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Álbuns 2024: Jlin, Sevish, Ben Wendel, Myra Melford, Rodrigo Amado, Peter Evans, Nicholas Payton, Ches Smith, e etc



★★★★ - Jlin - Akoma (Planet Mu, 2024).
A aclamada DJ americana Jlin acaba de lançar seu terceiro álbum da carreira. O álbum chama-se Akoma e surge sete anos após o seu aclamado Black Origami (2017). Entre fins dos anos 2000 e início dos anos 2010, enquanto ainda trabalhava como operária siderúrgica na cidade de Gary, Indiana, paralelamente Jlin também produzia suas amostragens repletas de samples inteligentes e tentava se lançar como DJ, lançando diversos singles e se tornando uma artista emergente da gravadora Planet Mu. Foi em 2011, então, que a Planet Mu lançou uma compilação chamada Bangs & Works, Vol. 2, na qual encaixa o single "Erotic Heat", composto por Jlin: esse single foi o primeiro marco inicial a impulsionar sua carreira, pois o designer de moda Rick Owens começou a usar a faixa em seus desfiles, algo que já lhe rendeu certa notoriedade. É em 2015 que ela então lança Dark Energy, seu primeiro álbum, um debut que foi amplamente aclamado por sites e jornais especializados como The Quietus, The Guardian e Pitchfork, a partir daí conseguindo se tornar uma artista mundialmente conhecida dentro da seara da música eletrônica. Em seguida, Jlin lança o igualmente aclamado Black Origami (2017), que continuou a expandir suas sofisticações e o seu prestígio. Esse segundo tento contou com parcerias e colaborações de figuras como o multi-instrumentista americano William Basinski, a produtora americana-alemã Holly Herndon, o artista francês Fawkes e a rapper sul-africana Dope Saint Jude. Juntos, os álbuns Dark Energy (2015) e Black Origami (2017) são considerados dois registros que sofisticaram sobremaneira o estilo footwork com traços de IDM (Intelligent Dance Music). A partir desses registros, Jlin tem mostrado uma capacidade surpreendente como compositora, trabalhando sempre com amostragens que praticamente se configuram em peças elaboradas cheias beats de percussão orgânica em modulações eletrônicas futuristas, muitas das vezes explorando temáticas e nuances sonoras ligadas à contemporaneidade da diáspora afro. Não à toa, suas habilidades tem sido requisitadas por diferentes outros compositores, músicos e ensembles. Nos últimos tempos, Jlin já foi aclamada em colaborações e parcerias com nomes e figuras tais como o multiartista americano William Basinski, o compositor alemão Max Richter, o quarteto de cordas Kronos Quartet e o ensemble americano Third Coast Percussion. Em 2023, sua peça "Perspectives", encomendada pela fundação Boulanger Initiative, recebeu uma bem trabalhada releitura do Third Coast Percussion e foi finalista do Prêmio Pulitzer de Música. E agora em 2024, com este álbum Akoma, ela segue ampliando seu leque de explorações super criativas, dessa vez diluindo em seu estilo de footwork diversas influências e elementos advindos do jazz, música erudita, música minimalista. Akoma traz colaborações da cantora islandesa Björk, do quarteto de cordas Kronos Quartet e do veterano compositor minimalista Philip Glass. Jlin ainda cita inspirações em bandas, conjuntos e figuras tais como a cantora Eartha Kitt, a jazz singer Nina Simone e o trio Third Coast Percussion. A artista ainda se inspira nos estilos de percussão dos corpos de bateria das bandas marciais (drum and bugle corps) das chamadas "Faculdades e Universidades historicamente negras" (HBCU), estabelecidas durante as décadas de segregação, para lançar um olhar consciente contra o preconceito racial. Fazendo uso recorrente de simbologias em suas peças, nesse álbum Jlin se inspira no símbolo "Akoma" da cultura Adinkra dos ancestrais da África Ocidental, símbolo que significa "paciência e tolerância", assim situando a atual diáspora afro nesse leque de contemporaneidades pós-modernas onde todos os gêneros se misturam, mas o negro ainda é tratado com discriminação e intolerância. Entrelaçando percussão orgânica com beats sintéticos e elaborando entrelaces entre a forte personalidade do seu footwork com samples e elementos advindos de diversos outros gêneros de música tais como o avant-pop, o jazz e a música erudita, Jlin nos evidencia cada vez mais que sua arte está na vanguarda do pensamento artístico-humanista onde inexiste segregação, barreiras, muros, limites e preconceitos.

