O ano de 2021 está quase acabando -- e com ele esvai-se, finalmente!, as fases mais sombrias da Covid-19. E já que sobrevivemos, um dos desafios deste humilde blog brasileiro é continuar a garimpar música para trazer aos seus leitores novas audições também do reino do erudito, que infelizmente ainda é marcado pelo estigma do conservadorismo palaciano que tanto se transparece nas grades programáticas dos ensembles e das orquestras mais tradicionais. Mas uma boa notícia para o ouvinte que está chegando agora nessa seara -- e para o ouvinte mais calejado que está cansado da mesmice --, é que o novo paradigma da produção independente também chegou com força total no universo da música erudita, nos oferecendo um atrativo paralelo aos programas repetidos por alguns mecenas que ainda continuam enclausurados no reumatismo da "música clássica" irretocável. Nos EUA, novos registros criativos surgem aos montes em gravadoras como Cantaloup Music e New Amsterdam Records e fala-se até -- e isso não é de agora, mas desde início dos anos de 2010 -- do surgimento uma nova geração de jovens músicos, ensembles e compositores eruditos independentes que estão revolucionando o conceito da música de concerto estabelecendo uma espécie de indie classical music, para ficar num termo que é relacionado, por exemplo, a nomes como os ensembles yMusic e Sō Percussion, os compositores William Britelle e Nico Muhly e às prolíficas compositoras Caroline Shaw e Missy Mazzoli (que, inclusive, chegaram a ser indicadas para concorrer ao Prêmio Pulitzer, com Caroline Shaw ganhando em 2013 e Missy Mazzoli sendo uma das finalistas em 2018). E não é que esses novos nomes da música erudita rejeitem o termo "clássico" e tudo o que ele representa: eles apenas trazem influências musicais inerentes às suas épocas e suas experiências contemporâneas para essa música, e estabelecem uma produção cada vez independente, cada vez mais pessoal, cada vez mais eclética e híbrida, estabelecendo uma derribada dos muros estéticos ainda mais efetiva que as transposições estabelecidas pelos compositores minimalistas de outrora. É uma geração, inclusive, rotulada como pós-minimalista -- e que traz, sim, ecos das inspirações nos compositores minimalistas dos anos 60, 70 e 80 --, mas que explicita principalmente elementos de tendências musicais curtidas em suas épocas, as experiências abstraídas da pop music, do hip hop, do indie rock e da eletrônica dos anos 90 e 2000. Outro fator interessante é o processo de formação de público dessa nova geração: eles até esperam por convites para tocar em salas de concertos renomadas e para que suas obras sejam estreadas por grandes orquestras, mas também buscam público com ensembles compactos em locais alternativos como lofts, museus de arte moderna, galerias de arte, pubs e até clubes noturnos em apresentações com DJs, entre outros locais abertos à arte contemporânea onde suas composições híbridas-experimentais são curtidas por um público jovem e de mente aberta, geralmente compreendido numa faixa etária de 20 a 50 anos.
