Arquivo do Blog

Soweto Kinch & Orquestra Sinfônica de Londres - A Afro-Diáspora no cerne do Eurocentrismo: o saxofonista de jazz e rapper inglês e suas profundas peças sobre o Black Lives Matter, o lockdown e as questões sociais e afro-diaspóricas

 
Um dos mais aclamados músicos ingleses da atualidade é o saxofonista e rapper Soweto Kinch, que, além de explorar mais comumente o sax alto e esporadicamente o sax tenor, é talentoso MC. Abrangendo ranges e elementos que vão do post-bop pós Wynton Marsalis até o hip hop, abrangendo das tradições até ao avant-garde, do neo-soul até a eletrônica, do freestyle até a música erudita, Kinch tem conseguido considerável aclamação de crítica e público mesmo explorando o espinhoso território temático das questões sociais e afro-diaspóricas. E considerando que ele se encontra no centro da branquitude eurocentrista, isso não é pouco. Isso quer dizer alguma coisa: primeiro que o principal atestado que a conquista desse sucesso traz é que trata-se de um músico de talento instrumental e expertise composicional acima da média; e segundo é que sua contribuição tem sido extremamente auspiciosa para que a representatividade em prol da diáspora afro e das causas dos afrodescendentes também se desenvolva em território europeu, onde a história colonialista e imperialista deixou, ao longo dos séculos, um legado maligno de superioridade paranoica, fascismo, nazismo e xenofobia a manchar até hoje a reputação dos países e povos europeus —— sendo que ainda há, inclusive, uma minoria neonazista e uma tendência de política fascista, paradoxalmente "cristã"(?), que tem atemorizado imigrantes e afrodescendentes. Filho de um nativo de Barbados e uma atriz inglesa —— o dramaturgo Don Kinch e a atriz anglo-jamaicana Yvette Harris ——, Soweto Kinch é um dos principais saxofonistas do cenário de jazz em Londres e desde os anos 2000 segue mantendo considerável renome e aclamação da crítica, sempre tendo as questões sociais e raciais como base para suas composições. Além de músico, Kinch também estudou História Moderna no Hertford College, na Universidade de Oxford, sendo essa uma busca pela ancestralidade que lhe permitiu conectar ainda mais a faceta das pesquisas históricas e geográficas com a composição musical. Considerado um rapper de rimas muito talentosas, a trajetória de Kinch tem sido conectada com a banda Jazz Jamaica, banda liderada pelo contrabaixista Gary Crosby, com os saxofonistas Courtney Pine e Denys Baptiste, além dele frequentemente ser convidado para os maiores festivais na Europa e EUA e participar de programas na BBC, também tendo sido membro da Big Blue, banda do reality show conhecido como Pop Idol. É, portanto, um músico com trânsito considerável na cena londrina e na mídia inglesa, que traz uma mistura de jazz e hip hop em sua bagagem, onde as influências africanas, jamaicanas e caribenhas também se congregam. Abaixo trago-vos um pouco das temáticas que Kinch tem explorado em seus álbuns mais conceituais. Clique nos álbuns para ouvi-los!


Os quatro primeiros álbuns de Soweto Kinch enfatizarão sua faceta como MC de hip hop tanto quanto —— ou ainda mais —— sua faceta de saxofonista, sempre com rimas inteligentes e profundas que se contracenam com arranjos e solos de jazz numa estética fresca daquele post-bop que vigorou na pós-fase de apogeu de Wynton Marsalis, tendo também uma certa conotação com o jazz-rap e o neo-soul explorados por músicos americanos como Branford Marsalis, Greg Osby e Roy Hargrove. De certa forma, são álbuns conceituais porque as misturam chegam a ser experimentais e as rimas de rap nos trazem um certo roteiro de histórias, contextos, atitudes e elementos de personagens do mundo real imersas em ambientes urbanos, sem desconsiderar o contexto histórico. Kinch sempre deixa evidente a conexão entre o passado da escravidão e os lemas e dilemas diaspóricos atuais. Em seu primeiro álbum Conversations with the Unseen (Dune Records, 2003) o saxofonista-rapper nos mostra, por exemplo, uma composição chamada "Equiano's Tears" que é dedicada ao ex-escravo britânico do século 18 Olaudah Equiano, abolicionista de considerável importância contra o comercio de escravos no Império Britânico. Já em seu álbum A Life in the Day of B19: Tales of the Tower Block (Dune Records, 2006), Soweto Kinch nos traz episódios que retratam o cotidiano dos moradores afrodescendentes nos prédios de Birmingham —— onde morou ——, tendo a radialista Moira Stewart e ele próprio assumindo as vozes dos personagens, enquanto os arranjos e solos improvisados dão ossatura e encorpam todo o projeto. Nessa fase inicial da carreira, nesses dois primeiros álbuns, Kinch conta com a colaborações de músicos como Tony Miller na bateria, Michael Olatuja no contrabaixo, Femi Temowo na guitarra e Abram Wilson no trompete (e vocais), além de outros músicos e vocalistas convidados. Esses dois primeiros álbuns acima lhe deram nomeações de melhor artista de jazz no MOBO Awards em 2003 e 2007 e uma indicação ao Mercury Prize de álbum do ano em 2003.
