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 MÚSICO/ BANDA/ ENSEMBLE/ ALBUM DA SEMANA (03) 

 

★★★★¹/2 - Martelo Percussion Group - Sotaque (None/ Tratore, 2025).
Acaba de ser lançado Sotaque, o registro de estreia do Grupo Martelo, um quarteto brasileiro de percussão contemporânea que desde já demonstra a intenção de adotar uma amplitude tão flexível e inovadora quanto, por exemplo, as abordagens expandidas de Andy Akiho e as abordagens ecléticas de ensembles americanos como o Sō Percussion e o Third Coast Percussion, misturando elementos da música erudita de câmera para percussão à elementos da percussão popular com tanto esmero quanto criatividade. O quarteto explora um arsenal que engloba bateria, tímpanos, xilofone, marimba, vibrafone, pratos, metais, objetos vários, percussão popular (congas, bongôs, güiro, pandeiro, tambores, triângulo, zabumba, ganzá, etc...) e várias outras percussões, e é formado por Danilo Valle (timpanista da Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo), Leonardo Gorosito (chefe de percussão da Orquestra Sinfônica do Paraná), Rafael Alberto (percussionista da Filarmônica de Minas Gerais) e Rubén Zúñiga (integrante da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo). O repertório do álbum reúne peças escritas por emblemáticos compositores brasileiros contemporâneos como André Mehmari ("Sem Fronteiras"), Daniel Grajew ("Tempo"), Hércules Gomes ("Platônica"), Sílvia Góes ("Cobra Cega"), Clarice Assad ("O Herói"), Antônio Nóbrega ("Carrossel do Destino"), Luísa Mitre ("Valsa da Espera") e Léa Freire ("Mamulengo"), além de peças dos próprios membros do quarteto. Todas essas obras foram recentemente escritas exclusivamente para o Grupo Martelo ou revisitadas por meio de arranjos originais elaborados pelos próprios percussionistas. O próprio título do álbum já explicita a ideia do grupo, tão inovadora quanto clara: abordar a percussão contemporânea em uma amplitude eclética, sempre prezando o sotaque do grupo, valendo-se do encontro entre linguagens múltiplas sem perder os elos com a latinidade e a brasilidade. Dessa forma, as obras abordadas podem tanto inflexionar elementos das percussões populares e regionais em uma linguagem mais modernista e elaborada quanto, por exemplo, aproximar-se da percussão minimalista de Steve Reich, explorando ainda elementos variados da percussão sinfônica e da música erudita moderna de compositores como John Cage e Xenakis, incorporando também timbres eletrônicos e de sintetizadores amalgamados aos timbres percussivos. Em seus concertos estritamente eruditos, o Grupo Martelo tem abordado um repertório novíssimo que vai de peças do compositor Leonardo Martinelli a obras do norte-americano Andy Akiho, passando por peças de André Mehmari e Clarice Assad. Vê-se, portanto, que os percussionistas estão antenados à música contemporânea produzida hoje no mundo e pretendem surfar essa onda pós-moderna de sons inovadores e múltiplas possibilidades criativas. O álbum foi gravado no Juá Estúdio e teve seu concerto de estreia no palco do Teatro Cultura Artística, em 16 de novembro de 2025, e já está disponível nas plataformas de streaming. Grande projeto!!! Precisávamos de mais ensembles no Brasil com essa visão de alçar a nossa percussão para níveis elevados de contemporaneidade!!!

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Música Erudita do Século 21: Errollyn Wallen, Daniel Lippel, Lyra Pramuk, John Adams, Alex Paxton, Reiko Füting, e etc

 
Lhes trago aqui alguns dos recentes registros de música erudita contemporânea que ouvimos entre 2024 e 2025. No início de 2026, publicarei mais um outro post com mais algumas gravações que ainda estou ouvindo e assimilando. Neste post, além dos álbuns de artistas e compositores que lançaram seus registros pelas vias independentes, também incluo dois dos álbuns que tiveram peças indicadas ao Grammy 2026: são os casos de Land of Winter, do compositor islandês Donnacha Dennehy, com o ensemble americano Alarm Will Sound, e de Yanga, da compositora mexicana Gabriela Ortiz, com Dudamel e a Filarmônica de Los Angeles. Um outro destaque recente foi a aclamada compositora britânica Errollyn Wallen (foto acima) que já vinha em plena ascensão desde os anos 2000 e em 2024, aos seus 66 anos de idade, ela foi nomeada Mestre da Música do Rei pelo Rei Carlos III. É interessante ressaltar que a ideia dessa série de posts de lançamentos é priorizar registros autorais de música erudita efetivamente escrita no século 21, na tentativa de deixar o ouvinte-leitor antenado e atualizado em relação às atuais produções dos compositores contemporâneos —— ao menos no que diz respeito a alguns dos principais compositores contemporâneos da atualidade e a algumas figuras que estão surgindo nessa seara. As obras mais recentes desses compositores evidenciam que estamos vivendo uma diluição eclética das inovações passadas, na qual há peças que misturam classicismo com modernismo, tradicionalismo com vanguarda, música de câmara com eletrônica experimental e elementos díspares da música pop e da eletrônica clubber com a chamada música erudita escrita. Podemos dizer que ainda reverberam ecos do neorromantismo, do neoclassicismo e do pós-minimalismo, correntes que se acentuaram nas últimas décadas do século XX e neste início do século XXI. Porém, a música erudita caminha para se tornar cada vez mais universalista, eclética e multidisciplinar, de modo que artistas experimentais, músicos de jazz e produtores de música eletrônica estão ousando desenvolver uma rebuscada escrita composicional erudita, enquanto compositores eruditos mais apegados ao universo acadêmico e catedrático também vêm incorporando elementos do jazz, da eletrônica, do avant-pop, da world music e da música experimental de caráter mais interdisciplinar. Um movimento precursor se inicia com os modernistas que compuseram suas obras com misturas intergêneros entre música popular e música erudita, como Ives, Bartók, Villa-Lobos, Copland, Weill, entre outros. Mas devemos isso, sobretudo, aos compositores pós-modernos que passaram a misturar gêneros tão díspares e aparentemente antagônicos que dificilmente teríamos capacidade de imaginar que a música evoluiria para tais hibridismos sem suas obras revolucionárias: falo de compositores das últimas décadas tais como Schnittke, Berio, Zappa, Glass, Zorn... entre outros precursores e ases do pós-modernismo. Abaixo, apresento, então, alguns dos mais recentes e interessantes registros de música erudita contemporânea. Ouçam!!!

