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Podcast - A Genética Anti-Racismo do Jazz e as master pieces de autoafirmação, conscientização e protesto escritas por Duke Ellington, Charles Mingus, Max Roach, Randy Weston, Ornette Coleman, Amiri Baraka, Wynton Marsalis, etc

 
Falar que o jazz, sinônimo de resistência e gênero-base da música americana, tem uma genética anti-racista é praticamente uma redundância se desconsiderarmos que dentro da sua própria história houve diversas tentativas de solapar o fato inconteste de que sua gênese foi formada no fervor cultural do povo negro, dos afrodescententes recém emancipados da escravidão. (Seria como um daqueles pleonasmos engraçados e sem fundamento, como, por exemplo, quando a gente se deparara com a falácia de que o violonista brasileiro Baden Powell, advindo da bossa nova, teria inventado um subgênero chamado "afro-samba", quando o samba ja era —— e é! —— naturalmente afro, desde sua gênese!). Apropriação? Não, eu não chamaria isso de apropriação, uma vez que a origem de uma expressão cultural ou uma forma de arte, quando constatada, é algo que não se apropria ou se apaga da história tão facilmente, e até porque quando um gênero musical se estiliza, inevitavelmente seus elementos estéticos caem em domínio público. O problema, aliás, não está quando o jazz se estiliza, mas quando ele se elitiza! Diante disso, sempre foi muito perceptível como que houve —— e ainda há —— uma descarada tentativa de solapar os afrodescendentes quanto ao reconhecimento de que foram eles os sujeitos principais dentro do nascimento e da evolução do jazz e de outras formas de música popular transformadoras: e isso fica mais do que evidente em algumas críticas, listas e playlists romantizadas por pseudo experts! O fato inconteste é que foram os negros que, durante o trabalho escravo nas lavouras de algodão, fundiram elementos africanos do seu cântico de lamento com os cânticos e hinos espirituais que os brancos entoavam em suas igrejas para trazer à luz as formas do blues, dos spirituals e do gospel. O fato inconteste é que foram os negros que transverteram, ao seu modo, os rítmos das marchas militares do pós Guerra Civil e das peças européias pianísticas para o novo toque e as novas acentuações rítmicas do ragtime, estilo de música precursor do jazz. Entretanto, chegou a ser repetitivo —— para não dizer desgastante —— como que ao longo dessas décadas todas foi preciso chamar a atenção das pessoas para reconhecer que o jazz teve nos afro-americanos não só sua gênese, sua origem em si, mas principalmente a maioria dos seus movimentos criativos de transformações, desenvolvimentos e inovações estéticas ao longo do século 20, ainda que nunca tenha se negado a importância do povo branco no desenvolvimento do jazz e seus vários subgêneros. Os brancos, por sua vez, trouxeram novos elementos harmônicos e melódicos das suas canções populares, acrescentaram dança e teatralidade através das suas peças de vaudeville e dos seus musicais da Broadway, desenvolveram certo requinte cool, estabeleceram as bases do pop através dos cantores crooners, enriqueceram os arranjos através da suas instruções advindas da escola da música erudita,... e os empresários e produtores brancos foram preponderantes para o sucesso desse gênero musical através do seu faro para os negócios. O que? Como assim? Empreendedores e produtores brancos apostando no sucesso de negros? Sim, essa é a história do início fonográfico do jazz que já dava um nó na cabeça dos supremacistas e dos fanáticos terroristas da Ku Klux Klan (KKK), isso já desde as origens. Ou seja, para além do fato de que mais à frente o jazz dos negros seria incorporado nas relações cotidianas, nos salões de dança e na boemia da elite branca, a história da industria fonográfica americana é outro ponto de partida onde também constatamos que o jazz já começa a se popularizar numa direção a unir negros e brancos já a partir da sua genética. E é por isso que, numa analogia biológica, a genética do jazz é incontestavelmente anti-racista. A história do jazz é, portanto, uma história grandiosa de superação de um gênero musical que, apesar dos seus desdobramentos confusos e das suas diversas correntes estéticas surgidas ao longo do percurso do século 20, uniria a América em torno de um único sentimento de nação, já começando a quebrantar as raízes do racismo, enraizadas pela escravidão, desde suas origens em New Orleans. Mas ainda haveria muitos altos e baixos, muitos encontros e desencontros nessa luta...

