★★★★ - Hamilton de Holanda Trio - Flying Chicken (Brasilianos/ Sony Music, 2023).
Hamilton de Holanda também lança um registro entusiasmante e divertido aqui neste álbum! As estruturas do choro, escola de onde o bandolinista se originou, não estão tão explícitas aqui como em seus anteriores álbuns mais revisionistas. Aqui temos um álbum onde Hamilton deixa implícitos os elementos do choro e da música popular brasileira sofisticando-os mais em torno de formas e improvisos de jazz com uma pegada mais "groovy" e uma atmosfera mais "urbana", incluindo algumas inflexões em rítmicas ímpares —— saindo do padrão de só tocar em 4/4 ou em 2/4. Mas o choro e o samba estão lá, embrenhados nos temas e improvisos. Aliás, uma das qualidades incontestes da música de Hamilton é que jazz e choro se misturam numa amálgama indescritível da mesma forma que tema e improviso se misturam numa coesão tão incrível que fica até difícil para o ouvinte delimitar onde termina o tema e onde começa o improviso. Os improvisos de Hamilton, seja numa balada lenta ou num tema mais virtuoso e ritmado, são como discursos improvisados que dão a impressão de terem sido elaboradamente escritos. Assim como as partes escritas dos temas e canções soam, muitas das vezes, como se fossem improvisos. O bandolim do gajo não divagueia, ele canta canções e conta histórias inéditas sempre que sobe ao palco! Flying Chicken, enfim, é um álbum claramente gestado para divertir e traz até certa atmosfera "crossover" e certa conexão com elementos daquela música popular mais próxima ao povo. Mas não é uma diversão rasa, sensacionalista, não é aquele popularesco de conteúdo vazio. Trata-se, enfim, de um álbum que é divertido justamente pelo caráter jocoso, brincalhão e gracioso com o qual o bandolinista junta e mistura diversos elementos, rítmicas, grooves e atmosferas nessa verve mais urbana. E, claro, esse tom brincalhão vem do choro! O jazz, em si, pode até soar sério e cerebral para os neófitos. Mas não o é quando cai nas mãos de Hamilton! A brincadeira já começa pelo título. Em recentes depoimentos à revista Carta Capital e ao jornal Folha de São Paulo, Hamilton de Holanda diz que dedica essa faixa-título a Ricardo "Frango", o técnico de som que o acompanha desde a década de 1990. Depois o álbum segue com canções e temas humorísticos como "Sol e Luz", que soa otimista como um despertar num lindo dia de sol, e "Barulhinho de trem", que traz um tom nonsense e infantil. O disco segue com uma balada de tom humanista na faixa "Paz no Mundo", onde o bandolinista e seu trio dão forma à uma melodia inspirada pelo desejo de paz ante a Guerra da Ucrânia. Depois temos o tema "Endlessly", que Hamilton compôs em parceria com o contrabaixista Michael League, líder da banda americana Snarky Puppy. E termina com "O som vai conduzir", composto em parceria com o cantor Xande de Pilares (ex-membro do Grupo Revelação) para evocar uma rítmica ímpar inspirada nas acentuações do popular estilo do "funk carioca". A instrumentação também é outro fator que confere contemporaneidade: Hamilton de Holanda e seu bandolim são acompanhados pelo baterista Thiago 'Big' Rabello, que mostra um senso incomum para as polirritmias das métricas ímpares, e pelo talentoso tecladista e pianista Salomão Soares, que em sua mão esquerda recheia bem o bassline eletrônico, fazendo o papel de um contrabaixo elétrico, e em sua mão direita acrescenta frases e acordes com essa sonoridade e atmosfera mais "groovy" e urbana —— é um trio, mas que alcança a ambiência de um quarteto! Bem... é um disco bem divertido! Ouçam! O voo de galinha costuma ser uma metáfora engraçada para expectativas frustrantes. Mas aqui a galinha de Hamilton de Holanda deixa o gavião no chinelo!