 
 
★★★★ - Daniel Lippel: Adjacence (New Focus Recordings, 2024)
O violonista e guitarrista americano Dan Lippel, cofundador do selo New Focus Recordings e integrante do International Contemporary Ensemble, apresenta em Adjacence (2024) um panorama enciclopédico da música de vanguarda atual para violão, guitarra e música de câmara, consolidando o violão —— acoustic guitar, como é descrito nas resenhas em inglês —— como um instrumento de trânsito supercriativo dentro da música contemporânea americana. O projeto fundamenta-se no conceito de "adjacência", no sentido de explorar as fronteiras entre o acústico e o eletrônico, o microtonalismo e o temperamento tonal convencional, e a colaboração estreita entre intérprete e compositores de diferentes vertentes, abertos ao exploratório e ao experimental. Para tanto, Lippel reuniu peças de vários compositores relevantes, algumas com arranjos inéditos ou escritas exclusivamente para ele, e consolidou todo o projeto em um álbum duplo lançado em 15 de novembro de 2024 pelo selo New Focus Recordings (FCR423), com repertório abrangendo obras de peso de compositores como Mario Davidovsky, Ken Ueno, Peter Gilbert, Nico Muhly, Tonia Ko, Peter Adriaansz, Tyshawn Sorey, Carl Schimmel, Sidney Marquez Boquiren, Tania León, Bernadette Speach e Charles Wuorinen, com a peça "Cantione Sine Textu" (2001), de Mario Davidovsky, registrada poucos dias após a morte do compositor. Ao longo de todo o disco duplo, Lippel alterna violão, guitarra elétrica e contrabaixo elétrico, ora como solista, ora como membro integrado ao tecido camerístico, dialogando com piano, cordas, sopros, percussão e eletrônica. Participam músicos ilustres como a flautista Claire Chase, o percussionista Nathan Davis e o pianista Cory Smythe, além de ensembles e grupos de música contemporânea como o International Contemporary Ensemble, counter)induction, Flexible Music, Bodies Electric e o Catch Electric Guitar Quartet, o que demonstra o grande trunfo de Lippel ao reunir um compêndio no qual a escrita contemporânea para violão e guitarra tenha sido valorizada pela participação de grandes músicos e ensembles do nosso tempo. Entre os elementos exploratórios e experimentais abordados estão o uso de técnicas estendidas, dissonâncias, just intonation e outras afinações alternativas, violão microtonal, interações com eletrônica processada em tempo real, sons pré-gravados, improvisações livres, entre outros. Há, portanto, muitos indícios que corroboram a amplitude e a ousadia do projeto de Lippel, tanto pelas explorações sonoras quanto pelas temáticas. Dentre os compositores, por exemplo, destaca-se o baterista de jazz e improvisador Tyshawn Sorey, aclamado como um dos grandes compositores da última década, inclusive vencedor do Prêmio Pulitzer em 2024: dele, é apresentada a peça "Ode to Gust Burns", uma homenagem de treze minutos ao pianista contemporâneo Gust Burns, de Seattle. A peça "Neñia (Canción Fúnebre)", de Peter Gilbert, inspira-se em um poema de Carlos Guido y Spano e em temáticas de latinidade como a Guerra do Paraguai, enquanto a peça "Five Prayers of Hope", de Sidney Marquez Boquiren, sintetiza sentimentos políticos e sociais, abordando temas como migração, violência sexual e ecologia. Já o compositor Peter Adriaansz contribui com as Serenades II a IV para três guitarras elétricas e baixo elétrico, peças inspiradas na banda de punk no wave Sonic Youth que combinam células modulares microtonais, coral de vozes, uso de efeitos de ebow e delays variáveis, além de improvisações. Outro exemplo de exploração vanguardista é "Ghost Flowers", originalmente encomendada pelo International Contemporary Ensemble, na qual o compositor Ken Ueno investiga uma scordatura em afinação justa não convencional, baseada nos harmônicos de um dó grave, emergindo gradualmente a partir de ruídos não afinados e ataques percussivos. É a partir dessas explorações que Dan Lippel dá forma a este projeto, como uma maneira de levar o violão acústico e a guitarra elétrica às adjacências mais investigativas da música erudita contemporânea.


 
★★★★¹/2 - Donnacha Dennehy - Land of Wynter (Nonesuch, 2024).
Tendo obtido mestrado e doutorado pela Universidade de Illinois, Donnacha Dennehy fundou o renomado Crash Ensemble em seu retorno à Irlanda e se tornou, talvez, o mais renomado compositor pós-minimalista da atualidade em seu país —— embora esse termo "pós-minimalismo" em sua música seja mais empregado no sentido de evolução e superação do minimalismo de Steve Reich e Philip Glass do que propriamente no sentido de um "guard rail" estético. Em 2014, ele retornou aos EUA para integrar o corpo docente de música da Universidade de Princeton e, nos últimos anos, entre a docência e a composição, Dennehy tem se concentrado especialmente em obras dramáticas de grande escala, já tendo suas obras tocadas por várias orquestras e ensembles ao redor do mundo. É o caso desta grande obra que, após ter sido lançada em álbum e ter sido licenciada como um dos lançamentos da Nonesuch, foi indicada para concorrer ao Grammy de 2026. Land of Winter, lançada em 15 de novembro de 2024, é uma das obras mais ousadas já compostas por Dennehy. Escrita sob encomenda para o fantástico ensemble Alarm Will Sound e com a gravação tendo sido realizada sob a regência de Alan Pierson, a obra é estruturada em um ciclo contínuo de doze movimentos, um para cada mês do ano, os quais propõem uma exploração fenomenológica da luz, do clima e da percepção do tempo na Irlanda, dialogando com a antiga concepção romana do país: o nome em latim para a ilha da Irlanda era Hibérnia ("terra do inverno"), denominação que os romanos usaram desde tempos antigos para se referir à ilha, a seus habitantes e à sua cultura. A Irlanda, assim como os países do Norte do globo terrestre, é conhecida por seus rígidos invernos e pelas especificidade dos seus solstícios e equinócios: com dias muito longos no verão e significativamente mais curtos no inverno em termos de luz e do cair da noite. Em um de seus retornos à Irlanda, Dennehy observou, então, como a variação da luz ao longo do ano afeta a paisagem, a psicologia humana, o humor das pessoas e tudo o que as cerca, algo que ele não percebia —— ou percebia, mas não lhe chamava a atenção —— quando permanecia fixo em seu país. Essa percepção lhe deu a ideia de criar uma peça que traduzisse essa epopeia temporal baseada na evolução do clima e da luz gradualmente, mês a mês. A ideia genial de Dennehy para traduzir musicalmente esses elementos temporais e climáticos foi cruzar seu pós-minimalismo habitual com alguns ecos da música espectral de Gérard Grisey —— um caminho adotado, por exemplo, pela compositora finlandesa Kaija Saariaho, que, diferentemente, cruzava o espectralismo com o modernismo serial e ecos de abstrações complexas advindos de Boulez, Xenákis, Ferneyhough, além de seus próprios estudos eletroacústicos no IRCAM. Dennehy vislumbra novos caminhos ao ampliar seu pós-minimalismo pelas vias da música espectral e começa a imaginar essa viagem, então, por meio de elaboradas texturas aludidas à luz, complexas construções baseadas em princípios espectrais e no uso extensivo de séries de harmônicos. A escrita de Dennehy articula microtons, clusters densos, texturas ressonantes e campos harmônicos em sobreposições e constante mutação, criando um arco sonoro que alude à claridade fria e rarefeita dos meses invernais, alcança uma tensão de abstratas figuras rítmicas no meio da peça e, em seguida, retorna gradualmente à quietude e à frieza do luminoso outono irlandês —— tudo isso de maneira progressiva, mês a mês. A instrumentação explora sons de cerca de vinte músicos do Alarm Will Sound —— incluindo sopros, metais, cordas, piano e uma percussão rica e altamente detalhista —— exigindo um virtuosismo coletivo que combina precisão rítmica, distribuições de overtones (parciais harmônicos) para evocar tons entre luminosidade e sombreamentos, controle de microtons e tonalidades flutuantes —— algumas vezes com duas ou mais tonalidades específicas em sobreposições —— e uma atenção microscópica à cor espectral e ao equilíbrio tímbrico dos arranjos, qualidades que o maestro Allan Pierson teve de trabalhar e apurar de forma praticamente cirúrgica. Assim, Dennehy rejeita tanto os ecos clássicos da música pastoral, dantes usada por compositores clássicos e românticos para se referir aos climas e ao tempo, quanto o minimalismo nórdico convencional das trilhas sonoras, ampliando ainda mais seu pós-minimalismo para o campo da espectralidade, em uma direção hipercriativa que nos exige escuta atenta para ser assimilada e curtida.