BUDDY BOLDEN BAND, 1905
Sendo mais fundamentalista quanto aos detalhes genealógicos, podemos considerar que a história do jazz começa exatamente no cerne da abolição da escravidão americana em 1863. O surgimento e o sucesso do jazz não teriam acontecido se, antes, a própria Constituição Americana —— após uma sangrenta Guerra Civil —— não tivesse se desenvolvido em direção à abolição da escravatura e às primeiras leis que deram aos negros a liberdade de serem contratados como músicos, de formarem bandas, de se apresentarem nas ruas, praças, saloons e cabarés e começarem uma verdadeira ascensão social e cultural por meio da sua música. A Guerra Civil levou ao fim da escravidão nas fazendas e nos campos de algodão, mas logo em seguida se iniciaria um novo ciclo de sofrimento onde esses negros que se emanciparam dos seus donos tiveram de enfrentar a dura realidade da segregação nas cidades e nos centros urbanos. E o jazz seria a força cultural a ajudar o povo negro nesse novo ciclo, inserindo esse novo "cidadão" negro como uma figura-chave dentro do sentimento de pertencimento à América e dentro da definição pátria de nação americana. Só foi partir do jazz, e das formas musicais dele advindas, que foi possível de haver uma união nacional mais efetiva a partir de trocas e hibridismos culturais entre negros e brancos, cimentando os caminhos para a conquista da democracia americana, ainda que essa união cultural não tenha livrado o cidadão negro, de todo, de sofrer muita discriminação, prisões injustas, e ainda que as pequenas conquistas que os negros foram conseguindo tenham tido incálculável preço de sangue. E como se pode atestar na história da democracia americana, muito do sangue negro derramado recaiu sobre as costas de empresários e políticos  que fizeram das Leis de Jim Crow (1877—1964) uma verdadeira fonte de preconceito e ódio e um verdadeiro manancial para seus negócios e interesses sombrios. Após a libertação dos escravos, era preciso que agora os Estados Unidos mantivessem os negros dentro de um novo modelo de subserviência, onde a elite continuasse a ter poderes ilimitados no domínio dessa nova classe trabalhadora: e a segregação racial era um método social eficaz para se alcançar esse domínio intransponível. E esse método foi sistematicamente mantido pelas Leis de Jim Crow, que duraram de 1877 até 1964, quando o Movimento dos Direitos Civis, capitaneado por Martin Luther King e Malcom-X, ganharam força o suficiente para derrubar tais leis segregacionistas.

