Começam as comemorações em torno do "centocinquentenário" —— existe essa palavra? —— do nascimento do compositor austríaco Arnold Schoenberg, o grande e genial estudioso e teórico que mudou para sempre o rumo da música erudita. Depois de Schoenberg, inclusive, ficou até incoerente o uso contínuo do termo "música clássica", uma vez que até mesmo várias das peças dos romantismos de Brahms, Liszt, Wagner e Mahler já vinham apresentando sombreamentos cromáticos que já expurgavam —— quase que por completo —— os resquícios daquele açucarado classicismo mozartiano, germinando o novo feto da emancipação da dissonância no ventre da música ocidental —— após essa evolução, aliás, o único sentido para o uso do termo "música clássica" é o de mera rotulação comercial para designar o tendencioso passadismo com o qual os teatros, as gravadoras, as rádios, os curadores e os festivais desse nicho continuaram a empanturrar seus espaços, lançamentos e produções com programações repletas de um classicismo desconexo com a modernidade, dando espaço minoritário para as estéticas de música moderna e contemporânea. O fato é que o modernismo musical instaurado por Schoenberg seria a antítese do comercialismo tendenciado em torno do gênero "música clássica", uma vez que as novas dissonâncias e as atonalidades seriais romperiam por completo com todos os padrões da harmonia clássica e com todo o modus operandi dominante: as composições se tornaram ainda mais abstratas e deixaram de enfatizar apenas o subjetivismo das emoções evocativas para expandir exaustivamente as inflexões e as distorções das formas; as formações instrumentais e os ensembles caminharam para a experimentação de timbres e romperam completamente com os padrões de trios, quartetos, quintetos e orquestras sinfônicas e etc; e a invenção musical, agora totalmente anticonvencional, deixou a boemia dos círculos da realeza, da nobreza e da alta sociedade e recolheu-se no ambiente de pesquisa acadêmica e no limbo dos guetos, lofts e cabarés, onde os artistas mais inventivos se encontravam e se sentiam livres para extravasarem-se —— era o início do avant-garde, da música experimental, do que hoje chamamos de "underground". De fato, a música erudita moderna foi prenunciada pelo delicado impressionismo de Claude Debussy, na França, e pela exuberância cromática do simbolismo pré-futurista de Alexander Scriabin, na Rússia, mas foi o expressionismo de Arnold Schoenberg, em Viena, quem romperia definitivamente com a consonância clássica e instauraria uma nova e exponencial música. Schoenberg abriu o portal para um universo em expansão no qual se evidenciou que, para além do padrão de expressar emoções em formas de sons, a arte da música é matematicamente viva em si mesma com inúmeras possibilidades de formas e cores cromáticas!!!
Um século depois, porém, e constatamos que as peças de Schoenberg ainda causam estranheza, principalmente aos ouvidos menos experimentados. Mas também constatamos que, mesmo após a segunda metade século 20 ter sido imergida pelas novas consonâncias dos pulsos e loops repetitivos da estética minimalista e mesmo após as amálgamas e os relaxamentos do neoclassicismo e do pós minimalismo ecleticista vigentes neste início de século 21, as descobertas de Schoenberg continuam a se solidificar como definitivos baluartes da evolução da música enquanto arte, de forma que a necessidade que as novas gerações tiveram e tem de conhecer os entornos da obra revolucionária do compositor austríaco se tornou definitiva e constante. Pode-se não gostar, a título de preferência pessoal, da música schoenberiana, mas é preciso estudá-la para saber como a arte da música evoluiu. Não é à toa que a tradicional Revista Gramophone —— um dos símbolos do pedantismo que se alimenta em torno do gênero "música clássica", inclusive... —— já até anunciou que sua edição de👉Julho/ 2024 comemorará especialmente o sesquicentenário —— sim, essa é a palavra correta —— do nascimento do pai da Teoria Dodecafônica. E foi, então, há cento e cinquenta anos, que nascia em Viena, em 13 de setembro de 1874, o pobre menino Arnold que aprenderia os fundamentos da música praticamente de forma autodidata no gueto judeu de Leopoldstadt, local onde muitos imigrantes judeus de classe média baixa se aglomeraram. Suas descobertas revolucionárias o colocaria em rota de colisão com o mainstream tanto quanto —— ou até ainda mais! —— sua descendência judia o colocaria nos radares do antisemitismo. E há mais ou menos 100 anos atrás, na sua fase de passagem dos 40 para os 50 anos de idade, Schoenberg concluía seus profundos estudos sobre a harmonia ocidental e estouraria a bolsa amniótica da arte da música para fazer nascer sua Teoria Dodecafônica, uma ampla revolução e expansão da harmonia que o compositor já vinha imaginando desde fins do século 19. Aliás, a Teoria Dodecafônica seria apenas a ponta do iceberg de uma ampla expansão que se chamaria "Serialismo Integral", corrente ainda mais amplificada por figuras como Alban Berg, Anton Webern e Pierre Boulez. Ou seja, Schoenberg não rompeu com 400 anos de desenvolvimento da consonância clássica por simples rebeldia ou mera invencionice, mas ele o fez justamente por ter estudado harmonia a fundo a ponto de perceber as limitações da consonância, rompendo por completo com as expressões e dinâmicas já saturadas, com os padrões melódico-harmônicos que ainda traziam ecos classicistas, com o padrão no qual as harmonias deveriam se mover sempre em torno de um centro tonal, e assim praticamente criou uma Nova Música com novas expressões que ainda hoje tentamos fruir e assimilar!