 
★★★★ - Gabriel Prokofiev/ Beethoven - Pastoral 21 (Signum Classics, 2024)
Como já resenhado aqui no blog, este não é o primeiro trabalho em que o DJ e compositor londrino Gabriel Prokofiev aplica remixes e reimaginações eletrônicas sobre excertos das sinfonias de Beethoven. No primeiro registro, Beethoven Reimagined, ele surge com a Sinfonia nº 9 reimaginada em BEETHOVEN9 Symphonic Remix e aplica remixes também na obra Fidelio (única obra teatral de Beethoven). E agora, em 2024, ele reimagina a Sinfonia nº 6 Pastoral neste registro Pastoral Reflections — Beethoven Pastorale 21. Lançado em 2024 pelo selo Signum Classics, este é mais um dos projetos de Gabriel Prokofiev —— compositor, produtor e DJ britânico-russo, neto de Sergei Prokofiev e fundador do selo Nonclassical —— no qual o passado da composição clássica encontra o presente da eletrônica contemporânea. Ao aplicar remixes eletrônicos sobre excertos e motivos da Sinfonia nº 6 em Fá maior, Op. 68, "Pastoral", de Ludwig van Beethoven, Prokofiev propõe não uma simples releitura, mas uma reimaginação ao seu modo e a título de estudo: um estudo que lhe servirá de base para suas próprias composições posteriores, como é o caso das peças sinfônico-eletrônicas de seu álbum mais recente Dark Lights (Nonclassical, 2025). É interessante, também, como que Prokofiev se utiliza da temática ambiental da peça —— uma vez que Beethoven compôs sua sexta sinfonia inspirado pela natureza campestre —— para fazer uma reflexão atual sobre as tensões do século 21, deslocando a visão bucólica e idealizada da natureza campestre daquele início do século 19 para nossa realidade marcada por crises climática, industrialização, caos urbano e hiperconectividade digital. O álbum é estruturado em torno da programática original de Beethoven, mas seus cinco movimentos dialogam diretamente com sons e temáticas contemporâneas: Allegro ma non troppo ("Escape into Nature"), Andante con moto ("Nature Reserve with Canalised Stream"), Allegro Mechanico ("Mega-farm, Cyber Village"), Vivace ("Sturm") e Allegretto ("Stadtpark, Faint Hopes"). A execução é confiada ao sexteto de cordas interdisciplinar UNLTD Collective, que atua em constante interação com os eletrônicos e sintetizadores tocados pelo próprio Prokofiev, que também utiliza sons pré-gravados captados nos Alpes Suíços em 2020, incluindo sons de vento, água, trânsito urbano, máquinas agrícolas e outros ambientes. Esses materiais sonoros pré-gravados funcionam como comentários críticos, verdadeiras intervenções inseridas no tecido musical para provocar no ouvinte uma reflexão sobre a intervenção do homem na natureza, explicitando um contraste crítico entre o ambiente campestre e o urbano, as máquinas, a poluição, a tecnologia e outros elementos da vida contemporânea. É assim que o otimismo inicial de "Escape into Nature" é gradualmente atravessado por sinais da presença humana. Da mesma forma, em "Nature Reserve with Canalised Stream" temos um compasso em 5/4 que cria uma sensação de desequilíbrio que espelha a artificialização da paisagem. Já em "Mega-farm, Cyber Village" substitui-se a dança camponesa beethoveniana por um verdadeiro "allegro mecânico", repleto de referências industriais, texturas digitais e beats de techno, grime e efeitos de glitch. "Sturm" transforma a tempestade do quarto movimento em uma massa sonora abrasiva, dominada por eletrônica densa e agressiva. E "Stadtpark, Faint Hopes" desloca o desfecho para um parque urbano contemporâneo, onde sons de crianças brincando se misturam a uma atmosfera de esperança frágil e ambígua. Intercaladas a esse núcleo estão faixas do projeto Breaking Screens, que ampliam o escopo conceitual ao abordar temas como consumismo, alienação e isolamento digital, reforçando a ideia de que a crise ecológica é inseparável de transformações sociais, tecnológicas e comportamentais. Em suma,  Pastoral Reflections — Beethoven Pastorale 21 não trata apenas de um estudo eletrônico sobre uma obra do passado clássico, mas de uma reflexão sobre nossa realidade caótica que parece nos conduzir a um futuro sombrio.


