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Charles Gayle (1939-2023) - Das ruas para os palcos: a lenda do free jazz, seu fervor gospel e seu personagem Streets

CHARLES GAYLE: STREETS, THE CLOWN
Faleceu anteontem, em 7 de setembro de 2023, o grande saxofonista e pianista Charles Gayle. Das últimas lendas do free jazz, podemos dizer que Charles Gayle foi o que mais incorporou a linha de influências do gospel e dos spirituals como o coração propulsor das suas erupções criativas, levando adiante uma espécie de fervorosidade que começou lá atrás nos revolucionários anos de 1960 com os saxofonistas John Coltrane, Albert Ayler e Pharoah Sanders —— "O Pai, o Filho e o Espírito Santo", a consagrada e referida trindade do spiritual jazz vanguardista! Charles Gayle, pois, não evocava aquele spiritual jazz meditativo ou sentimentalista como alguns dos ouvintes de jazz mais românticos ou desavisados poderão imaginar. Seus improvisos eram enérgicos, seu melodismo tinha uma angularidade gritante e indescritível, suas frases podiam soar erráticas e por demais primitivas —— exacerbando até mesmo o primitivismo evocado inicialmente por Albert Ayler ——, e sua espiritualidade se entranhava nos títulos das suas peças e por entre um turbilhão de tortuosas notas abstratas, abstrações essas que também carregavam a marca do sofrimento do homem que lutou contra a fome e viveu nas sarjetas das ruas de Nova Iorque. Pouco se sabe sobre sua vida pregressa. E ele, talvez evitando o constrangimento de uma exposição, evitava detalhar essa sua trajetória do limbo até o início da notoriedade: nas entrevistas e nas aparições onde ele era questionado, Gayle sempre fugia de detalhar esse sofrimento pregresso e sempre dava declarações de humildade, sempre dando graças a Deus por tudo, evitando de se colocar na condição de vítima e sempre dizendo que sua arte musical era nada mais do que um louvor a Deus, uma ode ao Evangelho. Mas o que já nos é suficiente saber é que no final da década de 80 e no início da década de 90, Charles Gayle surgia das cinzas e já começava a representar um resgate fervoroso daquele free jazz mais acústico, espiritual e enérgico estabelecido por Trane, Ayler e Sanders na segunda metade dos anos 60: vide, por exemplo, o ótimo álbum Touchin' on Trane (FMP, 1993) onde ele eterniza um sax-trio com o contrabaixista William Parker e o baterista Rashied Ali (parceiro de Coltrane no clássico álbum Interstellar Space, um dos últimos rebentos gravados pelo mítico saxofonista antes da sua morte em 1967). Nascido em 28 de fevereiro de 1939, em Buffalo, NY, Charles Gayle passou duas décadas na condição de sem-teto, morando e tocando nas ruas e no metrô de Nova York por alguns poucos cents de dólar. Na segunda metade dos anos 80, ele foi convidado a iniciar uma residência nas noites de segunda-feira no Knitting Factory, e esse foi o ponto de partida que resultou em sua reviravolta, gravando a partir daí álbuns que foram lançados por gravadoras como Silkheart, FMP, ESP-Disk e Black Saint, bem como pelo próprio selo do Knitting Factory. Essa reviravolta também foi marcada por convites de outros músicos da cena experimental de Nova Iorque que eram fãs do seu free jazz, casos como suas participações em shows e gravações da banda The Blue Humans e do cantor punk Henry Rollins, entre outros.
 