SOWETO KINCH W/ LONDON SYMPHONY ORCHESTRA & LEE REYNOLDS
Em 2010, Soweto Kinch inaugura seu próprio selo, o Soweto Kinch Recordings, e registra mais um trabalho de fôlego e crítica social chamado The New Emancipation (2010), onde, agora, a inspiração é a conexão da herança escravista com as novas formas de escravidão na contemporaneidade: trabalhos árduos de hoje em dia pago com salários medíocres, pobres recrutados como oficiais de justiça para cobrar dívidas de outros pobres numa alusão do escravo que era obrigado a chicotear outro escravo, funcionários de call center operando centenas de chamadas telefônicas para induzir empréstimos e vendas, crítica contra o consumismo e o supercapitalismo e por ai vai... Para tanto, Kinch vai do blues histórico ao neo-soul contemporâneo, do post-bop jazz à eletrônica, do gospel ao hip hop, atualizando para a sua contemporaneidade aspectos já prenunciados em álbuns mais híbridos e conscientizadores de Duke Ellington, Charles Mingus, Madlib e Greg Osby. Este álbum, o quarto da sua carreira, parece fechar um ciclo onde a estética de sonoridade acústica marcada pelo encontro daquele post-bop pós Wynton/Branford se encontra com batidas e efeitos eletrônicos em perfeita comunhão, sem que haja prejuízo entre as partes: ou seja, mesmo com o usos pontuais de beats e efeitos eletrônicos, temos uma abordagem muito fresca da sonoridade acústica da banda, com inteligentes e harmoniosas sobreposições entre os instrumentistas, e quase sempre com intervenções de vocais que podem ser falados, cantados ou podem ser um rap bem rimado e ritmado. Kinch atua com saxofones alto e tenor, clarinete baixo, rimas e eletrônica, tendo a colaboração de músicos como Byron Wallen (trompete), Shabaka Hutchings (clarinetes, saxofone tenor), Harry Brown (trombone), Femi Temowo (guitarra), Karl Rasheed-Abel (contrabaixo), Justin Brown (bateria), e Eska Mtungwazi, Francis Mott, Jason MacDougall (vocais). O título do álbum deixa claro a necessidade de uma nova emancipação diante dessa transvertida forma de escravidão contemporânea.
A partir deste álbum abaixo, The Legend of Mike Smith (2013), o rapper e saxofonista já inicia uma evolução rumo a um hibridismo ainda mais ousado em termos composicionais, incorporando até bel canto, cantata e influências da música erudita barroca entre suas misturas de neo-soul, jazz, raps e batidas de hip hop. Essa busca por uma escrita mais composicional levaria essa sua abordagem afro-urbana-diaspórica rica de hibridismos estético-estilísticos a adentrar o distante reino erudito dos teatros —— onde Bach, Beethoven e Brahms reinam absoluto —— através de temáticas e ideias composicionais cada vez mais engenhosas e fundamentadas. O álbum The Legend of Mike Smith, por exemplo, já é uma obra que conecta a temática dos Sete Pecados Capitais que aparecem na saga do Purgatório da Divina Comédia do poeta Dante Alighieri (Orgulho, Inveja, Ira, Preguiça, Avareza, Gula e Luxúria) com alguns desses anteriores aspectos sociais, afro-diaspóricos e políticos que Kinch já vinha explorando tais como escravidão análoga, vícios, raça, pobreza, preconceitos, supercapitalismo e questões contemporâneas afins: o álbum se desenrola a partir da história de um rapper e músico chamado Mike Smith que tenta a todo custo conseguir um contrato para vencer na vida, mas se depara com cada um dos sete pecados capitais no mercado corporativo. Kinch relata, por meio de entrevistas, que o movimento anticapitalista internacional Occupy e as conversas sobre comercialismo que ele teve na época com músicos europeus, brasileiros, africanos e americanos lhes foram as grandes inspirações na gestação dessa obra. Com quase duas horas e meia de duração, este álbum abaixo, pois, se configura como um verdadeiro magnum opus, confluindo as inúmeras e diversas ideias e estilos musicais que Kinch já vinha explorando e, ainda mais, acrescentando novos elementos e inspirações eruditas: a ideia de Kinch é trabalhar as sobreposições e os contrapontos dessa sua mistura de jazz, hip hop, freestyle, neo-soul e batidas inspirado pelos contrapontos da polifonia barroca de Johann Sebastian Bach, algo que surte um efeito um tanto experimental e intrincado ao projeto. Essa amostragem contrapontística fica um tanto evidente, por exemplo, nas faixas 4, 6 e 8 —— "The Dream", "Acedia" e "Invidia" —— e se reverbera por vários momentos ao longo das duas horas e 25 minutos do álbum. A primeira encenação completa da obra combinou elementos de dança, música e artes visuais, e ocorreu em 12 de setembro de 2013 como parte da reabertura do Birmingham Repertory Theatre. Esse tipo de projeto épico e ousado lhe credenciaria para a vindoura fase de parceria com a Orquestra Sinfônica de Londres.
