Conheci o nome de André Mehmari na segunda metade dos anos 2000. Sua música, definitivamente, comecei a conhecer já chegando perto da década de 2010, quando ouvi por inteiro o álbum De Árvores e Valsas (2008), registro ao qual considero ser um dos marcos de contemporaneidade na música instrumental brasileira deste início de século 21. A partir de então, procurei acompanhar de quando em quando a carreira desse grande pianista -- que, na verdade, tem o piano como seu carro-chefe, mas é daqueles multiinstrumentistas que são verdadeiros "escultores" de timbres, sons e formas! André Mehmari é daqueles músicos que não se cansa de dizer que teve -- e continuará a ter! -- sua arte forjada pelos valores de um Brasil que amava aqueles seus "Brasis" entranhados pelas artes dos seus artistas-fundadores mais nobres: os "Brasis" retratados pelos maxixes de Nazareth, pelos choros de Pixiguinha, as bossas de Jobim, os sambas de Noel Rosa..., pelos compositores populares nordestinos e seus rítmos alegres... Bem... a lista de influências e predileções do músico é extensa. E sua obra, que o caro leitor tem e terá o prazer de aqui apreciar, reflete muito bem a vastidão desse Brasil tão atualmente ultrajado pelo equizofrênico patriotismo fake e fascista que se instaurou nas instâncias sócio-políticas nesses últimos tempos.
“... Improvisar “livremente”, sem um tema pré estabelecido é um mergulho noturno, ao passo que criar ou passear sobre temas conhecidos é um mergulho em plena luz do dia. O mar imenso é sempre o mesmo desafio! Se a alma não é pequena, Navegar é preciso em ambos os casos ...”
“... As caducas nomenclaturas binárias já há muito tempo não dão conta de representar e explicar o tempo presente em sua complexidade,
e não só na arte! ...”
Mas Mehmari também é daqueles músicos com o raro talento de amalgamar esses valores da tradição brasileira às suas próprias idiossincrasias, sempre em busca da atemporalidade e de um incontestável frescor contemporâneo, sempre a partir de uma música que despreza os rótulos e preza pela beleza não-categorizável, e muitas das vezes -- quando não virtuosística -- surge com uma intrigante singeleza que, por ora, evoca certa simplicidade, mas que na verdade surge de um complexo processo de exprimir do seu âmago criativo o suprassumo do que é mais profundo em termos de melodia e harmonia. Suas melodias e harmonias são únicas e vem de amalgamar numa só simbiose do antigo ao moderno, do barroco ao contemporâneo, da canção popular ao instrumental bem estruturado, do popular ao erudito... -- suas simbioses musicais, aliás, são muitas e desprezam por completo essas e outras categorizações que usavamos para nos situar. A música de André Mehmari, pois, não procura se situar rotuladamente aqui ou ali, mas nos incita a refletir e nos dá bálsamo e alento para a esperança de um porvir onde o Brasil volte a ser, ainda que de longe, aquele Brasil mais plural e humanista que tanto sonhamos. Suas aventuras e explorações transcendem os limites estéticos e mercadológicos: indo de parcerias com cantores aos duos com instrumentistas, do piano solo aos combos e orquestras, do choro à fluência jazzística, do instrumental brasileiro à peças eletrônicas, das releituras com inflexões impressionistas à livres improvisações que são criadas em tempo real, no ato do show, concerto ou gravação... -- e segue além, abrangendo outras facetas. Sua escrita composicional abrange desde compor uma singela canção até engenhosas obras sinfônicas, óperas, concertos e arranjos orquestrais. Abaixo, o pianista e compositor nos conta um pouco da suas influências, da sua carreira, da sua obra, dos seus álbuns e de como enxerga a música como um todo. Clique nas imagens para ouvir e saber mais!