Na lista de novos álbuns que indico abaixo, por exemplo, o leitor e ouvinte verá como que alguns desses compositores se utilizam de diversos "leitmotivs" e adereços advindos das épocas do barroco, do clássico e do romântico para criar novas landscapes sonoras onde os elementos do jazz contemporâneo, do rock, do pop e da eletrônica também se fazem presentes. Mas agora, o sentido e sentimento não é mais de se rebelar ou de se fazer ironia -- como o avant-garde do século XX fez, muitas vezes de forma anárquica, contra os padrões dantes estabelecidos --, e nem faz mais sentido a formação de repertório para uma produção musical calcada no revisionismo clássico -- ou seja, tirando o fato de que os songbooks e as partituras clássicas são importantes para o estudo e para buscar inspirações no que aconteceu de mais relevante no passado, a formação de repertório com o intuito de focar a carreira na mera reprodução e releitura é a coisa mais passadista que se pode ter para o músico e compositor contemporâneo. Agora a meta dos jovens músicos e compositores é misturar tudo e manipular o tempo, é transpor as características temporais da música para criar um pós-modernismo onde o orgânico e o eletrônico, e o passado, presente e futuro coexistam num novo multiverso de gêneros onde a entropia de tudo o que vivemos ou aprendemos se encontra com a distopia de uma nova era de indefinição da pós-modernidade. E os méritos dessa nova era não podem ser creditados apenas aos músicos e compositores dos EUA. Os compositores islandeses, entre outros compositores europeus, também têm representado muito bem essa característica ecleticidade da atual pósmodernidade: Valgeir Sigurðsson e os compositores ligados à Bedroom Community são ativos representantes dessa nova música erudita que congrega, muitas das vezes numa estética um tanto minimalista, desde elementos antigos renascentistas e barrocos até a eletrônica contemporânea. Pós minimalistas? Indie Classical? Bem...pouco importa os rótulos: e até podemos usar os rótulos como referências textuais, meras palavras de diferenciação dentro de um texto ou contexto, uma vez que é natural que todas as coisas nesse mundo -- as coisas, as pessoas, as artes... -- se estilizem com o tempo e recebam, portanto, nomes e termos que os diferenciem semióticamente das outras coisas enquanto algum tipo de signo ou identidade. Mas o que importa, de verdade, é que a arte da música nunca foi e nunca será estática, e agora nos traz muitas e muitas novidades: ou seja, a arte da música se move em qualquer estética ou instância, e atualmente se move em ondas cada vez mais híbridas -- mesmo no milenar território erudito. No Brasil, por questões socioculturais, ainda temos ecos de um nacionalismo marcado pelas tradições do canto e da música popular, além de uma enjoativa dicotomia que ainda separa modernistas a La-Koellreutter de nacionalistas a La-Villa-Lobos. Quer dizer: nossa cultura é das mais ricas do mundo e nossa música popular, de Oslo à Tóquio, tem o poder de chamar a atenção de qualquer pessoa que valoriza a boa música, mas não é novidade que o ouvinte logo perceba ou sinta uma certa impressão de que carecemos de um maior salto evolutivo em relação ao que acontece de mais contemporâneo na atual era da pós-modernidade. Contudo, nem tudo está perdido -- mesmo num Brasil onde nunca foi prioridade termos espaços e incentivos para a produção de música contemporânea. Ainda que em menor número, a arte da música tem nos presenteado com criativos compositores e músicos brasileiros independentes que por aqui -- e/ou pelo mundo! -- também são hábeis em manipular todos os citados recursos temporais em busca de uma nova atemporalidade -- do barroco à eletrônica. Sigamos abaixo com alguns desses álbuns "eruditos" de finais de 2020 e, principalmente, de 2021. Clique nos álbuns para ouvi-los .
Interessante amostragem híbrida do violonista Daniel Murray, que é um dos instrumentistas brasileiros que mais tem quebrado as barreiras entre o instrumental brasileiro de verve popular e a música erudita contemporânea. Em seu site, Daniel Murray diz que esse décimo terceiro registro, gravado em finais de 2020 e divulgado durante este ano de 2021, documenta uma curiosa faceta da sua produção em que ele se põe à prova na arte de compor e arranjar também para outros instrumentos, numa tentativa sincera de continuar a crescer não apenas como um violonista-intérprete e acompanhador, mas principalmente crescer como compositor e arranjador. E de fato, aqui o violão atua mais como um instrumento harmonizador dentro de uma estética mais camerística do que como um solista sobressalente. Para alcançar esse conceito híbrido de música de câmera e música instrumental brasileira, Daniel Murray e seus violões de 6 e 11 cordas formam um curioso septeto com Luiz Amato (violino), Sarah Hornsby (flauta), Gustavo Barbosa-Lima (clarinete), Adriana Holtz (violoncelo), Pedro Gadelha (contrabaixo) e Caíto Marcondes (percussão). Com todas as faixas autorais, o resultado é uma mesclagem de temas com adereços rítmicos-melódicos tradicionais do choro, samba, seresta, ciranda, baião e etc ...com adereços eruditos camerísticos, proporcionando mais um espécime sonoro a engrossar o caldo dessa linhagem de música erudita brasileira que abraça o instrumental popular e vice-versa. É interessante notar, aliás, que a mentalidade que Daniel Murray mostra em sua discografia está a muitos passos à frente das repetições passadistas que marcam outras produções brasilianistas, as quais, de certa forma, estacionaram suas inspirações em Villa-Lobos e Radamés Gnattali sem considerar os avanços e as ricas possibilidades que a música contemporânea dispõe: ou seja, Murray é, sim, um violonista que traz essa tradição brasileira do erudito-popular e do popular-erudito, mas que também recheia seus desenvolvimentos e sua escrita composicional com abstrações e idiossincrasias pessoais, improvisos vários, técnicas estendidas, elementos da música eletrônica e eletroacústica e diversos outros adereços contemporâneos -- e esse é o diferencial. Sombranagua é, contudo, um registro de composição menos experimental, mas o ouvinte mais atento perceberá que a intenção do violonista é realmente mostrar sua própria timbrística e seu lado mais autoral, idiossincrático e visceral ao invés de gravar mais uma variação nostálgica do revisionismo brasileiro.
