Recentemente demos uma turbinada na nossa seção de Revistas & Jornais: além das já conhecidas magazines americanas, nós linkamos aqui no blog outras revistas e jornais sobre jazz, world music, música erudita, música experimental e outros gêneros de música instrumental da Suíça, Polônia, Alemanha, Inglaterra e países da Escandinávia (Noruega, Dinamarca, Suécia, Finlândia, etc). Embora as consequências dessa nova era cibernética em que vivemos tenham levado muitas revistas e jornais à falência nas últimas duas décadas —— principalmente os que investiam no formato físico ——, curiosamente as publicações especializadas mantiveram o seu público e até parece ter havido um certo ramp-up nesse nicho com novas publicações e periódicos sendo fundados. Indico dois exemplos: em 2009 o periódico britânico London Jazz News foi lançado como um blog e cresceu desde então até atingir o status de um jornal sobre jazz; e mais recentemente, a gravadora finlandesa We Jazz Records lançou com sucesso sua própria revista, que está com um design muito sedutor e tem sido amplamente elogiada pelas abordagens e pelos conteúdos. Agora, a maioria dessas publicações e periódicos oferecem assinaturas no formato digital, deixando o formato físico para ser distribuído apenas em tiragem limitada sob demanda, podendo assim atender aquele tipo de assinante que é colecionador e completista. E isso é muito bom, pois possibilita para que nós, amantes de jazz e das músicas instrumentais criativas, estejamos inteirados das notícias, dos lançamentos, dos músicos, dos projetos, dos álbuns, bem como dos shows, concertos e outras movimentações que agitam os cenários mais criativos ao redor do mundo. Além do mais, isso é um sinal inconteste de que o jazz se tornou de fato um fenômeno global: então, é de nosso interesse saber quais músicos e improvisadores estão se destacando em outros países! Pois bem... Estava eu a vaguear por essas publicações para conhecer novos músicos e saber um pouco mais sobre o que está a acontecer de interessante nos cenários internacionais e eis que me surpreendo, pois, com a quantidade de novos artistas criativos que estão se destacando e mantendo as cenas da Europa movimentadas como exemplos de núcleos vivos e pulsantes de música nova! Especialmente nas searas do jazz e da improvisação livre, é evidente que houve um aumento de público e de músicos super criativos na Europa —— sem mencionar o consequente aumento de gravadoras, selos independentes, festivais, encontros e mostras de improvisação e etc ——, com muitos desses novos instrumentistas sendo proficientes musicistas mulheres. Esse "boom" de renovação é extremamente necessário numa época em que tentamos derribar a misoginia e numa época em que as grandes lendas do jazz e os grandes pioneiros da música improvisada estão se aposentando ou falecendo —— um triste fato, enfim, da nossa era..., mas uma realidade indissociável da vida. Acima selecionei apenas algumas capas de revistas que foram recentemente publicadas e vê-se que realmente novos rostos e novos sons criativos tem sacudido e enriquecido as cenas da Europa. E abaixo lhes trago, também, alguns dos álbuns mais criativos recentemente lançados por esses músicos europeus!
★★★★ - Szymon Mika - Attempts (Independent, 2022).
Szymon Mika, ganhador de vários concursos de jazz e prêmios de guitarra, é um dos novos expoentes a se destacar na Polônia, explorando também improvisações livres e elementos do folclore polaco. Sua singular sonoridade de guitarra semiacústica combina fraseados límpidos com um certo timbre cristalino —— como se as cordas de aço estivessem soando com a limpidez das cordas de nylon ou algo assim... ——, além de uma sensibilidade harmônico-melódica fora de série. Este álbum acima mostra sua surpreendente fluência no formato de guitarra solo, com uma lista totalmente autoral de canções e improvisações —— apenas a canção "Wiosna Jaśminy" não é sua: é de autoria da cantora Kassia Gacek. Sempre que alguém nos apresenta um álbum com algum instrumentista explorando o formato solo, sem acompanhamento, a impressão que já imaginamos é a de que sentiremos falta de harmonizações, robustez e preenchimentos. Mas com Szymon Mika isso não ocorre! Seus timbres são tão agradáveis, suas frases são tão límpidas e ritmicamente fluentes e sua sensibilidade harmônica é tão autossuficiente, que acabamos por querer ouvi-lo repetidas vezes. Tendo recebido elogios de renomados guitarristas americanos como Peter Berstein e Lage Lund, Szymon Mika tem alçado seu nome para fora dos circuitos musicais da Polônia e já dispõe de quatro álbuns lançados, incluindo gravações com outros músicos poloneses de renome. Recentemente ele foi destaque na capa da revista polonesa JazzPress.