   
★★★ - Sevish - Murmurations (2023)/ Big Sway (2023) (Independent)
O DJ e manipulador de eletrônicos inglês Sevish, já abordado aqui no blog —— no post onde elencamos mais de 60 nomes da eletrônica criativa ——, é um dos sujeitos já muito conhecido no universo on-line por suas explorações da microtonalidade através de entonações incomuns obtidas em recursos eletrônicos e softwares —— entonações com afinações diferentes dos padrões de afinações diatônicos e cromáticos de 12 tons que conhecemos através da música ocidental. Para tanto, Sevish explora um amplo range que vai do gamelão —— cultura musical da Indonésia onde se usa instrumentos tradicionais capazes de produzir harmônicos microtonais —— até afinações muitos específicas tais como 22-EDO, 15-EDO, 10-EDO, just entonation, escala Bohlen-Pierce, afinação Pelog, escalas xenarmônicas, entre outras subdivisões de harmônicos somente obtidas por programação eletrônica em softwares específicos. Pois foi agora recente, em 2023, que Sevish continuou a expandir seu horizonte de explorações através de dois albuns em estéticas diferentes. Com o álbum Murmurations, Sevish usa um sintetizador Korg Monologue para explorar a estética da drone music com longas camadas sustentadas: trata-se, nas palavras do músico, de "uma improvisação melódica no formato longo da drone music, uma exploração profunda da escala dekany (uma escala de 10 notas usando subconjuntos específicos de intervalos), onde cada seção usa um subconjunto diferente de 6 notas (hexany)". Mais adiante, em Big Sway (lançado em dezembro de 2023), Sevish retorna aos beats, bass lines e embalos dançantes de IDM, techno e drum'n'bass para explorar afinações usando a escala 22edo, baseada na subdivisão de 22 tons iguais, usando afinações específicas encontradas no gamelão, entre outras viagens microtonais. São duas ramificações diferentes de uma mesma trilha pela qual Sevish leva o ouvinte a viajar pelas estranhezas das entonações incomuns e das tonalidades microtonais: uma se embrenhando pela drone music e outra explorando uma eletrônica mais dance, quase "clubber". E em ambas, a espectralidade sonora atinge coloridos surpreendentes para quem tenta mergulhar auditivamente pelas entranhas quânticas desses sons "estranhos".
 
★★★★¹/2 - Amirtha Kidambi's Elder Ones - New Monuments (We Jazz Records, 2024)
A ativista e vocalista indo-americana Amirtha Kidambi tem se notabilizado por explorar o canto indiano carnático em confluência holística com técnicas vocais estendidas e várias outras interfaces criativas, incluindo poesia, colagens, eletroacústica, improvisações livres e conceitos sedimentados pela AACM de Chicago (Association for the Advancement of Creative Musicians). Neste recente álbum acima, a ativista e vocalista está acompanhada do seu ensemble-coletivo Elder Ones, o qual consiste na contrabaixista Eva Lawitts, no saxofonista Matt Nelson, no violoncelista Lester St. Louis e no baterista Jason Nazary, sendo que todos esses quatro instrumentistas também estão munidos de sintetizadores e outros moduladores para contribuir com texturas eletrônicas e tratamentos eletroacústicos em cada uma das quatro peças da set list. Em sua página do Bandcamp, a vocalista nos conta que este álbum é um dos seus "registros de dissidência", uma vez que as composições tiveram muitas influências advindas do seu ativismo pró causas sociais, a começar pelos protestos do Movimento Blacks Lives Matter, eclodidos com o criminoso estrangulamento de George Floyd por um policial em Minneapolis. A COVID-19 também foi um fato que culminou em sons e ideias ebulitivas, uma vez que as medidas restritivas do lockdown impedia que os músicos estivessem diante do seu público e se reunissem para tocar e gravar. Sem espaços, Amirtha Kidambi e seus colegas acabavam tocando nas ruas para os manifestantes do Blacks Lives Matter, além de concertos alternativos realizados debaixo de pontes, túneis, praças e avenidas, muitas das vezes usando geradores e extensões de fios cedidas por moradores, pelos donos dos comércios fechados e pelas galerias inoperantes, assim levando a música experimental e revolucionária a um público disperso que naquele momento podiam alcançar. Amirtha Kidambi ainda lembra que não poucos locais de música, artes e cultura alternativa em N.Y.C encerraram suas atividades permanentemente —— tais como o loft Death By Audio e o espaço comunitário The Silent Barn ——, de forma que esses protestos se tornaram mais do que propícios para amplificar publicamente a música criativa underground. "We gained tools and tactics, we have understood the power of collectivity, that same power that I feel as an improvising musician, where hierarchies are eliminated and individuals come together to assert their voices communally" —— relata a vocalista indo-americana. É esse espirito social e são essas as inspirações que dão corpo ao álbum acima, registro editado pela gravadora finlandesa We Jazz Records, e que já é o terceiro tento mui criativo de Amirtha Kidambi. O álbum também parece deixar implícito de que uma das inspirações também advém do fato de que muitos dos últimos protestos realizaram a depredação e a derrubada de antigos monumentos e estátuas dantes ligados aos ideários supremacistas e aos ideários da justiça americana. E diante do fascismo gourmet que hoje se camufla nos ideários da sociedade, há muita margem para que registros com esse nível de criatividade conscientizadora cumpra o seu papel contra os preconceitos e a desigualdade.