Muito interessante é esse trabalho recém lançado do pianista, compositor e filósofo (e acadêmico da Universidade de São Paulo) Vladmir Safatle. O compositor idealiza aqui nada mais do que um exemplo de como a ecleticidade pode ser volúvel e envolver, numa mesma amostragem híbrida, vários elementos e adereços temporais na construção de uma amostragem atemporal -- uma definição pura e simples da pós-modernidade. O título do projeto, por si só, já explicita essa ideia de viagem na extensão do tempo para tatear os elementos que excitam a memória auditiva do compositor -- e que, afinal, é como funciona para qualquer pessoa em sua relação com o tempo: essa coisa de lembrar de músicas antigas, ter memórias afetivas com poéticas não vivenciadas e saudades de tempos históricos não vividos. Não à toa, o disco abre com a faixa O Solfejo de Nossas Filhas, onde temos uma curiosa amostragem de samples com vozes recitando poemas e uma criança ao fim cantarolando e perguntando ao pai como é que se chama uma tal canção que ela se lembra apenas da melodia de algum lugar do seu espaço-tempo: uma referência direta ao melancólico Allegretto da Sinfonia Nº 7 de Beethoven que tanto nos assombra. Mas uma sacada ainda mais interessante que Vladmir Saflate nos mostra aqui é a ideia de também convergir várias linguagens artísticas dentro dessa bagunça eclética de elementos temporais que busca uma definição para a atemporalidade: da poesia à música, do sample à composição escrita, do canto lírico operístico ao formato canção, dos ecos românticos aos ecos modernistas, do visceral ao meditativo. O compositor, enfim, mistura suas próprias ideias composicionais com trechos de poemas e excertos de poetas e escritores históricos como Paul Celan, Scott Fitzgerald e Paul Éluard, além de samples de vozes faladas e excertos de peças eruditas famosas e outras músicas. Trabalho idealizado em 2020, as faixas do álbum foram lançadas aos poucos como singles mensais nas plataformas digitais até que agora mais recente em 2021 tivéssemos todas as faixas do álbum por completo, que acaba de ser lançado pelo Selo Sesc. Acompanham Safatle a vocalista lírica Caroline De Comi e a cantora Valentina Ghiorzi Safatle (sua filha), além do violinista Renan Vitoriano, entre outros colaboradores.
