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 MÚSICO/ BANDA/ ENSEMBLE/ ALBUM DA SEMANA (03) 

 

★★★★¹/2 - Martelo Percussion Group - Sotaque (None/ Tratore, 2025).
Acaba de ser lançado Sotaque, o registro de estreia do Grupo Martelo, um quarteto brasileiro de percussão contemporânea que desde já demonstra a intenção de adotar uma amplitude tão flexível e inovadora quanto, por exemplo, as abordagens expandidas de Andy Akiho e as abordagens ecléticas de ensembles americanos como o Sō Percussion e o Third Coast Percussion, misturando elementos da música erudita de câmera para percussão à elementos da percussão popular com tanto esmero quanto criatividade. O quarteto explora um arsenal que engloba bateria, tímpanos, xilofone, marimba, vibrafone, pratos, metais, objetos vários, percussão popular (congas, bongôs, güiro, pandeiro, tambores, triângulo, zabumba, ganzá, etc...) e várias outras percussões, e é formado por Danilo Valle (timpanista da Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo), Leonardo Gorosito (chefe de percussão da Orquestra Sinfônica do Paraná), Rafael Alberto (percussionista da Filarmônica de Minas Gerais) e Rubén Zúñiga (integrante da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo). O repertório do álbum reúne peças escritas por emblemáticos compositores brasileiros contemporâneos como André Mehmari ("Sem Fronteiras"), Daniel Grajew ("Tempo"), Hércules Gomes ("Platônica"), Sílvia Góes ("Cobra Cega"), Clarice Assad ("O Herói"), Antônio Nóbrega ("Carrossel do Destino"), Luísa Mitre ("Valsa da Espera") e Léa Freire ("Mamulengo"), além de peças dos próprios membros do quarteto. Todas essas obras foram recentemente escritas exclusivamente para o Grupo Martelo ou revisitadas por meio de arranjos originais elaborados pelos próprios percussionistas. O próprio título do álbum já explicita a ideia do grupo, tão inovadora quanto clara: abordar a percussão contemporânea em uma amplitude eclética, sempre prezando o sotaque do grupo, valendo-se do encontro entre linguagens múltiplas sem perder os elos com a latinidade e a brasilidade. Dessa forma, as obras abordadas podem tanto inflexionar elementos das percussões populares e regionais em uma linguagem mais modernista e elaborada quanto, por exemplo, aproximar-se da percussão minimalista de Steve Reich, explorando ainda elementos variados da percussão sinfônica e da música erudita moderna de compositores como John Cage e Xenakis, incorporando também timbres eletrônicos e de sintetizadores amalgamados aos timbres percussivos. Em seus concertos estritamente eruditos, o Grupo Martelo tem abordado um repertório novíssimo que vai de peças do compositor Leonardo Martinelli a obras do norte-americano Andy Akiho, passando por peças de André Mehmari e Clarice Assad. Vê-se, portanto, que os percussionistas estão antenados à música contemporânea produzida hoje no mundo e pretendem surfar essa onda pós-moderna de sons inovadores e múltiplas possibilidades criativas. O álbum foi gravado no Juá Estúdio e teve seu concerto de estreia no palco do Teatro Cultura Artística, em 16 de novembro de 2025, e já está disponível nas plataformas de streaming. Grande projeto!!! Precisávamos de mais ensembles no Brasil com essa visão de alçar a nossa percussão para níveis elevados de contemporaneidade!!!

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Reflexões Sobre a Crise do Desejo Pt.1: de Anita Malfatti à Anitta do funk, erotização da música e involução da arte