A primeira banda de jazz relatada, a banda do inovador cornetista de New Orleans  Buddy Bolden, data-se de fins da década de 1890 e início dos anos de 1900 e já surge numa configuração moderna de quinteto e sexteto com contrabaixo acústico, sendo responsável por desenvolver o improviso dentro de uma nova forma de sincopação, uma cadencia rítmica chamada "big four", o primeiro padrão de bumbo sincopado característico das bandas de New Orleans, uma célula-mãe do jazz e do funk. Encaixando dentro dessa sincopação inovadora os elementos das marching bands, do blues, do gospel e do ragtime que os primeiros negros instruídos desenvolveram no período de pós-escravidão e Guerra Civil, Buddy Bolden praticamente criou um novo idioma musical e um novo formato de banda que daria um salto evolutivo do ragtime, anteriormente tocado em bandas marciais ou apenas com piano, para o estilo inovador do dixieland. E, apesar de não termos registros fonográficos desse início inovador do jazz, sabe-se por meio de pesquisa de historiadores e relatos dos próprios músicos que a banda foi logo preterida para ser gravada em cilindro por um oportunista empreendedor, algo que teria sido um gatilho para a psicose de Buddy Bolden, que tinha medo da sua música ser copiada pelos demais músicos e acabou diagnosticado com esquizofrenia no hospital psiquiátrico Louisiana State Insane Asylum. Essa história é, inclusive retratada no filme 'Bolden' (2019), onde o cineasta Dan Pritzker adota uma narrativa não-linear e conta com uma fantástica trilha sonora composta e executada pelo trompetista Wynton Marsalis... Wynton que seria, agora nas últimas décadas da contemporaneidade, o principal responsável pela revalorização desses primeiros rompantes criativos do jazz. Apesar do destino lamentável de Buddy Bolden, foi o seu sucesso a fagulha que proporcionou ao jazz uma verdadeira explosão de popularidade.  Pronto, em menos de quarenta anos da Emancipação e a vinte anos do surgimento do jazz, a contar dos primeiros sopros reveladores de Buddy Bolden emitidos lá em finais de 1890, estava formado o gênero musical que ajudaria a derribar a maldita casta do racismo supremacista nas décadas seguintes. Em Nova Iorque, do outro lado do país, resquícios de proto-jazz já ressoavam em 1910 nos arranjos orquestrais do líder de banda James Reese Europe, músico e maestro negro que prenunciou as big bands e representou um paralelo ao estilo de ragtime marchante tocado pelas bandas de estilo militar de John Philip Sousa. Vinte anos após os primeiros rompantes da corneta de Bolden, o jazz já estava totalmente popularizado na vida urbana das grandes cidades americanas por meio dos primeiros compactos de vinis, já tendo um público diversificado de negros e brancos, já tendo diversas bandas de músicos brancos e as primeiras bandas miscigenadas de músicos negros e brancos tocando excursionando juntos pelo país, e já trazendo à tona uma segunda geração de músicos inovadores que agora desenvolveriam o gênero rumo aos estilos do hot jazz, dixieland e o hiper popular swing, tais como King Oliver, Jelly Roll Morton, Louis Armstrong, Bix Beiderbecke, Eubie Blake, Paul Whiteman, Duke Ellington e Benny Goodman. Pronto. Firmavam-se as bases culturais para o desenvolvimento da democracia americana...


O desenvolvimento do jazz dentro do contexto da história de lutas contra o racismo não é algo fácil de sequenciar, não é linear e nem facilmente compreensível, uma vez que, como já mencionado, até mesmo dentro do próprio o jazz, uma música incontestavelmente de origem afro-americana, houve demonstrações explícitas de preconceito racial e uma demora absurda para reconhecer, oficialmente, essa música como uma moderna forma de arte de origem genuinamente afro-americana. Mesmo no jazz, o racismo foi alimentado para nutrir um novo capitalismo onde os brancos eram quem dominava e manipulava os meios de produção e difusão, e os negros eram quem subservientemente os divertia com seu humor e com sua nova forma de arte musical. Aliás, não foi à toa que os produtores exigiam que os músicos negros incluíssem em seus álbuns canções popularizadas pelos musicais e pop crooners, e não foi à toa que a industria fonográfia passou a promover apenas bandas de músicos brancos em alguns círculos sociais mais racistas. Mas o jazz já proporcionava o status mais elevado que um negro filho de ex-escravos poderia alcançar, desde que esse músico afrodescentente não desafiasse as leis segregacionistas Jim Crow que o distanciava de ser tratado como um cidadão americano igualmente como qualquer branco era tratado. Apesar dessa dualidade de negros e brancos ser uma referência tão simplista quanto insuficiente para esmiuçarmos a gênese do jazz e sua contribuição na luta contra o racismo —— uma vez que, lá em sua origem, as ruas, os saloons e os cabarés de New Orleans eram um caldeirão de culturas e subculturas advindas de indios, negros, ingleses, franceses, espanhóis e caribenhos, com gente de todas as cores de peles ——, foi essa dicotomia simplista que alimentou o próprio racismo e perdurou durante as décadas de 20, 30 e 40, quando músicos brancos passaram a ser coroados pelo novo sistema capitalista como os "Reis do Jazz" em detrimento dos músicos negros que sofriam com a segregação racial imposta pelas Leis Jim Crow.  Mas, como veremos, o jazz, nascido da alma do negro recém escravizado, já tinha uma genética anti-racista desde sua origem e tornar-se-ia um gênero musical imprescindível na luta contra a segregação racial e a favor dos direitos civis. E essa luta seria ganha de conquista em conquista —— muitas das vezes pequenas conquistas, outras vezes conquistas marcantes, mas sempre avançando lentamente. Já em 1921, por exemplo, o pianista Eubie Blake (foto acima) protagonizava uma das primeiras grandes conquistas de um músico de jazz ao realizar sua transição do teatro de vaudeville, dantes marcado por atores e cantores negros que humilhantemente tinham de pintar seus rostos de branco para se apresentar —— os caras-pintadas dos shows de menestréis ——, para um musical de sucesso estreado no Teatro da Broadway: a peça, com elementos das canções de vaudeville e dos primórdios do jazz, se chamava "Suffle Along" e foi um marco para a classe de artistas negros, sendo um dos marcos fundadores a inspirar o surgimento do Movimento Harlem Renaissance, que marca a ascensão de uma nova classe de artistas e intelectuais negros no movimentado bairro do Harlem, em Nova Iorque. Duke Elllington, surgindo logo em seguida, praticamente se consagraria como o supra-sumo da excelência e inovação musical genuinamente americana a partir dessa sensação protagonizada pelo Movimento Harlem Renaissance. Mesmo antes do bebop revolucionar o idioma do jazz, Duke Elligton já deixava de enfatizar o swing jazz como um estilo voltado apenas para a dança e o entretenimento e já praticamente sintetizava toda a modernidade do jazz num estilo já avançado e coeso, evidenciando toda uma amplitude de improvisos, efeitos timbrísticos com surdinas e sobreposições, melodias com harmonias avançadas, orquestrações rebuscadas e variados e sofisticados arranjos.