Seja bem-vindo, André! Músico nascido em Niterói-RJ. Criado no interior de SP (Ribeirão Preto). Vivendo e gerindo um estúdio em plena fauna e flora da Serra da Cantareira (SP). E com relação muito estreita com Minas Gerais. Como uma das principais figuras criativas desse eixo RJ-SP-MG, conte-nos como cada um desses lugares afetivos lhe influenciou na sua formação e lhe influência nas suas criações como músico e compositor. A cultura do nordeste também lhe é muito especial, certo?
AM: Obrigado pelo convite!
Minha base está na Serra da Cantareira, onde moro há mais de vinte anos. Lá tenho também meu amado piano, meu espaço precioso de gestação e produção que é o Estúdio Monteverdi do qual tanto me orgulho. Produzo meu som por lá, mas também abro o espaço pra muitos de meus contemporâneos que encontram ali o lugar ideal para seus registros.
Apesar de ter nascido em Niterói (onde vivi por poucos meses) e crescido no interior paulista (vivi em Ribeirão Preto até os 17 anos), me sinto mais conectado à Mata Atlântica, que me recebeu, que me inspira e nutre em todos os sentidos.
Tenho uma relação bem íntima com o cenário musical mineiro há tempos. São parcerias que enriquecem muito minha produção e me fazem acreditar que o Brasil pode mesmo produzir uma arte mestiça, única e poderosa. Há uma audácia no mineiro que admiro muito.
Há uma riqueza nas harmonias, uma inquietude, um ouvido-olhar aberto e curioso para aprender com tudo e todos que encontra muito eco em minha própria personalidade que quer sempre crescer e expandir horizontes. Talvez a ausência do mar físico provoque esse olhar “para mais além” e “mais pra dentro” que percebo na música e na poética dessa turma.
Do Rio de Janeiro, claro, Nazareth, Jobim, Chico, Noel, o choro e tanto mais do nosso Brasil “inventado”, tão barroco em seus contrastes e claros escuros. Não o glamour decadente da praia de Copacabana ou o Leblon, mas o perfume da Lapa, a cadência do samba e o som do subúrbio, conversam muito comigo.
Do Nordeste o fogo, a paixão, o baião, Caymmi, Gonzaga, o frevo, maracatu, sertões, rabecas, pifes, vontade de viver e muita resiliência pra vencer as dificuldades com amor, humor e fé na caminhada, mesmo em meio a tanta aridez. Acho que sem o Nordeste eu nem músico gostaria de ser… sem contar que o Nordeste nos salvou da ruína absoluta nas recentes eleições e nunca mais poderei ter palavras para agradecer na mesma medida o alívio que eles me proporcionaram.
De verdade, todo lugar onde estive na vida, e foram mais de 35 países, me marcaram de alguma forma e talvez estejam representados na cartografia musical que apresento.
Muitos dos seus temas, canções e peças autorais possuem uma singeleza e uma beleza lírico-melódica bem genuína – como no tema “Um Anjo Nasce”, por exemplo. Mas em muitos momentos você também é um pianista virtuose e um improvisador visceral. Nessa empreitada de não ter sua obra estigmatizada, você já teve de lidar com esse “cuidado” de construir uma obra com elementos variados entre o singelo e o visceral, entre a beleza melódica e o virtuosismo? Ou você encara esses “moods” musicais apenas como reflexos naturais dos seus “estados de espírito” no momento da escrita composicional ou no momento da performance?
AM:
Sou um compositor que vive do ofício há décadas e cada música tem sua gênese, sua história e seu contexto pra nascer. Estou neste momento esperando a estreia de minha primeira ópera. É uma longa jornada criar uma obra de fôlego com tantos elementos pra encaixar e articular, mas acredito que o papel do compositor seja mesmo cuidar amorosamente do micro e do macro ao mesmo tempo, pensando em como os mínimos detalhes contribuem para um todo arquitetônico coeso e forte. Sobre o pianismo, sinto que componho o tempo todo quando toco e a fluência instrumental me ajuda muito na composição — e vice versa. O domínio de vários instrumentos de várias famílias também me possibilita uma intimidade com o código musical a partir do próprio domínio das técnicas de cada instrumento, fazendo com que eu escreva melhor para eles num contexto solo, orquestral ou de câmara. Tudo se comunica internamente, estando eu consciente disso ou não.
