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Há tempos sigo os rumos da eletrônica e acompanho revistas especializadas do gênero tais como Electronic Sound e Disco Pogo para estar inteirado sobre os artistas que estão inovando nesta seara. Nosso foco aqui é a música eletrônica de verve improvisacional e composicional. A eletrônica, como um meio de criação e expressão musical, é um ingrediente importante da contemporaneidade desde os tempos em que músicos hipercriativos tais como Sun Ra, Miles Davis e Herbie Hancock inundaram o jazz com os primeiros instrumentos eletrônicos, inaugurando as estéticas do afro-futurismo e do jazz-fusion. Numa extensão natural, a eletrônica evolui para ser uma das gêneses da cultura pop e para se tornar um gênero musical independente quando grupos e figuras inovadoras tais como Kraftwerk, Jean-Michel Jarre e Ryuichi Sakamoto lançaram álbuns completamente repletos de sintetizadores, vocoders, mixers, samplers, processadores e outros aparelhos, nos apresentando um universo sonoro completamente novo e nos fazendo imergir numa contemporaneidade embebecida de inovações digitais, ficção científica e futurismo. Hoje, aquele futurismo setentista e oitentista dos primeiros sintetizadores portáteis já nos soa vintage, mas os ecos criativos daqueles sons eletrônicos ainda soam inovadores e são repaginados em novas miríades e novas combinações com sons orgânicos. Junto à tecnologia, há os aspectos socioeconômicos que influenciam as culturas e as artes. Nos últimos tempos, aliás, a palavra da vez tem sido a distopia: as verdades absolutas ruíram, as utopias do belo e do bem-estar comum foram esfaceladas pelo capitalismo e o mundo vive uma loucura sem explicação marcada por um conflito de gerações, um choque de declínio da inteligência humana e expansão da inteligência artificial e um choque ético-moral entre o que é verdade e o que é distorcido pelas fake news —— paradoxalmente, num momento da humanidade onde a tecnologia deveria estar trazendo cada vez mais lucidez e conhecimento, as pessoas estão cada vez mais mentalmente doentes e o humanismo e a inteligência humana estão cada vez mais em declínio. Nesse sentido, esse movimento de músicos de eletrônica que estabelecem certa organicidade entre a arte de crivo humanista e a arte feita a partir de máquinas e computadores tem sido acalentador e importante. Nos anos da COVID-19, publiquei aqui posts com vários músicos e conjuntos pioneiros nos mais variados estilos de música eletrônica. E aqui neste post, a intenção é mostrar como alguns desses artistas tem levado a eletrônica rumo a novas miríades de conceitos e misturas experimentais. Abaixo, então, lhes apresento 11 artistas que lançaram álbuns interessantes nesta seara entre 2024 e 2025. Ouçam!!!
★★★★ - Squarepusher - Dostrotime (Warp Records, 2024)
O décimo sexto álbum do multiinstrumentista britânico Tom Jenkinson, um dos músicos de eletrônica mais aclamados em todo mundo —— mais conhecido por seu pseudônimo de Squarepusher ——, foi inspirado pelos momentos de solidão que ele viveu nos lockdowns da COVID-19. Em janeiro de 2024 seus fãs mais assíduos receberam por e-mail a oportunidade de fazer o download de um arquivo WAW intitulado "XY.wav": era o prenúncio do álbum Dostrotime. O título do álbum lhe veio em mente quando ele ele usou um osciloscópio e o sinal plotado lhe fez imaginar o título "Dostrotime". Da mesma forma, os títulos das outras faixas do álbum foram imaginados ou inventados de acordo as batidas, os sons e seus sinais plotados. Lançado em março de 2024 no Bandcamp e no Bleep, o álbum só foi completamente liberado no Spotify no final de 2024, aos poucos alcançando seu público e aclamação de crítica. Squarepusher é um daqueles artistas de música eletrônica que sempre lança álbuns com notável profundidade e surpreendente amplitude: a profundidade vem pelas harmonias e técnicas avançadas com as quais ele aborda seus instrumentos eletrônicos, elétricos e acústicos; a amplitude vem