 

★★★★ - Myra Melford's Fire and Water Quintet - For the Love of Fire and Water (2022) / For The Love Of Fire And Water (2023) (RogueArt).
A requintada pianista americana Myra Melford realmente deu consistência, com estes dois álbuns acima, no trabalho do seu quinteto de mulheres Fire and Water, combo que foi primeiramente formado com Mary Halvorson (guitarra), Susie Ibarra (bateria e percussão), Ingrid Laubrock (saxofones tenor e soprano) e Tomeka Reid (violoncelo), e depois seguiu num continuum com a baterista Lesley Mok substituíndo Susie Ibarra. Em recente entrevista para o blog 👉The Free Jazz Collective, a pianista conta que esse trabalho foi ganhando corpo através de duas vias temáticas com as quais vinha trabalhando: mostrar ao público um misto de sensibilidade e energia com uma banda constituída apenas por mulheres improvisadoras, enfatizando o brilho e a importância das mulheres nessa seara de música inventiva e na sociedade; e dar seguimento no seu projeto imagético chamado An Extravagant Joy (para Cy Twombly), no qual ela já vinha há algum tempo se inspirando nas pinturas abstratas do grande artista plástico americano Cy Twombly. Podemos entender, portando, que há um tanto de inspiração temático-conceitual que encorpa toda a empreitada. As inspirações para o nome do quinteto e para as composições e improvisações advieram, inicialmente, de uma exposição de um conjunto de pinturas de Cy Twombly chamada Gaeta Set (For The Love of Fire & Water). E por que não denotar que Myra Melford também nos imerge numa envolvente dubiedade de sentidos e inspirações relacionados ao espírito humano da mulher? Também poderíamos entender que, para além da inspiração nas pinturas de Cy Twombly, a sensibilidade da mulher sempre envolta de força e determinação é representada pelo elemento "water" (água), que também pode ser entendido como o elemento que denota a composição, elaborada por anotações ou notação em pauta musical; enquanto a anergia e a imprevisilidade feminina é representada pelo elemento "fire" (fogo), que pode denotar a improvisação, livre ou pré-determinada. Trata-se, portanto, de um trabalho de "fogo" e "água", de "imagens" e "inspiração imagética", de composição escrita e improvisações livres, de sensibilidade e energia! Para dar corpo às peças, Myra Melford fez várias anotações, resgatou temas motívicos em seu baú de inspirações e compôs novos trechos baseados nas pinturas e desenhos de Cy Twombly, bem como colocou esses desenhos e pinturas lado a lado com a música escrita, dando às suas amigas musicistas a oportunidade de também interagir com a obra de Twombly e anotar suas próprias inspirações nas partituras e pinturas, inspirações essas que se transformaram em subjetivas improvisações a complementar o material previamente elaborado. Editados pela prolífica gravadora francesa RogueArt, temos aqui dois registros imperdíveis desse quinteto formado por algumas das improvisadoras mais notáveis da atualidade!!! E que venham outros!!!
 
★★★★ - Rodrigo Amado & The Bridge - Beyond The Margins (Trost Records, 2023).
Este quarteto foi um dos destaques de 2023 nos sites que focam em música improvisada. O prolífico saxtenorista português Rodrigo Amado, já acostumado a reunir-se com vários dos seus colegas europeus —— inclusive tendo uma proximidade bastante frutífera com músicos nórdicos do rico cenário da Escandinávia ——, forma aqui um quarteto de notáveis com o veterano pianista do expressionismo musical alemão Alexander von Schlippenbach, com o enérgico contrabaixista norueguês Ingebrigt Håker Flaten (que ficou conhecido como membro do enérgico trio The Thing, com Mats Gustafsson e Paal Nilssen-Love) e com o mui requisitado baterista americano Gerry Hemingway, na ocasião expatriado em solo europeu. Trata-se de quatro músicos de escolas, países e gerações diferentes entre si —— todos adeptos do free jazz, sim, mas advindos de épocas, vivências e cenários diferentes —— que se reuniram sem ter nada de música previamente elaborada em pauta. Gravado no café Pardon To Tu, Varsóvia, em 3 de outubro de 2022, o álbum acima revela, contudo, uma música improvisada preponderantemente rica, colorida, dinâmica e que já não fica estática naquelas sempre nebulosas livres improvisações que marcaram o núcleo duro do free jazz em outras épocas —— há, aqui, uma evolução de sentidos, cores sonoras e sensibilidades que sugere que o free jazz, puramente abstrato, também é uma estética capaz de se rejuvenescer em frescor e dinâmicas variadas! Rodrigo Amado explica que o título do álbum, The Bridge, foi inspirado no álbum de mesmo nome lançado por Sonny Rollins em 1962 após seu hiato sabático de três anos. Além dessa curiosidade, é preciso notar, também, que este é um dos poucos álbuns em que Rodrigo Amado convida um pianista para sua banda, embora Schlippenbach também tenha aparecido anteriormente em seu álbum The Field (2021). O resultado, como já citado, é um dinamismo de improvisos entrelaçados, humores, atmosferas, texturas e ricas cores harmônicas. Abaixo tento explicitar algumas observâncias auditivas para apreciarmos melhor essas dinâmicas e nuances.




