Podemos dizer que o jazz contemporâneo —— o jazz da atualidade —— é uma miríade capaz de unir diversos elementos de diferentes influências, estilos musicais, múltiplos vocabulários, dialetos sonoros, estéticas e formas de arte musical em peças sedimentadas, híbridas e ecléticas e, ainda assim, soar como um idioma musical uno. Essa liberdade de ser incorporado e de incorporar elementos para formar diferentes sub-gêneros idiomáticos é uma propriedade indissociável do jazz, e é o que, afinal, o coloca no pedestal da arte musical que mais tem propriedade para conclamar o conceito do que é realmente ser livre. E uma das artistas do jazz contemporâneo que melhor exemplificam essa nova liberdade idiomática —— ou trans-idiomática, como diria Anthony Braxton —— é a saxofonista canadense Anna Webber, uma das ases da estética do modern creative neste início de século. Aliás, neste post quero chamar a atenção do leitor e fã de música exatamente para o modo como Anna Webber, ao lado de seus contemporâneos —— Matt Mitchell, Mary Halvorson, John Hollenbeck, Dan Weiss, Dave Douglas, Angela Morris, entre outros ——, vem construindo um universo idiomático particular e, assim, contribuindo para a expansão idiomática dentro do espectro do jazz contemporâneo com essa diretriz multifacetada que une traços de free music ao viés mais exploratório da composição estruturada sob influências que vão do compositor do avant-garde jazz Anthony Braxton a compositores da música erudita moderna como Milton Babbitt, Iannis Xenakis e o mestre do espectralismo Gérard Grisey. Sendo uma das novas mentes criativas mais instigantes da cena do Brooklyn, N.Y.C., Anna Webber tem lançado um conjunto de peças, álbuns e performances que abrangem e misturam, ao seu modo, desde técnicas formais até técnicas estendidas e novas formas de prática em grupo, desde formas de abstração livre até estruturas de composição rigorosamente elaboradas, desde influências mais conceituais da música erudita de vanguarda até as trilhas da improvisação harmônica do jazz post-bop deste novo século, desde música orquestral até obras para pequenos grupos com instrumentações inusitadas e com buscas timbrísticas experimentais. E vê-se que o desafio de Webber, enquanto compositora e improvisadora, é dar certa coesão idiomática para essas interconexões de elementos díspares ao invés de apenas criar emaranhados de misturas e improvisos a esmo. E dessa forma, inflexionando elementos advindos tanto do minimalismo, do post-bop e do avant-garde jazz americano como também elementos da música erudita moderna europeia, Webber segue criando todo um universo idiomático particular. Nascida em Vancouver, Canadá, e hoje radicada no Brooklyn, em N.Y.C., Anna Webber mudou-se para a Alemanha em 2011 para estudar no Jazz Institut Berlin com o cultuado baterista e compositor John Hollenbeck, que anos depois, aliás, tornar-se-ia membro do seu próprio trio, banda que ela chamou de Simple Trio e também conta com o pianista Matt Mitchell. De lá para cá, Webber tem se revelado uma das musicistas mais criativas do nosso tempo, já tendo conquistado os mais prestigiados prêmios e honrarias como instrumentista e compositora. Em 2014, por exemplo, recebeu o prestigioso prêmio BMI Foundation Charlie Parker Jazz Composition Prize. Em 2017, foi contemplada com o Canadian Women Artists Award da New York Foundation for the Arts, em seu país natal. E, em 2018, recebeu a prestigiada bolsa americana Guggenheim Fellowship, que a consagrou, definitivamente, como uma das mentes criativas jazz contemporâneo e da new music. Para além da sua conexão com a free music, sua obra revela, então, uma elaboração composicional intrincada e um aprofundamento idiomático muito original e instigante com características que a direcionam de modo natural para o campo da música erudita contemporânea. A seguir, em algumas fases —— incluindo seus lançamentos de 2025 ——, destrinchamos essa trilha idiomática inventiva construída por Webber. Leia, vá aos shows, compre os discos e apoie a artista. Clique nas imagens dos álbuns para ouvi-los.