pelas variadas inspirações, que vai desde o drum'n'bass e a IDM mais dançante até o jazz, passando por atmosferas experimentais inexplicáveis. Neste álbum, a base ainda é seu drum'n'bass e a IDM de batidas complexas e frenéticas, mas as atmosferas —— até por se inspirar na pandemia —— emanam certo teor nostálgico, distópico, atemporal, e ele também passa pelo uso de instrumentos acústicos e mais orgânicos como violão (guitarra acústica), guitarra elétrica e contrabaixo, remetendo-se ao jazz. Squarepusher é muito aficionado pelo contrabaixista de jazz Jaco Pastorius e na faixa "Stromcor", por exemplo, ele usa notavelmente sua técnica de bassline e frases frenéticas ao contrabaixo. Justificando esse teor mais nostálgico e distópico das atmosferas em toda a set list, Tom Jenkinson afirmou que, apesar do clima mórbido e do desespero das pessoas naquela época, os momentos de solidão da pandemia lhe proporcionou uma quietude e um tipo de felicidade que ele raramente havia desfrutado: não havia mais a agenda frenéticas de compromissos, shows, idas e vindas em aeroportos, seu ambiente caseiro parecia um santuário e o tempo agora parecia estático, um tipo de quietude que lhes proporcionou apenas a simplicidade de estar quieto e de, quando inspirado, poder criar e gravar música. Excelente álbum!!! Ouçam!!!
★★★★ - Stereolab - Instant Hologram on Metal Filmes (2025)
A inovadora banda franco-inglesa Stereolab —— fundada em 1990 pela vocalista e multiinstrumentista francesa Lætitia Sadier e seu então parceiro, o guitarrista inglês Tim Gane —— voltou de um longo hiato de 16 anos após seu último álbum Not Music (Duophonic, 2010) para registrar este fantástico álbum de canções inéditas, retornando no seu melhor estilo sempre inconfundível. Banda que os críticos louvam como sendo pioneira de estilos como avant-pop, post-rock, indie-rock, rock alternativo, dentre outros —— sem nunca saberem em quais desses rótulos a banda realmente se encaixa ——, o Stereolab amalgamou elementos de gêneros variados tais como lounge music, música minimalista, jazz, bossa-nova, MPB, space-age, easy listening, drum'n'bass e eletrônica vintage para construir sua própria sonoridade e sua própria amálgama e ser uma das bandas de estilo mais único e iningualável de todos os tempos. Este álbum Instant Holograms on Metal Film já começa com uma curta faixa de introdução que resgata a eletrônica vintage a partir de uma miríade de sintetizadores analógicos e modulares, borbulhando como uma trilha futurista de ficção científica dos anos de 1970 ou do início dos anos 80. Depois, na segunda e terceira faixas, a banda já retorna ao seu rock "yeah-yeah-yeah" de outros tempos com aquela alegria nostálgica mista de tristeza reflexiva que caracterizou um tanto da vibe dos seus discos na segunda metade dos anos 90 e início dos anos 2000: a letra da segunda faixa, inclusive, adota um tom de crítica e conscientização em torno do consumismo desenfreado, uma das consequências nocivas desse capitalismo doentio ao qual estamos submetidos —— lembrando que a banda sempre adotou letras reflexivas e hiper inteligentes mais próximas da distopia, das reflexões filosóficas e da ideologia socialista. Já na quarta faixa, Immortal Hands, a banda chega a um dos pontos altos da set list mudando o humor com uma harmonia e uma instrumentação mais fresca a partir da combinação de violão (guitarra acústica), orgão, synths, marimba..., daí mostrando uma sequencia inusitada de acordes que se remete ao jazz, bem como mostrando uma instrumentação que ora pende para a eletrônica e outrora sofistica-se, no meio da faixa, com sopros de trombone e flauta... Aliás, para quem é fã da banda já é conhecida as recorrentes combinações sequenciais de arranjos sofisticados, letras em inglês e em francês, as recorrentes mudanças com ritmos ímpares e quebrados, e os grooves e combinações instrumentais nos entremeios das faixas, um recheio de características que o Stereolab faz de forma tão elaborada quanto coesa.