★★★★★ - Helga Plankensteiner - Barionda (Jazzwerkstatt, 2022).
Helga Plankensteiner é uma já veterana saxofonista de jazz italiana, já amplamente reconhecida por explorar o sax barítono com grande personalidade e assustadora versatilidade. Sendo uma das musicistas europeias mais ativas e criativas desde sempre, nos últimos tempos ela segue liderando um quinteto de saxofonistas mulheres chamado Girltalk, co-lidera também um quinteto com o trompetista Walter Civettini e gerencia e lidera a big band Unit Eleven Jazz Orchestra. Neste álbum acima, ela está à frente de um interessantíssimo quarteto de sax barítonos! A riqueza de sonoridades e as combinações dos timbres desses saxes barítonos são surpreendentes! E para temperar o molho, ela ainda acrescenta duas baterias na cozinha! A saxofonista conta que deu o título para o projeto de Barionda porque é uma das origens etimológicas da palavra "barítono". Na verdade "barionda" é derivada da palavra italiana "baraonda", que significa "desordem" e/ou "confusão". Essa "desordem", pois, se apresentou para ela quando ela teve de organizar um turbilhão de ideias e possibilidades para produzir este disco em torno desses barítonos. Helga Plankensteiner e seus outros três colaboradores baritonistas exploram neste álbum uma sequência de faixas que inclui elementos clássicos e folclóricos europeus, temas autorais, standards de jazz, pop songs, grooves de rock, uma canção gospel, klezmer music, improvisações livres, divagações timbrísticas e outras viagens sonoras! Este fantástico álbum foi lançado pela gravadora alemã Jazzwerkstatt em 2022 e foi um dos surpreendentes registros que nos passou batido. Por essas e outras, Helga Plankensteiner recentemente foi capa da publicação suíça JAZZ'N'MORE Magazine.
★★★★ - Ayumi Tanaka Trio - Subaqueous Silence (ECM, 2021).
Ayumi Tanaka é uma sensível pianista e compositora japonesa que atualmente faz carreira na Noruega. Ela começou a tocar piano aos três anos de idade ainda no ensino clássico, mas depois apresentaria grande interesse pelo jazz e pela música improvisada, mais tarde sendo encantada pelas explorações dos músicos nórdicos de improvisação livre. Interessante notar que ela foi pupila do grande músico ucraniano-norueguês Misha Alperin (1956-2018) —— líder do ótimo Moscow Art Trio, e do qual já até falamos algumas vezes aqui no blog ——, tendo estudado com ele na Academia Norueguesa de Música, em Oslo, onde estudou de 2011 até 2016. A partir de 2018, Ayumi começou a colaborar com o produtor Manfred Eicher na ECM Records, primeiramente como sideman do baterista Thomas Strønen no álbum Lucus (ECM, 2018) e depois em um trio com o baterista e percussionista Thomas Strønen e a vocalista e clarinetista Marthe Lea, trio com o qual eles lançaram o bem avaliado álbum Bayou (ECM, 2021). Este álbum acima, Subaqueous Silence, é o seu primeiro lançamento pela ECM na condição de líder. Atuando com um piano-trio ao lado do contrabaixista Christian Meaas Svendsen e do baterista Per Oddvar Johansen, Ayumi Tanaka invoca belamente a poética do "som mais belo que o silêncio" com a qual a ECM se conceitualizou em muitos dos seus registros. As peças, mistas de passagens notadas e improvisações livres, apresentam uma certa combinação de ambiências nórdicas, vagarosas abstrações a soarem esparsas e meditativas, combinações entre acordes consonantes e atonais a ressoarem por entre silêncios, sutis ruídos e efeitos de timbres e uma noção de espacialização que a pianista traz das suas afinidades com a música clássica japonesa. Recentemente, Ayumi Tanaka foi destaque na capa da revista norueguesa Jazznytt.