Entretanto, por muito tempo, durante as próximas décadas, haveria doses elevadas de racismo e manipulação comercial na mídia e no mercado fonográfico como se as novas elites do século XX quisessem se apropriar dos créditos do sucesso e até mesmo da paternidade dessa nova música que adentrara-se aos estúdios para se tornar a principal aposta da industria musical americana. Há várias constatações de que isso aconteceu. O fato de uma banda de brancos, a Original Dixieland Jass Band, ter sido em 1917 a primeira banda de jazz a realizar um registro fonográfico chegou a ser, por exemplo, motivo para que muitas pessoas acreditassem que o jazz era um gênero musical inventado por músicos brancos. No início da popularização do jazz, havia diversos bandleaders negros carismáticos como Louis Armstrong, Jelly Roll Morton e, logo em seguida, Duke Ellington e Fats Waller, mas quem foi considerado o "Rei do Jazz" pela mídia foi Paul Whiteman, um bandleader branco que liderava uma banda de bailes explorando estilos que iam de valsas a canções. Também surgiram dezenas de músicos negros virtuoses que além de encantar a todos com seus solos, faziam o público dançar, mas quem foi considerado o "Rei do Swing" foi Benny Goodman, um bandleader branco. Nos anos 50, numa das primeiras oportunidades que a Time Magazine teve de consagrar um músico de jazz, ela consagrou um músico branco: o próprio Duke Ellington bateu na porta do quarto do pianista Dave Brubeck, que estava hospedado no mesmo hotel que ele, para lhe parabenizar por estar na capa da edição de novembro de 1954, conseguindo a façanha antes dele. Detalhe: Duke Ellington já estava há décadas contribuindo para o desenvolvimento do jazz, enquanto o jovem Brubeck tinha acabado de alcançar fama nacional por se apresentar com seu quarteto nos colégios e universidades. O próprio Brubeck, aliás, relatou em entrevistas que ficou envergonhado diante do mestre por achar tal honraria desproporcionalmente descabida. Em 1956, depois de várias críticas, a Time Magazine tentou corrigir o menosprezo, colocando Duke Ellington na capa em uma das suas edições de Agosto, após um revival de sucesso que o bandleader teve a partir da sua participação na edição do Newport Jazz Festival daquele ano. Em 1965, o Júri de Música do Prêmio Pulitzer recomendou que o ganhandor daquele ano fosse Duke Ellington, na tentativa de corrigir o ônus de décadas de subestimação, mas a indicação foi rejeitada pelo Conselho Consultivo, uma vez que o prêmio de música só era dado para compositores eruditos brancos, e o próprio Ellington acabou por desdenhar o prêmio. 

