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Música Instrumental Brasileira 2022/ 23: Joana Queiroz, André Mehmari, Hamilton de Holanda, Bocato, Carlos Pial...

 
Estamos numa fase das artes no mundo onde os artistas se dispõe de inúmeros recursos e possibilidades —— não há por que fechar-se numa redoma estético-estilística, a não ser que essa seja a única preferência do artista. André Mehmari e Hamilton de Holanda são dois exemplos desse cosmopolitismo, e são dois dos destaques em termos de lançamentos brasileiros destes últimos anos. E o choro é um dos gêneros imortais da nossa música que vem ganhando novas inflexões nas mãos desses gigantes! O choro é uma das bases da música instrumental brasileira e pode-se considerar que partindo dos primórdios de Pixinguinha, por exemplo, o choro já nos soa até com certa modernidade atemporal. Mas o choro, assim como qualquer gênero de cultura de base, sempre teve seus adereços e elementos tradicionais muito bem padronizados em termos de linhas melódicas, ritmos, harmonias e estruturas. De forma que o desafio para o músico contemporâneo adepto a essa tradição é criar algo fresco sem dissociar-se do espírito épico que a caracteriza, ao mesmo tempo de não cair no mantra de criar uma mera releitura quadrada do passado. Hermeto Pascoal tem um conjunto de choros com inflexões inovadoras. Mauricio Carrilho em seu álbum Choro Ímpar (2007), por exemplo, compõe um conjunto de choros que ainda soam enquadrados na tradição dos regionais, mas o faz através de inusuais compassos ímpares, também usando nessa gravação uma instrumentação camerística um tanto criativa. Hamilton de Holanda e seu quinteto, em sua Série Brasilianos, conseguem a façanha de unir jazz contemporâneo com choro numa mistura tão híbrida e inovadora quanto nostalgicamente conectada com as atmosferas de Pixinguinha e Jacob do Bandolim. E agora, no álbum Choros & Pianos, o mestre das teclas André Mehmari também nos traz essa mesma similaridade de confluir a estética do choro com elementos advindos de territórios estéticos variados. Abaixo, elenco, então, Choros & Pianos de André Mehmari, Flying Chicken do bandolinista Hamilton de Holanda e outros excelentes lançamentos mais recentes de grandes instrumentistas brasileiros! Destaque também para o álbum mais recente de Bocato: esse veterano trombonista de São Paulo tem sido, há décadas, o mestre principal das misturas de fusion, rock, funk e acid jazz com samba e ritmos nordestinos em bandas de metais embaladas por muito groove e swing! Já Rodrigo Bragança segue explorando diversas nuances eletrônicas com sua guitarra estendida e expansiva. Outra indicação interessante é o duo hiper criativo, misto de eletrônica e organicidade, do pianista e tecladista Fernando Moura com o mestre das flautas e saxes Carlos Malta. E assim segue desenvolvendo-se a música instrumental brasileira: indo do choro à eletrônica, das inflexões inovadoras sobre ritmos nordestinos às suas naturais associações com o jazz contemporâneo, da tradição inflexionada ao ecletismo inevitável! Leia as resenhas e clique sobre os álbuns para ouvi-los na íntegra!

★★ - André Mehmari - Choros & Pianos (Estúdio Monteverdi, 2023).