O fato de Soweto Kinch ter estudado História Moderna no Hertford College, na Universidade de Oxford, lhe deu ainda mais bagagem para evocar a ancestralidade e aguçar sua criatividade através de temáticas históricas, mostrando que as causas dos preconceitos contemporâneos tem raízes profundas que atualmente foram apenas disfarçadas e atualizadas para um novo modelo de escravidão ou subserviência. Neste álbum abaixo, o saxofonista toma como inspiração o chamado "Black Peril", um termo que os supremacistas americanos e o ingleses usavam para se referir às crescentes ameaças de retaliações por parte dos negros recém libertos ou por parte da população negra colonizada no início do século XX. O termo "The Black Peril" também se refere à um tipo de preconceito sexual originado nas colônias inglesas —— Índia e países da África, principalmente —— que surgiu com os estupros de mulheres brancas pelos negros colonizados. De certa forma, esses estupros aconteciam tanto em retaliação às violências e medidas discriminatórias dos colonizadores como também em retaliação aos estupros e abusos dos colonos brancos às mulheres negras, o chamado "White Peril". Esses estupros dos dois lados geraram preconceitos sexuais de cunho racial que até hoje são disseminados na Inglaterra, Índia, África do Sul e outros países que foram colonizados pelos ingleses. Na África do Sul, esse tipo de preconceito ajudou a moldar inclusive as leis do Apartheid, que instaurou severas políticas de controle populacional e a proibição de relacionamentos interraciais. O fato é que esse tipo de preconceito afetou muito mais os negros —— é lógico! Os governos da Inglaterra e das colônias nunca nem chegaram a notificar que os abusos e estupros de mulheres negras por cidadãos ingleses brancos aconteciam e aconteciam em maior número, e por muito tempo jamais houve punições duras para o "White Peril". É partindo desse contexto de retaliações e conflitos entre brancos e negros que Kinch segue adiante na linha histórica para enfatizar musicalmente as causas e consequências desse passado sombrio.


Neste álbum acima, portanto, Soweto Kinch está interessado em explorar o período histórico das décadas de 1910 e 1920. Sua base de inspiração foram os episódios de violência civil que eclodiram em todo o mundo ocidental um ano após a Declaração de Armistício, em 1919, data a partir da qual coincidiu de haver muitas retaliações de negros afro-americanos e afro-ingleses em cidades como Liverpool, Glasgow, Cardiff e, no caso dos EUA, em Chicago e Arkansas, onde houve o chamado Red Summer, período que ficou marcado por dezenas de massacres e conflitos entre brancos e negros. Para tanto, Kinch conecta excertos originários do jazz das primeiras das décadas de 1910 e 1920 —— incluindo citações de ragtime, blues e proto-jazz em meio às peças  ——  com jazz contemporâneo, elementos da música folclórica da África e das Índias Ocidentais e citações de obras eruditas de compositores negros —— indo do post-bop ao hip hop, passando pelo aplique de um quarteto de cordas e incluindo pitadas de eletrônica ao molho. Essas abordagens e arranjos gestaram, pois, uma expansiva peça composta de 18 faixas que foram apresentadas no centro de artes EartH, em Dalston, e posteriormente gravadas em estúdio: a peça foi comissionada pelas entidades da University of Hull, EFG London Jazz Festival e pela London Symphony Orchestra, sendo posteriormente apresentada num modelo extendido com audiovisual que incluiu filmes de 1919 sendo retroprojetados e quatro dançarinos que coreografaram a peça no mesmo momento que os músicos de jazz e o quarteto de cordas atuavam. Um mosaico extremamente inteligente que une passado e presente como uma forma de não mais aceitar os erros, conflitos e preconceitos de outrora, mas aceitar por meio da arte que a humanidade é nada mais do que uma amálgama de brancos e negros, de europeus e asiáticos, de todos os povos juntos e misturados. Essa é a primeira obra comissionada pela London Symphony Orchestra, parceria que se repetiria com sucesso em 2022. Abaixo abordo esse grande encontro!