 
★★★¹/2 - João Marcondes - Brazilian Suite No.1 for Piano & Viola (2024).
Este EP, lançado em julho pelo selo Azul Music, registra uma obra que dá prosseguimento à trajetória do compositor e educador musical paulistano João Marcondes e se insere de forma programática em sua série Brazilian Suite —— sendo que ele já havia lançado, aliás, a Suite No. 2 para trio de madeiras e a Suite No. 3 para quarteto de cordas ——, uma série concebida como um projeto camerístico autoral dedicado à síntese entre a música de concerto contemporânea e as matrizes da música popular brasileira. Eu realmente vislumbrei estar diante de um compositor com olhares mais expandidos para fora da caixinha brasilianista tradicional, distante daquela estirpe de compositores que meramente reproduzem ritmos, motivos melódicos e harmonias da brasilidade sem se dar ao trabalho da reflexão e da inflexão. Interessante notar, nesse sentido, que Marcondes não utiliza as matrizes populares apenas como meras citações "folclóricas", mas como inflexão estrutural, estética e conceitual, numa intenção de levar o range brasilianista do popular-erudito para as fronteiras com os elementos das vanguardas  e com o que há de mais contemporâneo rolando aqui agora na nossa realidade, evoluindo num continuum deixado pelo mestre Heitor Villa-Lobos, que foi modernista em certa medida. Em uma entrevista para o Podcast Estação Cultura, da Rádio Cultura FM (103,3), Marcondes sintetiza que ainda há lacunas a serem preenchidas e evoluções a ser perseguidas dentro do continuum conceitual inaugurado por críticos e teóricos como Mário de Andrade e Oswald de Andrade —— que defendiam uma música nacionalista, com os genes da música brasileira se desenvolvendo rumo a um modernismo genuinamente brasileiro —— e que nem todos os ritmos populares brasileiros que se estabeleceram ao longo dos séculos 20 e 21 foram traduzidos para a linguagem escrita da música de concerto moderna: ele, aliás, rejeita o termo "erudito" no sentido pejorativo ou como designação de uma estética fechada e, de fato, defende que há uma evolução a ser perseguida nesse continuum deixado por Villa-Lobos e por modernistas brasileiros tais como Claudio Santoro, Camargo Guarnieri e Marlos Nobre. Composta sob medida para o violista Silvio Catto (spalla da OSESP e professor da EMESP Tom Jobim) e para a pianista Ariã Yamanaka (OSESP, Orquestra Jovem do Estado de São Paulo e Filarmônica de São Caetano do Sul), essa suíte para vila e piano é estruturada em cinco movimentos que totalizam cerca de 17 minutos, inflexionando gêneros, ritmos e climas melódico-harmônicos fundamentais da música brasileira dentro de uma linguagem que, como já afirmou Marcondes, pretende levar a brasilidade aos limites com as vanguardas e com a contemporaneidade num diálogo entre a consonância e a dissonância: o EP se inicia com Toada (4:26), peça que começa com uma nota grave do piano, como um chamamento para nos imergirmos em uma cantiga na qual a viola desenvolve uma melodia de caráter introspectivo e interiorano, mas com séries dodecafônicas que colorem os entremeios dessa cantiga; segue-se II. Samba (2:58), também precedido por uma atmosfera grave, no qual emerge-se um pulso profundo e elástico, distante do swing binário tradicional, com a viola aplicando dissonantes pizzicatos e depois com o piano assumindo gestos aparentemente improvisativos com tons ainda mais serialistas; a canção III. Song (3:35) já surge marcada por um lirismo lúdico e pelo delicado entrelaçamento entre o colorido dissonante dos acordes densos do piano e a linha cantabile da viola; seguimos por IV. Frevo (2:38), em que o piano sugere, de forma inflexionada e cinética, a levada da dança pernambucana, tensionando ritmos e atonalidades enquanto a viola aplica um desenvolvimento discursivo na superfície que soa aparentemente descolado até que surgem novos pontos de intersecção (há algo muito inteligente aqui!!!); e o EP termina com V. Choro (3:53), síntese final em que contraponto, fluidez melódica e certa levada rítmica inflexionam elementos do choro brasileiro tradicional de forma, também, sistematicamente contemporânea num esquema de tema e variação. Esse lançamento, aliás, é apenas um aperitivo da produção constante de Marcondes, que já lançou diversos registros em 2024 e segue apresentando uma série de gravações de sua produção camerística pela Azul Music. Aos interessados, sugiro que acompanhem as séries supercriativas de Marcondes no Spotify.


 
★★★★ - Sebastian Fagerlund - Autumn Equinox, Arcantio, Sky II (BIS, 2025)
Lançado pela BIS em fevereiro de 2025, o álbum Autumn Equinox, de Sebastian Fagerlund, tem como eixo central o octeto homônimo composto em 2016, uma obra de câmara que, apesar da instrumentação relativamente enxuta, projeta uma dimensão de densidade quase orquestral, confirmando o compositor finlandês como um criador de paisagens musicais densas, dramáticas e até cinematográficas. Escrita para clarinete, fagote, trompa, dois violinos, viola, violoncelo e contrabaixo, a formação e a própria peça fazem referências implícitas ao clássico Octeto de Schubert (D. 803, 1824), referência histórica assumida por Fagerlund, mas aqui reelaborada por meio de uma linguagem contemporânea marcada por gestos, espasmos, texturas, transições abruptas e um equilíbrio refinado entre força, densidade e sutileza camerística. Autumn Equinox, que também traz ecos da relação clima-tempo das atmosferas gélidas da Finlândia e das regiões nórdicas, organiza-se em três movimentos contrastantes —— I. Espressivo – Ritmico, Poco Leggiero; II. Lento Misterioso; e III. Agitato Con Forza Ma Espressivo ——, numa concepção programática que se estrutura como uma sucessão de grandes blocos sonoros, nos quais passagens altamente direcionadas para desenvolvimentos densos e rítmicos alternam-se com momentos de texturas rarefeitas e suspensão introspectiva, criando a sensação de uma massa sonora expressiva maior do que a soma dos instrumentos envolvidos. O coração emocional da obra encontra-se no segundo movimento, Lento Misterioso, em que uma longa e lírica melodia da viola solo, em delicado contraponto com o ensemble, deriva diretamente de uma ária da ópera Autumn Sonata, que o próprio Sebastian Fagerlund compôs inspirado no filme homônimo de Ingmar Bergman: o octeto funciona, aliás, como uma espécie de reflexão camerística sobre o universo dramático dessa ópera, compartilhando humores, gestos e materiais temáticos, e reforçando a "teatralidade da vida", temática frequentemente apontada pela crítica como central na estética de Fagerlund. A gravação reúne membros da Lapland Chamber Orchestra, sob a regência de John Storgårds, cuja leitura tem como principal missão equilibrar as dinâmicas entre esses blocos de densidade e introspecção. O mesmo ensemble e o mesmo maestro interpretam outras obras de Fagerlund, incluindo seu Concerto para Contrabaixo "Arcantio" —— com o contrabaixista Niek de Groot como solista —— e uma versão revisada de Sky II, compondo, assim, um retrato coerente da escrita recente do compositor. Em termos estéticos, Autumn Equinox sintetiza influências do modernismo nórdico, da dramaturgia operística e de uma concepção camerística expandida que dialoga com os vetores mais criativos da música de concerto contemporânea. Eis aqui, então, um registro que nos atualiza quando à obra de Fagerlund.
 