E assim, sem subtrair nada do seu estilo único, o Stereolab nos traz este seu 11º álbum de inéditas —— lembrando que seus igualmente ricos álbuns de compilações são um deleite à parte dessa lista. Instant Holograms on Metal Film nos mostra, então, que seu estilo lúdico, vintage, reverberante e inovador continua tão único quanto atraente. Apesar da percepção de que aqui neste seu retorno o Stereolab quis brindar seus fãs com uma boa dose de pop-rock entusiasmante ao estilo do "yeah-yeah-yeah", Instant Holograms on Metal Film é um álbum eclético em seus detalhes e traz um mosaico variado de combinações, arranjos, efeitos, tons e humores, passando por instrumentais de eletrônica vintage como na alegre faixa "Electrified Teenybop!" até alcançar outros pontos altos, como nos arranjos jazzísticos e no groove da faixa "If You Remember I Forgot How to Dream Pt. 1". E para finalizar, a faixa "If You Remember I Forgot How to Dream Pt. 2" encerra o álbum com uma arranjo de clarinete, synth e guitarra reverberante seguido de um bassline de groove inusitado no back-end, enquanto uma melodia triste e nostálgica paira na superfície. Os arranjos e instrumentações são, enfim, sempre muito bem elaborados e amalgamados, acrescentando pontualmente, faixa a faixa, sons orgânicos de trombone, flauta, clarinete, marimba e glockenspiel junto aos sons elétricos das guitarras reverberantes e aos sons eletrônicos vintages de orgãos, Rhodes, Farfisa, Wurlitzer, drum machine, Moog e synths correlatos. Há um frescor latente nas linhas de baixo que ora utiliza o velho e bom contrabaixo elétrico e outrora utiliza os graves eletrônicos de um synth bass em algumas faixas. Outra característica marcante foi a manutenção dos backing vocals ao lado da voz marcante de Lætitia Sadier: as atmosferas e vibes que os vocais acrescentam às faixas até nos teletransportam para os bons tempos em que Sadier e a falecida Mary Hansen elaboravam vocais e backing vocals hiper marcantes e criativos. E assim, mantendo seus títulos inteligentes, suas letras filosóficas e seu estilo vintage inigualável acrescido de um singelo toque de frescor contemporâneo, o Stereolab retorna depois de 16 anos para brindar sua arte musical admirável e seu crescente número de fãs nostálgicos —— apesar de se tratar de uma banda alternativa e experimental, o som hiper elaborado da banda não apenas continuou a manter seus seguidores, mas também conquistou novos fãs mesmo após uma década e meia de inatividade, principalmente fãs de jazz e de outros tipos de músicas criativas. Instant Holograms on Metal Film traz, entre seus colaboradores, o produtor e músico Cooper Crain (membro das bandas Cave e Bitchin Bajas), o cornetista de jazz Ben LaMar Gay e o percussionista Ric Elsworth. Grande retorno!!!
★★★★ - Mark Pritchard & Thom Yorke - Tall Tales (Warp, 2025)
Mark Pritchard, um dos DJ's e produtores de música eletrônica mais aclamados da Inglaterra, tem gravado diversos álbuns, EP's, singles e demos sob diversos pseudônimos, em diversos estilos e com diversos parceiros e bandas. Aqui neste álbum acima ele se junta ao legendário Thom Yorke, vocalista da icônica banda Radiohead, para lançar um álbum misto de canções e amostragens eletrônicas, também evocando certa melancolia dos tempos pandêmicos. Em 2020, durante a pandemia de COVID-19, Yorke enviou um e-mail para Pritchard pedindo que ele lhe enviasse algumas gravações para manipular em casa enquanto o mundo passava por seguidos lockdowns. Pritchard lhe enviou cerca de 20 demos, e Yorke começou a escrever letras e trabalhar nos processamentos eletrônicos dos seus vocais. Mais tarde, Yorke começou a enviar as demos com seus