A moderna tradição do choro é o mote principal dentro desse novo projeto de André Mehmari, mas a sua sempre mui peculiar miríade sonora naturalmente já evita que essa evocação soe como uma mera releitura quadrada e passadista do choro tradicional. Em Choros & Pianos, Mehmari nos presenteia com um álbum de choro repleto de diversidade e frescor contemporâneo, com muita leveza e descontração. Aliás, o álbum soa tão leve e divertido, que a impressão que os temas e peças nos passam é que, para além do fato de ter havido uma elaborada fase prévia de composição e idealização dos arranjos, Mehmari nem precisa forçar o processo criativo para dar luz a algo acima da média do que já comumente soa passadista em relação às gravações de choro que temos aí na praça: o fato dele apenas tocar esses seus choros com leveza e descontração, se divertindo em cada faixa com seus amigos-sidemans, apenas deixando suas singulares misturas e atmosferas harmônico-rítmico-melódicas confluírem soltas no ambiente, isso, por si só, já garante o tom fresco e diferenciado do álbum. A ideia principal de Mehmari é trazer a tradição do choro para sua miríade autoral de amálgamas dentro do campo das sonoridades eletrônicas de históricos teclados analógicos como o Rhodes, o Wurlitzer, o Clavinet e o órgão Hammond, ainda tendo toques cristalinos de piano acústico abrilhantando a amálgama, e tendo até inserções pontuais de um "cravo bem temperado" aqui e ali. Assim, evocando a poética do choro, Mehmari cria uma amálgama mui harmoniosa com boa parte das teclas que o fascinam: o reverberante som barroco do cravo soando timidamente por detrás dos sons contemporâneos dos teclados eletrônicos, o piano acústico entrando em cena com suas teclas cristalinas, momentos onde todas essas teclas se confluem... e por aí vai... —— o antigo, o moderno e o contemporâneo amalgamados! Não obstante, mais adiante outros sons vão singelamente surgindo para enriquecer os arranjos: um pife assobiante sacudindo-se numa levada nordestina aqui, acordes de sanfona recheando um choro-baião acolá, sons de uma marimba de vidro imersos por entre as sobreposições, um vocalise a La Milton Nascimento bem embrenhado entre as teclas... Ou seja: observâncias divertidas não faltarão para ouvidos atentos! Assim como quando tem a ideia inovadora de flexibilizar a estética do choro com sonoridades analógicas e misturas instrumentais que não fazem parte da instrumentação tradicional dos épicos regionais e pianeiros do passado, Mehmari também tem a ideia inovadora de flexibilizar as estruturas desses choros com variadas síncopes e quiálteras, e com variados elementos que tão curiosamente se entranham e se embrenham: jazz, valsa, frevo, baião, canção, bossa nova, música erudita, Clube da Esquina... Mas é sempre a poética do choro quem inspira todas as composições. 

A sinergia da banda é outra das qualidades inquestionáveis. O dedilhado suingante do contrabaixo de Thiago Espírito Santo e o timming perfeito da bateria de Edu Ribeiro —— dois mestres incontestes dos grooves brasileiros! —— alinhados com a fluência dos fraseados do Rhodes de Mehmari dão o tom do divertimento já na abertura do álbum com o choro "Maroto", que traz uma certa malandragem em suas linhas melódicas com quebras e acelerações de compasso nos finais das frases. O choro "O Vôo da Libélula", segunda faixa, parafraseia divertidamente o clássico "Vôo do Besouro" de Rimsky-Korsakov e nos soa como uma melodia viciante em 6/4 com belos cromatismos aumentados e diminutos que logo se desenvolvem em contemporâneos improvisos de jazz cercados por belas ambiências de acordes modais. E de repente André e seu trio param para se refrescar na fonte de uma bossa suave. Mas logo retornam ao divertimento de um samba-baião em "Jacaré". A sua predileção pelas harmonias e melodias do Clube da Esquina não escapam de aqui também serem exploradas, como podemos atestar em "Choro de Mineiro". E o divertimento segue leve e solto por choros ainda mais abertos aos riscos de improvisações ainda mais espontâneas. Ademais, Mehmari também nos mostra uma nostálgica composição dedicada aos mestres do jazz Wayne Shorter e Joe Zawinul, essa com uma sonoridade ainda mais eletrônica, mais próxima ao jazz-fusion. E de repente, Mehmari e seu trio dançam e sapateiam divertidamente sobre um frevo festivo em "Frevoroso"! E assim o álbum segue, bem diversificado. Ainda temos um piano-trio acústico mais jazzístico e um piano solo a seguir. Com um álbum dedicado a temática da amizade, com a maioria das peças dedicadas aos amigos e mestres que o inspiram —— Guinga, Shorter, Zawinul, Tutty Moreno, Bill Evans, os próprios Edu Ribeiro e Tiago Espirito Santo... ——, André Mehmari nos presenteia com um álbum de choro muito descontraído, leve e diversificado! Ainda temos as participações especiais do bandolinista Fábio Peron e do clarinetista Alexandre Ribeiro.