 
★★★★ - Adès, Aucoin, Dove, Muhly - Beyond (Orchild Classics, 2025).
Interessante este álbum Beyond (2025), com a BBC Scottish Symphony Orchestra sob a regência de Timothy Redmond e lançado pelo selo Orchid Classics, reunindo no mesmo programa obras de Thomas Adès, Jonathan Dove, Matthew Aucoin e Nico Muhly. Primeiramente, o álbum se destaca por reunir fantasias orquestrais provenientes de óperas e/ou peças dramáticas para orquestra, um campo composicional no qual somos imersos em uma profusão de efeitos, sensações e imagens sonoras. Em segundo lugar, ao congregar obras de dois compositores americanos e dois compositores ingleses, quatro grandes compositores da atualidade, o disco permite obter ao menos uma compreensão panorâmica da música erudita contemporânea dentro dessa conexão EUA–Inglaterra. Quem abre o álbum é o compositor britânico Thomas Adès com sua "Three-Piece Suite from Powder Her Face" —— dividida em Overture, Waltz e Finale ——, uma suíte orquestral derivada da ópera "Powder Her Face", composta em 1995 no formato de uma "ópera de câmara", onde o libreto de Philip Hensher narra a história escandalosa da Duquesa de Argyll, Margaret Campbell, e suas aventuras sexuais, obra encomendada à época pelo Festival de Aldeburgh, pela Philharmonia Orchestra e pela Cleveland Orchestra. Essa peça de Adès reúne aqueles característicos jogos de efeitos orquestrais cintilantes característicos da música sinfônica inglesa, com uma abertura fenomenal e uma ressignificação muito própria do classicismo inglês. Na sequência surge "Stargazer", composta em 2001 pelo também britânico Jonathan Dove, um concerto para trombone e orquestra em seis partes, no qual o solista Peter Moore encarna com precisão a figura de um "observador de estrelas" sugerida pelo título: o compositor relata ter baseado o concerto em motivos e variações da canção infantil "Twinkle, Twinkle, Little Star", criando uma fantasia em que o som penetrante do trombone dialoga com os efeitos luminosos da orquestra, formando uma verdadeira constelação de texturas e timbres brilhantes. Segue-se Eurydice Suite, composta em 2021 pelo compositor americano Matthew Aucoin sob encomendas da Orquestra da Filadélfia, da Orquestra Sinfônica de Winston-Salem e da Orquestra Harvard-Radcliffe: a peça foi extraída de sua aclamada ópera Eurydice, estruturada em quatro movimentos (ópera baseada em um texto teatral da dramaturga Sarah Ruhl), que alternam sons percussivos, ruídos agudos estranhos, atmosferas sombrias, momentos de introspecção quase minimalista e os estados emocionais da solitária personagem Eurídice. Aucoin se revela um verdadeiro mestre em transcrever musicalmente a tragédia e o lado mais dramático e sombrio da condição humana, algo que ele também evidencia em Heath, peça que ocupa a décima quarta faixa do álbum, um poema orquestral escrito em 2023 a partir do Rei Lear de Shakespeare. O disco se encerra com Liar Suite from Marnie, escrita em 2018 pelo compositor americano Nico Muhly sob encomenda da Orquestra da Filadélfia, peça extraída de sua ópera Marnie, baseada no romance homônimo escrito por Winston Graham na década de 1950, um livro que narra a história de uma jovem golpista que muda constantemente de identidade e acaba sendo descoberta e coagida a se casar —— a trama foi, inclusive, posteriormente adaptada para o cinema por Hitchcock, com Tippi Hedren e Sean Connery nos papéis principais. A fantasia orquestral derivada dessa ópera de Muhly assume uma narrativa de trilha sonora noir com ecos do jazz, na qual os solos de determinados instrumentos no meio da orquestra representam o discurso dos personagens, com os oboés figurando Marnie, o trombone como seu marido Mark e a viola representando sua mãe. Trata-se, enfim, de um álbum de curadoria inteligente, que nos imerge nas fantasias orquestrais de quatro grandes compositores contemporâneos, dois americanos e dois ingleses. 


★★★★ - John Adams - Viena Radio Symphony w/ Marin Alsop: City Noir, Fearful Symmetries & Lola Montez Does the Spider Dance (Naxos, 2024)
Lançado em 2024 pelo selo Naxos, este álbum com as peças City Noir, Fearful Symmetries e Lola Montez Does the Spider Dance oferece um panorama particularmente abrangente e incisivo da produção orquestral de John Adams, reunindo três obras emblemáticas de diferentes fases de sua trajetória, interpretadas com vigor e clareza pela ORF Vienna Radio Symphony Orchestra sob a regência de Marin Alsop, cuja afinidade com o repertório do compositor se reflete em leituras enérgicas, estruturalmente precisas e de forte impacto expressivo —— qualidades que contribuíram, inclusive, para a indicação da gravação ao Grammy de 2025 na categoria de Melhor Performance Orquestral. O álbum abre com a peça City Noir (2009), uma espécie de poema sinfônico concebido por Adams como uma "trilha sonora imaginária" para filmes noir ambientados na Los Angeles das décadas de 1940 e 1950: a obra é baseada nos escritos do historiador Kevin Starr e organiza-se em três movimentos —— The City and Its Double, This Song Is for You e Boulevard Night —— que traduzem, em linguagem sinfônica, uma paisagem urbana ambígua, sedutora e violenta, na qual texturas densas, harmonias profundas e pulsos rítmicos pós-minimalistas convivem com um lirismo melancólico e com elementos do jazz. Segue-se Fearful Symmetries (1988), escrita pouco depois da ópera Nixon in China, que representa um dos exemplos mais contundentes da fase em que Adams ainda caminhava sob os trilhos dos pulsos minimalistas e de seus efeitos simétricos de camadas e cascatas inebriantes, com uso timbrístico de sintetizadores: o título evoca a dialética entre ordem e ameaça, e a inspiração para a peça foi extraída do poema "The Tyger", de William Blake —— são 29 minutos ininterruptos de construção orquestral, nos quais esses pulsos minimalistas nos envolvem de forma tão colorida quanto imagética. O álbum se encerra com a breve peça Lola Montez Does the Spider Dance (composta em 2016 e revisada em 2020), registrada aqui pela primeira vez: dedicada à própria Marin Alsop —— por quem Adams nutre grande admiração ——, trata-se de uma peça neorromântica de caráter caprichoso e teatral, extraída da ópera Girls of the Golden West, na qual o compositor faz referência a uma irlandesa conhecida pelo pseudônimo de Lola Montez, dançarina renomada em meados do século XIX, que é atacada por aranhas enquanto dança, até que estas são afugentadas pelo rompante dos instrumentos mais graves da orquestra, antes de um melódico solo de clarinete que se estende até o retorno ao tema. Este álbum representa, pois, um panorama recente do estilo neorromântico/pós-minimalista de John Adams, talvez o compositor contemporâneo americano mais tocado nessas últimas décadas.