Você começa a carreira no final dos anos 90 com um piano-trio ganhando o Prêmio Visa De MPB Instrumental através de um álbum de improvisos sobre temas do cancioneiro popular, onde também já se prenuncia uma faceta muito particular da sua produção: as improvisações livres. Algo incomum: já começar tendo sucesso de público e crítica num início de carreira com um álbum de improvisos tão impressionistas – mesmo que parte da base de inspiração tenham sido canções conhecidas do repertório popular. E mais recentemente tem lançado álbuns em duo – Araporã (2017) e Matéria de Improviso (2021) – onde essa relação com o livre improviso se estreita cada vez mais, com temas e peças que são surpreendentemente criados no ato da gravação ou performance, e sempre mantendo uma atmosfera melódico-harmônica que lhe é muito peculiar. Conte-nos sobre esses álbuns, sobre esse desenvolvimento de lá para cá, essa sua relação íntima-espiritual com esse tipo de fazer musical que se dá no ato, em tempo real. Você sente que a improvisação livre lhe impõe um desafio maior no campo melódico-harmônico em relação aos improvisos sobre canções e temas previamente compostos ou selecionados? Como se dá a relação/ diferença entre esses dois processos criativos?
AM:
Eu fico admirado (e até surpreso) quando revisito esporadicamente (ou mais raramente) esses primeiros registros sonoros, os discos que fiz entre 1998 e 2001, o do prêmio Visa, Odisseia, Improvisos, Canto… há muita coragem artística ali naquele “primeiro” momento discográfico meu. Nenhuma vontade de agradar ou seguir um caminho óbvio, sem subscrever a qualquer clichê de “música instrumental” ou apelar para um virtuosismo cheio de dedos e vazio de ideias. Eu era bem louco e tive muita sorte de ter sido escutado com atenção naquela época em que tinha apenas 19 anos! Poderia ter sido internado numa instituição psiquiátrica se os ouvintes fossem menos generosos! (Risos)
Penso que o improviso sempre foi central na minha vida, desde os primórdios — e inclusive, paradoxalmente, foi o que me afastou da vida “regrada” de “concertista clássico”, pois me tirava o “foco” do estudo de técnica e repertório para ganhar concursos e tal. No ensino de música “clássica” o improviso era visto como algo inútil e contraproducente. Eu não poderia discordar mais de qualquer ideia e na minha opinião essa castração criativa gerou uma música de concerto mais pobre e engessada onde o intérprete não tem domínio verdadeiro sobre o código que executa: Apenas a executa! Isso nem sempre foi assim… a história da música tem nos seus maiores criadores grandes improvisadores!
Na verdade, minha natureza de improvisador se reflete em tudo que faço: do piano ao cravo, do barroco ao jazz chegando até o próprio ato de compor que sempre se inicia com uma prolongada sessão de improviso para coletar ideias e planejar caminhos, fazer escolhas …
No caso de se entregar ao improviso em duo, com Morin ou Loureiro (que são bateristas-compositores) por exemplo, a total cumplicidade e amizade musical é fundamental para se estar preparado quando o outro acenar (ou não) e der o “salto mortal”. Um justifica e amplifica o assunto musical do outro numa confraria sonora contínua. Acho muito interessante essa prática e nunca me canso de me entregar a ela, de confiar — sempre com parceiros que me trazem suas histórias e linguagens ao baile, ao diálogo.
