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Jazz and Art 4 - A arte gráfica dos LP's pelos próprios músicos: Sun Ra, Don Cherry, Han Bennink & Peter Brötzmann

Todo músico de música instrumental que se preze enquanto intérprete e compositor da música-arte -- seja no instrumental brasileiro, no jazz, na música erudita, na eletrônica, em qualquer outro gênero de inflexão instrumental --, deveria enxergar-se como um artista plástico dos sons e não como mais um retratista a reproduzir sempre os mesmos padrões folclóricos e históricos. E se teve uma figura que transcendeu-se nessa premissa e incorporou a arte visual como uma extensão corpórea da sua música, esse foi Sun Ra: pai do afrofuturismo, precursor da música eletrônica, precursor do avant-garde jazz, desbravador sonoro de mundos! Sun Ra, autorreferenciado como tendo nascido no planeta Saturno, foi um dos primeiros músicos de jazz -- senão o primeiro! -- a fundar seu próprio selo de gravação e distribuição, a Saturn Records. E como sua música soava tão estranha e exótica para aqueles tempos -- frequentemente colocada nas gôndolas da "exotica music" ao lado dos LP's de outro estranho chamado Martin Denny, por exemplo --, ele nunca obteve grandes vendagens a ponto de ostentar produções glamourosas. Por isso mesmo, e motivado por seu espírito criativo e inquietante, Sun Ra produzia e editava seus próprios discos: além de se encarregar por todo os processos de concepção, composição e gravação musical, ele mesmo elaborava, desenhava e participava da produção das artworks dos seus LPs. Muitas das suas capas foram desenhadas à mão pouco antes dos LP's serem vendidos em shows, enquanto outros dos seus desenhos foram reproduzidos em impressoras serigráficas para serem replicados em tiragens de LP's posteriores. O fato é que a arte das capas dos discos de Sun Ra -- embora sejam artesanais e caseiras, assim como a própria sonoridade lo-fi das suas gravações -- realmente captam o espírito cósmico e alienígena da sua música, transcendendo em muito o conceito do LP como uma peça rara de obra de arte, com alguns LP's originais atualmente valendo centenas e até milhares de dólares em plataformas frequentadas por colecionadores. O book acima, previsto para ser lançado em outubro, é uma ótima oportunidade para o colecionador ou o aficionado ter em mãos o total das capas elaboradas pelo mestre Ra num período de mais de quatro décadas de atuação ininterrupta. O book Sun Ra: Art on Saturn (Fantagraphics, 2022) é a primeira coleção abrangente de todas as capas impressas pela Saturn: suas 224 páginas trazem centenas de artworks de discos exclusivos desenhadas e ilustradas à mão pelo próprio Sun Ra e pelos membros da sua Arkestra. O book também vem com ensaios de alguns especialistas do catálogo de Sun Ra: do jornalista, radialista, historiador musical e preservacionista Irwin Chusid, autor do livro Songs in the Key of Z: The Curious Universe of Outsider Music; do notável estudioso, produtor e difusor de jazz e free music John Corbett; e do guitarrista Glenn Jones, que na década de 1970 assinou com Ra um acordo de distribuição que colocou inúmeras LPs com capas caseiras em circulação.

  
Tendo começado nos meandros do jazz -- dando suporte, inclusive, para Eric Dolphy em sua estadia europeia pouco antes da sua morte em 1964 --, e sendo um dos artífices da livre improvisação europeia, o baterista holandês Han Bennink é uma das figuras mais excêntricas, criativas e emblemáticas da história da música improvisada. Em 1967, juntamente com o saxofonista Willem Breuker e o pianista Misha Mengelberg, Bennink fundou o emblemático coletivo e selo Instant Composer's Pool, participando como baterista em inúmeras sessões de gravação para esse selo e também sendo o principal responsável pela artwork das capas dos álbuns, contribuindo enormemente para a assinatura sonora e visual da ICP Records. Bennink tem um singular estilo de arte e design que traz riscos, traços, caligrafias, tipografias e elementos da sua personalidade excêntrica alimentada, por exemplo, por seu gosto desenfreado por pássaros e pela sua percussão rica de kits e objetos -- em suas performances, ele é capaz de usar como instrumento quaisquer objetos que estejam à vista, evidenciando a singular assinatura abstrata das suas baquetas em quiques e golpes em objetos não musicais. Assim, a arte visual dos seus álbuns e das suas telas e instalações -- muitas delas, aliás, já expostas em vários museus importantes -- também se manifesta como um misto de abstracionismo dadaísta e traços do design da escola Bauhaus. Em 2008, pois, a editora Huis Clos lançou o book Han Bennink, Cover art for ICP and other labels numa tiragem limitada a 500 exemplares: o book traz todas as capas que Bennink produziu para o selo ICP e outras gravadoras entre 1967 e 2008, contendo um ensaio sobre sua relação com as artes plásticas, as ilustrações coloridas das capas dos álbuns e suas descrições.