★★★ - Alex Paxton - Delicious (New Amsterdam Records, 2025)
Este é um dos trabalhos mais impressionantes já lançados em álbum nos últimos anos. Delicious, lançado em maio de 2025, sintetiza a forma colorida e caleidoscópica com a qual Alex Paxton —— trombonista de jazz, improvisador e compositor ascendente no circuito erudito —— manipula os inúmeros recursos da orquestra, envoltos em muitos efeitos de timbres sintéticos e orgânicos, enxertos de pontilhismos, colagens eletrônicas e improvisos livres, tudo junto e misturado em uma concepção que é realmente coloridamente inigualável. Embora cada detalhe da música de Paxton seja minuciosamente pensado, composto e escrito em pauta, o compositor articula todos esses recursos de modo a soar como uma explosão multissensorial de supernova, fazendo a obra parecer improvisada ou, no limite, confundindo o ouvinte entre o que foi rigorosamente escrito e o que está sendo efetivamente improvisado. O colorido sintético da pop music é um ingrediente tão central quanto a improvisação, e o arranjo sinfônico de rigor erudito convive em festa com samples e coloridas colagens eletrônicas, além de enxertos de timbres percussivos, múltiplas camadas de fragmentos e texturas frenéticas, pontilhismos de bricolagem etc. No Bandcamp, há descrições detalhadas de cada uma das peças. Em "Shrimp BIT Baby Face", por exemplo, Paxton cria um cosmos sonoro estratificado que vai de vastas camadas e texturas a melodias aparentemente entranhadas em meio ao caos, passando por fragmentos e sons microscópicos, atravessando episódios densamente orquestrados e enriquecidos por ruído, samples, sons pré-gravados, vozes e uma certa dose de humor pop. Em contraste, a dimensão eletrônica dessa peça é equilibrada por outras obras de caráter mais camerístico e até discursivo, como em "Dadd’s Fairies", na qual cordas e sopros se entrelaçam em meio a ruídos periféricos e linhas erráticas que os circundam. Já em "Just Gum Friends", instrumentos como cravo e kazoo inauguram uma atmosfera onírica de sonho derretido, em que a escrita erudita soa transcendental, cheia de glitter e bolhas, evocando mais uma vez elementos de um avant-pop permeado por humor onírico. Paxton segue variando sem nunca deixar o ouvinte entediado, chegando a momentos mais líricos como em "Along the Long Orange Light", onde melodias simples, quase madrigalescas, surgem em meio a paisagens harmônicas inigualáveis. O compositor descreve essas passagens como "melodias que podem ser cantadas em madrigais a duas vozes e à luz de velas, que então ascendem e planam por ricas paisagens harmônicas como se estivessem em redemoinhos de ar quente". Dessa forma, Paxton vai transcrevendo em som muito de sua fértil imaginação, unindo, muitas vezes, imagens, efeitos e fantasias idiossincráticas e inexplicáveis, à maneira de uma abstração surrealista. Outro momento temático surge em "Flowery Preserve String Mulch Dress Dump", construída a partir de uma frase melódica mínima que se repete em um gel translúcido de vozes, harmônica de vidro e samples de canto de pássaros transpostos quatro oitavas abaixo. Segue-se "Is That All You’ve Got To Say To Grandma Then Is It?", na qual o compositor se inspira na litografia Cascata, de M. C. Escher (1961), para criar ilusões sonoras com gemidos e densidade orquestral e, ainda assim, permitir que "melodias grudentas" de caráter pop emerjam à superfície, sustentadas por harmonias que produzem tais ilusões, incluindo assobios que entoam melodias e temas em paralelo. O álbum se encerra com "Levels of Affection", que retoma texturas orquestrais em fragmentos livres e circulares. Um álbum Impressionante!


      
★★★ - Errolyn Wallen - Orchestral Works (Resonus Limited, 2025)
Este álbum traça um panorama da escrita sinfônica da aclamada compositora britânica Errollyn Wallen (foto do início deste post), reunindo obras compostas entre 2000 e 2023 e afirmando sua maturidade artística justamente no contexto de sua nomeação como Master of the King’s Music, condecoração concedida pelas mãos do próprio Charles III em 2024. Nascida em Belize, a compositora mudou-se com a família para Londres quando tinha apenas dois anos. Posteriormente, seus pais se mudaram para Nova York e a deixaram com um tio, que começou a influenciá-la a estudar piano e poesia e a colocou para estudar em um internato. Antes de estudar música, Wallen estudou dança na Maureen Lyons School of Dance e na Urdang Academy, chegando inclusive a se mudar para Nova York para estudar na Dance Theatre of Harlem. Contudo, ela descobriu que, de fato, sua maior aptidão estava na música, priorizando a partir daí seus estudos em composição. Estudou música no Goldsmiths' College a partir de 1981 e composição no King's College London a partir de 1983, além de ter obtido um mestrado em filosofia no King's College, Cambridge. Sua primeira encomenda de impacto foi um concerto para percussão e orquestra, escrito para o percussionista Colin Currie e estreado por ele durante a final do concurso BBC Young Musician, em 1994. A partir daí, pouco a pouco, Errollyn Wallen passou a receber encomendas de grandes concertistas, maestros e orquestras, conquistando seu espaço no circuito da música erudita britânica. Este álbum traz a BBC Concert Orchestra sob a regência do maestro John Andrews e participações solistas de Ruby Hughes (soprano), Idunnu Münch (mezzo-soprano) e Miwa Rosso (violoncelo), dando vazão a obras como Dances for Orchestra (2023), The World’s Weather (2000, estreada em 2022), Mighty River (2007), This Frame is Part of the Painting (2019), By Gis and by Saint Charity (2022), Fondant (2018) e Postcard for Magdalena (2020). Trata-se, portanto, de um conjunto de obras que evidencia o aperfeiçoamento de sua escrita e de sua veia expressiva desde os anos 2000 até os dias mais recentes, numa síntese eclética e original entre o modernismo, o neoclássico e neorromantico. Em Dances for Orchestra (2023), temos uma longa suíte estruturada em doze movimentos interligados que ressignificam formas de danças barrocas e clássicas —— incluindo uma sarabanda de inspiração handeliana —— por meio de uma escrita neoclássica elaborada, marcada por uma riqueza expressiva de efeitos, contrapontos, síncopes, uso inteligente da contracenação de naipes e consequente colorido orquestral. Já The World’s Weather (2000, com primeira gravação em 2022) soa mais modernista do que neoclássica e trabalha o processo de desenvolvimento a partir de um núcleo motívico simples, expandindo gradualmente sua densidade por meio de sobreposições texturais, jogos de efeitos tímbricos, camadas e combinações harmônicas. Segue-se Mighty River (2007), que inicia com um hino inglês como introdução e explora a ideia de um rio que deságua no mar como símbolo do espírito humano escravizado que luta pela liberdade: nessa peça, com tons modernistas, a compositora utiliza elementos motívicos de canções spirituals e hinos como "Amazing Grace", "Deep River" e "Go Down Moses", articulando uma reflexão musical e simbólica sobre a história da escravidão e a luta pela liberdade dos negros escravizados pela Inglaterra. Um viés de música sinestésica e interdisciplinar surge com força em This Frame is Part of the Painting (2019), inspirada na obra do pintor britânico Howard Hodgkin, na qual cores instrumentais, gestos fragmentados e escrita vocal expressiva traduzem a abstração pictórica em sons. Segue-se By Gis and by Saint Charity (2022), que adota os contornos de uma fantasia dramática modernista em torno da loucura de Ofélia —— personagem de Hamlet, de William Shakespeare —— em um intenso diálogo entre o canto de Ruby Hughes e os rompantes da orquestra. Já em Fondant (2018), Wallen explora a imagem lúdica de uma confeitaria e de um bolo de aniversário como metáfora sonora colorida da vida, incorporando elementos da clássica canção de aniversário "Happy Birthday". Por fim, Postcard for Magdalena (2020) oferece um momento de intimismo lírico para violoncelo solo, explorando toda a cantabilidade, a ressonância e o fraseado expansivo do instrumento. A escrita de Wallen, pois, evidencia uma síntese orgânica entre a herança do modernismo britânico e ressignificações neoclássicas e neorromânticas, com amplo uso de citações —— como bem compete aos melhores compositores pós-modernistas das últimas décadas ——, engrossando a estirpe de criadores que se filiam às influências de Britten e Tippett. Este álbum foi um dos indicados ao prêmio Grammy que será anunciado agora em 2026.