Teoria Dodecafônica: a união musical do Expressionismo Abstrato com a Matemática da Teoria dos Grupos (e Matrizes)
Como em qualquer movimento evolutivo de tamanha amplitude, é impreciso datar o real momento do nascimento do dodecafonismo, uma vez que, como já citado, desde o romantismo da segunda metade do século 19 já haviam vários indícios de que a harmonia vinha gradualmente se expandindo rumo às dissonâncias. Mas se é para usar um ponto de referência temporal, podemos dizer que foi há mais ou menos 100 anos atrás que a harmonia dodecafônica se instituiu. A primeira obra considerada completamente dodecafônica é a "Suíte para Piano Op. 25", composta por Schoenberg entre 1921 e 1923 e estreada pelo pianista Eduard Steuermann em 1924. Antes disso, Josef Matthias Hauer, outro compositor austríaco, também já vinha estudando a aplicação total dos 12 tons na composição erudita: a teoria de Hauer dava luz ao que ele chamou de "técnica de tropos", onde ele descobriu 44 "tropos" a partir dos quais ele poderia permutar as sequências intervalares dos 12 tons, usando sempre dois hexacordes complementares não ordenados, atingindo, assim, a plena aplicação das 12 notas da escala cromática dentro da composição. Mas a Teoria Dodecafônica de Schoenberg se mostrou mais expansiva e mais bem fundamentada numa ossatura definitiva que vinha não apenas de uma hipótese teórica em si, mas que vinha de uma irrefutável constatação matemática dentro da música. Questiona-se até se a dodecafonia foi uma invenção ou se foi uma descoberta. Os estudos de Schoenberg sobre tensões harmônicas e relações intervalares entre as 12 notas evidenciam uma sólida relação com a Teoria dos Grupos do matemático alemão Felix Klein e certa similaridade com a Tabela de Cayley (desenvolvida pelo matemático inglês Arthur Cayley) na esquematização de matrizes com as séries de linhas de tons (primária, retrógrada da primária, inversão e retrógrada da inversão) afim de que todos os 12 tons da escala cromática fossem tocados permutativamente dentro de uma composição sem valorização de um tom sobre o outro, uma ossatura bem fundamentada e matematicamente aferida na qual se desenvolveria toda a evolução do que viria a se chamar de "Serialismo Integral". A partir de Schoenberg, os compositores modernos das décadas de 1930, 40 e 50 já não se balizariam apenas pela inspiração do subjetivismo psíquico e/ou na transcrição musical das suas expressões emotivas, mas principalmente por uma busca incessante de se inventar música a partir de incontáveis séries e matrizes matemáticas esquematizadas para se organizar os tons, os timbres, as formas, as estruturas, as dinâmicas, e etc... A fim de se fugir de quaisquer padrões, todos os elementos da música poderiam, agora, ser minuciosamente organizados em variadas séries permutativas!