Fase Inicial da carreira em Montreal, Canadá, e transição para Nova Iorque
- Álbum: Third Floor People Don't Need to Worry About Anything

Já em sua fase inicial, quando havia terminado seus estudos na Universidade McGill em Montreal, Anna Webber já mostrava qual caminho criativo queria seguir. Em 2008, ela mudou-se para Nova York e iniciou um mestrado na Manhattan School of Music, mas ainda mantém suas conexões canadenses. E este álbum, totalmente repleto de onze peças autorais, é um dos destaques desse início de carreira da Anna Webber e já evidencia um caminho em que a saxofonista e flautista atua junto a dois quartetos distintos, ambos sem piano e sem contrabaixo, mas com peças pré elaboradas onde elementos juvenis do math rock encontra com esse jazz mais exploratório onde frases livres são estruturadas com partes préviamente elaboradas, num estilo de composição que traz influências da música erudita moderna —— algo que já chamavam de "modern creative". As peças aqui, então, se revezam entre aquelas que trazem linhas melódicas pré elaboradas composicionalmente e aquelas que fazem uso de passagens livremente improvisadas, mas quase sempre com esse tom mais "rocker" evidenciado pelas guitarras elétricas: ou seja temos aqui quartetos sem piano e sem contrabaixo, onde as guitarras se revezam entre a psicodelia e a rusticidade, tornando esse molho criativo mais ácido em algumas passagens ou mais agridoce em outras, podendo também ser mais intrincado aqui ou mais melódico acolá. No geral trata-se de um álbum que leva esse molho e essas vibrações juvenis mais para um tom de crítica social envolto de algumas mensagens subliminares. Para além da mensagem de renovação que esse novo avant-garde propunha ao jazz contemporâneo, o próprio título "Third Floor People Don't Need to Worry About Anything" já evidencia um tom crítico e irônico contra o conformismo social. Depois temos o fato dos dois quartetos serem formados por músicos de localidades diferentes. Em algumas faixas Anna Webber (saxofone e flauta) forma um quarteto com seus colegas canadenses de Montreal: Erik Hove (sax alto), J-S Williams(guitarra) e Phil Melanson (bateria). Em outras faixas a saxofonista e flautista forma um quarteto com músicos americanos de Nova Iorque: Matt Holman (trompete), Owen Stewart-Robertson (guitarra) e Fred Kennedy (baterria). Essa escolha de atuar com bandas distintas formadas por músicos emergentes de Montreal, do Canadá, e Nova Iorque, cidade cosmopolita na qual estava de adaptando, também é um elemento que influi em maior variedade sonora dentro das peças, além de documentar essa sua inicial transição de carreira. Ademais, a particular linguagem idiomática de Anna Webber como saxofonista e compositora ainda nao fica tão evidente como nos discos posteriores, mas essa diretriz de estruturar frases livres e passagens pré-elabordas de forma que ambas se encaixem num todo coeso é uma faceta que ja se prenuncia desde este início.
Percussive Mechanics, Simple Trio e a influência de John Hollenbeck: estruturas entrelaçadas com percussões, improvisos, composição escrita e minimalismo
.png)
Essa segunda fase já evidencia uma guinada evolutiva inquestionável na obra de Anna Webber rumo a uma elaboração improvisacional-composicional onde os efeitos e timbres percussivos é um elemento indissociável da sua busca por um idioma singular. Trata-se de uma faceta que recebe inspiração principal da fase em que ela estabelece estadia na Alemanha, período em que ela expande seus estudos sob a tutela do baterista e compositor John Hollenbeck e, também, começa a ouvir e estudar muitas peças de compositores eruditos modernos, preferencialmente peças para percussão. Na Alemanha a flautista e saxofonista funda, então, sua criativa banda Percussive Mechanics, um septeto que ela formava com o clarinetista e saxofonista James Wylie, com contrabaixista Igor Spallati, com o pianista e tecladista Elias Stemeseder e mais três percussionistas que tocavam bateria, vibrafone, marimba e kits variados de percussão. Com essa banda, Webber lança dois álbuns: o homônimo Percussive Mechanics (Pirouet, 2013) e Refraction (Pirouet, 2015). A premissa que os dois álbuns dessa banda evidenciam é, justamente, trabalhar a percussão de forma timbrística e composicional, deixando evidente que a "forma livre" tão usada no free jazz pregresso também é um ingrediente que pode se entrelaçar às passagens pré compostas com inspiração, como já dito, em peças de compositores da música erudita moderna que se interessaram em desbravar a percussão. Outra característica é o uso criativo de rítmicas ímpares, irregulares e com efeitos mecânicos assíncronos e contrapontísticos, resultando em passagens que variam tanto entre estruturas intrincadas como em sutilezas minimalistas muitas vezes marcadas por repetições inebriantes, tudo num equilíbrio onde esse aspecto de controle mecânico se funde com frases livres em estruturas super criativas. Nessa fase Anna Webber também traz inspirações do caleidoscópico arsenal de inspirações, técnicas, abordagens e aplicações advindas do baterista John Hollenbeck, líder hipercriativo de ensembles como o The Claudia Quintet e o Large Ensemble, e que vinha sendo seu professor nessa sua estadia alemã. Não demoraria muito e o próprio Hollenbeck logo faria parte do seu Simple Trio. Todas essas influências somadas às combinações de diferentes sons, técnicas e timbres dentro dessa busca por um idioma singular —— combinando diferentes formas, estruturas, aspectos sonoros e timbres entre instrumentos de sopro, piano e percussão —— fariam desses e dos próximos álbuns de Anna Webber alguns dos registros mais criativos da década de 2010, já adentrando uma fase de busca idiomática.