vocais de volta para Pritchard. E assim, à distância, foi gestado o registro dessa parceria. Mark Pritchard conta que Thom Yorke lhe forneceu, aliás, não apenas os vocais processados via synths e caixa de voz EHX, mas acrescentou diversos efeitos de sintetizadores modulares e outras ideias de instrumentações complementares. Evocando as atmosferas distópicas daqueles tempos pandêmicos através de drones sombrios e uma diretriz mais experimental, a dupla preferiu usar sintetizadores obscuros e antigos processadores eletrônicos em estúdios pioneiros tais como o Melbourne Electronic Sound Studio (na Austrália) e o Vintage Keys Studio (no Reino Unido), incluindo na instrumentação usos elaborados de synths e instrumentos tais como o Korg PS-3300, o Yamaha DX1, um Philips PMC 100, um Roland CR-78, uma máquina de ritmo de brinquedo Mattel Bee Gees, sintetizadores de válvulas dos anos 1950 e 60, clarinetes, corne inglês e oboé. Dessa forma, fica patente a vibe experimental do álbum, algo que a crítica especializada prontamente elogiou. Já as letras foram trabalhadas por Thom Yorke com certo teor crítico e filosófico, abordando temas tais como ganância, hipocrisia, distopia, crise climática, entre outros temas contemporâneos. O título do álbum, por exemplo, foi inspirado no famoso livro de George Orwell "Nineteen Eighty-Four". E, para dar um toque ainda mais conceitual, a dupla escalou o designer, multi-artista e filmmaker australiano Jonathan Zawada para elaborar a arte do álbum e o video correlato através de técnicas contemporâneas e inteligência artificial. Yorke e Pritchard gestaram um dos grandes álbuns de 2025!!!
★★★★ - Ikue Mori - Of Ghost and Goblins (Tzadik, 2025)
Artista com história na cena setentista e oitentista da no-wave nova-iorquina e requisitada improvisadora a partir da década de 90, Ikue Mori é uma pioneira da bateria eletrônica e do uso do laptop como instrumento musical para manipulações e improvisações em tempo real. Seus efeitos e improvisações eletrônicas ja enriqueceram diversos álbuns de músicos como John Zorn, Arto Lindsay, Kato Hideki, Fred Frith, Zeena Parkins, Sylvie Courvoisier, Craig Taborn, Susie Ibarra, Dave Douglas, entre muitos outros. Neste álbum acima ela usa seu laptop e outros aparelhos para compor peças em miniaturas baseadas em contos populares do Japão. A saga de miniaturas, na verdade, é dedicada ao jornalista, escritor e pesquisador Lafcadio Hearn. Fanático pelo folclore japonês, Lafcadio Hearn dedicou grande parte de sua vida pesquisando, documentando e preservando os antigos contos populares do Japão, tendo publicado uma série de livros no final do século XIX e início do século XX que incluía contos tais como "In Ghostly Japan", "Kwaidan" e "Glimpses of Unfamiliar Japan". Inspirada por esses contos e ficções, Ikue Mori constrói curiosas imagens sonoras sobre os personagens, mitos, monstros, insetos, fantasmas, duendes e outras figuras alegóricas do folclore e da mitologia japonesa. As diretrizes deste álbum, portanto, se diferem das diretrizes adotadas em suas gravações e participações em álbuns de terceiros com improvisos mais ruidosos e abstratos. Aqui Ikue Mori cria peças mais imagéticas, mais cinematográficas, justamente para levar sua imaginação de encontro com as figuras desses contos japoneses. Para tanto, entre suas instrumentações, ela usa o poderoso sintetizador-sequenciador-sampler OP-1 e seu rico arsenal de manipulações via laptop. Of Ghost and Goblins foi recentemente lançado pela Tzadik Records —— selo fundado por John Zorn, que também é o produtor deste álbum ——, e veio para fazer parte do catálogo de álbuns chamado Spectrum Series da Tzadik.