É preciso notar, entretanto, que se a mídia, dirigida por uma elite branca, por muito tempo preferiu a consagração de músicos brancos acima do protagonismo dos músicos negros, no meio dos músicos propriamente esse tipo de discriminação seria infinitamente menor, pra não dizer inexistente. Ou seja, contrariando as racistas Leis de Jim Crow, a maioria dos músicos brancos reconheceriam o pioneirismo dos músicos negros aceitando-os até como mestres (!),  bem como músicos brancos e músicos negros sempre estiveram tocando juntos, todos dividindo os mesmos recintos nos clubes e palcos dos grandes teatros, todos imbuídos de uma mesma linguagem cultural. Principalmente quando as formas do blues e do gospel evoluíram para um novo e mais comerciável R'n'B (rhythm and blues), e o swing perdeu seu ímpeto comercial, e houve, então, o aparecimento da moderna forma do bebop —— que surgiu justamente após uma extensa greve na qual os músicos se negaram a tocar para reivindicar seus royalties ante as gravadoras ——, o desenvolvimento do jazz passou a não mais acontecer nos grandes salões de dança e nos suntuosos teatros da elite, mas nos ajuntamentos humildes de músicos negros e brancos que  tiveram de dividir os pequenos espaços dos pequenos clubes noturnos, e quando não haviam apresentações nestes clubes, eles se apertavam em seus próprios apartamentos para realizar as chamadas jam sessions em busca da perfeição daquela nova linguagem. Só que não há como negar que não apenas o surgimento do jazz como as principais mudanças evolutivas foram encabeçadas por músicos negros —— sem desmerecer a participação de muitos músicos brancos que trouxeram novos elementos e contribuíram para desenvolver, sedimentar e popularizar essas mudanças. Todos sabem que o bebop, por exemplo, foi uma forma moderna de jazz que primeiramente surgiu através dos solos do trompetista Dizzy Gillespie e do saxofonista Charlie Parker, dois afro-americanos. Curioso é, porém, que nos anos 70, o presidente Jimmy Carter tenha solicitado a apresentação de uma banda de jazz para uma determinada celebração no gramado da Casa Branca, com Dizzy Gillespie e Stan Getz como principais destaque, e após a apresentação o então presidente tenha perguntado a Stan Getz (um músico branco) sobre como o bebop foi criado, com Gillespie, o próprio inventor do estilo, ali do lado sendo ignorado. Desconhecimento histórico da cultura do seu próprio país ou discriminação (ainda que de forma indireta)? Resposta: as duas coisas, sendo a segunda decorrente da primeira! 