Somado à essa fundamentação matemática, Schoenberg também pensava a música como uma extensão sonora da pintura e da poesia de vanguarda, sendo ele próprio um pintor praticante (imagens acima) e, naturalmente, se deixando influenciar pelo expressionismo, arte de vanguarda nascida na Alemanha em fins dos anos de 1900 que permeava os entornos da Segunda Escola de Viena. Essa busca expressionista por inflexionar a dramaticidade musical em formas distorcidas se casou perfeitamente com esses pilares da fundamentação matemática, fato que fez com que a aplicação do dodecafonismo transformasse definitivamente a música numa extensão exponencial de formas e cores tonais, ao ponto das frases e formas —— com vários sequenciamentos e até interpolações de diferentes compassos dentro de uma mesma peça —— já não serem facilmente identificáveis ante aos padrões, e ao ponto de já não haver composições com tonalidades óbvias e com as repetições harmônicas românticas já há muito tarimbadas. Somado ao fato de que as primeiras obras de Schoenberg em "atonalidade livre" datam-se antes mesmo do surgimento da sua técnica dodecafônica —— como sua Cinco Peças para Orquestra Op.16, composta em 1909 ——, instituía-se o que começou a se chamar, de forma simplista e generalista, de "música atonal", um termo que chegou a ter uma conotação até pejorativa aos ouvidos dos compositores serialistas, visto que esse "atonalismo" não era formado por aplicações aleatórias de notas e tons a esmo —— como alguns críticos desavisados e antiquados supunham ——, mas sim por uma nova harmonia agora infinitamente mais expandida, uma revolução da harmonia ocidental a partir da sua própria expansão, e, mais do que isso, uma revolução fundamentada por inquestionável exatidão matemática! E foram os fatos dessa nova espécie de música advir de aplicações matemáticas e soar totalmente estranha aos ouvidos acostumados com os padrões clássicos que fizeram com que o establishment sócio-político-cultural se mantivesse descontente com essa nova vanguarda, preferindo manter seus investimentos no classicismo e/ou, no máximo, na modernidade mais diluída do neoclassicismo. Contudo, e embora não mais seja uma corrente estética no centro das últimas tendências, o modernismo instaurado por Schoenberg transformou e enriqueceu definitivamente toda a base teórica da música e continuará a ter uma influência mais do que apenas inspiradora, mas, sobretudo, será sempre uma base de influência com capacidade transformadora para as novas gerações de compositores do século 21!
Schoenberg em Pauta: livros, artigos, docs, álbuns e publicações reafirmam a importância do revolucionário compositor
Sem querer fazer uma comparação de valor —— apenas baseando-se no âmbito do que o mainstream mais veicula e repercurte ——, posso asseverar, com certeza, que Schoenberg não é tão "pop", cult e "descolado" quanto Stravinsky, por exemplo. Mas me arrisco a dizer que, tanto em profundidade como em amplitude, a obra revolucionária do mestre austríaco é muito mais influente em termos de abrangência do que a obra do mestre russo: a exuberância de Stravinsky centra-se no ludismo coreográfico dos timbres e ritmos sob formas e síncopes assíncronas, com dissonâncias mais assimiláveis que foram pensadas, muitas das vezes, para criar efeitos que dessem vida a balés, temáticas de fantasia e estórias; enquanto a amplitude e a profundidade de Schoenberg trataram logo de sucumbir ao antiquário toda a harmonia clássica e todas as formas clássicas de estruturação composicional, estabelecendo uma completa expansão tonal e uma completa expansão das estruturas e das formas, expansões nas quais o ouvinte precisa treinar seus ouvidos a fundo para começar a deglutir as peças. Contudo, mesmo ante a impopularidade do dodecafonismo, a importância de Schoenberg como o principal founding father da música moderna está sempre em pauta! E nestas últimas décadas em que os efeitos do neoclassicismo e do minimalismo se arrefecem e se diluem em concepções pós minimalistas mais ecléticas —— lembrando que o minimalismo foi a corrente contrária ao dodecafonismo a surgir nos anos de 1960 ——, podemos sentir que tem havido um grande interesse, sobretudo por causa da mídia cibernética, em voltar-se para o dodecafonismo e em dissecar mais detalhadamente os segredos da vida e obra dessa grande figura revolucionária que foi Arnold Schoenberg. Isso se reflete na quantidade de livros, artigos, álbuns e documentários ambientados na obra, na vida e no legado de Schoenberg que estão sendo lançados nestes últimos tempos.