★★★¹/2 - Jahari Massamba Unit - YHWH is LOVE (Law of Rhythm, 2024)
Jahari Massamba Unit é um projeto do baterista de jazz e DJ Karriem Riggins, de Detroit, formado juntamente com o DJ e produtor de hip hop Madlib, da Califórnia. Ambos foram parceiros do legendário DJ e produtor J Dilla e são artistas que adotam uma diretriz mais elaborada do hip hop alternativo e do movimento neo-soul a eclodir entre fins da década de 90 e início dos anos 2000, uma diretriz que valoriza o jazz não apenas como o gênero que deu vida para a música afro-americana, mas o gênero que é base para a sedimentação e enriquecimento, também, do neo-soul e do hip hop. E nesse entremeio, outra base para a instrumentação é aquela eletrônica de frescor contemporâneo regada a sonoridades de piano Rhodes, sintetizadores e toca-discos. Em 2020, o álbum Pardon My French gerou muitos elogios e críticas positivas para a dupla e seu projeto Jahari Massamba Unit. E em 2024 a dupla lançou o este segundo continuum do projeto chamado YHWH is LOVE. Lançado pela gravadora Law of Rhythm, o álbum evidencia um elaborado caleidoscópio de sonoridades e os elogios dos fãs e da crítica se mantiveram. Com certa elaboração e certa dose de experimentalismo, Madlib e Karriem Riggins unem break bets de bateria acústica com sonoridades cósmicas de piano Rhodes, atmosferas de spiritual jazz com sonoridades afros de estilo world-fusion, além de beats, raps, samplers e vibes de hip hop com grooves jazzísticos somado a uma miríade de misturas de sonoridades advindas do universo "black music". Interessante é o equilíbrio singelo em como essas sonoridades, vibes, atmosferas, samplers e grooves se unem numa amálgama onde cada detalhe é elaboradamente pensado. Este projeto nos faz remeter à série de álbuns da gravadora Stones Throw composta pelas gravações dos projetos Yesterdays New Quintet e Yesterdays Universe, onde Mablib idealizou bandas de jazz fictícias com músicos fictícios para dar vazão à sua imaginação criativa sem limites. Na verdade, o baterista Karriem Riggins é o único integrante que realmente existe como pessoa naquela série de álbuns do Madlib e a primeira aparição do título "Jahari Massamba Unit" surge exatamente em 2007 no projeto Yesterdays New Quintet no álbum Prepare For A New Yesterday (Volume 1), gravação que inicia essa célebre compilação da Stones Throw. Então, de certa forma, o que Karriem Riggins e Madlib fazem aqui é um continuum a resgatar elementos dessa fase hipercriativa rumo a uma elaboração instrumental mais refinada.
★★★★ - Marcioz - MORRA RICO //ou// MORRA TENTANDO (jovemdeu$, 2025)
O artista experimental Marcioz, radicado na Alemanha, é atualmente um dos artistas brasileiros mais aclamados no exterior dentro do nicho da música eletrônica. Sua eletrônica é altamente quebradiça, experimental e idiossincrática, refletindo a própria personalidade complexa, eclética e mestiça do músico, que nos últimos anos tem explorado temáticas raciais, questões de gênero e outras temáticas do Brasil contemporâneo. Neste álbum, por exemplo, Marcioz claramente leva sua eletrônica experimental a explorar, com evidente teor sarcástico, as subculturas dos mais variados submundos e mundos periféricos. A começar pela temáticas do funk brasileiro e suas letras pornográficas que colocam a figura da mulher numa condição constrangedora de subserviência erótica, além de explorar questões ligadas aos extremos do feminismo e do machismo na contemporaneidade. Os títulos das peças deixam claro as temáticas —— vide as faixas TRÊS $EGUNDO (TOMA NA XERECA) e QUE DEU$ ABENÇOE O INCEL PARDO (O GRANDE FILHO DA PUTA) ——, e as colagens de letras distorcidas acabam por denunciar ao ouvinte a clara intenção de explorar elementos dessas subculturas que predominam tanto nas favelas e nas periferias quanto no submundo cibernético —— uma condição constante de degradação psíquica e social que predomina, aliás, pela própria falta de educação, arte e cultura à qual essa população periférica está submetida. O título do EP é outro exemplo: parece explorar a atual gana incessante das pessoas que buscam enriquecer através das redes sociais e dos aplicativos. Já a faixa QUE DEU$ ABENÇOE O INCEL PARDO (O GRANDE FILHO DA PUTA), por exemplo, faz menção ao movimento conhecido como "Incel" pelo qual jovens imersos em redes sociais são levados a adotarem a masculinidade tóxica e a cyberviolência contra mulheres, um extremo que conflitua com o feminismo radical e que tem contaminado as mentes de muitos adolescentes e jovens adultos na internet. Este EP de Marcioz não é indicado ao ouvinte purista e ortodoxo que acha que a música é uma expressão artística apenas para a beleza, a contemplação, o relaxamento e o alento. Mas se você é o tipo de ouvinte que vê na música um caminho ideal de arte provocativa e experimental para também explorar o contrário, o conflito, o bizarro, o estranho e o que há de sombrio na condição humana e na nossa contemporaneidade, então é para você que Marcioz elaborou estas gravações. O EP traz seis faixas curtas e perturbadoras e foi lançado pelo selo jovemdeu$, fundado pelo próprio artista para difundir suas criações experimentais. Participa como colaborador, na segunda faixa, o vocalista e produtor italiano-congolês Hans Arsen, outro dos artistas emergentes do ramo da eletrônica contemporânea.