O álbum começa com um cluster grave no piano de Alexander von Schlippenbach abrindo o caminho para o sax tenor de Rodrigo Amado a surgir com sua tessitura espessa denotando um certo caminho melódico. Mas o que parece sugerir uma melodia vai ganhando deformidades, enquanto o contrabaixo de Ingebrigt Håker Flaten atua em respostas de linhas de baixo pontilhistas e a bateria de Gerry Hemingway aplica efeitos texturais e brilhantes. De repente, o sax tenor sobe o tom com sopros torrenciais e todos os quatro músicos estão sobrepondo improvisos livres simultâneos que logo adiante surtem efeitos em coloridos sonoros praticamente espectrais. Depois Amado volta a sugerir linhas e tons mais melódicos, o grupo volta-se mais para uma quietude textural e o piano de Schlippenbach insere acordes e improvisos leves que soam praticamente como o brilhantismo singelo do impressionismo clássico. E de repente a banda assume uma interação mais jazzística até com certo walking bass mais convencional a ditar o ritmo. Isso vai até o ponto em que a tensão e a densidade da banda começa a aumentar rumo a um expressionismo dos mais abstratos e cacofônicos. Essas são as impressões que podemos sentir ouvindo apenas um trecho da peça Beyond The Margins, primeira peça do álbum dotada de 40 minutos de plena música livre e dinâmica. E já são impressões mais do suficientes para constatarmos a riqueza de dinâmicas desse quarteto intercontinental que destila várias gerações de experiências dentro do free jazz. O octogenário pioneiro Schlippenbach, que em outros momentos exacerbou os "martellatos" de Cecil Taylor e os clusters dissonantes de Thelonious Monk em livres improvisações frenéticas, parece continuar com seu dedilhado jovem cheio de brilhantismo de cores, sensibilidades e malícias. Rodrigo Amado, por sua vez, mostra que seu sax tenor já há muito tempo evoluiu para abordar uma gama variada de tessituras que vai do tom torrencial (ao estilo vulcânico de Peter Brötzmann) ao grave rouco e envolvente de Sonny Rollins, também indo do sopro primitivo (ao estilo Ayler) ao sopro de tom mais aveludado e sedoso —— tudo a depender do momento, da atmosfera e da dinâmica que ali se criam, na hora. Já Ingebrigt Håker Flaten ainda evoca resquícios dos seus tempos mais enérgicos em que seu contrabaixo soava quase na mesma potência que o sax-barítono de Mats Gustafsson, mas aqui ele prefere criar mais um colchão harmônico que faça jus a um quarteto de jazz. Enquanto Gerry Hemingway (sideman recorrente de Anthony Braxton e Marilyn Crispell) mostra um nível mais requintado de bateria, com mais riqueza de efeitos, timbres e sutilezas percussivas do que aquelas densas baquetadas que moldaram o energy free jazz em outros tempos. O álbum termina, por fim, com a faixa "(Visiting) Ghosts", uma releitura estendida do tema que deu luz ao presépio espiritual de Albert Ayler. Temos aqui apenas a arte abstrata da música livremente improvisada em naturais desenvolvimentos e dinâmicas! Ouçam!

★★★★ - Caroline Davis - Alula: Captivity (Ropeadope, 2023).
As ilustrações de pássaros que desabrocham flores em suas cabeças, dispostas na capa deste álbum da saxofonista Caroline Davis, nascida em Singapura e radicada no Brooklyn, parece denotar a busca por uma urgente primavera de maior humanismo e liberdade a partir de um certo ativismo que comunga arte com consciência e engajamento social. Misturando a instrumentação orgânica de um sax-trio com colagens, samples, vocais radiofônicos, sintetizadores e efeitos eletrônicos, Caroline criou aqui um requintado manifesto musical. Que as musicistas mulheres tem protagonizado um momento de maior inovação dentro do jazz contemporâneo, isso é visível! Mas é ainda mais surpreendente que esse nível de inovação tenha evoluído para trabalhos tão ricos, amalgamados e bem contextualizados como este tento de Caroline Davis!!! Em recente entrevista para a revista Down Beat, a saxofonista contou que este álbum, Captivity, surtiu-lhe como uma ebulição diante do lockdown pandêmico e diante do seu apreço pelo ativismo em prol da igualdade racial e contra as falhas do sistema prisional e das condenações injustas tão recorrentes na malfadada justiça americana. Durante o confinamento da Covid-19, por exemplo, ela começou a conversar com o detento Jalil Muntaqim, um ex-membro dos Panteras Negras que passou décadas confinado na solitária até ser solto no final de 2020, e ela também trocou cartas e visitou o injustamente condenado à morte Keith LaMar, que também definhava há anos em confinamento solitário. Pensando nesses e noutros seres humanos que são vítimas do ainda segregatório sistema da justiça americana, Caroline compôs, então, o conjunto de faixas que constitui o álbum acima e organizou uma arrecadação de fundos para ajudar na adaptação de Muntaqim para sua vida após a libertação, além de tocar em shows beneficentes do movimento "Free Keith LaMar". Parte das vendas deste álbum tambem esta sendo destinada para o Critical Resistance, o grupo reformista fundado e mantido há décadas pela célebre socióloga e ativista Angela Davis. Captivity também presta homenagem ao legado de três mulheres negras —— Joyce Ann Brown, Susan Burton e Sandra Bland —— também com processo corrente por supostamente serem vítimas das falhas da justiça e do sistema prisional americano. Caroline Davis (sax alto, sintetizador Roland-Juno, voz) está acompanhada de Val Jeanty (sintetizadores e samples), Chris Tordini (contrabaixo acústico e Moog Bass) e Tyshawn Sorey (bateria). Um dos álbuns mais criativos e socialmente engajados de 2023!!! Fiquemos atentos à Caroline Davis!!!