O improviso, ao contrário do que se imagina em alguns círculos mais “conservadores” ou preconceituosos não tem nada de chute ou aleatória autoindulgência: é uma arte que demanda todas as minhas habilidades no seu potencial máximo, tudo ao mesmo tempo e sem chances de refazer o take. Improvisar é estar presente ao tempo presente, íntegro. O resto é clichê ou o encadeamento de frases mecânicas prontas ou “licks” — uma forma de improviso que não me traz interesse.
Improvisar “livremente”, sem um tema pré estabelecido é um mergulho noturno ao passo que criar ou passear sobre temas conhecidos é um mergulho em plena luz do dia. O mar imenso é sempre o mesmo desafio! Se a alma não é pequena, Navegar é preciso em ambos os casos.
A eletrônica também lhe tem sido um recurso. Já partindo das texturas singelas em De Árvore e Valsas (2008), passando por As Estações na Cantareira (2015) até os efeitos mais expansivos de Matéria de Improviso (2021) e Por Sete Vezes (Para o Balé da Quasar Cia. De Dança). Alguns DJ’s e manipuladores de hoje se veem mais como “sound designers” do que como “músicos” (no sentido tradicional estrito/ conservatorial), e alguns compositores falam na eletrônica como um recurso que confere certa contemporaneidade à música do nosso tempo. Você simpatiza com esses conceitos, com essa busca por um certo “design sonoro” por meio de recursos eletrônicos? Como você enxerga a eletrônica em sua produção musical?
AM:
Sou apaixonado pelo universos de sintetizadores desde a infância. Naquele tempo era muito difícil ter acesso a estes instrumentos e eu desenhava Synths em caixa de sapatos, imaginando o som que produziriam! Felizmente, meu pai percebendo minha “inclinação” pra música me presenteou com ótimos instrumentos no início dos anos 1990, entre eles um belíssimo Roland JD-800 (que conservo até hoje) que foi minha escola prática de síntese. Hoje sou especialmente ligado aos históricos Synths analógicos e penso que (com seus temperamentais filtros e osciladores VCO) são instrumentos tão orgânicos e ricos quanto um instrumento acústico, produzindo um colorido sonoro muito bonito que uso em meus discos, trilhas sonoras e muito mais.
Para mim, o desenho sonoro está sempre ligado a um discurso musical e não sou muito fã das tais “paisagens sonoras” que predominam nas trilhas sonoras de séries ou filmes … para mim o som é assunto só se for conectado a uma ideia que o justifique e lhe dê uma boa “estrutura óssea”. Música é a arte de distribuir o som no tempo e as tais paisagens sonoras meramente texturas muitas vezes pecam pela monotonia rítmica. De qualquer maneira, tenho imenso prazer em passear pelas teclas do meu velho Oberheim analógico de 1980. Talvez haja uma pitada de nostalgia nisso! Sua imprevisibilidade me inspira — coisa que os digitais ou os VST não alcançam da mesma forma visceral.
A verdade é que demorei muito tempo para incorporar a Eletrônica à minha música essencialmente acústica. O amálgama das duas coisas pode ser delicado e difícil de realizar harmonicamente muitas vezes. Penso que é uma questão de dosar os elementos de modo que não se cancelem ou briguem pelo espaço sonoro. Como engenheiro de som e mixagem estou o tempo todo “esculpindo” o som, desde o posicionamento de um microfone ao processamento do som em uma mix… e adoro essa arte-ciência que é muito como cozinhar um prato, equilibrando texturas, camadas, sabores e temperos.
ANDRÉ MEHMARI & RAFAEL CESÁRIO DUO |
Falando em contemporaneidade, como você enxerga a relação Arte x Tempo x Liberdade, sobretudo o conceito de liberdade criativa num tempo como o nosso em que se preza pelo ecletismo? O que é ser livre e independente hoje no âmbito do fazer musical? Essa liberdade agora tão ampla e diversa não impõe ao músico o risco de perder sua identidade, uma vez que ele experimenta diversas misturas com diversas estéticas, podendo, portanto, confundir seu público?