Formado por Anna Webber (sax tenor, flauta), Matt Mitchell (piano) e John Hollenbeck (bateria, percussão), o Simple Trio traz a incomum combinação de um sopro, piano e bateria (mais kits de percussão) sem o preenchimento quente e esparso de um bassline —— sem um contrabaixo acústico. A falta de um contrabaixo impõe aos músicos novos desafios e possibilidades: a de preencher os espaços com timbres e combinações coloridas e até lúdicas —— minimalistas em certos momentos, estruturalistas e maximalistas em outros. Neste sentido, Anna Webber tem sido muito hábil em combinar os diferentes sons e timbres dos seus sopros (saxes e flautas) —— algumas vezes usando técnicas estentidas —— com os sons criativos que o baterista John Hollenbeck consegue tirar da sua bateria e dos seus kits de percussão, assim como as teclas do pianista Matt Mitchell oferece brilhantismos e cintilâncias harmônicas que já se expandem para além da caixinha das meras mudanças de acordes-padrões. Soma-se a esses elementos as temáticas contemporâneas, métricas quebradiças e impares, improvisos contrapotísticos e construções hiper elaboradas e temos, então, um dos trios mais criativos dos últimos tempos que pode variar do uso repetido de sketches minimalistas até a composição estruturada mais complexa, passando por improvisos sinuosos e coloridos. No primeiro álbum do trio, o homônimo Simple (Skirl Records, 2015), Webber cria um variado mosaico de peças com estruturas que vão desde os contrapontos minimalistas cheios de perguntas e respostas da peça "Simplify Simplify" até a super elaboração entre tons e espaços da peça "1994", onde ela estrutura a composição usando código Morse: ou seja, o ponto é um semitom, e o traço é um tom inteiro e assim ela vai estruturando todo o alfabeto com tons e semitons para atingir combinações intervalares e dissonâncias com linhas de tons incomuns. Já no segundo álbum, Binary (Skirl Records, 2016), ela se inspira nas temáticas do universo cibernético e de como essas redes e tecnologias impactam nossas vidas: a peça "Meme" foi inspirada na nova cultura dos memes, distrações que tanto consumimos neste novo século; a série de peças curtas "Rectangles" foi inspirada por um canal enigmático do YouTube chamado "WebDriver Torso"; a peça "Impulse Purchase" (de 14 minutos) é uma transliteração musical do próprio endereço IP de Webber; a faixa-título é baseada em uma série de números e letras produzidos por um gerador de dígitos binários aleatórios; e há outras peças que foram conduzidas usando um aplicativo que converte fala em batidas de tambor. Em outubro de 2024, Anna Webber e este seu trio lançaram o terceiro álbum O Simpletrio2000 pela Intakt: trata-se de um lançamento comemorativo aos 10 anos da banda, onde a compositora segue em pleno continuum com peças hiper criativas cheias de escrita elaborada com mudanças rítmicas rebuscadas, técnicas estenditas e improvisos que se enxertam às partes escritas já numa idiomática altamente única, singular.