★★★★ - Peter Evans & Being Becoming - Ars Memoria (More is More, 2023).
Em 2020 Peter Evans, um dos maiores desbravadores do trompete no século 21, lançou em quarteto o homônimo álbum Being & Becoming através da sua própria gravadora More Is More. O título "Being & Becoming" acabou sendo usado para nomear o próprio quarteto que era constituído dele, Peter Evans no trompete, Joel Ross no vibrafone, Nick Jozwiak no contrabaixo e Savannah Harris na bateria e percussão. Trata-se de um quarteto com o qual Peter Evans adota uma postura jazzística mais centrada em estruturas composicionais pré elaboradas com as improvisações fazendo interligações com as partes escritas —— um contraste ante aos seus projetos mais experimentais, onde ele atua mais com técnicas estendidas defenestradas em formato solo e/ou em em improvisações livres em grupos. Mas também, em muitas das peças trabalhadas pelo quarteto Being & Becoming, Peter Evans introduz trechos onde as técnicas do seu trompete estendido (ou expandido, como queiram) também tenham certa aplicação composicional. O grande lance é dar utilidade jazzística e aplicabilidade composicional às técnicas estendidas do seu trompete, que insurge um conjunto de técnicas de sopros e fraseios confluindo-se num rico jogo composicional de timbres, linhas de improviso e nuances dentro do quarteto, onde as reverberações do vibrafone ganham um apreço e uma aplicação mais do que especial e a bateria é convidada a atuar de forma variadamente rica tanto em expansividade rítmica quanto em expansividade de timbres e texturas. O contrabaixo, por sua vez, oferece aquela sempre acalentadora manta harmônica e, em algum momento, também faz o uso do arco para contribuir em passagens mais "camerísticas". Pois eis que agora recentemente, em 2023, Peter Evans volta a convocar esse seu fantástico quarteto de jazz para mais uma sessão de gravações, dessa vez com Michael Shekwoaga Ode substituindo Savannah Harris na bateria e percussão. As novas peças vinham sendo destiladas em apresentações desde 2021 e a gravação recebeu apoio da Robert D. Bielecki Foundation. Para quem comprar o CD ou LP, haverá um link no verso do encarte que dará direito ao download de mais uma faixa-bônus gravada ao vivo na Jazz Gallery, na primavera de 2023. Comprem!!! Desejemos, enfim, mais álbuns e longa vida para este seminal combo de Peter Evans!!! 

★★★★ - Nicholas Payton - Drip (Paytone Records, 2023).
Nos últimos tempos tem havido um certo movimento jazzístico de resgate ao range soul-funk-fusion-urban music numa estética que repagina elementos daquela nostálgica e acalentadora música afro-americana mais voltada aos top charts das estações de rádio que dominaram a apreciação pública dos anos 70 até os anos 90 —— na verdade, até início dos anos 2000, quando a internet ainda engatinhava e ainda não haviam as tais plataformas de streaming. O saxtenorista Branford Marsalis começou com isso nos anos 90 com seu grupo Buckshot LeFonque, que fundia jazz com hip hop, mas também repaginava e amalgamava elementos do rock, pop, acid-jazz, soul e R&B. O trompetista Roy Hargrove, que foi membro de coletivos de neo-soul como o Soulquarians e o The Soultronics, deu uma sequência com frescor ainda mais contemporâneo para essa abordagem através do seu requintado grupo The RH Factor nos anos 2000. E nos anos 2010 e até o presente momento, o pianista Robert Glasper tem sido a figura emblemática a atualizar essa abordagem para a nossa contemporaneidade através da sua afamada série de álbuns chamada Black Radio, a partir da qual passou a atuar com seu projeto e coletivo Black Radio Experience. A contrabaixista Esperanza Spalding também explorou essa abordagem em seu álbum Black Radio Society. E aqui no Brasil, o renomado cantor Ed Motta é a figura que nos fascina com essas repaginações contemporâneas, por vezes salpicadas de brasilidade e envolvendo misturas bem arranjadas que lembram as épocas de ouro onde até as rádios brasileiras tocavam sofisticadas canções de soul, funk, AOR (album-oriented radio), pop e R&B envoltas de instrumentação jazzística. Pois eis que o trompetista e tecladista de New Orleans Nicholas Payton, um dos paladinos do neo-bop e straight-ahead mais purista nos anos 90, também tem sido uma das legendárias figuras do jazz a engrossar esse caldo revivalista. O ponto de virada na carreira de Payton em direção a expansão desse range urbano de música afro-americana foi o emblemático álbum Sonic Trance (Warner Bros., 2003), onde ele praticamente repagina o jazz fusion inspirado em Miles Davis a partir de uma eletrônica mais contemporânea e de elementos estilísticos mais atuais. Sonic Trance foi, realmente, um dos registros a iniciar um certo movimento que alguns críticos chamam de "post-fusion". De fato, Nicholas Payton nunca abandonou a diretriz mais purista do straight-ahead jazz, mas sua carreira passou a destilar uma paralela e profunda apreciação por uma urban music afro-americana repleta de elementos advindos de estilos como o dub jamaicano, a eletrônica, a soul music, o funk e até o R&B mais pop, um range onde já inexistem os preconceitos estéticos dantes tão fermentados.