★★¹/2 - Catarina Rossi & André Mehmari - Arco de Rio (Estúdio Monteverdi, 2022)
Neste EP acima, Arco de Rio (2022), Mehmari gestou uma intrigante simbiose sonora! Continuando sua saga de unir sons de universos distantes, dessa vez Mehmari resgata estilos de música ancestral de arco e rabeca tendo, em parceria, a auspiciosa pesquisa musicológica da violinista e rabequista Catarina Rossi, que tem pesquisado sobre as aplicações da rabeca em várias culturas regionais pelo Brasil afora. Mehmari e Catarina deixam explicito nessa simbiose que sua intenção não é fazer um retrato estrito das rabecas sertanejas ou nordestinas tais como, por exemplo, podemos ouvir de mestres da cultura popular como Nelson da Rabeca, Luiz Paixão, Mestre Salustiano, Zeca da Rabeca e outros. Mas Mehmari mostra que a intenção do projeto é trazer as típicas sonoridades das várias rabecas que marcam as culturas interioranas e regionais brasileiras para confluir com suas teclas analógicas e sua bagagem repleta de possibilidades, trazendo aqueles adereços e sons longínquos dos rincões, lugarejos e sertões para o plano da contemporaneidade. Uma contemporaneidade que nas mãos de Mehmari, aliás, ganha uma plasticidade e uma elasticidade de expansiva atemporalidade: a ponto de também fazer confluir, por exemplo, as sonoridades de um antigo cravo barroco com as modernas e contemporâneas sonoridades analógicas de sintetizadores e pianos elétricos como o Rhodes, o Clavinet, o Wurlitzer, o Prophet e etc..., criando um sound design tão inovador quanto pessoal. A tradicional cantiga Riacho de Areia (Beira Mar), por exemplo, ganha aqui uma roupagem muito interessante com a combinação de cravo barroco com rabeca, algo que o ouvinte não ouvirá tão facilmente nos círculos de música tradicional de raiz ou em qualquer das esquinas virtuais das plataformas de streaming. Catarina e Mehmari criam, então, belas melodias que resgatam e inflexionam de forma muito única essa poética árida e sertanista das cantigas e das músicas dos rabequeiros do agreste nordestino e doutros lugarejos do Brasil, de forma que aquela aridez venosa dos confins, sertões e rincões brasileiros ganham aqui tons de beleza, sensibilidade e até sublimidade através dessa combinação de sínteses eletrônicas e um lírico piano acústico com sons de várias rabecas. Neste projeto, Mehmari deixa, então, que a beleza sertanista das próprias melodias nos comova sem muitos arroubos e sem muitos improvisos, mas vez ou outra ele ainda preenche um espaço aqui e acolá com um arranjo camerístico ou uma frase mais jazzística.... Já a dinâmica e articulação de arco de Catarina Rossi é incrível: ela sabe o momento exato de acentuar, de entrar no ritmo, de decrescer a um pianíssimo que funde-se aos sons dos teclados de Mehmari, de se sobressair numa tessitura ideal ante os acompanhamentos, e etc... Catarina e Mehmari, enfim, registram aqui um verdadeiro resgate musical reimaginado das rabecas, nos transladando para conhecer um verdadeiro tesouro escondido do Brasil profundo. O álbum traz participações especiais do violoncelista Jaques Morelenbaum e da percussionista Jackie Cunha. A última faixa é uma dedicação de Catarina Rossi ao Mestre Nelson da Rabeca.

★★ - Hamilton de Holanda Trio - Flying Chicken (Brasilianos/ Sony Music, 2023).