★★★¹/2 - Zavoloka - Istyna (Independent, 2025)
A DJ, improvisadora e manipuladora de eletrônicos ucraniana Zavoloka —— radida em Berlim, Alemanha —— é uma aclamada musicista de eletrônica que trabalha tanto no vértice experimental quanto no vértice da música dançante. Seu álbum Plavyna (2005), por exemplo, é um registro aclamado que une os vertices da IDM (Intelligent Dance Music) com ruídos trabalhados no estilo glitch —— é um dos meus álbuns preferidos dentro desta seara de eletrônica experimental. Neste range, Zavoloka gosta de enxertar algumas das sonoridades mais tradicionais da cultura ukraniana em meio aos sons eletrônicos. Em álbuns mais recentes, porém, a artista tem soado menos experimental, mas sempre paisagística e sofisticada. Agora em 2025 ela acaba de lançar o álbum Istyna. O título significa "verdade" em ucraniano e está ligado ao conceito de libertação e liberdade interior. Também participa das gravações o músico Dmytro Fedorenko, também aclamadíssimo músico de eletrônica ucraniano e parceiro frequente de Zavoloka em outros projetos —— vide o projeto chamado Cluster Lizard. Uma das marcas de Zavoloka, como já citado, é a inserção de sons tradicionais em meio aos ruídos eletrônicos. Neste álbum Fedorenko enxerta sons de kobza e Zavoloka insere sonoridades de kalinka, ambos instrumentos tradicionais da tradição ucraniana. Para além do sentimento de pertencimento cultural, a artista tem se inspirado fortemente nestes tempos contemporâneos de guerra entre seu país e a Rússia. Istyna é um álbum, então, que traz tanto essa sua reavalização de olhar interior, de verdade interior, bem como reflete sobre seu sentimento de pertencimento patriótico. E esse tom reflexivo fica um tanto patente na set list deste álbum, que pode soar como uma viagem paisagística aos tempos de um passado ucraniano que não voltará tão logo.
★★★★¹/2 - Jameszoo - Music for 17 Musicians (Brainfeeder, 2025)
O compositor, DJ e manipulador de eletrônicos holandês Mitchel van Dinther (aka Jameszoo, vide foto no início do post) tem uma das mentes criativas mais instigantes da música contemporânea atual. Fanático por jazz —— fã confesso do pianista de jazz americano Herbie Hancock e do multi-instrumentista brasileiro Hermeto Pascoal —— e estudioso confesso das obras da música erudita moderna, Jameszoo tem um estilo intrincado e totalmente único e caminha para se tornar uma das figuras renomadas da música contemporânea através das suas intersecções entre música erudita, jazz e eletrônica. O álbum acima começou a ser gestado quando Jameszoo foi convidado para escrever uma peça instrumental para a renomada orquestra de câmera holandêsa Asko|Schönberg —— um dos ensembles seminais e históricos na disseminação de obras dos grandes compositores de música erudita moderna, do século 20 e deste início do século 21. Jameszoo começou a seguir essa nova trilha de elaborar peças orquestrais em 2019 a partir do seu projeto com a orquestra muiltidisciplinar Metropole Orkest: na ocasião ele teve o apoio do maestro e arranjador Jules Buckley para adaptar as faixas do seu álbum de música eletrônica Fool (Brainfeeder, 2016). Agora, neste novo projeto com a Asko|Schönberg, Jameszoo teve uma nova ideia conceitual e experimental que expandiu ainda mais seus limites nesse processo de interseccionar manipulação eletrônica, jazz e música para orquestra. A ideia do compositor foi a de "separar a figura e o feitio do compositor da própria interpretação da música". Ou seja, sempre quando falamos de obras de compositores geniais como Vivaldi, Bach, Mozart, Beethoven, Brahms, Schoenberg e até Philip Glass e Steve Reich, tais obras estão completamente relacionadas com a figura e com as intenções do compositor —— muitas das vezes a figura do compositor é maior até mesmo que a própria obra. Jameszoo se perguntou, então, em como seria a experiência se