              
O vulcânico saxofonista alemão Peter Brötzmann é outro dos artífices da música de vanguarda na Europa. Começando na Alemanha Ocidental em 1966 -- inspirado pela potência expressiva dos discos de John Coltrane e Albert Ayler -- Brötzmann levou a intensidade do saxofone ainda mais ao extremo. Em 1968 ele também se junta à Han Bennink e ao Instant Composer's Pool e, em paralelo, continua a lançar suas gravações em selos como Calig, FMP e em seu próprio selo BRÖ, sendo ele mesmo o designer das capas dos seus discos. Na verdade, Brötzmann já se aventurava na arte gráfica a mais tempo que seus registros oficiais em música. O book ao lado, lançado com 368 páginas numa exposição comemorativa aos seus 75 anos, realizada no clube Bimhuis de Amsterdã em setembro de 2016, traz uma coleção de artworks e designs que datam desde 1958, quando Brötzmann já era um adolescente fascinado pelas estéticas dadaístas a tentar viver da arte em agências de publicidade, incluindo, posteriormente, um ofício como designer gráfico na agência de seu sogro. Editado pela Wolke Verlagsges, o book traz centenas de artes que Brötzmann elaborou para discos seus e de outros, em grande parte editados pelo selo FMP (Free Music Production), mas também com títulos editados pelos selos Atavistic, Okka Disc, Soul Note e etc. O book ainda traz folders e cartazes de divulgação que Brötzmann elaborou para seus shows e para eventos e mostras tais como o Total Music Meeting e o Workshop Freie Musik de Berlim. O estilo de gravura de Brötzmann somado à sua inconfundível tipografia em letras de fôrma brutas é simplesmente indissociável da sua estética pessoal de sons abstratos ásperos, vulcânicos e torrenciais.
Outro dos músicos célebres que também teve uma produção independente no design das capas dos seus discos foi o trompetista Don Cherry, muito por causa do talento da sua esposa Moki Cherry (Monika Marianne Karlsson), que foi uma célebre artista plástica. Além de um dos artífices do free jazz ao lado de Ornette Coleman, Don Cherry também é um dos fundadores da estética world fusion, que expandiu ainda mais a amálgama de fusões iniciadas com Larry Coryell, Miles Davis e outros ases do jazz fusion. Seus álbuns setentistas foram gestados numa época em que ele procurava se livrar do vício em heroína e, para tanto, no final dos anos 60 ele e Moki Cherry já haviam comprado um espaço para morar com os filhos e trabalhar na pequena cidade de Tågarp, na Suécia, e lá, sob a égide do título Organic Music Theatre (ou Organic Music Society), buscaram se aprofundar nas espiritualidades e filosofias tibetanas, hindus e orientais e criar, a partir desses elementos, uma nova concepção que unia experimentalismos vários, ativismo social e ambiental, atividades pedagógicas com crianças, atividades teatrais, fusões musicais pan-étnicas, happenings e artes plásticas. Em 1970 o Organic Music Theatre já era muito frequentado pela comunidade local e por vários músicos e curiosos. Nessa fase, Moki Cherry já vinha sendo reconhecida como artista plástica, e algumas das suas criações já vinham ilustrando as capas dos álbuns de Don Cherry: vide os álbuns Live Ankara (Sonet, 1969), Organic Music Society (Caprice, 1972), Relativity Suite (JCOA, 1973), Eternal Now (Sonet, 1974), Brown Rice (Horizon, 1975) e Hear & Now (Atlantic, 1976). A arte de Moki Cherry compreendia-se em apliques de tapeçaria com influências hindus e orientais, figurinos para performances e dança, uso de retalhos em material têxtil, arte em cerâmicas, arte gráfica, pintura em telas e tecidos, esculturas em madeira, cenografia, colagens de fotos e etc. Mas a arte em material têxtil foi um ponto de partida emblemático para sua carreira e também imortalizou a arte gráfica dos álbuns do marido nessa fase world fusion: isso porque ela já vinha de uma experiência como designer de moda na Beckmans School of Design, em Estocolmo, algo que, aliado às já citadas buscas espirituais, filosóficas e pan-étnicas, confluiu para esse tipo singular de arte em tecido. As artes singulares de Moki Cherry já foram expostas em dezenas de museus e galerias e suas técnicas e amostragens são altamente reconhecidas por vários curadores e galeristas, sendo possível encontrar na web inúmeras imagens de suas exposições. Mas para os jazzófilos que pretendem ter esse material em mãos, a Corbett Vs. Dempsey elaborou um book para a exposição que se chamou Communicate, How?: Paintings and Tapestries, 1967-1980, exibida por John Cobbert em Chicago entre setembro e outubro de 2021. Além disso, adquirir os álbuns do trompetista dessa fase de sonoridades fusionistas é essencial para se estabelecer a sinestesia entre a arte e o som.




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