★★★★★ - Marek Pospieszalsk - No Other End of the World Will There Be (Based on the works of Polish Female Composers of the 20th Century) - (Clean Feed, 2023).
Dos projetos de músicos europeus mais embasados e criativos de 2023 é este do multipalhetista polonês Marek Pospieszalski, lançado pela etiqueta portuguesa Clean Feed. Este registro é o segundo volume de um projeto onde Marek Pospieszalski explora a escola polaca de composição erudita moderna protagonizada apenas por mulheres —— logicamente que aqui já deixo, indiretamente, a sugestão para que o ouvinte-leitor ouça o primeiro volume. Aliás aqui temos duas observações que precisam ser enfatizadas: primeiro que o projeto se inspira apenas em compositoras eruditas, ou seja, mulheres que foram e são seminais dentro do modernismo erudito polaco; e, em segundo lugar, apesar do foco ser nesse eruditismo moderno, o coletivo de músicos envolvidos não faz nenhum uso de escrita e leitura erudita em partitura nova..., os músicos apenas ouviram e estudaram previamente as obras dessas compositoras para, depois, usá-las como inspiração para processos criativos livres e espontâneos. Dessa forma, Marek e seus sidemans fazem um apanhado de temas e trechos de algumas das composições originais dessas compositoras, muitas dessas composições ainda atuais em temática e estética, e usam esses excertos apenas como motes, inspirações e/ou pretextos para se criar, no real e exato momento da performance em grupo, outras novas peças através dos conceitos de variações sobre tema, de improvisações livres, do conceito de sound design e através dos elementos da noise music e da música eletrônica inserida no âmbito da música improvisada. O coletivo de músicos que colaboram com Pospieszalski (saxes, palhetas, fita magnética) é formado por Piotr Chęcki (saxofones tenor e barítono), Tomasz Dąbrowski (trompete), Tomasz Sroczyński (viola sinfônica), Szymon Mika (guitarra elétrica e violão), Grzegorz Tarwid (piano), Max Mucha (contrabaixo acústico) e Qba Janicki (bateria, mesa de som e eletrônicos). Marek e seus colaboradores aplicam, então, improvisos, ruídos e variações sobre temas e trechos de peças de compositoras tais como Bernadetta Matuszczak (1937-2021), Lucia Dlugoszewski (1925-2000), Grażyna Bacewicz (1909-1969), Barbara Buczek (1940-1993), Hanna Kulenty (1961-), Krystyna Moszumańska-Nazar (1924-2009), Grażyna Pstrokońska-Nawratil (1947-), Marta Ptaszyńska (1943-), Agata Zubel (1978-). As formas estruturais dos temas e trechos das peças exploradas até podem soar reconhecíveis e concisas, mas os desenvolvimentos são repletos de inflexões abstratas, reviravoltas repentinas e improvisos e ruídos multicolores que criam novas peças tão radicais, abstratas e intrincadas quanto o caráter modernista que as obras originais dessas compositoras sugerem. E o que Marek Pospieszalski nos indica, enfim, que esse projeto se concretiza numa gratificante oportunidade para trabalhar essa temática da valorização do papel da mulher na sociedade como artistas e grandes criadoras, bem como uma oportunidade de conhecer essas incríveis compositoras polonesas, algumas delas já falecidas e fadadas ao ostracismo, outras delas vivas e ativas em busca de reconhecimento. O título do novo álbum foi retirado da composição "A Song on the End of the World", uma canção de Agata Zubel com letra de temática atualíssima escrita pelo poeta Czesław Miłosz. Muito interessante! Recentemente, Marek Pospieszalski foi destaque na capa da revista polonesa Jazz Forum, como bem pode ser atestado acima.