Clockwise & Idiom: a construção de um universo idiomático com remodulações de elementos da música erudita moderna, free improv e técnicas estendidas
.jpg)
Em Clockwise (Pi Recordings, 2019) e Idiom (Pi Recordings, 2021), Anna Webber consolida seu objetivo central de construir um universo idiomático pessoal a partir da fusão entre técnicas formais herdadas da música erudita moderna e a incorporação sistemática de técnicas instrumentais estendidas advindas da improvisação livre, tendo o jazz contemporâneo como um arcabouço. O resultado é uma música que articula, ao mesmo tempo com precisão e risco, o ponto de encontro entre a disciplina da música de câmara contemporânea e a imprevisibilidade da música improvisada, trazendo também estruturas elaboradas que deixam portas abertas para o livre improviso. O ponto exploratório central de Clockwise é a possibilidade de usar ideias intrincadas advindas de peças para eletroacústica e percussão da música erudita moderna para esculpir o idioma jazzístico particular da compositora. Para gestar Clockwise, Webber passou meses pesquisando partituras e gravações de peças de Iannis Xenakis, Morton Feldman, Edgard Varèse, Karlheinz Stockhausen, Milton Babbitt e John Cage, isolando passagens, gestos rítmicos, texturas e estratégias de espacialização não com a intenção de fazer uma releitura ou reproduzir tais elementos, mas de extrair ideias para reconfigurá-las em novos processos e módulos que dessem vida a novas composições originais. Para a empreitada ela forma um septeto com Jeremy Viner (tenor saxofone, clarinete), Jacob Garchik (trombone), Christopher Hoffman (violoncelo), Matt Mitchell (piano), Chris Tordini (contrabaixo) e Ches Smith (bateria, vibrafone, tímpanos). Com essa banda podemos dizer que Webber consolida seu objetivo reformular seu senso de fraseados, arritmias, improvisações, buscas timbrísticas, sobreposições, espaçamentos e arranjos dentro de uma determinada verve jazzística constituída de certas estruturas elaboradas e composicionais, com algum espaço aqui e ali para os livres improvisos. As peças "Korē I" e "Korē II", por exemplo, reimaginam a espacialidade das estruturas de Persephassa, de Xenakis, em figuras polirrítmicas e em padrões rotativos que soam como engrenagens em movimento. Da mesma forma, nas peças "King of Denmark I–III", "Loper" e na faixa-título "Clockwise", Webber filtra respectivamente traços de Feldman, Varèse e Stockhausen para produzir drones, espacialização, estruturas, improvisações granuladas, modularidade circular, articulações, frases, sobreposições e microfricções tímbricas que privilegiam timbre, densidade e arritmias. Já a faixa "Array" exemplifica uma conjunção de efeitos pontilhistas com stacattos e ressonantes notas curtas assimetricamente espaçadas sendo conduzidos por um swing jazz, com uma diluição desses efeitos em sobreposições mais próximas ao post-bop na parte final da peça. A estruturação e a arquitetura final do disco, portanto, são construídas e arranjadas para que os improvisadores atuem entre as zonas limitadas pela pré-composição até a construção final da peça, em que a composição previamente elaborada e escrita só atinge seu status de peça finalizada com a inclusão de novos materiais e ideias improvisados em tempo real, de modo que o improviso exista como variável interna da forma e não como antítese à composição. Outros elementos importantes dentro dessa busca idiomática de Anna Webber são a microtonalidade —— o uso pontual de microtons cromáticos —— e as técnicas estendidas, os quais ainda hoje são tidos como elementos de exploração experimental e não como elementos composicionais e idiomáticos. Anna Webber parece querer se desafiar a trazer esses elementos experimentais para dentro da sua construção idiomática e composicional, usando, para tanto, muito do conhecimento e da experiência prévia do período em que estudou música erudita moderna e teve contato com o avant-garde europeu em Berlim. O álbum seguinte em que Webber expande essas explorações é Idiom (Pi Recordings, 2021).