★★★ - Gabriela Ortiz (w/ LA Phil & Dudamel) - Yanga (Platoon, 2025)
A peça Yanga deste álbum foi indicada à categoria de "Melhor Composição Clássica Contemporânea" no Grammy 2026. Lançado pela renomada compositora mexicana Gabriela Ortiz —— residente do Carnegie Hall na temporada de 2025 ——, este álbum é mais uma colaboração dessa grande criadora com a Los Angeles Philharmonic, sob a direção de Gustavo Dudamel. O registro dá continuidade à sua escrita após a consagração internacional, que incluiu a tripla vitória no Grammy de 2025 com a peça "Revolución Diamantina", a qual mostrou inteligente combinação de elementos sinfônicos com percussão multicultural e desenvolvido discurso musical inspirado em temáticas advindas dos protestos feministas ocorridos em 2019, no México. O álbum foi gravado majoritariamente ao vivo no Walt Disney Concert Hall entre 2023 e 2024, reunindo três obras de grande fôlego num total de 11 faixas: Yanga, o Concerto para Violoncelo Dzonot e Seis Piezas a Violeta. Além da Los Angeles Philharmonic, participam das gravações o Los Angeles Master Chorale, o Tambuco Percussion Ensemble e solistas como Alisa Weilerstein (violoncelo) e Joanne Pearce Martin (piano). A peça-título Yanga (2019, com 17 minutos de duração) é concebida como um poema sinfônico para coro e orquestra, com coro misto e um amplo arsenal de percussões do espectro afro-latino-americano —— com instrumentos africanos que chegaram à América Latina, como o batás, o güiro, o shekeres, a cabaça, entre outros ——, perfazendo uma viagem musical inspirada na trajetória histórica de Gaspar Yanga, príncipe africano escravizado que liderou uma revolta no México colonial e fundou o primeiro assentamento livre das Américas, em Veracruz. A peça combina textos do dramaturgo Santiago Martín Bermúdez, cantos congoleses e uma escrita coral de caráter rítmico e declamatório, articulando polirritmias complexas, passagens harmônicas de pujante densidade sinfônica e um intenso diálogo polifônico entre coro e percussão, fundindo um modernismo mexicano de linhagem revueltiana com gestos ritualísticos, resultando em uma narrativa sonora de resistência, fraternidade e liberdade coletiva. Segue-se o Concerto para Violoncelo Dzonot, escrito para a violoncelista Alisa Weilerstein e encomendado pela Los Angeles Philharmonic: estruturado em quatro movimentos, o concerto propõe uma reflexão mística, ecológica e simbólica sobre os cenotes da Península de Yucatán, explorando contrastes entre registros graves e agudos, timbres e articulações para evocar a luz penetrando cavernas, os fluxos subterrâneos da água e o voo mítico do pássaro Toh (ave nativa da região), em um diálogo visceral entre solista e orquestra que combina virtuosismo, escrita narrativa e inspiração ambiental. Já Seis Piezas a Violeta, ciclo orquestral concebido a pedido de Dudamel, homenageia a figura multifacetada de Violeta Parra —— folclorista, artista visual e ativista chilena —— por meio de seis movimentos que alternam lirismo melódico andino, referências diretas à canção popular latino-americana e estudos rítmicos exuberantes, explorando polirritmias, síncopes assimétricas e uma paleta harmônica latino-americana de forte carga emocional. Em todo esse ciclo de peças, inspirado na história, nas realidades sociais e nos símbolos do México e do continente latino-americano, a obra de Gabriela Ortiz tem se afirmado como uma voz de amplitude emblemática.

 
★★★¹/2 - Lyra Pramuk (w/ Sonar Quartett): Hymnal (7K/pop.soil,2025)
Nascida em Hollidaysburg, Pensilvânia, na adolescência a cantora e performer Lyra Pramuk começou sua trajetória apresentando-se junto a coros de igreja, orquestras e grupos de teatro musical. Após mudar-se para Rochester, Nova York, frequentou a Eastman School of Music e, depois dessa fase, mudou-se para Berlim em 2013, onde lançou suas primeiras peças vocais via Bandcamp, pouco a pouco alcançando reconhecimento. Estabelecendo uma carreira marcada pelo hibridismo entre música contemporânea e performance, entre música vocal e eletrônica, Lyra Pramuk já colaborou com artistas sonoros de diversas searas. Tendo assumido publicamente sua condição de transgênero, desenvolveu-se na vida e na arte com um hibridismo que desafia rótulos e ressignifica o canto sacro, incorporando elementos da astrologia, do minimalismo, da eletrônica contemporânea, do avant-pop e de um certo futurismo pós-moderno. Em 2020, lançou seu álbum de estreia, Fountain, pela gravadora islandesa Bedroom Community, de Valgeir Sigurðsson. Em 2021, foi lançado o álbum Delta, com remixes e novas versões de suas faixas feitos por Valgeir Sigurðsson, Colin Self, Hudson Mohawke, Kara-Lis Coverdale, Caterina Barbieri, Eris Drew, Ben Frost, Gabber Modus Operandi e Tygapaw. Hymnal é o segundo álbum de estúdio de Lyra Pramuk e apresenta uma evolução em que seu hibridismo se expande para comungar escrita coral, música de câmara, música minimalista, eletrônica experimental, techno, ambient music, folk e pop europeu, além de práticas conceituais interdisciplinares, compondo um verdadeiro hinário caleidoscópico, uma espécie de "livro de cânticos" futurista com pegajoso melodismo minimalista. Diferentemente de seu álbum de estreia, construído exclusivamente a partir de vozes e eletrônica, Hymnal incorpora passagens com o quarteto de cordas Sonar Quartett, de Berlim, em arranjos assinados por Francesca Verga. Com uma riqueza cósmica, existencial e futurista, o que Lyra Pramuk busca fazer nesse álbum é nos reconectar com o cosmo, com a Terra, com a natureza e com a espiritualidade por meio de seu instigante hibridismo experimental. Ademais, ela também incluiu poemas da escritora Nadia Marcus em suas criações, que serviram como base textual para um experimento colaborativo com a artista Jenna Sutela, no qual as palavras foram escolhidas e processadas eletronicamente para evocar uma reestruturação do canto e da linguagem. O processo de gravação do álbum reflete muito bem a abordagem híbrida, futurista, interdisciplinar e multi-estética da artista: os arranjos de cordas foram registrados em dois dias de sessões em estúdio, enquanto as vozes foram captadas em espaços com diferentes auras e acústicas na Itália —— incluindo uma catedral em Veneza e uma cabana nas Dolomitas —— e posteriormente reamplificadas, editadas e recontextualizadas por meio de técnicas que combinam produção eletrônica, espacialização e performance com CDJs (com uso de eletrônicos e samplers para criar efeitos conhecidos como hot cues, loops, beat matching e sync), entre outros efeitos. Além do quarteto de cordas Sonar Quartett, participaram do álbum outros instrumentistas, como o flautista Dylan Kerr e os contrabaixistas Samar Hafez e Alexander Tarbert.