Hamilton de Holanda também lança um registro entusiasmante e divertido aqui neste álbum! As estruturas do choro, escola de onde o bandolinista se originou, não estão tão explícitas aqui como em seus anteriores álbuns mais revisionistas. Aqui temos um álbum onde Hamilton deixa implícitos os elementos do choro e da música popular brasileira sofisticando-os mais em torno de formas e improvisos de jazz com uma pegada mais "groovy" e uma atmosfera mais "urbana", incluindo algumas inflexões em rítmicas ímpares —— saindo do padrão de só tocar em 4/4 ou em 2/4. Mas o choro e o samba estão lá, embrenhados nos temas e improvisos. Aliás, uma das qualidades incontestes da música de Hamilton é que jazz e choro se misturam numa amálgama indescritível da mesma forma que tema e improviso se misturam numa coesão tão incrível que fica até difícil para o ouvinte delimitar onde termina o tema e onde começa o improviso. Os improvisos de Hamilton, seja numa balada lenta ou num tema mais virtuoso e ritmado, são como discursos improvisados que dão a impressão de terem sido elaboradamente escritos. Assim como as partes escritas dos temas e canções soam, muitas das vezes, como se fossem improvisos. O bandolim do gajo não divagueia, ele canta canções e conta histórias inéditas sempre que sobe ao palco! Flying Chicken, enfim, é um álbum claramente gestado para divertir e traz até certa atmosfera "crossover" e certa conexão com elementos daquela música popular mais próxima ao povo. Mas não é uma diversão rasa, sensacionalista, não é aquele popularesco de conteúdo vazio. Trata-se, enfim, de um álbum que é divertido justamente pelo caráter jocoso, brincalhão e gracioso com o qual o bandolinista junta e mistura diversos elementos, rítmicas, grooves e atmosferas nessa verve mais urbana. E, claro, esse tom brincalhão vem do choro! O jazz, em si, pode até soar sério e cerebral para os neófitos. Mas não o é quando cai nas mãos de Hamilton! A brincadeira já começa pelo título. Em recentes depoimentos à revista Carta Capital e ao jornal Folha de São Paulo, Hamilton de Holanda diz que dedica essa faixa-título a Ricardo "Frango", o técnico de som que o acompanha desde a década de 1990. Depois o álbum segue com canções e temas humorísticos como "Sol e Luz", que soa otimista como um despertar num lindo dia de sol, e "Barulhinho de trem", que traz um tom nonsense e infantil. O disco segue com uma balada de tom humanista na faixa "Paz no Mundo", onde o bandolinista e seu trio dão forma à uma melodia inspirada pelo desejo de paz ante a Guerra da Ucrânia. Depois temos o tema "Endlessly", que Hamilton compôs em parceria com o contrabaixista Michael League, líder da banda americana Snarky Puppy. E termina com "O som vai conduzir", composto em parceria com o cantor Xande de Pilares (ex-membro do Grupo Revelação) para evocar uma rítmica ímpar inspirada nas acentuações do popular estilo do "funk carioca". A instrumentação também é outro fator que confere contemporaneidade: Hamilton de Holanda e seu bandolim são acompanhados pelo baterista Thiago 'Big' Rabello, que mostra um senso incomum para as polirritmias das métricas ímpares, e pelo talentoso tecladista e pianista Salomão Soares, que em sua mão esquerda recheia bem o bassline eletrônico, fazendo o papel de um contrabaixo elétrico, e em sua mão direita acrescenta frases e acordes com essa sonoridade e atmosfera mais "groovy" e urbana —— é um trio, mas que alcança a ambiência de um quarteto! Bem... é um disco bem divertido! Ouçam! O voo de galinha costuma ser uma metáfora engraçada para expectativas frustrantes. Mas aqui a galinha de Hamilton de Holanda deixa o gavião no chinelo!