★★★¹/2 - Alina Bzhezhinska & HipHarp Collective - Reflections (BBE Music, 2022).
A londrina Alina Bzhezhinska é um dos nomes principais da harpa jazzística hoje na Europa. Em 2018, Alina lançou seu álbum de estreia na carreira solo, "Inspiration" (Ubuntu, 2018), e desde então foi amplamente aclamada por seu toque refinado e versátil. Em 2022, após assinar um contrato com a BBE Music, ela e sua banda HipHarp Collective lançam este seu segundo LP acima, "Reflections", novamente suscitando os maiores elogios. Participam do album Tony Kofi (saxofones), Jay Phelps (trompete), Julie Walkington (contrabaixo), a vocalista VimalaRowe, Mikele Montolli (contrabaixo elétrico), Joel Prime (percussão), Adam Teixeira (bateria) e Ying Xue (violino e viola). Tendo como inspiração maior a harpista Dorothy Ashby —— uma das pioneiras por inserir, definitivamente, a harpa dentro do jazz ——, a concepção deste álbum consiste em mostrar um mosaico de temas originais e standards com as principais inspirações que perfazem o repertório pessoal de Alina Bzhezhinska: o álbum Afro-Harping de Dorothy Ashby, o spiritual jazz de Alice e John Coltrane, a forma livre de Joe Henderson, os temas africanistas de Duke Ellington, o latin jazz de Mongo Santamaría, entre outras inspirações que passam até pelo acid jazz e o trip hop dos anos 90 e 2000. Interessante notar como que Alina emana versatilidade e sensibilidade com sua harpa em meio a temas funky-soulful-bluesy, ao mesmo tempo em que enfatiza bem as matizes africanistas dessas faixas. Alina Bzhezhinska mostra, pois, que não apenas tem musicalidade de sobra, como também tem conhecimento da história do jazz e da música em geral. Eis aí um agradável álbum para se ouvir de olhos fechados. Alina Bzhezhinska foi destaques recente na capa da revista inglesa Jazzwise.
★★★★ - Emma Rawicz - Chroma (ACT Music, 2022).
De vez em quando —— não raramente, mas também não muito comumente —— surgem jovens prodígios no jazz e na música erudita dotados de tamanha destreza técnica e tamanha musicalidade, que são capazes de deixar qualquer apreciador da arte da música embasbacado. A saxofonista londrina Emma Rawicz foi um desses jovens. Nascida em North Devon, e com um sobrenome polonês que vem de seu avô nascido em Varsóvia, um remanescente da Segunda Guerra Mundial que se estabeleceu no Reino Unido, entre os dezesseis e os dezessete anos a saxofonista já liderava sua banda em várias apresentações em festivais internacionais e já negociava e administrava sozinha sua agenda de shows e turnês. Agora mais recentemente, ao chegar na faixa dos seus vinte e poucos anos, ela se estabeleceu com um quinteto fixo e até fundou sua própria big band, tendo sido uma das principais atrações numa recente temporada do legendário clube londrino Ronnie Scott's. Emma Rawicz também ganhou notoriedade como Revelação do Ano no Parliamentary Jazz Awards em 2022, foi indicada ao FM Awards e foi finalista na competição BBC Young Jazz Musician. E agora em 2023, ela acaba de lançar seu primeiro tento, o ótimo álbum "Chroma", já sob a produção de um grande selo, a gravadora alemã ACT Music. O título do álbum, "Chroma" (palavra que significa cor ou tinta, em grego), advém do fato de que Emma Rawicz é uma sinesteta, ou seja, sua experiencia sensorial, improvisacional e composicional com a música está intrinsecamente ligada à uma sensação de que cada ton representa uma cor. E é por isso que todas as faixas, com exceção de uma, têm nomes de cores relativamente pouco conhecidas. Seu quinteto é composto pelo guitarrista Ant Law, o baterista/percussionista Asaf Sirkis, o pianista Ivo Neame e o contrabaixista Conor Chaplin, sendo que neste álbum a banda também recebe a colaboração da cantora Immy Churchill nos vocalises. O álbum é bem diversificado com beats, elementos, moods e atmosferas do post-bop contemporâneo, incluindo rítmicas baseadas no Konnakol da música hindustani. Um grande disco! Emma Rawicz também mostra uma proficiência fora de série que a capacita a desferir de intricados fraseados a efeitos multifônicos em seus saxofones. Recentemente, ela foi destaque na revista alemã Jazzthetik.