ele criasse uma "peça autônoma" em que suas intenções ficassem em segundo plano e os próprios instrumentistas pudessem se contracenar com instrumentos robóticos, e ambos pudessem interferir na interpretação da peça de forma imprevisível. A chave para trabalhar essa ideia foi unir elaboração previamente escrita com improvisação e com algoritmos. Para início, Jameszoo lembrou, então, em como a pianola —— piano inventado no final do século 19 para reproduzir musica de forma automática —— foi um dos instrumentos precursores nessa faceta. O compositor utiliza, então, um disklavier com interface MIDI (Musical Instrument Digital Interface) e um conjunto de algoritmos programados nos modelos computacionais Markov e LSTM, modelos usados em sistemas estatísticos e sistemas de autoaprendizagem para analisar e gerar dados. Jameszoo une, então, 17 músicos para essa sua genial sua empreitada: os músicos da Asko|Schönberg, o grupo de percussão HIIIT, seu trio de improvisadores e músicos de jazz formado por Niels Broos (órgão, synths), Petter Eldh (baixo elétrico) e Richard Spaven (bateria) e um disklavier conectado via MIDI e autogovernado via algorítmos no centro do palco. A peça faz referência a uma das obras seminais do repertório do compositor minimalista Steve Reich —— "Music for 18 Musicians", lançada em álbum em 1978 pela ECM —— e é uma adaptação multicamadas do seu álbum de eletrônica Blind (Brainfeeder, 2022). Dessa forma, Mitchel van Dinther cria uma híbrida peça com elementos de improvisação livre, jazz, música eletrônica e música erudita onde há multicamadas de sons acústicos-orgânicos com sons eletrônicos entrelaçados, bem como há esse lance da imprevisibilidade via algoritmos computacionais. Com certeza este já é um dos álbuns mais instigantes nas estantes de música erudita em 2025!!! Ouçam!!!
★★★★ - Mark Guiliana - MARK (Edition Records, 2024)
Mark Guiliana é um dos grandes bateristas de jazz da atualidade e um dos criadores musicais que estão na vanguarda das intersecções entre a percussão e a eletrônica. Seu grupo Beat Music, por exemplo, está na vanguarda da eletrônica e sua carreira, por vezes, expande e até transpassa todos os seus próprios limites orgânicos e sintéticos. Neste álbum acima, Mark Guiliana se desafia a ser uma espécie de homem-banda e, sozinho, ele cria peças expansivas que levam sua bateria e seus kits de percussão para o plano da eletrônica de várias formas e em várias misturas que desafiam classificações. Aqui neste álbum de 2024, Mark Guiliana usa bateria, pratos, variados kits de percussão, piano, vibrafone, marimba, celesta, órgão de bombeamento, mellotron, sintetizador Júpiter-8 e vários outros sintetizadores e eletrônicos, além de programação de bateria via laptop, sons pré-gravados... e inclui nesta miríade um pouco de spoken word em algumas faixas. A intenção parece clara: o baterista mostra um claro continuum do seu álbum anterior Music for Doing (2022) e segue demonstrando que sua verve autoral se expandiu para os confins desse encontro entre sons orgânicos percussivos e sons eletrônicos, se expandiu da bateria para o uso irrestrito de outros instrumentos e kits de percussão dentro desse experimental encontro de sons percussivos com a eletrônica contemporânea. Mas neste álbum, Guiliana também demonstra certa sensibilidade melódica e muita elaboração na combinação de efeitos timbrísticos, nos expondo a uma set list que vai de melodias marcantes e reflexivas, passa por paisagens intimistas e atmosferas incidentais e, em equilíbrio, também aborda beats e grooves complexos. Excelente álbum lançado em 2024 pelo selo inglês Edition Records. Aqui, vale a dica em retornar aos seus álbuns anteriores, seu Music for Doing (2022) e seus álbuns com o grupo Beat Music, para recapitular em como o baterista segue evoluindo nessa sua intersecção hipercriativa de beats e bytes.