O projeto de Idiom é estruturado como uma série de seis peças em um álbum duplo, nas quais cada movimento explora um conjunto de técnicas estendidas; e, de acordo com o próprio vocabulário improvisacional usado pela saxofonista, essas técnicas estendidas são: os multifônicos, as técnicas de sopro e manipulação de ar (overblows), articulações inusuais (false fingerings), clicks e explorações dos ruídos das chaves dos instrumentos (key-clicks), uso percussivo dos instrumentos de sopro, pizzicatos e exploração de ruídos nos instrumentos de cordas, técnicas inusuais de embocadura e outros efeitos aerofônicos. Para gestar Idiom, então, Webber codifica essas técnicas estendidas dentro de estruturas, células, escalas, acordes e arranjos que transformam explorações antes consideradas apenas informais, improvisativas e experimentais em matéria formal para a composição das peças e a construção do idioma, abrindo assim um precedente para que técnicas antes consideradas informais sejam formalizadas como ingredientes definitivos da composição contemporânea —— e, nesse caso, ainda considerando o espaço dado ao improviso jazzístico. É interessante notar que o álbum duplo traz duas formações instrumentais. Essa codificação aparece, então, em microescala com o Simple Trio (com Webber, Matt Mitchell e John Hollenbeck) e em macroescala no grande ensemble articulado a partir dos seis movimentos da peça Idiom VI, em que ouvimos um conjunto de 12 instrumentistas com cordas, metais, sintetizador, baixo, bateria e regência. E, seguindo sua sina de hibridizar essas várias possibilidades —— de técnicas estendidas, de sons, de improvisos e de estruturas —— dentro de um idioma pessoal e de uma originalidade composicional, Anna Webber utiliza fartos recursos de interlúdios, motivos curtos, enxertos de improvisos, condução gestual, entre outros, os quais estruturam e delimitam os espaços desses recursos em um todo coeso, permitindo precisão interpretativa sem sacrificar a espontaneidade. No álbum Idiom temos, então, uma massa polifônica densa provocada pela ênfase em técnicas estendidas, em que as texturas e ruídos eletrônicos soam rigorosamente organizados por processos previamente elaborados, incluindo contrapontos tímbricos, densidades variáveis e livres improvisos. O que unifica Clockwise e Idiom é, portanto, uma mesma poética que busca construir um universo idiomático pessoal rico: extrair processos e motores formais do repertório modernista para reconfigurá-los em dispositivos composicionais que incluam a ação improvisatória e, em paralelo, transformar técnicas estendidas em ingredientes formais de construção composicional. Indo nessa direção, Anna Webber segue construindo uma visão idiomática em que a dicotomia entre a composição escrita e o livre improviso se dissolve em práticas de grupo em que os músicos dos seus ensembles podem enxertar patches e sons advindos de improvisos e técnicas estendidas como elementos definidores das peças. Muito criativo!!!
Webber/ Morris Big Band - Both Are True (2020) & Unseparate (2025): uma big band estendida, a busca pela evolução trans-idiomática da orquestração do jazz
★★★★ - Webber/Morris Big Band - Unseparate (Out of You Head Records, 2025) Estabelecendo uma coautoria com a compositora e multi-instrumentista Angela Morris, de Nova York, entre 2019 e 2020, Anna Webber inaugurou sua incursão na seara da big band com um ensemble híbrido que reformula a big band de jazz por meio de novos arranjos, novas misturas de estruturas e conceitos e novas inflexões idiomáticas. O álbum de estreia desse projeto foi Both Are True, no qual Anna Webber e Angela Morris iniciam a proeza de reinventar a big band contemporânea sem abandonar suas raízes históricas e sem perder a conexão com a tradição da orquestração do jazz. Lançado em 2020, o disco foi imediatamente celebrado por críticos como um dos melhores álbuns do ano, aparecendo em várias listas e publicações de prestígio. O álbum reverbera influências diversas que vão da orquestração de Duke Ellington aos ecos da música erudita moderna, do cool jazz de Gil Evans à contemporaneidade de Carla Bley, passando também pelas interações conceituais de Anthony Braxton e pelas intrincadas estruturas do free jazz contrapontístico de Tim Berne —— cuja linguagem influencia diretamente a busca idiomática de Anna Webber, diga-se de passagem ——, uma hibridização que confere às orquestrações um intrigante senso de estruturação, contraponto polirrítmico e ornamentações tímbricas inusitadas, oferecendo