LIVRO: SCHOENBERG - WHY THE MATTERS BY HARVEY SACHS |
O genial compositor americano John Adams, ex-minimalista, tem sido um dos cérebros aprimorados a se entusiasmar com Schoenberg, tendo estudado a Teoria Dodecafônica, tendo composto a engenhosa peça "Harmonielehre" que é baseada no influente livro "Harmonia" (1911) de Schoenberg, e sendo frequentemente convidado à escrever artigos quando o assunto é obra do mestre austríaco. No artigo "Make It New and Difficult: The Music of Arnold Schoenberg", John Adams tece uma resenha para o jornal New York Times sobre o livro “Schoenberg: Why He Matters” (2023) (foto ao lado) escrito pelo jornalista Harvey Sachs. Já no artigo "What Can Musical Monuments Achieve That Physical Ones Can’t?" ele tece uma resenha para o The New Yorker sobre o livro “Time's Echo” (2023), no qual o historiador Jeremy Eichler aborda o poder de consternação temático-social e de memorização histórica que a música erudita representou no pós Segunda Guerra Mundial sob o prisma de quatro dos mais influentes compositores: Richard Strauss (alemão), Arnold Schoenberg (austríaco), Dmitri Shostakovich (russo) e Benjamin Britten (inglês). Ambos os livros são exemplos de prazerosas leituras e o fã de música erudita não precisa ter conhecimento técnico para se compenetrar nos contextos. O livro de Harvey Sachs foi reiterado pela Gramophone como ótima opção para quem achega-se agora na vida e obra de Schoenberg. Ademais, o legado do mestre também tem sido objeto de alguns documentários. Em 2016, os produtores Paolo Faroni e Christian Giuffrida escalam o maestro Daniel Barenboim e Nuria Schoenberg (filha do mestre) e lançam Arnold Schoenberg: Who I Am, um doc editado a partir de arquivos raros e áudios de aulas e palestras ministradas pelo próprio Schoenberg. Em 2021 o documentarista Hilan Warshaw lançou Through the Darkness, que aborda o trágico triângulo amoroso entre Schoenberg, sua esposa e o jovem pintor Richard Gerstl no cerne da Teoria Dodecafônica. Já no documentário Fioretta (2023) o filho e o neto de Schoenberg viajam de Los Angeles à Áustria e outros pontos da Europa para explorar mais de 500 anos da história da família.
Em termos de gravações, aqui mesmo👉no blog já estivemos nos inteirando da música de Schoenberg. Para este post, selecionei seis álbuns lançados nesses últimos anos que reafirmam a influência do mestre austríaco. Em 2020, o maestro suíço Heinz Holliger e os músicos da Orchestre de Chambre de Lausanne lançaram, por exemplo, um bem produzido álbum com versões bem polidas da célebre Sinfonia de Câmera Op.09 e do ciclo Seis Peças para Piano Op.19 rearranjado para orquestra, peças pré-dodecafônicas concluídas por Schoenberg entre 1906 e 1911 ainda num sistema de exploração dos intervalos de quartas: Holliger pretendeu mostrar que a inspiração para esse álbum centra-se no elo entre a iminência das dissonâncias dessa fase pré-dodecafônica de Schoenberg e a total atonalidade dodecafônica da Sinfonia Op.21 (1928) de Webern, peça que já prenuncia o serialismo integral —— lembrando que a Sinfonia de Câmera Op.09 já apresentava uma harmonia tão expandida e moderna, que foi uma das peças a irritar os ouvidos ainda adocicados do público no famigerado tumulto do "Watschenkonzert" em 31 de março de 1913, em Viena, quando Schoenberg foi convidado para reger um concerto no que deveria ser uma noite de gala no Grande Salão do Musikverein. Também em 2020, a violinista alemã Isabelle Faust, com o maestro Daniel Harding à frente da Swedish Radio Symphony Orchestra, aborda esplendidamente o colorido Violin Concerto Op.36, escrito por Schoenberg já na fase de moradia em Los Angeles, onde o compositor usa a técnica dodecafônica sob uma mimese neoclássica. Depois, temos vários registros das peças vocais de Schoenberg, as quais também se tornaram célebres no decorrer das décadas. Hoje encontramos, às vezes, duas ou três gravações de canções ou lieder escritas pelo compositor sendo repercutidas simultaneamente. No Spotify há duas ótimas versões das canções melodramáticas do Pierrot Lunaire, ciclo composto por Schoenberg em 1912 ainda numa atonalidade pré-dodecafônica sob o estilo de canto sprechstimme: uma versão de 2021 cantada em alemão, com projeto de gravação da renomada violinista moldava Patricia Kopatchinskaja, que também assume o canto; e outra gravação em francês de 2024 na voz de Jessica Martin Maresco ao lado do Ensemble Op-Cit, de Lyon. Também agora em 2024, foi lançado o já bem elogiado álbum Expressionist Music com a soprano britânica Claire Booth e o pianista britânico Christopher Glynn, os quais apresentam um belo compêndio do ciclo de lieder de Schoenberg. Ademais, também indico o ótimo álbum Kammerkonzert: Music of Arnold Schoenberg (2023), onde a pianista italiana Pina Napolitano dá sua leitura para o dodecafônico Concerto para Piano Op.42 num arranjo de ensemble compacto com 15 músicos do Wiener Koncert-Verein, mesmo álbum onde temos as Quatro Canções Orquestrais Op.22 e a Sinfonia de Câmera No.1 Op.09. Estes álbuns são interessantes porque mostram um elo entre a pré-dodecafonia e a total atonalidade de Schoenberg após a formalização e total adesão da sua Teoria Dodecafônica!
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