★★★★ - Anat Cohen & Quartetinho (Anzic Records, 2022)
Há anos que a clarinetista israelense Anat Cohen, radicada nos EUA, considerada uma dos nomes principais do jazz contemporâneo, tem mostrado seu apreço pela música brasileira. Em praticamente todos seus últimos álbuns, ela vem abordando choros, canções e temas de compositores brasileiros: vide o álbum Luminosa (Anzic Records, 2015), onde ela aborda títulos de Milton Nascimento, K-Ximbinho e Chico Buarque; vide o álbum Outra Coisa: The Music of Moacir Santos (Anzic, 2017), com o violonista Marcello Gonçalves; vide o álbum Rosa Dos Ventos (Anzic, 2017) com o Trio Brasileiro formado pelo violonista e guitarrista Douglas Lora, pelo percussionista Alexandre Lora e pelo bandolinista Dudu Maia; vide o álbum Reconvexo (Anzic, 2021) em duo com Marcello Gonçalves, onde ela faz releituras de canções de Milton Nascimento, Dorival Caymmi, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Tom Jobim; e vide agora este álbum acima, Quartetinho, onde ela atua ao lado do pianista brasileiro Vitor Gonçalves, do contrabaixista israelense Tal Mashiach e do percussionista americano James Shipp. São álbuns onde a clarinetista mistura seus temas autorais com temas brasileiros e explora uma veia expressiva mais melódica envolta de arranjos e improvisos mais singelos, mas sempre inflexionando esse melodismo com certa ambiência harmônica sofisticada e com um certo impressionismo intimista, conferindo frescor e certa combinação contemporânea de cores dentro dessa sua abordagem. Quartetinho abre com a impressionista peça Baroquen Spirit, de James Shipp, que é desenvolvida entre contrastes de dissonâncias e consonâncias, e depois segue com duas versões intimistas de temas brasileiros: uma versão de "Palhaço" de Egberto Gismonti; e uma versão do tradicional "Boa Tarde Povo", uma das cantigas da Mestra Maria do Carmo Barbosa de Melo que são entoadas nos reisados e folguedos populares de Alagoas, no Nordeste do Brasil. O álbum segue com outros originais que continuam a explorar nuances melódico-harmônicas melancólicas e intimistas, e vai até o limite de um certo ludismo, sempre com muita sensibilidade e singeleza: é os casos das peças impressionistas "Birdie" e "Canon", e da lúdica "Louisiana" que é um blues num swing ao estilo de New Orleans, todas essas escritas por Anat Cohen; e é o caso das peças "The Old Guitar" e "Vivi & Zaco" de Tal Mashiach. Ainda ouvimos uma releitura singela de "Boto" de Tom Jobim e uma versão pontilhista de "Frevo" de Egberto Gismonti. Anat Cohen empunha clarinete e clarone, ao lado de Vitor Gonçalves (piano, acordeão, Rhodes), Tal Maschich (contrabaixo, guitarra) e James Shipp (vibrafone, percussão, glockenspiel, sintetizado analógico). O timbre cristalino da clarineta de Anat Cohen é outro dos diferenciais!

★★★★ - Rodrigo Bragança - Endless Search (Azul Music, 2023)
Endless Search é o nome do último trabalho solo do guitarrista brasileiro Rodrigo Bragança, que vem dando uma tratativa mais do que especial para a guitarra elétrica em busca de novas abordagens, novos timbres e texturas. O título do álbum é auspicioso e demonstra a sina insaciável do guitarrista em busca de sempre explorar novos recursos, novos caminhos e novas sensações sonoras. Neste projeto, Rodrigo Bragança atua totalmente no campo da música improvisada, com todas as peças sendo criadas em tempo real —— ou seja, nenhuma das faixas foram previamente compostas. Rodrigo Bragança atua, então, com recursos estendidos e interfaces que integram sua guitarra à pedais de efeitos e outros dispositivos eletrônicos, explorando de forma muito criativa e sensorial recursos como delay, reverb, tremolo, pitch shifter e ring modulator. Com peças etéreas desenvolvidas, muitas das vezes, com poucos acordes ressoando continuamente no espaço-tempo, Rodrigo Bragança forja a sua abordagem brasilianista para a estética minimalista-ambient conhecida como "drone music", improvisando vários efeitos de timbres elétrico-eletrônicos enquanto esses acordes ressoam. As ambiências e texturas das peças nos teletransportam até suas visões e impressões sensoriais inspiradas por paisagens, sonhos, imagens e filmes. Aqui, as improvisações de Rodrigo Bragança captam desde suas inspirações no cinema surrealista de David Lynch até impressões sonoras do mundo subaquático. Quem ouviu seu duo inteligentíssimo com a vocalista Tarita de Souza no álbum "Improvisions 1: Sand Castles"(2022) já deve ter sentido que trata-se de um instrumentista brasileiro que está levando a arte do livre improviso para novos patamares em termos de texturas e designs sonoros a partir dessa plasticidade artística que intersecciona imagens e sons —— seja essas imagens advindas de uma paisagem, um quadro abstrato, um filme surrealista ou um daqueles belos sonhos inexplicáveis. Rodrigo Bragança, enfim, tem explorado uma tratativa experimental de guitarra estendida que atua como um autêntico veículo para se criar sons inspirados em imagens, uma direção artística que encontra poucos paralelos entre os guitarristas do Brasil.