ANITA MALFATTI, TARSILA DO AMARAL & MULHERES DA ARTE MODERNA - 1929
Parafraseio aqui o título de um dos álbuns do antológico Grupo Um, para gestar uma série de reflexões sobre a crise do gosto nos âmbitos da música e das artes. Trata-se de um território de campo minado para a reflexão, pois acabamos por ter de lidar com aspectos do que é ou não "politicamente correto" nessa discussão, entrando num dilema filosófico pelo qual se evita julgar toda e qualquer pessoa por suas predileções, todo e qualquer fazer social, toda e qualquer via de expressão mesmo quando se presencia desvios estéticos e morais em relação a uma certa normalidade instituída ou subentendida dos atos cotidianos, dos direitos e deveres, dos costumes, da moralidade pública e até das artes —— numa tentativa, talvez, de não discriminar, denegrir ou marginalizar, tanto na esfera mental do psicossocial, e ainda mais na esfera física do sociocultural. Mas, num tempo de distopias e individualidades de gêneros, o que é mesmo ser "NORMAL"? E por outro lado, até onde vai os limites da normalidade e da liberdade de expressão dentro desse caos de ideologias transmutadas? Essas questões de liberdade e do que é normal ou não numa sociedade onde a democracia permite a coexistência de polarizações, multipolarizações e hibridismos de gêneros dos mais inexplicáveis será, talvez, o maior dos dilemas filosóficos da existência humana do século 21! Goste-se ou não, o mundo ruma para uma multidiversidade de gêneros onde cada pessoa tem direito de diferenciar-se, aderir-se a uma tribo e dizer a que veio, e por isso  —— como um ser social diferente em gênero, número e credo que somos —— devemos respeitar as diferenças e agir sempre com a consciência de que nosso direito de expressão vai até o limite em que o direito e a integridade do outro não sejam feridos. O complicado é que essas relações precisam ainda ser melhormente delimitadas em nossa jovem democracia, se é que prezamos pela evolução de um regime democrático de coexistência sem cair nas mesmas batalhas de extremos. Se não, cairemos sempre nas mesmas rinhas de preconceitos onde, por exemplo, a discriminação policial contra afrodescendentes passa a ser algo "NORMAL". Se não, caímos na armadilha de que extremos como uma performance pública de arte moderna que permite com que crianças toquem o corpo nu de um coreógrafo (ou vice-versa!) sejam "NORMAIS". Se não, caímos ainda na armadilha de que é "NORMAL" fascistas propagarem mensagens de ódio e fake news das mais escabrosas e instituírem essas mentiras como "direitos de expressão", ou, pior ainda, instituírem essas mentiras como irretocáveis verdades jornalísticas! Mentiras matam: como vimos nos recentes casos de negacionismo anti-vacina! E infelizmente, foram esses exemplos de extremismos  —— de esquerda e de direita —— que adoeceram a sociedade brasileira nestes últimos tempos. Tudo na vida tem limites. E há que se ter o velho bom senso, capacidade de respeito mútuo atualmente tão ultrajada.

Na verdade, esse assunto de moralidade pública —— o qual introduzo acima —— surge aqui com um certo grau de atraso, mas nos vem a calhar como uma perfeita abertura para nossa reflexão sobre a crise do gosto e do desejo no universo musical. Em tempos de polarizações e de distopia pandêmica, essas fuligens ideológicas emanam insistentemente dos escombros apocalípticos de nossos dias e incrustam em nossas faces mesmo que não queiramos. Recentemente o mundo da música amanheceu todo embasbacado com o hit sexista "Envolver" da Anitta, cantora brasileira de funk-pop: o conjunto da obra se constitui do álbum trilíngue Versions of Me (Warner, 2022) e de um clipe de saliente erotismo direcionado para essa faixa mais viral lançada em espanhol. Ora, qual não foi nossa surpresa quando os trendings tops do Twitter e as notícias jornalísticas em vários países do mundo amanheceram com anúncios de que o clipe e a canção "Envolver" da cantora brasileira haviam se tornado os hits mais acessados no mundo dentro do YouTube e Spotify, e em praticamente todas as plataformas de streaming a nível mundial: diante das tantas falas de ódio e das tantas futricas causadas pelo então mandatário do desgoverno fascista que nos acometia, foi algo que nos pareceu até um alento... afinal, ao menos na música o Brasil poderia ser motivo de orgulho (não é?); e de repente vários colegas das esferas mais cerebrais da música, até músicos e instrumentistas eruditos do meio sinfônico, também estavam dando seus pitacos e opiniões sobre o feito da artista brasileira, alguns a defendendo por "colocar a música brasileira no topo das top lists do mundo", outros a demonizando pela falta de requinte musical e de qualidade poética do conteúdo de viés erótico da faixa e do clipe, os quais incluem letras com conotações e citações explícitas a ejaculações, álcool, tabagismo e objetificação sexual como sinônimo de empoderamento da mulher —— a mulher que, dessa vez, aparece de posse fetichista sobre o macho no conteúdo audiovisual que viralizou. Fazer o quê? Voltar à censura da Ditadura Militar não é uma opção! E esse conteúdo sexista de "empoderamento" com audiovisual de peitos e bundas, que tem seu engajamento proporcionado pela falta de investimento em Educação e pela desvalorização da Cultura naquilo que nos é mais pátrio, infelizmente é o que mais vende atualmente no universo pop. Aliás, já tínhamos visto casos piores dentro das variabilidades do "funk proibidão". 