 
★★★¹/2 - Reiko Füting: distant: violin. sound (New Focus Recordings, 2025)
Reiko Füting é um compositor alemão, nascido em 1970 na então Alemanha Oriental, e hoje radicado nos EUA, sendo uma respeitada figura da música erudita contemporânea e atuando como professor e chefe da divisão de teoria musical da Manhattan School of Music. Em distant: violin. sound, Füting nos apresenta um retrato denso e reflexivo de sua poética, na qual a citação de elementos e motivos de compositores históricos de traduz em ferramenta para investigar a memória em suas dimensões psicológicas, históricas, culturais e políticas, e para fazer dessa memória um objeto de estudo e inflexão dentro do seu estilo modernista, transitando entre assimilação, fragmentação, integração e diluição desse passado sonoro. Partindo da consciência de que escrever para o violino implica inevitavelmente dialogar com um cânone constantemente ressignificado —— no sentido de que compor para violino é inevitavelmente "copiar" elementos técnicos do passado ——, Füting transforma essa herança em matéria viva, utilizando motivos barrocos, classicistas e modernistas para criar suas peças violinísticas contemporâneas. Encomendada pela violinista Miranda Cuckson, a peça "passage: time (copy)" (2019), para violino solo, articula citações de obras de compositores como Biber, Kühnel, Westhoff, Pisendel e Bach, além de autocitações de outras peças do próprio Füting: trata-se de uma sequência de citações inflexionadas ao modo e ao estilo modernista do compositor, que espelham a natureza fragmentária da memória, evocando a "Passacaglia das Sonatas do Mistério" do compositor barroco tcheco Heinrich Ignaz Franz von Biber dentro de uma estrutura cíclica oblíqua, ancestral e, ao mesmo tempo, fraturada. Em "mo(ve)ment for 2: Choreophonie —— Schatten/Spiegeltanz", temos uma peça escrita para o New Chamber Ballet, em um diálogo entre violino e piano que emerge gradualmente de solos autônomos para um entrelaçamento híbrido, no qual referências advindas de Debussy, Wolf, Mahler e Strauss se articulam por meio de uma escrita sinuosa, cromática e densa, pensada para soar em constante mutação. O trio para piano "free: whereof —— wherefore" destaca-se pelo diálogo crítico com o segundo movimento do Trio op. 1 nº 3 de Beethoven, incorporando fragmentos textuais do próprio Beethoven e do filósofo Vilém Flusser, desconstruídos em sussurros e fonemas isolados que expandem a textura instrumental e dissolvem fronteiras entre voz e instrumento. Já a peça "Chorale (those driven out will come)", para quarteto de cordas, retoma o terceiro movimento (Heiliger Dankgesang) do Quarteto op. 132 de Beethoven como eixo simbólico para refletir sobre migração, exílio e pertencimento, contrapondo harmônicos luminosos, trêmulos instáveis e glissandi energizados. Em "act: ab-stain, from", para clarinete, violino, violoncelo e piano, Füting dialoga com o barroco alemão por meio de elementos de compositores como Heinrich Schütz e Johann Hermann Schein, além de usar temáticas advindas do pensamento de Hannah Arendt, construindo uma escrita polifônica transparente e multidimensional que culmina em um extenso solo de clarinete, rico em técnicas estendidas e camadas contrapontísticas. O álbum se encerra com a miniatura "F/fern", inspirada no livro ambiental "The Lost Words", e com a peça "von der Stadt", encomendada em memória da destruição de Magdeburg durante a Guerra dos Trinta Anos, obra que utiliza hinos de Johann Hermann Schein em uma escrita inspirada na técnica da Klangfarbenmelodie de Schoenberg —— que significa "melodia de cores sonoras" ou "melodia de timbres" ——, tratando o timbre com a mesma importância que a altura das notas e o ritmo dentro de frases fragmentárias. Temos neste álbum, então, um exemplo de inflexões modernistas usando a ferramenta da citação.


 
★★★¹/2 - Vijay Iyer - Trouble (BMOP Sound, 2024)
Vijay Iyer tem sido, por décadas, um dos grandes nomes do piano no jazz contemporâneo, também sendo um improvisador visceral e um compositor supercriativo que transita da eletrônica à música de câmara, passando pela livre improvisação, por inflexões das tradições afro-americanas e da diáspora sul-asiática, bem como pelo uso de incisivas temáticas sociopolíticas. Faltava, ainda, um registro sinfônico. Este álbum, Trouble, foi lançado em junho de 2024 pelo selo BMOP/sound e constitui, já em sua estreia, o mais abrangente e ambicioso retrato sinfônico da trajetória composicional de Vijay Iyer. Interpretado pela Boston Modern Orchestra Project (BMOP) — uma das mais importantes orquestras dedicadas à música contemporânea — sob a regência precisa e estruturalmente refinada de Gil Rose, o álbum reúne três obras compostas entre 2017 e 2020 que evidenciam a maturidade orquestral de Iyer. A peça Asunder (2017), originalmente escrita para orquestra de câmara e estreada pela Orpheus Chamber Orchestra, articula-se em quatro movimentos contrastantes e revela uma paleta orquestral inspirada tanto na sofisticação tímbrica das orquestrações de Duke Ellington quanto em técnicas contemporâneas de estratificação rítmica e harmônica: trata-se de uma obra que traduz a sensação de fratura e ansiedade da vida norte-americana contemporânea em um arco musical que vai da inquietação à densidade lírica, buscando a construção de unidade a partir da fragmentação. Já a obra central, Trouble (2017), concebida no âmbito da série The New American Concerto, empreendida pela violinista Jennifer Koh, é um concerto para violino e orquestra estruturado em seis seções interligadas — incluindo um prelúdio, movimentos de desenvolvimento, um segmento memorial dedicado a Vincent Chin, episódios de acumulação progressiva (accumulation) e um extenso movimento final (Assembly) — nas quais o violino solista assume o papel de voz tanto no âmbito coletivo quanto no narrativo, combinando lirismo incisivo, gestualidade quase improvisatória e um discurso musical que metaforiza a luta por justiça social, direitos civis e resistência. Completando o álbum, temos a peça Crisis Modes (2019–20), para percussão e cordas, que se organiza em três episódios (Appeals, Denial e Agonism) e investiga estados contemporâneos de ansiedade e conflito por meio da fragmentação motívica, abordando a inquietação diante das crescentes ameaças à humanidade por meio do diálogo entre cordas e percussão. A obra explora a noção de interdependência rítmica e intensos contrastes tímbricos entre esses dois naipes, evidenciando a influência dos ritmos sul-asiáticos, do jazz moderno e das tradições afro-diaspóricas na escrita de Iyer. No conjunto, essas três peças demonstram grande expertise tímbrica e transitam por inflexões e contrastes em um percurso que oscila entre a reflexão e o discurso temático, configurando uma estreia sólida e significativa de Iyer no âmbito da escrita sinfônica. E esperamos outros desses registros!!!