 

Para tanto, além de estar sempre com seu trompete empunhado, Payton passou a desenvolver sua até então pouco conhecida proficiência como tecladista, explorando uma série de nostálgicos sintetizadores analógicos em abordagens repaginadas por uma verve eletrônica de frescor mais contemporâneo. Desde então, não faltam álbuns sofisticados com essa abordagem afro-americana mais eletrônica —— mais urban music —— na ampla discografia de Nicholas Payton, que preferiu fundar seu próprio selo, o Paytone Records, do que ficar dependente das exigências das grandes gravadoras. E este álbum acima, DRIP, é mais um tento a expandir seus horizontes nessa direção. A ideia deste álbum surgiu em 2021, quando Payton se viu preso em Atlanta após um show, por causa do furação Ida, que impedia seu retorno para Nova Orleans. Payton aproveitou, então, para procurar músicos e estúdios locais em Atlanta onde pudesse aproveitar aquele tempo de inatividade para registrar algo que a própria Atlanta, capital da Geórgia, lhe inspirava criar: lembrando que Atlanta é culturalmente muito marcada pela contemporaneidade de um certo neo-soul mais sulista e por estilos inovadores de hip hop tais como o "crunk" e o "trap", entre outros estilos de música negra que vai do gospel ao R&B mais contemporâneo. A busca resultou, então, em seu encontro com proficientes e afamados colaboradores tais como a pianista, cantora, compositora e produtora Patrice Rushen, o célebre compositor de canções e hitmaker Michael Franks e o baterista e produtor Lil' John Roberts (um veterano em turnês e gravações com artistas como Janet Jackson e Stevie Wonder), entre outros músicos pioneiros. A concepção do álbum progride, então, para uma reformulação elegante do histórico R&B de Atlanta, onde as faixas evocam com frescor essa atmosfera nostálgica dos grandes clássicos que dantes tocavam nos top 10 das rádios. Nicholas Payton aproveita para também incluir a participação do já citado Robert Glasper, que hoje tem sido uma das figuras emblemáticas na reformulação de um jazz mais apegado ao neo-soul e ao hip hop. Robert Glasper, aliás, começou sua carreira sendo sideman de Nicholas Payton, e, evidentemente, não poderia recusar o convite para uma participação no projeto do mestre. O resultado surte num R&B instrumental envolto de jazz com relaxante atmosfera lounge!!!