★★ - Anat Cohen & Quartetinho (Anzic Records, 2022)
Há anos que a clarinetista israelense Anat Cohen, radicada nos EUA, considerada uma dos nomes principais do jazz contemporâneo, tem mostrado seu apreço pela música brasileira. Em praticamente todos seus últimos álbuns, ela vem abordando choros, canções e temas de compositores brasileiros: vide o álbum Luminosa (Anzic Records, 2015), onde ela aborda títulos de Milton Nascimento, K-Ximbinho e Chico Buarque; vide o álbum Outra Coisa: The Music of Moacir Santos (Anzic, 2017), com o violonista Marcello Gonçalves; vide o álbum Rosa Dos Ventos (Anzic, 2017) com o Trio Brasileiro formado pelo violonista e guitarrista Douglas Lora, pelo percussionista Alexandre Lora e pelo bandolinista Dudu Maia; vide o álbum Reconvexo (Anzic, 2021) em duo com Marcello Gonçalves, onde ela faz releituras de canções de Milton Nascimento, Dorival Caymmi, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Tom Jobim; e vide agora este álbum acima, Quartetinho, onde ela atua ao lado do pianista brasileiro Vitor Gonçalves, do contrabaixista israelense Tal Mashiach e do percussionista americano James Shipp. São álbuns onde a clarinetista mistura seus temas autorais com temas brasileiros e explora uma veia expressiva mais melódica envolta de arranjos e improvisos mais singelos, mas sempre inflexionando esse melodismo com certa ambiência harmônica sofisticada e com um certo impressionismo intimista, conferindo frescor e certa combinação contemporânea de cores dentro dessa sua abordagem. Quartetinho abre com a impressionista peça Baroquen Spirit, de James Shipp, que é desenvolvida entre contrastes de dissonâncias e consonâncias, e depois segue com duas versões intimistas de temas brasileiros: uma versão de "Palhaço" de Egberto Gismonti; e uma versão do tradicional "Boa Tarde Povo", uma das cantigas da Mestra Maria do Carmo Barbosa de Melo que são entoadas nos reisados e folguedos populares de Alagoas, no Nordeste do Brasil. O álbum segue com outros originais que continuam a explorar nuances melódico-harmônicas melancólicas e intimistas, e vai até o limite de um certo ludismo, sempre com muita sensibilidade e singeleza: é os casos das peças impressionistas "Birdie" e "Canon", e da lúdica "Louisiana" que é um blues num swing ao estilo de New Orleans, todas essas escritas por Anat Cohen; e é o caso das peças "The Old Guitar" e "Vivi & Zaco" de Tal Mashiach. Ainda ouvimos uma releitura singela de "Boto" de Tom Jobim e uma versão pontilhista de "Frevo" de Egberto Gismonti. Anat Cohen empunha clarinete e clarone, ao lado de Vitor Gonçalves (piano, acordeão, Rhodes), Tal Maschich (contrabaixo, guitarra) e James Shipp (vibrafone, percussão, glockenspiel, sintetizado analógico). O timbre cristalino da clarineta de Anat Cohen é outro dos diferenciais!

★★ - Rodrigo Bragança - Endless Search (Azul Music, 2023)
Endless Search é o nome do último trabalho solo do guitarrista brasileiro Rodrigo Bragança, que vem dando uma tratativa mais do que especial para a guitarra elétrica em busca de novas abordagens, novos timbres e texturas. O título do álbum é auspicioso e demonstra a sina insaciável do guitarrista em busca de sempre explorar novos recursos, novos caminhos e novas sensações sonoras. Neste projeto, Rodrigo Bragança atua totalmente no campo da música improvisada, com todas as peças sendo criadas em tempo real —— ou seja, nenhuma das faixas foram previamente compostas. Rodrigo Bragança atua, então, com recursos estendidos e interfaces que integram sua guitarra à pedais de efeitos e outros dispositivos eletrônicos, explorando de forma muito criativa e sensorial recursos como delay, reverb, tremolo, pitch shifter e ring modulator. Com peças etéreas desenvolvidas, muitas das vezes, com poucos acordes ressoando continuamente no espaço-tempo, Rodrigo Bragança forja a sua abordagem brasilianista para a estética minimalista-ambient conhecida como "drone music", improvisando vários efeitos de timbres elétrico-eletrônicos enquanto esses acordes ressoam. As ambiências e texturas das peças nos teletransportam até suas visões e impressões sensoriais inspiradas por paisagens, sonhos, imagens e filmes. Aqui, as improvisações de Rodrigo Bragança captam desde suas inspirações no cinema surrealista de David Lynch até impressões sonoras do mundo subaquático. Quem ouviu seu duo inteligentíssimo com a vocalista Tarita de Souza no álbum "Improvisions 1: Sand Castles"(2022) já deve ter sentido que trata-se de um instrumentista brasileiro que está levando a arte do livre improviso para novos patamares em termos de texturas e designs sonoros a partir dessa plasticidade artística que intersecciona imagens e sons —— seja essas imagens advindas de uma paisagem, um quadro abstrato, um filme surrealista ou um daqueles belos sonhos inexplicáveis. Rodrigo Bragança, enfim, tem explorado uma tratativa experimental de guitarra estendida que atua como um autêntico veículo para se criar sons inspirados em imagens, uma direção artística que encontra poucos paralelos entre os guitarristas do Brasil.