Outro exemplar sonoro da ecleticidade pós-moderna é este trabalho em piano solo de André Mehmari. Para quem acompanha a produção desse grande pianista e compositor, sabe que uma das suas principais facetas é unir elementos aparentemente distantes um dos outros, temporal e esteticamente falando, para compor sua amálgama pessoal: o compositor frequentemente mistura, por exemplo, a poética melódico-harmônica das canções mineiras do Clube da Esquina com elementos da música erudita barroca e com elementos improvisativos do jazz contemporâneo, alcançando uma efetiva e surpreendente coesão, sem arestas -- aliás, as aplicabilidades da música eletrônica criativa e essa sua faceta como improvisador, tanto em improvisos impressionistas mais delineáveis como em improvisos mais abstratos, também são duas direções que tem sido exploradas com sucessivas evoluções dentro da sua produção musical. E este disco é mais um capítulo impressionante em como o pianista André Mehmari extrai, assimila e exterioriza essa amálgama feita de elementos vários dentro da linha do tempo da música. Mas existe um grande detalhe neste registro que o diferencia dos projetos anteriores do pianista: trata-se de um registro onde o músico praticamente traz o ouvinte para mais perto de uma certa intimidade musical não muito revelada, para mais perto dos temas melódicos de alguns compositores que lhe acalentam e lhe emocionam, trata-se do registro de piano solo mais intimista e introspectivo do músico, um registro onde o ouvinte sente verdadeiramente que o pianista foi buscar no âmago da sua alma criativa suas mais profundas inspirações para recriar esses temas de várias estéticas, épocas e lugares diferentes. André Mehmari sequencia num mesmo set list temas e excertos de peças de compositores barrocos como o italiano Tarquinio Merula, o inglês Henry Purcell, o alemão Johann Sebastian Bach e o francês Louis Couperin, além de uma canção do compositor romântico alemão Johannes Brahms (Balada Op. 10 No. 4), um tema do mestre maior do instrumental brasileiro Hermeto Pascoal (O Farol que nos Guia) e uma pequena coleção de suas próprias canções que ele compôs recentemente e/ou tirou do fundo do seu baú de preciosidades -- ou seja, praticamente temos o barroco, o romântico, o moderno e o contemporâneo todos amalgamados em impressionistas dedilhados pianísticos. Para a recriação desses temas mais eruditos -- que como denota o título do álbum, e como confidencia o próprio pianista, foram gravados, a maioria, em inspiradas noites de insônia pandêmica --, André Mehmari procura não deformar tanto os sentimentos dos seus motivos melódicos originais, mas os delineamentos improvisativos levemente impressionistas estão lá, presentes. Da mesma forma para seus temas autorais, Mehmari até se sujeita a um dedilhado mais improvisativo, mas mantém explicita sua arrebatadora poética melódica com uma erudição pianística fora de série. Ou seja, é mais um registro onde o pianista nos encabula em relação aos limites entre o antigo e o contemporâneo, o popular e o erudito, o escrito e o improvisado. Um registro para se fechar os olhos, se retirar desse mundo real cheio de problemas e sentir a música que emana desses expressos noturnos que viajam no tempo.
Um dos nomes centrais da Bedroom Community -- selo e coletivo islandês, um dos berços mais ativos da música erudita atual --, Nico Muhly é um dos maiores compositores americanos da atualidade. Músico interdisciplinar -- já tendo atuado como colaborador e arranjador em registros de artistas diversos como Philip Glass, Björk e David Bowie --, Muhly também é um dos principais adeptos do pós-minimalismo a caracterizar as últimas décadas e a congregarem-se misturas que envolvem do mais antigo barroco ao mais contemporâneo neoclássico, do neorromântico ao pop e à eletrônica. Para este concerto acima escrito para fagote e ensemble de sopros, por exemplo, Muhly traz inspirações implícitas da história do fagote na música sacra, inspirando particularmente na obra do compositor inglês Orlando Gibbons (1583–1625). Quer dizer: esta sua peça não soa esteticamente sacra ou barroca, mas são os ecos inspiradores das obras de Orlando Gibbons para fagote e oboé que incitam a criatividade do compositor aqui. Lançada pela gravadora americana Cantaloupe Music (gerida pelos membros do Bang On a Can), a obra foi escrita para o fagotista Michael Harley e o University of South Caroline Wind Ensemble, e soa cheio de efeitos pontilhistas sobrepostos que trazem ecos de um passado implícito por debaixo de uma contemporaneidade explícita. Ademais, Nico Muhly também acaba de lançar, dessa vez pelo seu selo Bedroom Community, sua composição para o filme japonês Gift Of Fire (clique no link para saber mais e ouvir). Fundado na Islândia como um coletivo de músicos e compositores contemporâneos, ao que o americano Nico Muhly logo se juntou como um dos nomes centrais do coletivo, o selo Bedroom Community também é um dos mais interessantes núcleos da música erudita mais atual. O registro dessa trilha é, então, fruto do convite que o cineasta japonês Hiroshi Kurosaki faz para Nico Muhly indo de encontro aos recursos e colaborações que a Bedroom Community possibilita ao compositor. Ao ser convidado, Muhly logo foi informado de que ele teria total liberdade para compor uma peça que poderia ir muito além do que uma trilha sonora convencional. Para tanto, então, ele convida a violista Nadia Sirota, o percussionista Justin Peters e aciona o compositor e sound designer islandês Valgeir Sigurðsson, e elabora uma requintada suíte orquestral onde a organicidade da obra inclui uma amalgamada mistura de sons acústicos e eletrônicos. Está aí, então, duas oportunidades para o ouvinte mais curioso se inteirar de como tem soado a obra de um dos grandes compositores do nosso tempo.