★★★¹/2 - Signe Emmeluth - The A-Z of Microwave Cookery - (Astral Spirits, 2022).
Seguindo a trilha anteriormente deixada por improvisadoras veteranos com Lotte Anker ou por nomes seminais da nova geração tais como Mette Rasmussen, a dinamarquesa saxofonista-alto Signe Emmeluth vem se destacando na seara do free jazz e da música improvisada no cenário da Escandinávia. Recentemente chegada à casa dos seus trinta e poucos anos, a saxofonista já lançou, com este álbum acima, em seu terceiro registro e já coleciona vários encontros e colaborações com músicos do quilate de Paal Nilssen-Love, Ingebrigt Håker Flaten, John Edwards e Mette Rasmussen, além de fazer parte da Trondheim Jazz Orchestra, da Noruega. Atuando com o clássico formato do sax-trio, neste seu álbum acima Signe Emmeluth (sax alto e tenor) forma um trio com Magnus Skavhaug Nergaard (contrabaixo) e Dag Erik Knedal Andersen (bateria e percussão). Com esse trio, Signe Emmeluth mostra toda a liberdade e crueza do sax-trio através de técnicas estendidas e traços próprios, assim como também procede seus colegas de banda. Conheci a saxofonista "fuçando" os anais da revista alemã freiStil, onde ela foi recentemente destaque na capa. E digo sem medo de errar de que trata-se de uma figura para a qual nossos olhos e ouvidos deverão estar voltados! Este álbum acima, com esse inusitado título The A-Z of Microwave Cookery, já nos mostra todo um cardápio de intenções e versatilidades: os sons e efeitos com técnicas estendidas do saxofones de Emmeluth contracenam com um baterista que também atua de forma ampla para tirar sons inusitados e até consegue extrair até certa ruidagem melódica do seus pratos e do seu drum kit, os quais contracenam com um contrabaixista que também sabe explorar seu instrumento sob várias possibilidades, com e sem arco. Um ótimo sax-trio! Ficamos no aguardo de outros tentos de Signe Emmeluth!
★★★★ - Ingebrigt Håker Flaten & Paal Nilssen-Love - Guts & Skins (PNL Rec, 2023).
