se esperar que Wisnik lançasse algo em direção ao popularesco massificado. Ainda assim, o músico e poeta brinca com flertes com samba, baião e até com o "funk carioca" na orgástica canção "Presente", na qual temos a marcante voz de Elza Soares. O fato é que Wisnik produziu aqui um álbum que merece ser cada vez mais enaltecido e pelo qual merece ser cada vez mais aclamado, ao menos entre os poucos ouvidos ainda ávidos por curtir um conceito mais qualitativo quanto à arte da canção. Uma outra faixa que também se destaca é a canção "DNA", que Wisnik compôs quando conheceu sua filha (na época com 17 anos, fruto de um affair fora do casamento), canção com a qual ele se apresentou no festival de MPB na Rede Globo, em 2000. E além das suas canções autorais, Wisnik também musicou o poema "Anoitecer" do poeta Carlos Drummond de Andrade e deu vezes para canções de parceiros seus tais como "Valsa azul" de Nélson Ferreira, "Tempo sem tempo" de Jorge Mautner e "Sem receita" de Alice Ruiz. Essa super produção de José Miguel Wisnik, enfim, também surpreende pela riqueza de participações e colaborações, incluindo a participações de Ná Ozzetti, Luciana Alves, Caetano Veloso, Jussara Silveira e Elza Soares.


Continuaremos a adicionar outros álbuns semanalmente...






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