Valgeir Sigurðsson, fundador da Bedroom Community, é um dos mais proeminentes e ativos compositores da Islândia. E aqui neste registro ele documenta a íntegra de uma peça que ele usou como trilha sonora do filme de época MALÁ RÍŠA (Little Kingdom), dirigido pelo diretor eslovaco Peter Magát. Sendo a palavra "KVIKA" a tradução islandesa para o magma -- o manto derretido da terra que fica abaixo das placas tectônicas --, Sigurðsson usa uma instrumentação de cordas em notas prolongadas combinados com eletrônicos graves para captar o imagetismo dessa sonoridade subterrânea da Terra. Uma das características dos compositores escandinavos, inclusive, é essa capacidade de produzir obras imagéticas que tentam captar a beleza, a melancolia e a poética dos seus lagos gélidos, sua floresta boreal e suas montanhas com neve. E aqui nesta obra, Valgeir Sigurðsson cria uma verdadeira "soundscape" para explicitar seu imagetismo que começa nas geleiras da superfície boreal e vai até os confins da grande concentração de magma fervilhante que está sob o solo da Islândia. Cada faixa funciona como uma fotografia sonora de camadas sobrepostas onde o orgânico das cordas e vozes formam uma beleza muito atraente com os supergraves tectônicos dos sintetizadores eletrônicos. As partes da peça são interpretadas em sua íntegra pela Orquestra Filarmônica da Eslováquia, Bohdan Warchal Slovak Chamber Orchestra e pelo The University Choir Technik, além de contar com a participação do violinista Daniel Pioro, do próprio Valgeir Sigurðsson aos sintetizadores e doutros colaboradores. Álbum lançado pela Bedroom Community, da qual Valgeir Sigurðsson é fundador e gestor. Valgeir Sigurðsson é um criativo entusiasta da eletrônica enquanto design sonoro.
A islandesa Anna Thorvaldsdottir é um dos principais nomes representantes da poética nórdica na música contemporânea mundial. Suas composições, inspiradas por atmosferas sonoras e paisagens da natureza, são geralmente dinâmicas e cheias de passagens meditativas, silêncios e texturas gélidas que nos transportam de uma forma muito sinestésica para as paisagens das cavernas, florestas, lagos e montanhas escandinavas. Em seu álbum AEQUA, por exemplo, Thorvaldsdottir trabalhou com artistas do renomado International Contemporary Ensemble (ICE) para criar uma variedade de ecossistemas musicais através de performances solos, formações compactas e peças mais orquestrais onde explosões sonoras contrastam com as texturas e silêncios. Já neste álbum, Enigma, a compositora registra o seu primeiro quarteto de cordas usando os mais variados timbres dos violinos, viola e cello parar criar contrastes entre acordes ressonantes e introspectivos com texturas de ruídos brancos através de técnicas estendidas como arranhões, percussão dos arcos nas cordas e outros efeitos que tentam instigar nossa percepção sonora em relação à vastidão do cosmos que nos rodeia. Eis aqui um exemplo do minimalismo abstrato nórdico, com a maioria dos acordes soando sempre longos e com um trabalho primoroso de timbrística.