Nas últimas décadas, o baterista Paal Nilssen-Love e o contrabaixista Ingebrigt Håker Flaten formaram uma das principais duplas de noruegueses superlativos e uma das mais enérgicas cozinhas do jazz avant-garde —— do jazz contemporâneo como um todo! Pois eis que, em 2019, o Festival de Jazz de Trondheim pediu aos dois que criassem algo original para comemorar o 40º aniversário do departamento de jazz do Conservatório de Música de Trondheim, onde eles estudaram e começaram a carreira. Na página do Bandcamp onde este projeto está bem descrito, ambos dizem que eles poderiam muito bem trazer uma música que fosse ou representasse uma espécie de retrospectiva nostálgica da dupla e dos projetos que eles já participaram nessas últimas duas três décadas. Contudo, imbuído por uma inspiração que surgiu do fato deles estarem cercados de vários proeminentes músicos escandinavos das gerações mais jovens, foi decidido que eles deveriam formar uma nova banda, dando resultado num octeto de músicos com os quais eles já vinham trabalhando e/ou queriam trabalhar: Isabelle Dutoit (vocal e clarinete), Hanne deBacker (saxofone barítono), Signe Emmeluth (saxofone alto), Magnus Broo (trompete), Alexander Hawkins (piano e órgão Hammond B3) e Johan Holmegaard (percussão). Em 2019 as agendas dos músicos não permitiram que o projeto se concretizasse e nos anos seguintes o lockdown atrapalhou ainda mais. Mas em 2022, já na fase de retorno pós-Covid, eles puderam concretizar o projeto entrando com esses músicos nos clubs e no estúdio para gravar este tento acima. Trata-se, portanto, de um encontro entre esses dois legendários veteranos com alguns dos mais jovens e proeminentes músicos do riquíssimo cenário da Escandinávia —— apenas o pianista Alexander Hawkins, natural de Londres, não faz parte da Escandinávia. Mais um doc sonoro onde será possível se atualizar ante a esses novos nomes da música improvisada nórdica.
★★★★ - Veslemøy Narvesen - We Don't Imagine Anymore - (Jazzland Rec, 2023)
Conheci a emergente baterista Veslemøy Narvesen como destaque recente na capa da revista norueguesa Jazznytt. Pois eis que Veslemøy Narvesen vem sendo apontada como uma das grandes revelações da bateria no cenário jazzístico nórdico, tendo tocado com uma pá de grandes músicos tais como Kit Downes, Ingebrigt Håker Flaten, Anja Lauvdal, Mette Rasmussen, e etc. Este álbum acima é seu debut e é onde ela registra seu mosaico de impulsos e inspirações musicais, não fechando-se em nenhum gênero em específico e mostrando-se aberta numa linha expansiva que vai da canção pop, passa pelo folk, pelo clássico e alcança até a free music ainda mais abstrata. A baterista conta em sua página no Bandcamp que este seu tento traz fagulhas de influências advindas de musicistas como Maria Kannegaard, Pedro Martins, Joni Mitchell, Daniel Lanois, além de inspirações que ela abstraiu de trilhas cinematográficas e canções vocais, trazendo influências de cantoras e compositoras norueguesas tais como Erlend Ropstad e Marte Wulff. Tocando bateria, compondo as peças e canções e se aventurando na voz, Veslemøy Narvesen aqui trafega por esses afluentes focando apenas no formato de piano-trio com alguma adição de eletrônica aqui e ali, sendo acompanhada pelo pianista Håvard Aufles e pelo contrabaixista Nivolas Leirtrø. Lançado em 13 de Outubro de 2023, as faixas do álbum acima acabaram de sair do forno e já estão disponíveis no Bandcamp! As peças e canções trazem, então, um mix fresco de arranjos de cordas, vocais cantados, vocalises, improvisos em piano-trio e sutis efeitos eletrônicos, com todo aquele frescor nórdico que tanto nos tem surpreendido. Sendo um álbum de beleza singela e atmosferas intimistas, Veslemøy Narvesen também nos deixa claro que a intenção não é mostrar energia em seu canto e nem a destreza técnica comum em bandas de jazz, mas sim mostrar um mosaico pessoal a partir das influências que lhe impactam —— uma boa estratégia para um debut. Em duas faixas, Veslemøy Narvesen canta suas canções no dialeto de Kristiansand, sua cidade natal.
★★★★¹/2 - Horse Orchestra - The Milkman Cometh - (Independent, 2021).