ao fã de jazz contemporâneo uma abordagem coletiva que desafia o ouvinte a pensar a big band como um ensemble trans-idiomático. Na história das big bands e orquestras de jazz, podemos resumir que as duas principais vias estéticas de desenvolvimento da orquestração transcorreram sob as bases de Duke Ellington, de um lado —— com arranjos intrincados e densos, explorações luminosas e agudas dos naipes de metais e o uso idiomático do swing, das sobreposições em contrapontos e das síncopes ——, e sob as influências de Gil Evans, de outro —— com uma abordagem voltada ao cool jazz, arranjos sinfônicos suaves explorando o registro médio dos instrumentos e a busca de uma estética mais melodiosa, intimista e impressionista. Nas últimas décadas, contudo, essas duas vias de orquestração foram atualizadas e renovadas por mestres arranjadores como Wynton Marsalis (com suas suítes e composições extensas que exploram novas misturas por meio da influência de Duke Ellington), Jim McNeely (dono de um arranjo e de uma escrita altamente sofisticada, influenciado por orquestradores como Mel Lewis, Thad Jones e Bob Brookmeyer), Maria Schneider (inovadora inconteste da orquestração do jazz, trazendo um novo formato e novos arranjos a partir das influências de Gil Evans e Bob Brookmeyer) e Darcy James Argue (que incorporou novas temáticas e elementos contemporâneos da tríade pop–rock–eletrônica à intrincada orquestração de jazz). Um tanto distinto dessas duas vias principais de desenvolvimento, temos ainda os trabalhos e projetos do baterista e compositor John Hollenbeck, que, nos últimos anos, vem explorando um novo formato camerístico-orquestral com seu Large Ensemble, incorporando elementos do jazz contemporâneo, do avant-garde erudito, do avant-pop e da música minimalista. O que Anna Webber e Angela Morris fazem é levar a big band e a orquestração do jazz a um estágio em que elementos advindos dessas duas principais vias históricas se hibridizem com elementos idiomáticos, composicionais e estilísticos provenientes de outras frentes outsiders, tais como o free jazz estruturado de Tim Berne, o avant-garde orquestral de Anthony Braxton, as explorações tímbricas de Iannis Xenakis e dos ensembles de música erudita moderna, o Large Ensemble de John Hollenbeck e suas próprias visões idiomáticas e combinações pessoais de arranjos, entre outras. A forma extremamente original como Anna Webber e Angela Morris articulam essas influências cria um novo híbrido orquestral camaleônico, abrindo espaço até para explorações de novas afinações em just intonation (afinação justa), novas combinações de timbres, efeitos microtonais e técnicas estendidas. Elementos como a ruidosa introdução da faixa "And It Rolled Right Down", o uso de texto falado e do coro de vozes presentes nas peças "Climbing on Mirrors" e "Reverses" e a atmosfera vanguardista, sombria e ruidosa da faixa-título "Both Are True" corroboram essa hibridização trans-idiomática. Agora, em 26 de setembro de 2025, foi lançado pela gravadora independente Out of Your Head Records o álbum Unseparate, segundo trabalho da Webber/Morris Big Band, que consolida o projeto coliderado por Anna Webber e Angela Morris como uma das mais inventivas forças orquestrais do jazz contemporâneo. Com uma formação atualizada de 19 músicos —— expandindo o padrão de 15 integrantes das big bands tradicionais ——, a Webber/Morris Big Band apresenta um repertório de 11 faixas que articulam essa escrita orquestral hibridizada com improvisações estruturadas, novas explorações de timbres, novas investigações tonais e espaços para o livre improviso, trazendo peças de rara inventividade. A suíte Just Intonation Etudes for Big Band —— composta por Webber em quatro movimentos (“Unseparate 1”, “Pulse”, “Timbre” e “Metaphor”) —— investiga, por exemplo, a estranheza da afinação justa (just intonation), alternando drones tonais, camadas contrapontísticas densas, explosões rítmicas e solos de flauta e sax-tenor. Já as peças “Mist/Missed”, “Microchimera”, “Habitual” e as subsequentes “Unseparate 2”, “3” e “4” caminham em direção criativa que amplia, entre outros elementos, o uso de influências do minimalismo, da new music e de linhas melódicas que trazem ecos do avant-pop. A faixa “Spur 7: Metamorphosis”, originalmente encomendada pela Trondheim Jazz Orchestra, encerra o ciclo temático com uma abstração mais vibrante e vigorosa. Destacam-se, entre outros, os solos da própria Anna Webber, com seu sax-tenor e flauta, e os solos de trombone de Tim Vaughn.