IMAMU AMIRI BARAKA
Certo é que, com o surgimento do bebop, o jazz nunca mais seria o mesmo em termos comerciais, ainda que nos anos 50 o hard bop tenha sido uma tentativa dos músicos se manterem vendáveis unindo os fraseados intrincados dessa nova linguagem com as harmonias e melodias mais palatáveis do blues, gospel e R'n'B. Pouco a pouco o jazz foi alcançando um determinado status de arte complexa, foi migrando dos domínios da cultura de massa para o underground e ganhando a respeitabilidade dos artistas plásticos e escritores beatnicks, naturalmente perdendo sua força comercial diante do surgimento da soul music e do rock'n'roll. Contudo, o jazz ainda manteria firme, por ora, sua relevância histórica e cultural. Nos anos 60 e 70, tivemos o auge de outros novos desenvolvimentos e manifestações estilísticas revolucionárias dentro do gênero do jazz: entre eles o free jazz, o post-bop, o jazz-funk e o jazz fusion, sendo esses dois últimos os subgêneros de fusão que mais chegariam perto do sucesso comercial e da popularidade do rock, do crossover e do pop. O jazz fusion (fusão de jazz, rock e funk) e o free jazz, especialmente, seriam subgêneros altamente celebrados nos meios artísticos que agora estavam protagonizando os novos movimentos de rebeldia e contracultura levados à cabo por uma nova juventude que estava derribando os velhos valores conservadores, incluindo muitos jovens brancos que agora eram contra a Guerra do Vietnã e simpatizantes das causas ambientais e da luta pelos direitos civis dos negros. Esses desenvolvimentos estilísticos variaram e mudaram ainda mais as formas do jazz e ajudaram no surgimento de outros estilos de música além-jazz, e foi justamente esse desenvolvimento contínuo como forma de arte americana que fez com que o jazz continuasse vivo e relevante para as novas gerações —— e isso se estabeleceu não apenas em solo americano, como também foi se tornando uma manifestação global. Soma-se a isso o surgimento de novos movimentos sociais que reivindicariam o fim das Leis Jim Crow —— promulgadas no final do século 19 e ainda ativas em pleno anos de 1960 (!) —— e passamos a ter, então, a junção da manifestação artística do jazz, agora como uma expressão de contracultura, com os movimentos de conscientização social, o que também deu sobrevida ao gênero, além de contribuir na luta contra a segregação racial. As leis Jim Crow só foram derrubadas em 1964 pouco antes dos assassinatos dos ativistas Martin Luther King e Malcom-X, os quais, apesar de adotarem princípios contrários um ao outro —— com MLK, um pastor da Igreja Batista, adotando uma postura pacifista alinhada aos valores cristãos e à união dos povos estadunidense em uma só América, e com Malcom-X, um rebelde convertido ao islã, adotando um discurso radical e separatista ——, conseguiram unir brancos em negros em prol de uma derrubada das leis de segregação racial. Mas, se agora os negros podiam frequentar os mesmos recintos e tinham os mesmos direitos que os brancos, o racismo em si estaria longe de acabar: negros continuaram a ser presos injustamente, continuaram a ser mortos injustamente pela polícia e por supremacistas, e o racismo passou a se institucionalizar dentro das corporações e nos novos sistemas burocráticos, os quais, de certa forma, foram readaptados para não contemplar a população negra com a igualdade prevista na Constituição e a necessária equidade que se esperava da agora moderna democracia americana, e passaram até a serem excludentes em sua essência. 

Nos anos seguintes, jovens negros alinhados ao então falecido Malcom-X continuaram sua luta criando células como o Partido dos Panteras Negras e desenvolveram ainda mais fortemente as idéias separatistas do Nacionalismo Negro, semeadas inicialmente pelo ativista Marcus Garvey. Conceitos fundamentalistas como o Afrocentrismo, por exemplo, ganhariam ainda mais força. A passagem da segunda metade dos anos 60 para o início dos anos 70 seria um período, então, fortemente marcado por movimentos de orgulho negro nas comunidades afro-americanas —— algo comumente chamado de Movimento Black Power, num espectro mais generalista... —— e também representariam a inserção do povo negro dentro de contextos cada vez mais contemporâneos, incluindo aí uma busca diletante por autonomia e independência. Nos circuitos da música criativa, por exemplo, começaram a surgir organizações e associações independentes como a AACM (Association for the Advancement of Creative Musicians), de Chicago, e o selo independente Strata-East, gravadora fundada em Nova Iorque pelo trompetista Charles Tolliver e pelo pianista Stanley Cowell. No horizonte cultural mais amplo, alguns dos movimentos criativos mais importantes a inserir os negros dentro da nova realidade setentista foram a estética do Afrofuturismo, tendência iniciada já nos anos 50 pelo pianista e tecladista de jazz Sun Ra, a tendência do cinema Blaxploitation e o Black Arts Movement (BAM), movimento fundado pelo poeta David Henderson e pelo pensador, poeta e crítico musical Amiri Baraka, movimento que cuidou de difundir o orgulho negro através de obras de artistas e intelectuais afro-americanos. Apesar da sua postura alinhada aos beatnicks e às idéias radicais do avant-garde e do nacionalismo negro, Amiri Baraka foi fortemente inspirado no Movimento Harlem Renaissance (vigente entre meados de 1920 até início dos anos de 1940) e teve um papel de considerável relevância na autoafirmação de que o blues e o jazz foram fatores culturais imprescindíveis para estebelecer a autonomia do povo negro na América. A poesia de Amiri Baraka também já prenunciava os grupos de "rhythm and poetry" (RAP), sendo esse tipo de rap um elemento precursor do hip hop. A integridade e autênticidade do jazz enquanto gênero musical e cultura de base, contudo, se perderia numa profusão de inovações que agora incluía sintetizadores, parafernálias tecnológicas das mais variadas e a nova tendência das discotecas infestadas com canções dançantes sobre bases de batidas eletrônicas em ambientes com luzes coloridas. Até houve quem propagasse que o jazz, em sua essência, havia morrido... Mas..., logo menos, uma nova geração de "young lions" surgiria para renovar as essências do jazz como o gênero cultural principal da América...