Lembro do caso de uma cantora mirim de funk, criança mesmo, lançada sob a alcunha de MC Melody, onde os pais da menina foram intimados algumas vezes pela polícia para explicar o fato deles usarem a criança de forma sexualizada para atingir números virais de views nas redes sociais e, lógico, para ganharem muito dinheiro com isso. É a realidade que se vê atualmente nos vídeos de muitas "artistas" emergentes no YouTube e nas dancinhas do TikTok. E o problema não é o ritmo musical em si e seus acordes manjados —— não é o funk, o pop, o sertanejo e etc ——, o problema não é o gênero musical e seu engajamento viral e popularesco, o problema não é a forma sintética e pasteurizada com a qual os ritmos e os arranjos são trabalhados: alguns desses ritmos são mesmo envolventes, refletem as identidades da juventude e devemos respeitar o fato de que os respectivos arranjos, acordes e letras são produzidos exclusivamente para entreter e divertir —— e, aliás, pode até ser que haja mais criatividade nessas produções e nesses padrões do popularesco do que se consiga imaginar! O problema disso tudo é a oralidade das letras e a semiótica nociva desses conteúdos audiovisuais empanturrando a saúde mental dos menores e jovens com apologias e precedentes que se abrem para a falta de humanidade, para o narcisismo doentio, para o sexismo, para as drogas, para a erotização precoce de menores, para a objetificação do corpo e para a gourmetização da prostituição. E considerando que as grandes mídias sempre se aproveitarão dessas tendências popularescas impulsionadas pela falta de investimento em Educação e pela desvalorização da cultura nacional, essa situação nos impõe, infelizmente, a uma aguda crise do gosto e do desejo onde praticamente toda a predominância cultural passa a ser balizada pelos padrões de baixo calão desse pop pasteurizado, sobrando quase nada de espaço aos conceitos artísticos mais humanistas que prezam por uma semiótica de decente valor cultural e por uma oralidade que pode ser divertida, sim, sem submeter o indivíduo (mulher, homem, criança ou adulto) à esse tipo de excrecência gourmet que se presencia. Não foi à toa que a lenda viva Milton Nascimento —— talvez o mais humanista dos compositores e cancionistas brasileiros ——, numa das suas últimas entrevistas antes de se aposentar, repudiou as "letras de corno" e a qualidade de baixo calão da música brasileira (vide imagem acima).

Ora, qualquer pessoa —— e não precisa nem ser um expert —— será capaz de perceber o declínio abismal nos processos de produção e curadoria artística que acomete as mídias de hoje. Décadas atrás, quando os horários nobres das TV's já vinham sinalizando uma certa pasteurização do conteúdo novelístico, que ficava ali no limiar entre a romantização do elitismo e a estética escrachada da pornochanchada —— com direito a estórias repletas de segredos e adultérios em famílias nobres arrodeadas por atores negros em papéis de serventes ——, as trilhas sonoras das novelas ainda eram ao menos compostas por compositores e músicos que ainda prezavam por um certo primor e requinte cultural dos seus temas, e o conteúdo musical dos canais de rádio e TV ainda eram compostos por Programas de Revelação de Calouros e pelos chamados Festivais da Canção que entrariam para a história como verdadeiras fontes de revelação de talentos e figuras eternas da MPB. Artistas como Egberto Gismonti, Chico Buarque, Elis Regina, Geraldo Vandré, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa se despontaram nesses programas  —— citando apenas alguns nomes lendários da nossa música... Um pouco mais atrás na linha do tempo da nossa história, o empoderamento feminino significou ter Chiquinha Gonzaga ao piano como um dos bastiões da nossa música, significou ter Anita Malfatti e várias outras mulheres como artistas centrais da nossa arte moderna, significou ter Elizete Cardoso e Elis Regina como as vozes principais da MPB, significou ter Rosinha de Valença como uma das virtuoses do violão brasileiro..., todas artistas-guerreiras que fizeram história com conteúdos de relevante primor técnico, estético e conceitual, mesmo diante de um cenário de censura e preponderantemente machista..., conteúdos esses que realmente agregaram valor às artes e à cultura brasileira como um todo! Contudo, mesmo com essa herança artística tão rica, nossos artistas de hoje —— homens e mulheres, quando não crianças claramente aliciadas —— tendem a prezar pelo vergonhoso caminho das apologias criminosas e da erotização pasteurizada para alcançar a fama a partir das redes sociais, ou para se alcançar esse algo que chamam de "empoderamento". E as emissoras tradicionais da grande mídia, sob a ameaça de terem seus faturamentos comprometidos, se aproveitam e tendem vergonhosamente a apoiar e a investir nesse estereótipo do garoto e da garota pobre da favela que —— sem bases educacionais, culturais e familiares sólidas —— se desponta como o principal modelo da busca pela fama através desses conceitos esquizofrênicos de empoderamento via apologias às drogas, ao crime e ao sexo. Isso é empoderamento? Entendo que precisamos defender o empoderamento feminino como sendo uma legítima resistência e uma autoafirmação da mulher em suas conquistas por espaços, direitos e capacidades em todos os meios sociais —— no universo artístico, nos ofícios profissionais, nas cátedras e academias e etc ——, os quais dantes eram destinados apenas aos homems, muitas das vezes por uma simples questão de machismo e/ou preconceito de gênero. Mas como defender esse tal empoderamento como fruto da uma excrecência apológica e erotizante? E até conseguimos entender a nudez como um recurso artístico em certos níveis conceituais e ambientes apropriados para adultos. Mas como conferir alguma legitimidade artística às cenas eróticas do clipe e da letra de "Envolver", uma vez que este tipo de audiovisual abre portas e janelas para a desumanização da nossa juventude, apologias nocivas, sexismo, erotização precoce de menores, objetificação do corpo e outros males? De fato, temos um câncer agudo no gosto e no desejo com uma metástase que parece não ter fim!