★★ Soweto Kinch & London Symphony Orchestra - White Juju (2022). 
Com o sucesso de The Black Peril em 2019, Soweto Kinch foi contatado pela Orquestra Sinfônica de Londres e pelo London Jazz Festival para criar uma peça estendida no mesmo conceito de misturas de estéticas e crítica social. Mas, de repente em 2020, sobreveio-nos a COVID-19 e os seguidos lockdowns para conter as faixas vermelha e roxa de contágio. Diante desse cenário distópico, explodiu-se, como se já não bastasse, o Movimento Black Lives Matter após o estrangulamento de George Floyd, que arregimentou multidões de pessoas negras e brancas a protestar por igualdade ao redor do mundo. Soweto Kinch, então, aproveita a encomenda da London Symphony Orchestra para captar toda essa epifania de problemas sociais potencializados por uma crise sanitária sem precedentes, sem mencionar a tendência de políticas fascistas que começou a mostrar as garras nesse período. Numa entrevista que Kinch deu para uma revista, ele explica o projeto da seguinte forma: The concept ‘White Juju’ was really distilled throughout Summer 2020 to describe the ways in which division is orchestrated and much of the country kept spellbound by myths of racial superiority, and the memory of imperial grandeur. It was a way of explaining why our electorate seem intent on making suicidal choices. It wasn’t until I did a socially distanced tour of port cities under lockdown that I really noticed the ubiquitous flags, statues and symbols which adorn our public spaces – and questioned their deleterious effects. Musically, I wanted to channel all of the confusion and countervailing emotions of the time. Glorious nature walks, and spring weather vs Covid deaths, PPE scandals and cronyism. Time for edifying reading and home bakes vs doom-scrolling tweets, abuses of police power and powerlessness". 
BANSKY
O saxofonista e rapper explica ainda que o título "White Juju" tem haver com o fetichismo com o qual a supremacia branca alimenta o preconceito e o racismo estrutural através das suas estátuas e dos seus símbolos capitalistas. Ele teve a ideia do título quando percebeu dois momentos sociais contrastantes: o momento em que o lockdown deixou as ruas das cidades praticamente vazias, só restando os grandes símbolos, logomarcas e outdoors capitalistas; e outro momento onde ativistas e manifestantes, em diversos tumultos e manifestações ao redor do mundo, começaram a depredar e derrubar estátuas ligadas a figuras históricas que foram responsáveis pela exploração racial de negros e índios —— algo que aconteceu até aqui no Brasil com as estátuas dos bandeirantes. Isso porque em vários dialetos africanos a palavra "juju" tem haver com amuletos, estátuas ou monumentos ligados a algum tipo de fetichismo ou veneração religiosa. Então Kinch usa o termo africano para acoplá-lo a esse fetichismo branco que venera esses seus símbolos históricos de opressão. Nos EUA e Inglaterra esse fenômeno já vinha acontecendo há algum tempo, mas, após o fatídico
estrangulamento de George Floyd, o Movimento BLM acentuou ainda mais a derrubada de estátuas e monumentos: como foi o caso da estátua do general confederado Stonewall Jackson, derrubada em Richmond, Virgínia; e como também foi o caso da estátua do comerciante de escravos do século XVII Edward Colston, derrubada e jogada no porto de Bristol. Tendo tempo de sobra, por causa dos seguidos lockdowns, Kinch cria uma master piece que expande absurdamente seu hibridismo conceitualizado a partir de misturas de formas de jazz, freestyle, batidas de hip hop, efeitos eletrônicos e elementos da música erudita sinfônica, criando uma obra contemporânea expandida e expansiva onde a tradição clássico-sinfônica representada pela branquitude conflitua-se e une-se com as tradições e formas de música que representam o espectro cultural dos afrodescendentes. Ao lado de Kinch, o maestro que liderou o projeto à frente da London Symphony Orchestra é o jovem e versátil maestro britânico Lee Reynolds, que tem ostentado passagens, residências e gravações com orquestras como a London Philharmonic Orchestra, a London Symphony Orchestra e a BBC Philharmonic Orchestra, além de já ter regido várias outras grandes orquestras internacionais. White Juju  é, enfim, um dos projetos de fusão musical dos mais ambiciosos desses últimos tempos!




CULTURA | LAZER | SHOWS | CONCERTOS | EXPOSIÇÕES | OFICINAS——————————————————————————————————————