A Horse Orchestra é um pós-moderno septeto dinamarquês —— eles se autodenominam, aliás, pan-nórdicos —— que se inspira nas mais variadas possibilidades que um ensemble pode explorar dentro do enorme range do jazz e suas cercanias com inspirações nórdicas: seus músicos adotam uma postura multidisciplinar, são ativos em outras bandas de várias searas que vão do jazz ao pop e as inspirações podem variar indo desde as tradicionais marching bands de Nova Orleans até as tradições do folclore nórdico, passando pelos coletivos de livre improvisação do free jazz, explorando elementos do hip hop e do rock e indo até as bordas da música erudita contemporânea. Importante frisar que o humor também é um elemento tão importante quanto a pesquisa e o exercício ecleticista de estarem antenados com todos esses folclores, estéticas e legados. o coletivo é formado por Erik Kimestad Pedersen (trompete), Ingimar Andersen (saxofones), Petter Hängsel (trombone), Kristian Tangvik (tuba), Jeppe Zeeberg (piano), Nicolai Kaas Claesson (contrabaixo) e Rune Lohse (bateria). Até o momento, a banda conta com três CD's lançados e um video-EP: Living The Dream (2014), Four Letter Word (2016), Video EP 2018 e The Milkman Cometh (2021). Neste último tento de 2021, gravado parcialmente entre sessões de estúdio e apresentações ao vivo, os músicos da Horse Orchestra expandem seu conceito eclético-humorístico intercalando composições próprias com versões altamente personalizadas de temas de outros compositores, como a versão diferentona para o clássico tema "I Got Rhythm" de Gershwin com arranjos do pianista Jeppe Zeeberg, e bem como a versão do trombonista Petter Hängsel para o tema original do vintage-cult videogame Xenon, lançado em 1988 pelos desenvolvedores britânicos da The Bitmap Brothers (inicialmente para o Atari ST, rapidamente replicado para outros consoles). Dessa forma, eclética e humorística, a Horse Orchestra tem conquistado muitos públicos e alcançado considerável relevância na Dinamarca e nos outros países nórdicos e em vários festivais pela Europa e Ásia.
★★★★¹/2 - Valentin Ceccaldi - Bonbon Flamme - (Clean Feed, 2023).
Da super producente gravadora portuguesa Clean Feed —— atualmente uma das principais fontes de música criativa da Europa, e do mundo —— nos surge este álbum acima, lançado pelo violoncelista francês Valentin Ceccaldi. O universo da Clean Feed —— onde habita também sua subsidiária mais experimental, a excelente Shhpuma Records —— tem sido um ponto de encontro dos mais notáveis músicos criativos europeus, quando não um ponto de encontro entre esses músicos europeus com os incríveis músicos americanos. E neste álbum acima temos, então, o encontro entre músicos franceses (o celista Valentin Ceccaldi e o baterista Étienne Ziemniak) com um músico belga (o tecladista Fulco Ottervanger) e com um músico português (o fantástico guitarrista Luis Lopes). Pois conta-se que, para além do desejo de romper as fronteiras regionais europeias, o intuito do violoncelista Valentin Ceccaldi com este seu projeto foi criar um caleidoscópio de cores renderizadas, onde as peças, congregando partes previamente escritas ou elaboradas com outras partes instantaneamente improvisadas, emitissem toda uma certa gama de cromo-sinestesia —— algo como Olivier Messiaen esperava quando criava efeitos inspirados pelos cantos dos pássaros, mas aqui sob os termos do noise e da música improvisada. O centro do álbum é a composição "Bonbon Flamme", uma espécie de poema sinfônico de 10 minutos com ruídos espectrais emanados da extensiva guitarra elétrica de Luis Lopes combinada com efeitos eletrônicos até que a bateria de Étienne Ziemniak e o cello de Valentin Ceccaldi entram num indefinível vaguear cacofônico sob uma etérea melodia que paira dos teclados e synths de Fulco Ottervanger: a intenção é que esses ruídos e essa melodia que paira sobre a cacofonia soem melodicamente coloridos! Mas esse é apenas um exemplo do todo, sendo o álbum muito bem diversificado em dinâmicas variadas entre ruídos improvisados e coloridos melódicos, entre organicidade e efeitos elétrico-eletrônicos, entre composição previamente elaborada e notas, ruídos e efeitos livremente improvisados. Confiram!
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