★★¹/2 - Shin Sasakubo & Joana Queiroz - Picture (Chichibu Label, 2023)
Joana Queiroz é uma clarinetista e vocalista que começou a carreira inspirada pela música criativa de Hermeto Pascoal, mas que tem tomado novas direções nesses últimos tempos, incluindo, em seus arranjos, improvisos livres, enxertos sutis de eletrônica e até música ambiente numa verve mais minimalista. Para além do timbre peculiar de clarinete, ela frequentemente usa vocalises melódicos em uníssonos ou sobreposições com instrumentos, sendo essa uma das suas marcas distintas. Dotada de expressões singulares tanto no clarinete quanto em seus vocalises, Joana Queiroz é uma das mais originais musicistas do nosso tempo, frequentemente reconhecida por sua capacidade harmônico-melódica incomparável. E neste álbum acima, ela acompanha e vem acompanhada do guitarrista e violonista japonês Shin Sasakubo. No verão de 2022, ambos captaram impressões sonoras em diferentes cenários no Brasil e no Japão e uniram essas impressões em um só projeto coeso, com Shin Sasakubo se inspirando no folclore das montanhas de Chichibu, na Província de Saitama. Mas as imagens sonoras resultadas dessas impressões não soam como meras cópias tradicionalistas dos cenários e folclores brasileiros e japoneses, mas elas soam contemporâneas, imagéticas e minimalistas. As peças são formadas com duetos e overdubs onde violão, clarinete e voz se contracenam, e elas constituem uma série de "landscapes" e "pictures" com melodias contínuas e acompanhamentos improvisados que emanam certa atmosfera etérea, com um uso pontual de efeitos eletrônicos aqui e ali. Este álbum, enfim, é dos exemplos de como a arte sonora distinta dessa singular clarinetista brasileira tem ecoado por outros cantos do mundo. Desde álbuns como Gesto (2017) e Tempo Sem Tempo (2019), Joana Queiroz tem sido uma das vozes brasileiras mais benquistas no Japão —— onde, diga-se de passagem, a bossa nova e a MPB tem tido um público considerável de fãs e curiosos. Desde então, ela vem conquistando considerável reconhecimento ante o público e crítica nos circuitos japoneses de música instrumental.

★★¹/2 - Antonio Loureiro & Rafael Martini - Ressonância (Tratore, 2022)
O baterista, manipulador de eletrônicos e vocalista mineiro Antônio Loureiro é abençoado com uma voz marcante e uma imaginação criativa as quais o colocam como um dos artistas mais inovadores da música popular brasileira. É esse tipo de "MPB", aliás, que deveria estar viralizando nos top lists se as mídias (canais de rádio, TV, internet e etc) e o mercado fonográfico prezassem por canções com letras criativas e requintes melódico-harmônicos fora de série! Aqui, Loureiro vem acompanhado do pianista, tecladista e também vocalista Rafael Martini, parceiro seu de longa data, que também tem lançado projetos solos hiper criativos e tem mostrado abordagens hiper contemporâneas de piano, teclados e manipulação de eletrônicos, sempre com uma amálgama muito inovadora de sons acústicos com sons de Rhodes, sintetizadores, synth bass, drum machines e outros dispositivos analógicos e digitais. E o título "Ressonância" faz jus à ressonante e inovadora sonoridade do álbum e é justamente uma celebração dessa parceria e amizade: trata-se de uma alusão de como as influências se ressoam de forma tão bela e natural quando as musicalidades de Antônio Loureiro e Rafael Martini fluem e se confluem. Antônio Loureiro e Rafael Martini simplesmente representam um passo adiante na linha evolutiva da rica herança mineira deixada por Milton Nascimento e seu Clube da Esquina, grupo de cancionistas e instrumentistas que inovaram a música brasileira do final da década de 60 em diante. E este álbum acima, misto de canções e instrumentais, salienta bem a natural associação desses músicos com essa rica herança musical! Este álbum traz, então, um compêndio de temas e canções inéditas misturadas com releituras a temas e canções de álbuns anteriores de ambos os músicos. Importante ressaltar, também, o requinte enorme das letras das canções: há que se considerar que este álbum também é um fiel testemunho de como letristas e poetas mineiros como Renato Negrão, Makely Ka e Leonora Weissmann vem sofisticando a canção proveniente dessa rica herança mineira. Em termos de arranjos, é impressionante como que o duo não apenas consegue um equilíbrio perfeito entre vocais e instrumentais como também consegue soar com uma ambiência bem preenchida, como se fosse um quinteto ou outro formato maior de banda, com mais integrantes. O álbum foi produzido e mixado no Estúdio Monteverdi por André Mehmari e tem sua distribuição pela Tratore, no Brasil, e pelo selo NRT, no Japão.