★★★¹/2 - Shin Sasakubo & Joana Queiroz - Picture (Chichibu Label, 2023)
Joana Queiroz é uma clarinetista e vocalista que começou a carreira inspirada pela música criativa de Hermeto Pascoal, mas que tem tomado novas direções nesses últimos tempos, incluindo, em seus arranjos, improvisos livres, enxertos sutis de eletrônica e até música ambiente numa verve mais minimalista. Para além do timbre peculiar de clarinete, ela frequentemente usa vocalises melódicos em uníssonos ou sobreposições com instrumentos, sendo essa uma das suas marcas distintas. Dotada de expressões singulares tanto no clarinete quanto em seus vocalises, Joana Queiroz é uma das mais originais musicistas do nosso tempo, frequentemente reconhecida por sua capacidade harmônico-melódica incomparável. E neste álbum acima, ela acompanha e vem acompanhada do guitarrista e violonista japonês Shin Sasakubo. No verão de 2022, ambos captaram impressões sonoras em diferentes cenários no Brasil e no Japão e uniram essas impressões em um só projeto coeso, com Shin Sasakubo se inspirando no folclore das montanhas de Chichibu, na Província de Saitama. Mas as imagens sonoras resultadas dessas impressões não soam como meras cópias tradicionalistas dos cenários e folclores brasileiros e japoneses, mas elas soam contemporâneas, imagéticas e minimalistas. As peças são formadas com duetos e overdubs onde violão, clarinete e voz se contracenam, e elas constituem uma série de "landscapes" e "pictures" com melodias contínuas e acompanhamentos improvisados que emanam certa atmosfera etérea, com um uso pontual de efeitos eletrônicos aqui e ali. Este álbum, enfim, é dos exemplos de como a arte sonora distinta dessa singular clarinetista brasileira tem ecoado por outros cantos do mundo. Desde álbuns como Gesto (2017) e Tempo Sem Tempo (2019), Joana Queiroz tem sido uma das vozes brasileiras mais benquistas no Japão —— onde, diga-se de passagem, a bossa nova e a MPB tem tido um público considerável de fãs e curiosos. Desde então, ela vem conquistando considerável reconhecimento ante o público e crítica nos circuitos japoneses de música instrumental.
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★★★★¹/2 - Antonio Loureiro & Rafael Martini - Ressonância (Tratore, 2022)
O baterista, manipulador de eletrônicos e vocalista mineiro Antônio Loureiro é abençoado com uma voz marcante e uma imaginação criativa as quais o colocam como um dos artistas mais inovadores da música popular brasileira. É esse tipo de "MPB", aliás, que deveria estar viralizando nos top lists se as mídias (canais de rádio, TV, internet e etc) e o mercado fonográfico prezassem por canções com letras criativas e requintes melódico-harmônicos fora de série! Aqui, Loureiro vem acompanhado do pianista, tecladista e também vocalista Rafael Martini, parceiro seu de longa data, que também tem lançado projetos solos hiper criativos e tem mostrado abordagens hiper contemporâneas de piano, teclados e manipulação de eletrônicos, sempre com uma amálgama muito inovadora de sons acústicos com sons de Rhodes, sintetizadores, synth bass, drum machines e outros dispositivos analógicos e digitais. E o título "Ressonância" faz jus à ressonante e inovadora sonoridade do álbum e é justamente uma celebração dessa parceria e amizade: trata-se de uma alusão de como as influências se ressoam de forma tão bela e natural quando as musicalidades de Antônio Loureiro e Rafael Martini fluem e se confluem. Antônio Loureiro e Rafael Martini simplesmente representam um passo adiante na linha evolutiva da rica herança mineira deixada por Milton Nascimento e seu Clube da Esquina, grupo de cancionistas e instrumentistas que inovaram a música brasileira do final da década de 60 em diante. E este álbum acima, misto de canções e instrumentais, salienta bem a natural associação desses músicos com essa rica herança musical! Este álbum traz, então, um compêndio de temas e canções inéditas misturadas com releituras a temas e canções de álbuns anteriores de ambos os músicos. Importante ressaltar, também, o requinte enorme das letras das canções: há que se considerar que este álbum também é um fiel testemunho de como letristas e poetas mineiros como Renato Negrão, Makely Ka e Leonora Weissmann vem sofisticando a canção proveniente dessa rica herança mineira. Em termos de arranjos, é impressionante como que o duo não apenas consegue um equilíbrio perfeito entre vocais e instrumentais como também consegue soar com uma ambiência bem preenchida, como se fosse um quinteto ou outro formato maior de banda, com mais integrantes. O álbum foi produzido e mixado no Estúdio Monteverdi por André Mehmari e tem sua distribuição pela Tratore, no Brasil, e pelo selo NRT, no Japão.