★★★★ - Bugge Wesseltoft - Am Are (Jazzland Records, 2025)
Desde os anos 90 o pianista de jazz norueguês Bugge Wesseltoft tem sido uma das figuras centrais dos subgêneros do fusion e do nu jazz (estilo que também é conhecido como jazztronica). Influente nos círculos escandinavos do jazz e da eletrônica, Bugge Wesseltoft tem uma notável série de álbuns chamada "New Conception of Jazz" que levou o jazz acústico nórdico rumo às intersecções com a eletrônica entre meados dos ano 90 até meados dos anos 2000. Em tempos mais recentes, sua parceria com o DJ e manipulador de eletrônicos alemão Henrik Schwarz —— um dos ases do deep house europeu —— tem gerado álbuns hipercriativos, levando essa sua interseção entre o jazz e a eletrônica a novos patamares. Neste álbum acima, Wesseltoft junta suas teclas —— seu piano acústico, seu Rhodes e seus synths —— e cria um caleidoscópico mosaico de sons eletro-orgânicos junto a uma dezenas de grandes parceiros. Tendo a contribuição dos vocais da cantora Rohey Taalah em uma das faixas e variando também entre passagens com efeitos atmosféricos e linhas de improvisos, Bugge Wesseltoft e seus parceiros criam faixas que desafiam quaisquer senso de classificação. Junto às teclas de Bugge Wesseltoft achegam-se beats sofisticados de baterias acústicas, os sons de harpa e tablas da percussionista nepalesa Sanskriti Shrestha e os grooves de contrabaixos acústicos, contrabaixos elétricos e synth bass, instrumentações que criam um caleidoscópico de variadas sonoridades que, juntas, dão vida para faixas poderosas do mais universalista jazz contemporâneo. Colaboram, então, músicos importantes do cenário escandinavo tais como os bateristas e percussionistas Jon Christensen, Gard Nilssen e Øyunn, os contrabaixistasJens Mikkel Madsen, Arild Andersen e Sveinung Hovensjø, o guitarrista Oddrun Lilja e o saxtenorista Martin Myhre Olsen.
★★★★ - Carmen Villain - Nutrition (Smalltown Supersound, 2024)
Outra artista de Oslo, Noruega, que tem chamado a atenção nestes últimos tempos é a sound designer e manipuladora de eletrônicos mexicana —— naturalizada norueguesa —— Carmen Villain. Aqui mesmo no blog ja elencamos trabalhos anteriores da artista. Mas nas ocasiões que resenhamos algumas das suas criações, incluindo o álbum Only Love From Now On (Smalltown Supersound, 2022), ela estava imersa numa atmosfera sonora mais ao estilo da estética ambient music, com alguma influência dos estilos shoegaze, lo-fi e da estética "fourth world music", um subgênero criado em fins dos anos de 1970 pelo trompetista Jon Hassell em seus encontros com Brian Eno. O fato é que os trabalhos de Carmen Villain —— seja mais ritmados ou mais incidentais e atmosféricos —— carregam um claro apreço por texturas conceituais que se aproximam mais da arte do sound design e se afastam das trivialidades da eletrônica pop. Seja quais forem as influências e os estilos trabalhados, há um conceito experimental de sofisticação que chama atenção em seus trabalhos. Neste interessante EP acima, por exemplo, a artista combina texturas altamente sofisticadas com ruídos e beats aveludados claramente influenciados pela estética da dub music. São apenas três faixas que compõem o EP Nutrition. Mas estas poucas faixas já dizem muito sobre os novos caminhos que a artista decidiu trilhar por agora. Em sua página no Bandcamp a artista confessa que está numa fase de estudos em relação a formas, batidas e ritmos. O interessante, contudo, é que a artista explora seus ruídos e ritmos complexos de uma forma muito sedosa, textural e incidental. Desejamos que venham outros álbuns completos com evoluções desses seus estudos e sons!
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