O NOW Ensemble é composto de flauta, clarinete, contrabaixo, teclas (piano, acordeão) e guitarra elétrica, e é um dos principais ensembles contemporâneos a empreender-se em projetos interdisciplinares e composições ecléticas -- um verdadeiro representante da música do século 21. Neste registro, o ensemble registra mais uma parceria com o compositor Sean Friar, que aqui nos apresenta sua peça Before and After em oito partes. Sean Friar conta que idealizou a peça quando era estabelecido em Roma. Ao caminhar pelos pontos turísticos e apreciar os monumentos históricos da antiga capital, por diversas vezes ele teve a sensação de estar vivendo uma verdadeira realidade paralela onde o antigo e o contemporâneo se encontravam: "I first started thinking about Before and After years ago while living in Rome. “It’s a city that has been built on top of itself for millennia, a city far different from my hometown of Los Angeles. Walking around Rome, I was constantly reminded of the centuries upon centuries of humanity that have come before me. I felt as though I was living in both the past and present—the before and after". Então, a peça explora essas temáticas e sensações em relação à nossa realidade de pertencer à um lugar, mas estar em vários outros lugares ao mesmo tempo, bem como explora os aspectos sensoriais relacionados à nossa capacidade de viajar, sempre que quisermos, nessa linha do tempo cheio de acontecimentos conflitantes. O compositor conta que a peça foi sendo formada aos poucos como um organismo vivo que se desenvolveu numa espécie de work in progress: primeiro através de ideias e rabiscos com lápis e papel, depois com essas ideias sendo apresentadas e improvisadas em instrumentos, e depois com as partes meio pré definidas sendo enviadas para o NOW Ensemble, que em várias apresentações ao público -- em vários palcos e lugares -- fez a peça alcançar seu formato definitivo. Aqui temos, então, o registro de uma peça detalhista e rebuscada que levou ao menos quatro anos para chegar ao seu formato definitivo. As timbrísticas da guitarra -- ora eletrificadamente psicodélica, ora cristalina, outrora com o uso de pedais de efeitos para se criar reverberações microtonais, distorções e outros efeitos -- formam uma interessante paleta de sonoridades ao se misturar com as sobreposições do clarinete, flauta, teclas e contrabaixo.
Caroline Shaw (fotos do início do post) é um dos nomes principais da nova contemporaneidade. Ativa tanto como violinista, arranjadora e colaboradora de diversos ensembles e artistas pop, como também como compositora interdisciplinar, sua produção musical é um exemplo de hibridismo onde o clássico encontra o pop, e onde os elementos clássicos e barrocos são revisitados com um espírito inventivo e intrigante: como no álbum Orange (Amsterdam Records/ Nonesuch, 2019) com o Attacca Quartet, onde a compositora recria, à sua maneira, as estéticas barrocas e mozartianas. Em 2013, aos 30 anos de idade, ela foi ganhadora do Pulitzer Prize for Music por sua peça ao estilo a cappella chamada Partita for 8 Voices, uma obra inventiva que abrange exclusivamente fala, sussurros, suspiros, murmúrios, melodias sem palavras e efeitos vocais inusitados. A voz, aliás, parece ser uma das predileções da compositora, que também se aventura como cantora em suas abordagens mais "pop". É o caso deste álbum acima indicado, que traz um mix perfeito de canto com arranjos eruditos. Na verdade, Let The Soil Play Its Simple Part é o primeiro álbum que a compositora dedica exclusivamente ao formato da canção e ao seu papel como cantora -- em trabalhos anteriores, seus vocais apareceram sempre aqui e ali, de forma sortida. Outro fato curioso é a parceria com o Sō Percussion, um ensemble de quatro percussionistas, para uma obra onde a voz é, aparentemente, a principal protagonista. Ao ouvir o álbum, contudo, vemos que não se trata de temas ou peças onde a voz soa vazia, sem harmonia, em meio à tambores e outros kits de percussão -- não é essa a intenção. Reunindo 10 canções baseadas em inspirações literárias (com letras baseadas em Ulisses de James Joyce, no poema "Room in Brooklyn" de Anne Carson e etc), hinos tradicionais cristãos, ecos advindo da pop music e do jazz, a compositora cria uma obra vocal que soa fresca, diversificada e impressionantemente contemporânea, onde a intenção é que a voz soe amalgamada em meio às explorações criativas do Sō Percussion, que atua de forma harmônica e melódica com marimba, vibrafone, sinos, bateria e outros kits combinados com eletrônica. A concepção percussiva fresca e inovadora do Sō Percussion -- soando timbrísticamente inovadora, as vezes serenamente minimalista, outras vezes densamente polirrítmica, outras vezes dinamicamente jazzística... --, traz, portanto, uma dinâmica verdadeiramente diferenciada para este álbum de canções, diferindo de muitos dos álbuns do mundo do pop comercial onde mesmo os arranjos acústicos mais elaborados costumam ser padronizados.