★★★★ - Bugge Wesseltoft & Henrik Schwarz - Duo II (Jazzland Recordings, 2022). 
Em 2022 este excelente álbum nos passou batido em nossa relação de resenhas e lançamentos. Mas como tem sido do nosso feitio também relacionar sempre algum ou outro álbum de um período anterior que deixamos passar despercebido —— uma vez que a ideia aqui é sempre mostrar para nossos leitores lançamentos e novidades que nos sejam atemporais, sem jamais aderir à encardida sazonalidade mercadológica ou ao padrão da moda e da tendência datada ——, então eis que vos trago aqui este grande álbum lançado em 2022 pela dupla inovadora formada com o pianista de jazz norueguês Bugge Wesseltoft e o DJ e produtor de música eletrônica alemão Henrik Schwarz. Bugge Wesseltoft teve um impacto considerável nos anos 90 e início dos anos 2000 na cena norueguesa —— no cenário Escandinavo, como um todo —— com sua inovadora concepção de "nu jazz", onde seu piano acústico flertava com a eletrônica e uma gama de inovadoras sonoridades sintéticas. Já o DJ e manipulador de eletrônicos Henrik Schwarz, por sua vez, tem sido um dos expoentes da eletrônica mais ambientada no estilo "deep house" europeu, além de ser um especialista em aplicar remixes e novas modulações eletronicas sobre temas e peças da música erudita clássica e contemporânea. Juntos, eles formam o inclassificável e pós moderno Wesseltoft Schwarz Duo. Este é, aliás, o terceiro álbum no qual os dois amalgamam suas ideias, a começar pelo álbum Wesseltoft Schwarz Duo (2014), passando também pelo álbum Trialogue (2014), onde a dupla foi acompanhada pelo baixista Dan Berglund (ex-membro do trio sueco do falecido pianista Esbjorn Svensson). Aqui neste excelente álbum acima indicado, somos inebriados por um tipo de organicidade envolvente em que o som nórdico das teclas cristalinas do piano Wesseltoft se amalgama perfeitamente com synths variados e com as pulsações eletrônicas, os efeitos e o beats produzidos pelo laptop e kits de eletrônicos de Henrik Schwarz. Além das teclas, Bugge Wesseltoft ainda efetua alguns apliques ressonantes de marimba e vibrafone, ampliando ainda mais as ambiências orgânicas no projeto: a marimba, aliás, traz um tom mais "world fusion"; enquanto o vibrafone sugere um tom mais "lounge". A amálgama é homogênea e as peças são coesas, mas quando mergulhamos atentamente nas faixas percebemos que há muitos elementos que foram amalgamados: nu jazz, eletronica ambient, deep house, música erudita, minimalismo nórdico, jazz contemporâneo, pop, world music, etc, etc... A dupla ainda conta com uma gama variada de colaboradores, incluindo vocalistas, um quarteto de cordas, o trompetista alemão Sebastian Studnitzky e os músicos do Solistenensemble Kaleidoskop, participações essas que potencializam e enriquecem ainda mais as camadas e as paletas de timbres em relaxantes e brilhantes combinações híbridas.



★★★¹/2 - Christian McBride & Edgar Meyer - But Who's Gonna Play the Melody (2024)
Christian McBride é um dos maiores contrabaixistas de jazz das últimas quatro décadas: vindo de uma tradicional família de músicos da Filadélfia, expoente da geração "young lions" nos anos 90, e figura principal do jazz contemporâneo ao lado de jazz masters como Wynton Marsalis e Brad Mehldau, seu virtuosismo ao contrabaixo pode ser apreciado em centenas de gravações com os mais variados músicos de estilos diversos. Já Edgar Meyer é uma figura do Tennessee que flutua entre o country, o bluegrass, o jazz e a música clássica com versatilidade eclética, por vezes adotando uma diretriz mais crossover. Ambos são as figuras mais notávels e proeminentes do contrabaixo das quais temos notícia: McBride já ganhou o prêmio Grammy oito vezes; e Meyer já ganhou o Grammy em sete ocasiões. Neste álbum acima, lançado pela Mack Avenue Records, eles se juntam num dueto de contrabaixos —— desacompanhados, com apenas contrabaixos, em pizzicatos e arcos —— para explorar técnicas, influências, elementos, improvisos, composições próprias, canções, temas e temáticas advindos de gêneros tais como blues, jazz, folk, música erudita, country/ bluegrass, funk, e etc. Eis aqui, então, uma rara oportunidade de apreciar um surpreendente dueto de contrabaixos numa diretriz eclética, descontraída e descompromissada.
 
★★★★ - Rémy Le Boeuf's Assembly of Shadows - Heartland Radio (2024).
Este álbum é um dos registros que poderá figurar entre os lançamentos mais belos e agradáveis de 2024 —— ao menos, deverá, ou deveria, ser assim considerado pelos críticos de jazz mais atentos. O saxofonista Rémy Le Boeuf —— conhecido por liderar o Le Boeuf Brothers com seu irmão gêmeo idêntico —— nos mostra aqui um álbum de jazz orquestral refinado e cheio de tons melódicos e imagéticos. As peças soam próximas ao jazz contemporâneo orquestral de Maria Schneider ou de Darcy James Argue, mas elas soam moduladas com arranjos que exprimem preferências e vivências próprias que marcam uma nova fase na vida e carreira do saxofonista. Rémy Le Boeuf conta que as inspirações para este álbum surgiram quando ele foi contratado como Director of Jazz & Commercial Music Studies na Universidade de Denver e teve que se mudar, então, atravessando os EUA partindo do Brooklyn para Denver num caminhão de mudança. Nessa viagem de mais de 24 horas, o saxofonista conta que o que eles mais fizeram para preencher o tempo foi curtir as paisagens impressionantes que marcam essa travessia de leste a oeste dos EUA ouvindo uma trilha variada de estações de rádio e estilos de música enquanto curtia a natureza com as janelas abertas. Rémy Le Boeuf conta que até tentou sintonizar algumas rádios de jazz, mas essas eram poucas. Então boa parte da viagem foi marcada por trilhas com bandas e cantores que variaram do pop ao erudito. Assim suas inspirações aqui abrangem de Al Green e D'Angelo à Radiohead e Thom Yorke, do influente trompetista Roy Hargrove (e seu The RH Factor) ao folk introspectivo de Nick Drake, entre diversas outras bandas e figuras do soul, folk, country, pop, indie rock e etc. Com tempo e inspiração de sobra durante a viagem, o saxofonista começou a imaginar um novo álbum onde pudesse registrar essas paisagens e inspirações marcadas por essa diversidade de trilhas sonoras, e pudesse ilustrar essa nova fase da sua vida como professor em uma nova cidade do outro lado dos EUA. Para sua big band ele deu o nome de Assembly of Shadows. Para o álbum ele deu o título de Heartland Radio, refletindo as várias paisagens, canções e tonalidades climáticas que essa mudança do leste para o oeste americano ao som das várias programações das estações de rádio que lhe inspiraram. Rémy Le Boeuf é um nome ao qual devemos ficar atentos!!! 