Nos anos 80, já diante do pop e do hip hop, surge uma nova geração de músicos, liderados pelo trompetista Wynton Marsalis, que não apenas retomariam as tradições do jazz com relevante popularidade, como também retomaria o  protesto em formas de críticas inteligentes, programas educacionais e discursos conciliatórios. Novamente o jazz ressurgia para sedimentar as bases culturais e educacionais contra o racismo num mundo que agora caminhava para o fenômeno da globalização. Wynton Marsalis e uma geração de críticos e artistas intelectuais apaixonados pela história do jazz —— tais como Albert Murray, Romare Bearden, Stanley Crouch, dentre outros... —— passaram a preterir que o gênero fosse, de fato, reconhecido como uma forma de arte afro-americana. Em 1987, foi promulgada a Lei de Preservação do Jazz (Jazz Preservation Act) pela qual o governo americano reconheceu o jazz como forma de arte afro-americana, e não apenas deliberou que o gênero passasse a ser disciplina fundamental na grade nas universidades, como também passou a subsidiar programas e direcionar verbas à fundações afim de fomentar o surgimento de novos núcleos de jazz. Voltando-se cada vez mais para o estudo das tradições, Wynton Marsalis teria um papel muito importante como educador e difusor da autoarfirmação do jazz como o sedimento cultural que deu base para a construção da democracia americana ao unir negros, brancos e latinos. Com essa retomada do jazz como um gênero musical de prestígio, a nova geração dos young lions não apenas conscientizaria a população sobre o importante papel que o gênero teve na formação da nação e cultura americana, como também tomaria para si a missão de canonizar aqueles seus ídolos —— Duke Ellington, Louis Armstrong, Thelonious Monk, John Coltrane e etc —— dantes subestimados pelas elites que só consagravam músicos de jazz brancos em detrimento dos músicos negros segregados. Houve uma revalorização tão forte dos mestres de jazz negros, que agora haveria quem enxergasse algum tipo de racismo invertido, sobretudo a partir de quando Wynton Marsalis fundou, também em 1987, seu programa de jazz no luxuoso complexo do Lincoln Center. Nos anos 90, o programa revisionista de Wynton teria sucesso mais do que o suficiente para receber os aportes milionários que possibilitaram na construção do complexo Jazz at Lincoln Center, uma verdadeira "Meca" moderna do jazz em Nova Iorque, inaugurada em 2004. Bem... Wynton, agora sendo o diretor artístico do Jazz at Lincoln Center, além de ter tido dissabores com as críticas à sua visão seletiva e purista do jazz, teve logo que equilibrar seus briefings para contemplar músicos brancos e negros nas programações anuais dos palcos que ele passou a gerenciar no complexo —— e ano após anos, esse tem sido seu desafio diante de uma população diversificada entre brancos, negros, latinos e imigrantes de todo o mundo. Nas últimas décadas, com a globalização, o jazz se tornou cada vez mais um fenômeno global e agora podemos dizer que temos um maior e melhor equilíbrio no que diz respeito ao reconhecimento aos seus mestres inovadores —— brancos, negros e latinos... ——, bem como uma união ainda maior e ainda mais inter-racial de músicos contemporâneos desenvolvendo —— brancos, negros, latinos, americanos e estrangeiros, todos juntos e misturados... —— novas evoluções ao gênero. Soma-se a isto o fato de que nessas últimas décadas vários artistas ligados ao hip hop se uniram aos músicos de jazz para lançarem verdadeiros manifestos contra o preconceito racial. Quer dizer: Wynton Marsalis tem certa razão quando critica que alguns raps dotados de letras promíscuas e violentas, principalmente raps lançados por grupos do estilo gangsta e suas variantes, sejam mais nocivos à própria população negra do que o histórico de preconceito ainda memorizado pelas estátuas dos confederados, muitas delas recentemente removidas após vários tumultos e protestos antirracistas. Mas não se pode menosprezar os inúmeros MC's, DJ's, cantores e grupos que surgiram através de estilos criativos, alternativos e até experimentais de se fazer hip hop, muitos deles com excelente expertise calcada no jazz e com rimas de inteligente consciência social. Nesses últimos tempos, diante do surgimento de tendências fascistas e supremacistas e consequentemente diante das mostras de preconceito racial e de violência policial contra afrodescendentes, o mundo presenciou a eclosão do Movimento Black Lives Matter e, dentro desse contexto, o jazz continua a ser um sedimento tão importante para a cultura americana nessa ainda vigente luta contra o racismo quanto para o conceito global de ecletismo pósmoderno dentro dos circuitos artistiscos em vários paises do mundo —— sejam esses circuitos voltados ao mainstream ou ao underground. O jazz, assim como o debate racial, subiu para os patamares da multiculturalidade em esfera global.