****¹/2 - Attacca Quartet - Real Life (Sony Classical, 2021)
Este álbum é um dos registros mais seminais de 2021 em termos da atual quebra de muros e paradigmas vigente na música erudita contemporânea. Sendo contratado pela gigante Sony Classical, o Attacca Quartet, um dos quartetos de cordas mais renomados da atualidade, recebem colaborações de diversos nomes da eletrônica e do mundo pop para criar uma música híbrida de elementos díspares. Os artistas envolvidos incluem Flying Lotus, Squarepusher, Louis Cole, The Halluci Nation, Mid-Air Thief, TOKiMONSTA, Daedelus, Anne Müller e os produtores Nic Hard e Michael League do Snarky Puppy. Apesar da estratégia mercadológica para alçar mais um quarteto de cordas ao estrelato e a um certo boom de vendas que vez ou outra costuma beneficiar esses quartetos de cordas mais engajados no mundo pop -- lembrando que o quarteto de cordas é o combo erudito mais popular fora do seu habitat natural --, as produções soam realmente bem elaboradas, rebuscadas e até intrincadas e complexas. Aliás, desde que a música continue a apresentar sofisticações, técnicas, conceitos e formas renovadas e criativas -- não repetidamente convencionais, baratas e/ou padronizadas --, as estratégias comerciais, por si só, nunca representaram nenhum demérito a qualquer banda, músico ou compositor que escolheu trabalhar com o jazz, a música erudita ou qualquer outra estética mais distante da cultura popular e mais próxima da alta cultura. E é essa quebra de paradigma que os músicos do Attacca Quartet evidenciam quando criam peças super intrincadas em colaboração com artistas do pop e da eletrônica, ou quando recebem encomendas para serem intérpretes de peças complexas criadas por artistas como o produtor Daedelus e o DJ e sound designer Squarepusher.
**** - William Brittelle - Alive in the Electric Snow Dream (New Amsterdam Records, 2020)
Nascido em 1977 e sendo uma das cultuadas figuras na Downtown Scene, além de fundador da New Amsterdam Records, William Brittelle é um dos compositores americanos mais ousados e peculiares da nova geração de criadores eruditos independentes. Com experiencias passadas como cantor e membro de bandas de rock e pop, mas com uma sólida formação na música clássica, e com uma predileção pela eletrônica mais contemporânea, ele se especializou em juntar todas essas estéticas e linguagens em uma música híbrida, própria, única e inclassificável. O primeiro álbum de William Brittelle que me lembro de ter ouvido, foi o impactante Loving the Chambered Nautilus, lançado em 2012. Seu hibridismo pop-digital-futurista costuma ser tão bem amalgamado que chega a ser de audição não menos que exótica. Este álbum, Alive in the Electric Snow Dream, foi conceitualizado, gravado e inteiramente finalizado no início de 2020, bem no início das quarentenas em meio à COVID-19, e é uma hiperdensa meditação sobre a crise climática potencializada pela pandemia. Além de todo o design eletrônico -- indescritível! -- de Brittelle, o compositor também contou com a colaboração do Metropolis Ensemble e seu condutor Andrew Cyr e os músicos Brad Balliett (fagote), Ben Cassorla (guitarras), Paul Wiancko (cordas) e o saxofonista de jazz Immanuel Wilkins, além de um ótimo trabalho de finalização do engenheiro de mixagem Zach Hanson (frequentemente colaborador e orientador em trabalhos com yMusic, The Staves e S. Carey). A obra também conta com os vocais das cantoras Jenn Wasner e Eliza Bagg.