AM:
A pergunta é tão interessante quanto complexa e qualquer resposta não irá alcançar seu escopo. Mas vou tentar!
Não sei muito bem como tratar da “confusão” que minha inquietude criativa possa eventualmente causar. Eu realmente não tenho outra opção senão fazer o que faço, sem concessões. Entreguei minha vida à arte e não há nada de fútil nas escolhas que faço ou muito menos um pensamento de “agradar meu público alvo”. Não sei nem como fazer isso e acredito que sendo o mais fiel possível à minha voz interior de Artista, estarei ao mesmo tempo sendo mais fiel e honesto com “meu” público. Acredito que um ouvinte atento e esperto hoje em dia deve estar preparado pra lidar com uma vasta variedade de códigos musicais, diretamente conectados ou não, coexistentes ou não. Novamente, para mim não é uma opção, me filiar exclusivamente a um caminho “puro” estético. Simplesmente não sou eu e não me vejo me tornando um especialista em qualquer coisa nesta vida! Isso só se acentua com a idade… hehe
E liberdade para mim é ter os meios de produção em mãos para produzir o que quiser, na hora que quiser, com quem quiser, sem depender necessariamente de fomentos e apoios materiais — mas principalmente sem se preocupar com os ruídos e tendências do mercado fonográfico e das “vontades” de likes dos algoritmos das redes sociais. Estar livre é estar de posse da tradição-mãe que me gestou e através de um domínio técnico compreensivo poder passear por (e com) ela como quem passeia pelo próprio quintal numa bela tarde de outono.
Mas você vem conseguindo conferir uma identidade musical personalíssima ao conjunto da sua obra, mesmo criando música em formas variadas e usando uma ampla variedade de recursos, e sempre com a sina de derribar, dentro da sua proposta de arte musical, os muros estéticos, as redomas, os rótulos e dicotomias entre Popular x Erudito, Composição x Improvisação, Jazz x Música Brasileira, Tradição x Contemporâneo, Instrumental Acústico x Eletrônica, Instrumental x Canção... etc. Como você consegue lidar com esses limites que ainda pairam nos círculos midiáticos e culturais? Você ainda encontra resistências nessa busca, considerando que no Brasil ainda vivemos ecos de um conservadorismo passadista em pleno século 21?
AM:
É uma luta constante que parece não melhorar ou se amenizar com o tempo, infelizmente. Quando tinha treze anos de idade e me perguntavam se iria seguir o “clássico ou o popular” eu sempre dizia que seguiria fazendo a música que me chamava pra nascer. Tocava Bach, Gismonti, Corea, Bartok, Villa… Naquele tempo eu imaginava que chegaria aos 45 anos de idade em meio a um mundo mais inteligente e tolerante, mais aberto e sensível ao encontro de correntes musicais — mas percebo também um movimento contrário, reacionário e ainda mais preconceituoso e fechado que antes, talvez um pouco reflexo das acentuadas polarizações que se proliferam e se multiplicam no ambiente digital recentemente criado. Em tempos de crise e escassez material as pessoas também se fecham mais em clubes (ou as tais panelas pra usar um termo mais mundano) para se proteger, acho. Não obstante, sigo fazendo o que sempre fiz, habitando ambientes que vão da sala de concerto ao clube de jazz com a mesma fluência e naturalidade. Quem quiser dar nome aos bois que dê: eu não tenho tempo pra isso, pois estou criando música todo dia sem pensar nas tais etiquetas que só servem para adicionar mais ruído nocivo entre quem cria e quem recebe a arte. As caducas nomenclaturas binárias já há muito tempo não dão conta de representar e explicar o tempo presente em sua complexidade, e não só na arte!
ESTÚDIO MONTEVERDI |
É verdade que você possui uma coleção de dezenas de instrumentos? Em alguns álbuns seus percebemos sobreposições com uma grande quantidade de detalhes e timbres de vários instrumentos, com você tocando vários deles. Essa faceta é uma paixão antiga (de infância) por sons variados ou uma influência adquirida após conhecer o mestre multi-instrumentista Hermeto Pascoal?