adjust - Anna Webber & Anzu Quartet: a incursão na música erudita de câmera
★★★★ - adjust - Anna Webber, Ken Thompson & Anzu Quartet (Cantaloup Music, 2025) Atualmente, neste início de século 21, é um percurso natural que os músicos mais criativos do jazz adentrem o universo composicional da música erudita. Neste álbum, Anna Webber adentra o universo da música de câmara contemporânea, apresentando uma obra marcada por ecos do jazz, da livre improvisação, das técnicas estendidas e por uma paleta de referências que vai do avant-garde de Anthony Braxton à música espectral de Gérard Grisey, considerando ainda ecos advindos de Olivier Messiaen. Lançado em 25 de abril de 2025 pela gravadora Cantaloupe Music, adjust marca também a estreia fonográfica do Anzû Quartet —— formado por Olivia De Prato (violino), Ashley Bathgate (violoncelo), Ken Thomson (clarinete) e Karl Larson (piano) —— quatro intérpretes consagrados da cena de música contemporânea de Nova York, numa formação inspirada na instrumentação do Quatuor pour la fin du temps, de Olivier Messiaen. O projeto apresenta duas obras de fôlego: a suíte adjust (cinco partes), composta em 2022 por Anna Webber especialmente para o quarteto, e a tríptica Uneasy (três movimentos), escrita por Ken Thomson entre 2017 e 2019 e originalmente encomendada pelo Unheard-of//Ensemble. Com duração total de 40 minutos, o álbum traz um encarte de 16 páginas com notas de Karl Larson, detalhando os procedimentos composicionais empregados pelos dois criadores. Uma atenção especial é necessária para compreender o conjunto de processos que Anna Webber incorpora em cada camada de suas peças. Além das seções previamente estruturadas e totalmente notadas, a compositora inclui gestos rítmicos sem alturas definidas, concedendo ao intérprete liberdade para determinar as notas específicas. Em outros trechos —— como no terceiro movimento —— Webber exige que cada músico combine ou mescle “material primário” e “material secundário”. Há também passagens em que a compositora sugere que os integrantes do quarteto improvisem contrarritmos e contrapontos polirrítmicos sobre as linhas escritas, iniciando juntos, mas sem sincronização. Em momentos adicionais, ela solicita que os músicos interponham o “material secundário” sobre o “material primário” à vontade, interrompendo e reformulando a textura previamente estabelecida. Seguindo uma linhagem trans-idiomática que dialoga com os jogos e rituais composicionais de Anthony Braxton, Webber busca revelar um todo coeso que, apesar dos numerosos elementos experimentais, mantém um senso idiomático próprio. Fiel à sua prática de integrar improvisação livre às estruturas notadas, a compositora abre espaço para que o clarinete improvise à vontade no quarto movimento, instruindo Ken Thomson a “improvisar livremente” sobre as camadas suavemente repetitivas entrecruzadas por violino, violoncelo e piano. Assim, interpolações, enxertos, bitonalidades, atonalidades e efeitos assíncronos coexistem em um conjunto inventivo e repleto de surpresas. Esteticamente, adjust situa-se na intersecção entre música de câmara contemporânea e elementos oriundos do jazz experimental, incorporando técnicas estendidas —— uso não convencional do arco e dos sopros, pizzicatos, multifônicos, microtonalidades, timbres percussivos e improvisação controlada —— para criar um discurso que oscila entre o sombrio e o luminoso, alternando tensão e fluidez em fluxo contínuo. A peça-título reflete o “ajuste” entre escrita e improvisação: o termo funciona como metáfora para a retomada da vida e das atividades no período de encerramento dos lockdowns e do retorno pós-pandemia, explorando, de forma imagética, muitos dos contrastes e complexidades daquele momento. Já Uneasy, de Ken Thomson, traduz em textura cinética as ansiedades do mundo moderno. Trata-se de um registro que nos permite atestar, com clareza, as intenções criativas e inovadoras de Anna Webber nesse território mais erudito da new music. Uma das surpresas de 2025!