Variando pouco em outros formatos de duo, quarteto, solo...e etc, e adotando quase sempre o formato cru de sax-trio —— saxofone, contrabaixo e bateria ——, um formato compacto que lhe permitia estar na estrada e se produzir com menos custos financeiros, Charles Gayle, como já citado, representou fervorosamente a continuidade e a extensão da arte freejazzística dos trios de Coltrane e Ayler. Mas Gayle incorporou e expandiu esse tipo de free jazz não como uma mera cópia requentada do passado, mas acrescentando muito da sua própria energia, e muito da sua personalidade e espiritualidade idiossincrática. Tanto foi assim que, com o passar do tempo, Gayle passou a suscitar as mais curiosas perguntas em torno dos mistérios e da profundidade da sua música, da sua personalidade e dos seus personagens: fosse por sua sempre latente humildade, fosse por sua espiritualidade penetrante, fosse por sua melancólica condição de um ex-morador de rua que agora tinha muita arte a mostrar, o saxofonista de fato se tornava uma figura carismática ante o público e os críticos. Para além da música incendiária, espiritual e profunda, Gayle também evidenciava outras vias de expressão no palco. Uma delas consistia em proferir profundas pregações e spoken words humanistas após seus improvisos e enquanto seus sidemans improvisavam, emitindo vários aspectos da sua espiritualidade e do seu conhecimento bíblico do Novo Testamento. Posteriormente, Gayle explicaria essa faceta adotando a mesma linha de pensamento universal e humanista que Trane costumava difundir, dizendo que essas suas palavras espirituais ditas no palco em meio aos improvisos tinham apenas a intenção de difundir a paz e o amor através da arte e que não vinham jamais com a intenção de evangelizar, fazer proselitismo ou induzir as pessoas a se converterem à sua fé, mas eram apenas resultado de uma ebulição expressiva que ele precisava manifestar para fora do seu íntimo e da qual ele, em sua condição de músico advindo do gospel, nunca conseguiu fugir. Não obstante, entre finais dos anos 90 e mais preponderantemente nos anos 2000, Gayle incorpora um outro personagem misterioso chamado Streets, The Clown —— ou simplesmente Streets ——, um palhaço maltrapilho que introduzia um certo "show de pantomina", um certo "show de mímicas" durante as improvisações livres. Sobre esse caricato personagem, que é claramente um contraste em relação à sua personalidade de pregador cristão, Charles Gayle apenas dizia que essa representação advinha dos tempos em que tocava nas ruas e que também era algo do seu íntimo que ele sentia que tinha de expressar, muitas das vezes a partir de mímicas e adereços humorísticos que podiam evocar sua força de vontade para continuar com o show da vida mesmo diante de situações desastrosas, sua visão otimista e bem humorada da vida por meio da arte, podendo também evocar seu desconforto com as dores e as questões sociais, sua própria necessidade melancólica de levar às pessoas um pouco mais de representação visual somada à música, ou qualquer outro adereço que ele sentia que tinha de expressar mesmo que a inspiração fosse inexplicavelmente subjetiva. Essa outra face igualmente misteriosa da sua personalidade musical foi registrada no homônimo álbum Streets (Northern Spy, 2012), com um trio formado com o contrabaixista Larry Roland e o baterista Michael T.A. Thompson.
   
Outras curiosidades sobre Charles Gayle incluem o fato de que seu instrumento de origem não foi o sax tenor, mas sim o piano. Charles Gayle, fã confesso de pianistas como Duke Ellington e Cecil Taylor, não explicitava tanto para a mídia especializada o fato dele ter estudado piano, e sua condição de morador de rua acabou afastando-o da prática do instrumento, levando-o a explorar o saxofone. Contudo, após sua reviravolta, nos anos 90 ele volta a praticar improvisações utilizando o piano do Knitting Factory e começa a fazer planos para até mesmo lançar algumas gravações com suas velhas conhecidas 88 teclas. Essa faceta aparece de forma sortida em alguns discos dos anos 90, mas ficará explícita mesmo no ótimo álbum Jazz Solo Piano (Knitting Factory, 2001), onde ele retorna aos standards como uma resposta aos críticos que o acusavam —— e acusavam os músicos de free jazz —— de não saberem tocar bebop: obviamente que os erráticos fraseados pianísticos de Gayle não reproduziriam, fielmente, as formas e articulações da linguagem bebop tal como Bud Powell ou Kenny Kirkland foram capazes de fazê-lo, mas com esse registro ele de fato demonstra que detinha certo conhecimento da tradição e certa técnica do jazz piano. Em 2006, Gayle volta a repetir essa faceta com um segundo álbum de piano solo, o Time Zones (Tompkins Square, 2006), desta vez apresentando suas improvisações e seus temas originais. Além desses álbuns com piano solo, Gayle frequentemente explorava o formato solo com saxes e outros instrumentos: como é o caso do álbum Unto I Am (Les Disques Victo, 1994), onde ele toca sax, bateria, clarinete-baixo e piano; e como é também o caso do Solo in Japan (PSF, 1997). Ademais, muitas outras curiosidades cercaram a carreira desse legendário saxofonista e pianista que expandiu ainda mais os rompantes de energia do free jazz acústico de verve coltrane-ayleriana —— e, de fato, paralelo à Gayle, David S. Ware foi um dos poucos a seguir essa trilha com energia semelhante. O fato é que Charles Gayle, mesmo tendo praticamente iniciado a carreira aos 50 anos de idade, deixou uma marca indelével de quase quatro décadas de fervorosidade dentro do free jazz. Numa entrevista concedida para a JazzTimes Magazine em 2019, o contrabaixista William Parker, colaborador e ajudador de Gayle nos tempos em que ele ainda lutava para sair das ruas, já prenunciava que o saxofonista já havia de fato se tornado uma figura musical não menos que lendária: "Charles was a legend, in a way. Musically he has this energy — an electric, acoustic, organic energy coming out of his horn. And everybody who heard it said you could hear all the history of the saxophone in there: Sonny Rollins, Albert Ayler, Coltrane...". Para entusiastas e completistas interessados em free jazz, é altamente indicado conferir a participação de Charles Gayle no documentário "Rising Tones Cross" (1985), dirigido por Ebba Jahn, onde ele é um dos principais entrevistados. Neste post, fica aqui esse breve reprise sobre algumas curiosidades biográficas e estilísticas de Gayle, bem como nosso desejo para que o seu legado sonoro seja permanentemente ecoado e prestigiado! Rest in peace, Mr. Gayle!





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