AM:
Sim, são literalmente dezenas. Um acervo de fato incrível que me inspira muito. A influência maior nesse sentido foi certamente minha própria mãe que passava do piano ao violão ao acordeom sem escalas. Também passava de Jobim a Chopin no mesmo banquinho. Essa vivência musical afetuosa em casa na infância se reflete em tudo que faço até os dias de hoje.
Cada instrumento musical é um documento histórico, um testemunho da música no tempo. Quando me sento ao cravo me conecto com um conjunto de músicas que não está tão diretamente relacionado ao piano. Dominar as cordas é fundamental para minha vida de compositor orquestral. Assim como a Tabla indiana me conecta com um outro universo imenso que depois transponho e traduzo ao piano. E vice versa! Está tudo conectado e a informação nunca viaja em uma única direção. Tocar bandolim, por exemplo, não me faz tocar menos outro instrumento: ao contrário me dá mais recursos e expande a paleta de cores do meu próprio piano, meu instrumento principal que acaba sendo o lugar, a baía-de-todos-os-sons onde minha experiência adquirida nos mais diversos ambientes deságua, se funde e se condensa.
Gostaria que você falasse sobre sua relação com o repertório do Clube da Esquina, do qual você explorou algumas canções em versões instrumentais no álbum Na Esquina do Clube com o Sol na Cabeça (2019). Agora você também acaba de lançar com a cantora Monica Salmaso um álbum de voz e piano em homenagem a Milton Nascimento, lenda viva que acaba de completar 80 anos de idade (!)... O que essa música mineira tão bela representa num Brasil que, infelizmente, vem perdendo em identidade e vem — ou pelo menos vinha...— sendo sufocado com descasos ambientais, ecos fascistas e ameaças de ódio e preconceitos? Por que essa poética mineira iniciada nos anos 60 ainda soa tão atemporal agora no século 21 em termos estético-musicais e em termos socioculturais? A influência do barroco em sua música advém do fato da música sacra e barroca mineira ainda ecoar no folclore mineiro e nas atemporais canções de Milton, ou você já tinha predileção pelos madrigais e peças barrocas antes de adentrar profundamente ao universo da história musical de MG?
AM:
Vejo a música do Clube como o mais humanista movimento musical brasileiro.
Encabeçado pela figura e voz criativa de Milton, temos uma confluência de variadas correntes musicais coexistindo e cooperando com alegria e inspiração: sem precisar de cartilhas inclusivas forçadas ou produtores-marqueteiros com suas planilhas do que é atualmente o “politicamente correto”.
Para mim essa música é uma síntese possível (claro que não a única) do que de melhor a sociedade brasileira produziu como arte mestiça, espontânea e moderna.
Se o Brasil ainda precisa melhorar muito pra merecer a bossa nova, para merecer o Clube da Esquina, então...precisa nascer de novo e se reinventar desde dentro, por inteiro.
Minha paixão pela música barroca é um longo assunto e não se restringe à conexão com barroco mineiro (que na verdade não é exatamente barroco, mas sim mais ligada ao período “clássico”). No entanto, consigo ver pontes entre a música colonial mineira e uma canção do Tavinho Moura, como Paixão e Fé, um clássico absoluto do CDE.
Vamos falar um pouco da sua produção como compositor no universo erudito? Recentemente vi você tocando uma curiosa peça autoral para piano em homenagem ao Centenário do compositor Gilberto Mendes. Antes, já vinha de ouvir registros onde você compõe inspirado numa sequência de compositores e estéticas díspares: como, por exemplo, no projeto Música Para Cordas, onde você adota uma postura um tanto “poli-estilística” ao se inspirar no barroco de Vivaldi, no nacionalismo brasilianista de Villa-Lobos, em Shostakovitch... e até cria uma curiosa peça concertante para piano-trio jazzístico acompanhado de ensemble de cordas. Fale-nos dessas facetas. Você considera que ainda há no Brasil ecos da velha dicotomia entre o modernismo de vanguarda (de Koellreutter, Mendes, etc) versus o modernismo nacionalista (de Villa, Guarnieri, Guerra-Peixe, Radamés...etc) ou isso já é mais diluído hoje?