No programa de podcast abaixo, em sete episódios, eu elenco uma lista de grandes mestres e músicos contemporâneos do jazz que lançaram grandes peças e grandes álbuns de protesto, conscientização social, resistência ou autoafirmação em prol do povo negro, da cultura negra e das diásporas afros em diversos contextos de ideários, épocas e movimentos. O mais interesssante é que muitas dessas obras instrumentais se mostraram revolucionárias e conscientizadoras mesmo sendo desprovidas de formas de oralidade direta tais como texto, poesia ou canção: uma propriedade que só salienta ainda mais o poder transformador do jazz, que tem mais a dizer através da visceralidade da suas linguagens instrumentais, das suas linhas melódicas híbridas de lamento e alegria, dos seus sombreamentos harmônicos que abordam do blues às dissonâncias modernas e das suas improvisações revolucionárias e abstratas do que muitos textos bem escritos conseguiriam dizê-lo. Ouçam os episódios e clique nas imagens para ouvir e saber mais!


 Duke Ellington & Harlem Renaissance (1920 à 1940) - A ascensão de uma nova classe de artistas e intelectuais negros: a importância das obras Black Brown and Beige e Harlem Suite na sofisticação composicional do jazz
 


 O Movimento dos Direitos Civis e Autoafirmação da Ancestralidade Africana - 1950 & 1960: Freedom Suite de Sonny Rollins, We Insist! de Max Roach, Original Fables Faubus de Charles Mingus & Uhuru Afrika de Randy Weston



 Anos 70 - Funk, Free Jazz, Black Power, poesia & Black Arts Movement: It's Nation Time de Amiri Baraka, Science Fiction de Ornette Coleman com David Henderson, Celebrations & Solitudes de Jayne Cortez & Lawrence Butch Morris



 Anos 70 - Afrofuturismo: a importância das sonoridades eletrônicas de Sun Ra, do fusion de Miles Davis e do electro-funk de Herbie Hancock na inserção das temáticas afros dentro de uma nova realidade movida pelo futurismo



 Wynton Marsalis - Retorno às raízes como método de conscientização e críticas ao pop, hip hop, comercialismo e supercapitalismo: Black Codes, Blood on the Fields, From the Plantation to the Penitentiary & The Ever Fonky Lowdown



 Memoriais da Luta, Conscientização & Autoafirmação da Diáspora na contemporaneidade: Ten Freedom Summers (2012) de Wadada Leo Smith, Requiem for Jazz (2023) de Angel Bat Dawid & Jazz Codes (2022) de Moor Mother



 We Can't Breathe! Black Lives Matter! Os estrangulamentos de Eric Garner & George Floyd: Breathless (2014) de Terence Blanchard, Origami Harvest (2018) de Ambrose Akinmusire, White Juju de Soweto Kinch & Sinfônica de Londres





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