 
★★ - Fernando Moura & Carlos Malta - Cidades Sonoras (Savalla Records, 2022)
Essa parceria fusionista entre o tecladista e manipulador de eletrônicos Fernando Moura e o mestre das flautas e saxes Carlos Malta é um dos acontecimentos mais criativos da música instrumental brasileira desses últimos tempos. Anos atrás, ele gestaram o projeto "Besouros" e criaram um conjunto de inovadoras releituras das canções dos Beatles —— projeto já resenhado aqui no blog. Agora eles acabam de gestar e registrar este interessante projeto autoral "Cidades Sonoras", que traz uma concepção mais urbana e ainda mais híbrida para suas misturas de sons eletrônicos com orgânicos sopros de flautas, saxofones e outros sopros... —— é um passo adiante, por exemplo, da faceta fusionista que o clarinetista Paulo Moura e o Teatro do Som empreenderam no álbum Alento (2010). Cada peça do álbum é um tipo de "cidade sonora" que soa com diferentes combinações orgânico-eletrônicas uma da outra, nos mostrando através de sons confluentes e sobrepostos uma clara alusão às complexidades das cidades, metrópoles e megalópoles. Interessante frisar que para gestar um projeto com tamanha criatividade, Fernando Moura dispõe de uma concepção abrangente e eclética no trato dos seus vários teclados e eletrônicos, com uma bagagem muito rica de recursos que lhe permite abordar e misturar elementos e resquícios de inúmeros estilos de música eletrônica —— eletroacústica improvisada, nu jazz, lounge music, synth-pop, electro-funk, techno music, drum'n'bass, dub, chill out, ambient music, etc, etc... —— sem, contudo, soar saliente, explícito ou simploriamente aderente a nenhum deles. Da mesma forma, os sopros de Carlos Malta —— que, em seus projetos solos, evidenciam a assustadora versatilidade que lhe permite explorar dos sopros mais tradicionais dos coretos e pifes nordestinos aos sopros e improvisos mais contemporâneos —— conferem uma organicidade muito envolvente e contribui muito para a brasilidade do projeto, por vezes fazendo uma conexão entre sopros mais tribais com os sopros e as sonoridades mais urbanas. Aliás, aqui temos um álbum que é um exemplo de como nossa música pode combinar brasilidade com doses elevadas de contemporaneidade através de um som mais urbano e condizente com nosso tempo e espaço presente. O álbum nos leva a viajar por 16 "cidades sonoras" repletas de ambientes, caos, atmosferas, paisagens, sons e luzes!

★★¹/2 - Carlos Pial - Manzuá (Independente, 2022).