AM:
O Jazz Concerto é uma das peças mais rigorosas que já escrevi. Tudo ali tem uma razão de existir. O piano trio funciona como UM solista unificado dialogando com as cordas. No álbum Música para Cordas (Selo Sesc) há um panorama bem aberto de obras escritas desde 2006 até 2018. A diversidade expressiva reflete muito da minha procura musical ao longo desse tempo, mas fico contente em constatar uma voz criativa que une e abraça todo aquele variado discurso.
Sobre o “moderno” ou “música contemporânea”… para mim todo mundo que tá vivo de verdade e tem algo sincero a comunicar tá fazendo a música nova de hoje! Esteja tocando Bach ou Miles, Bernstein ou Ellington.
Muitas vezes associam música “contemporânea” com aquela que se fazia nos anos 1960 em Darmstadt! Uma visão congelada eurocentrista da história da música com a qual não tenho afinidades. A fila andou, felizmente, graças ao aporte do elemento negro na música universal através dos escravos trazidos às Américas com sua potente cultura que transformou radicalmente a cartografia musical (e não só) do século XX.
Não tenho a preocupação de soar “moderno ou estranho”, de causar choque ou ser “revolucionário”. Acho cafona e até engraçada essa atitude! Isso sim é datado e “antigo” pra caramba!
Eu procuro fazer música bonita e inteligente, gostosa de ouvir e de tocar. Isso já dá um trabalho danado! Para mim, fazer música tem que envolver sempre prazer, afeto, amizade e respeito pela longa tradição que nos gestou — o que não tem nada a ver com conservadorismo.
Como tem sido esse retorno pós-pandêmico e quais tem sido seus mais recentes projetos (nacionais e internacionais)? E o que podemos esperar de shows, concertos e lançamentos em sua produção musical agora entre 2022 e 2023?
AM:
Gradualmente vamos reconquistando o contato com nosso público nos palcos. Durante a pandemia estivemos conectados por meio das lives e especiais de YouTube, mas nada substitui o palco. Até o álbum Milton com Monica Salmaso (lançado no dia do aniversário de 80 anos dele) é um documento perfeito desse tempo, pois foi gestado como um especial de internet numa época de tantas limitações de toda ordem — nem de casa podíamos sair, mas tínhamos a música poderosa do Bituca para agarrar com toda força e alma.
Pretendo também retomar minha rotina de viagens internacionais que foi interrompida em 2020. Naquele ano tínhamos uma longa turnê nos EUA que caiu evidentemente. Preciso ver o que ainda restou de pé após tudo que sobrevivemos.
Ontem estreei minha primeira ópera (A Procura da Flor com libreto de Geraldo Carneiro) e ano que vem terei outra sendo encenada no teatro São Pedro, também baseada em Machado de Assis. Encontrei uma voz inesperada escrevendo essa música vocal para teatro, pois consigo fundir o Bel canto com o choro, a canção com o orquestral. Estou gostando da viagem!
Acabo de lançar Meu Brasil, na versão orquestral (ao vivo com a OSB) e também em duo de cello e piano com Rafael Cesario, um irmão e parceiro que a música generosamente me deu.
Em alguns dias terei uma estreia no Carnegie Hall dos meus Portais Brasileiros 2 pelo maestro João Carlos Martins que encomendou a obra especialmente para este concerto. Minha composição está na companhia de obras de Bach e Villa-Lobos.
Claudio MONTEVERDI
Ernesto Nazareth
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