**** - Orchestra of the Swan - Timelapse (Signum Classics, 2020)
Requintado projeto do violinista David La Page e a Orchestra of the Swan, conjunto de câmera de Stratford-upon-Avon, no Condado de Warwickshire, residente no Royal Birmingham Conservatoire e noutros espaços e instituições credenciadas pela Inglaterra. Sendo uma orquestra relativamente jovem -- fundada em 1995 --, algumas das finalidades principais dentro da sua missão institucional é a formação de público através de sucessivas gravações, apresentações indiscriminadas em locais alternativos, e, como este registro acima nos evidencia, a formação de público através da confluência erudita com gêneros e subgêneros esteticamente díspares. Para este registro, por exemplo, David La Page teve a surpreendente ideia de juntar num mesmo set list canções e peças de gêneros, subgêneros e épocas diferentes -- do barroco ao pop, do minimalismo ao rock -- em arranjos sinfônicos milimétricamente coesos. A ideia de David La Page nesse sequenciamento de arranjos de peças de diferentes épocas e estéticas é criar uma trilha musical única, fazendo com que, por exemplo, o arranjo da Gnossiennes No. 1 de Erik Satie crie uma abertura para o arranjo de Pyramid Song do Radiohead, que possibilita que venha logo em seguida o arranjo para a peça Les Boreades de Jean-Philip Rameau, que recebe uma sequência arranjada de uma faixa-medley com excertos do barroco Vivaldi e do contemporâneo David Gordon, que, por sua vez, recebe uma sequência de Heroes de David Bowie e Brian Eno. Assim, o maestro e sua orquestra parecem criar uma nova composição ao sequenciar os arranjos desses temas e peças originários de estilos, estéticas e épocas radicalmente diferentes. Lançado no início de 2021, Timelapse tem sido destaque em diversas estações de rádio inglesas -- como a Classic FM e Scala Radio, por exemplo -- e já alcançou mais de 1 milhão de audições em plataformas de streaming.
****¹/2 - Paul Lansky - Angles (Bridge Records, 2021)
Reconhecido acadêmico da Princeton University, Paul Lansky (1944 - ) é um dos compositores exploratórios do pós-guerra que figurou como um dos principais precursores e pioneiros das primeiras incursões do computador na eletroacústica erudita nos anos 70 e 80, mas que depois voltou-se para as composições instrumentais com harmonias mais consonantes a partir dos anos 90, mantendo-se, desde então, como um dos veteranos que continuaram a criar uma música atraente até mesmo para os mais jovens e contemporâneos intérpretes, ensembles e conjuntos orquestrais interdisciplinares da atualidade -- vide, por exemplo, sua parceria com o Sō Percussion. Sendo uma figura admirada tanto pela academia quanto pelas novas gerações, Paul Lansky é frequentemente citado e referenciado como uma influência: não é à toa que uma sequência de quatro acordes da peça Mild und leise (1972), sua primeira grande peça para computador, foi sampleada pela banda de rock inglesa Radiohead na faixa "Idioteque" do influente álbum Kid A, de 2000. Uma das características frequentemente lembradas na música de Paul Lansky é a influência que o compositor e teórico George Perle (1915-2009), seu professor, exerceu sobre sua música com o conceito de "tonalidade dodecafônica": onde a ideia central é usar, sim, as possibilidades das permutações dos 12 tons, mas sem deixar a composição soar totalmente atonal: ou seja, estabelecendo referências tonais dentro das séries permutadas. E é por isso que a música de Lansky soa com um colorido modal um tanto particular -- mesmo nas composições mais simples e consonantes onde as séries dodecafônicas não são exploradas. Neste álbum acima, o selo Bridge reúne quatro peças para conjuntos variados compostas por Lanksy nos último cinco anos: "Four's Company" escrita para quatro guitarras acústicas, aqui à cargo do Curtis Institute Guitar Quartet, peça que combina lirismo, riqueza harmônica; "Angles" para um descontraído trio de piano, violino e violoncelo que aqui fica à cargo do Weiss Kaplan Stumpf Trio; "Springs" para quatro percussionistas, com uma interpretação à cargo do So Percussion; e "Color Codas" para dois pianos com o duo Quattro Mani, peça que encerra o álbum com ritmos dançantes e divertidos. Este é o volume 17 de uma série de lançamentos do selo Bridge dedicado a mostrar um panorama da obra de Paul Lansky. Eis aqui, então, uma mostra diversificada e essencial dos últimos tentos criativos do grande compositor.
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