Este EP de Carlos Pial, maranhense de nascença e brasiliense de moradia, foi lançado em 03 de novembro de 2022 no Clube do Choro, em Brasília, e no mesmo dia também foi lançado nas plataformas de streaming e nos atualiza quanto aos últimos tentos desse mestre da percussão. Seguramente um dos maiores percussionistas brasileiros —— e, portanto, do mundo! ——, Carlos Pial traz em sua produção um retrato fusionista muito caloroso dos ritmos e timbres maranhenses, paraenses, amazonenses e, também, do Centro-Oeste e do Pantanal brasileiro, além de também evocar nossas conexões com ritmos calientes advindos da world music e dos nossos vizinhos e irmãos sul-americanos e caribenhos: sua música capta muitas sonoridades advindas de ritmos e tradições como a música indígena, o tambor de crioula, o Bumba meu boi, o reggae maranhense, as cantigas dos pescadores, o samba, o cajon peruano, e inúmeras outras. As temáticas das composições de Carlos Pial também são um retrato da sua infância e vivência entre os pescadores maranhenses e das suas impressões e viagens pelas paisagens e adereços das regiões Norte e Centro-Oeste do Brasil. Neste álbum acima, temos um EP curto e breve, onde o percussionista registra seis das composições que ele deu luz durante a pandemia. Mas já é o suficiente para continuarmos conectados à sua arte! Essas composições agora são mote para seu mais recente espetáculo chamado Manzuá. A palavra "manzuá" é o nome dado para uma armadilha de pesca feita de varas, onde os peixes entram e não conseguem mais sair —— muito comum na pesca maranhense. Na arte da capa do álbum, o percussionista faz uma clara alusão desse adereço nortista com um de seus tambores. A banda de Carlos Pial é formada com Misael Sivestre no teclado, Hamilton Pinheiro no baixo, Henrique Ferreira na guitarra, Pedro Almeida na bateria, Marcos Santos no trompete, entre outros músicos convidados. Altamente recomendado!
 
★★¹/2 - Bocato Jazz Experience 2022 (Tratore)
Não existe história do cenário musical de São Paulo e arredores sem a importante presença de Bocato e suas várias jam bands, começando pela Banda Bloco e pela Banda Metalurgia, que marcaram o cenário paulistano nos anos 80 e 90 —— lembrando que ele é oriundo da cidade de São Bernardo do Campo e pioneiro da região do ABC Paulista, onde se desenvolveu um histórico repleto de várias bandas interessantes e influentes. Outro dos registros interessantes para o ouvinte de primeira viagem que quer conhecê-lo é o álbum Acid Samba (L177 Records, 2001), um dos melhores registros da carreira do trombonista na opinião desse que vos escreve. Nesses seus mais de quarenta anos de história, Bocato é reconhecido pelo alto astral das suas misturas de funk, rock, fusion e acid jazz com samba e ritmos nordestinos através de bandas de metais embaladas por muito groove e swing! E o álbum acima, totalmente autoral, é uma atualização contemporânea do escopo sonoro —— sempre muito recheado de ingredientes, arranjos e grooves —— que marca a carreira desse grande trombonista, tendo também uma clara influência do momento pandêmico ao qual fomos submetidos entre os anos de 2020 e 2022. Para a empreitada, Bocato forma uma banda com competentes músicos paulistanos tais como os guitarristas Eliezer Inácio e Igor Boulos, os contrabaixistas Gilberto Pinto e Jackson Silva, o baterista Fernando Amaro na bateria, o trompetista Luís Cláudio Faria, o saxofonista Felipe Lamoglia, o percussionista Denis Lisboa e a cantora Daisy Coelho. Alguns desses músicos, inclusive, colaboram com ele em suas entusiasmantes noites no clube e point cultural do NossaCasa, no bairro Vila Madalena, São Paulo. Bocato conta que, além da influência da pandemia, este álbum também traz inspirações dos saraus de poesia com música que ele tem promovido nos eventos do "Free.ta Jazz", que ele empreende todas as noites de terça-feira no NossaCasa. Por isso, então, que algumas faixas vem acompanhadas de inteligentes textos e versos improvisados que abordam questões existenciais potencializadas pela pandemia tais como narcisismo, saúde mental, o raso conceito de empoderamento que se dissemina nas redes sociais e outros dilemas destes tempos distópicos. E essa mistura de musicais cheios de groove e arranjos com partes faladas que exprimem muitos desses assuntos contemporâneos formou uma liga muito interessante, trazendo um debate espinhoso para uma vibe com clima de sarau mesmo... de um agradável debate numa mesa de bar! O disco foi gravado, mixado e masterizado por Ricardo Passini no estúdio O Instituto, em São Bernardo do Campo. E o projeto é uma contrapartida ao Prêmio por Histórico de Realização em Música, concedido à Bocato pelo Edital ProAC Expresso (Lei Aldir Blanc 2021), por meio da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo. Longa vida à Bocato e sua música!




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