★★★★¹/2 - Jon Irabagon's Outright! - Recharge the Blade (Irabbagast Records, 2023).
Acho interessante e super criativo quando um músico de jazz lança uma série de álbuns sob específicas alcunhas temáticas. É o caso do saxofonista filipino-americano Jon Irabagon que, com este álbum acima, acaba de concluir sua engenhosa Outright! Trilogy, uma trilogia de álbuns dedicada a explorar especificamente o sax tenor, o sax alto e os saxes soprano e sopranino. Estes álbuns são: Outright! (Innova Recordings, 2008), dedicado ao sax alto; Unhinged (Irabbagast Records, 2012), dedicado ao sax tenor; e agora Recharge the Blade (Irabbagast Records, 2023), dedicado ao saxes soprano e sopranino. Constituído majoritariamente de material autoral, cada um desses álbuns dá um enfoque específico com inspirações específicas indiretamente advindas de jazz masters e fatores históricos que elevaram o nível de execução e aprimoramento desses três tipos de saxofones. Em termos de elementos estético-estilísticos, Irabbagon segue expandindo suas paletas e abordagens com uma mistura pós-moderna marcada por inclassificável hibridismo, onde as passagens e os arranjos lembram, sedimentam e remodulam elementos do post-bop ao estilo de Wayne Shorter, do free jazz aos estilos de Steve Lacy e John Coltrane, do neo-bop ao estilo de Branford Marsalis, passando pela balada, pelo swing, pitadas de eletrônica, livres improvisações, beats de hip hop, funky, m-base, rock e até de um certo "smooth jazz" repleto de ironia e fundo cacofônico... e indo além. Apresentando também um jogo marcado por uma variedade de combinações de timbres entrelaçados, a banda central é formada por Jon Irabagon (saxofone soprano, sopranino), Ray Anderson (trombone), Matt Mitchell (piano, Fender Rhodes, Moog Model D), Chris Lightcap (contrabaixos acústico e elétrico) e Dan Weiss (bateria), com participações de Ben Monder (guitar na faixa "Quorum Call") e Chris Cash (bateria, contrabaixo, guitarras e programação eletrônica na faixa "Welcome Parade". Com formações e combinações instrumentais variadas, o álbum é dividido entre a peça Recharge The Blade Suite, uma suíte em nove partes, e a peça War Trilogy, formada pelas três últimas faixas. Nessa última peça de três partes, aliás, temos participações de músicos da Trans-Atlantic Line Cigar Lounge All Stars. Ademais, Jon Irabbagon também salienta que trabalhar com essa variedade de instrumentistas, de arranjos, de possibilidades estilísticas e com essa gama de possibilidades composicionais só foi possível porque ele recebeu apoio do programa "New Jazz Works" mantido pela Chamber Music America, programa financiado pela generosidade da Doris Duke Charitable Foundation.

★★★★ - Ches Smith - Laugh Ash (Pyroclastic Records, 2024).
Nas últimas décadas, o conceito de liberdade dos músicos de jazz que exploram o avant-garde definitivamente evoluiu daquela liberdade desconstrutivista da livre improvisação do free jazz —— às vezes primitivista e espiritualista, outras vezes enérgico-anarquista e contracultural, outras vezes apenas iconoclasta no modo como deformava os padrões —— para o ecleticismo contemporâneo do que chamam hoje de "modern creative jazz", onde num mesmo álbum e até numa mesma composição o músico e compositor pode misturar quaisquer elementos de gêneros e subgêneros díspares para criar peças híbridas com estruturas inclassificáveis. Essa é, afinal, uma consequência do novo conceito de liberdade de gêneros que permeia praticamente todos os ideários sociais e culturais na nossa contemporaneidade —— as pessoas já não querem estar presas a apenas um gênero. Ou seja, se antes o free jazz era basicamente centrado na liberdade da improvisação sem temas ou acordes pré determinados como forma de descontruir os padrões do jazz dantes convencionados (os standards, as síncopes, o blues, os acordes, o bebop, o swing, o hard bop, etc, etc), nas últimas décadas os músicos mais vanguardistas do jazz fazem uso de uma liberdade muito mais eclética e expansiva onde a livre improvisação é apenas mais um dos inúmeros elementos a serem usados nessa mistura pós-moderna de gêneros, sub-gêneros e diversas formas de arranjos, diversas formas de interação entre os músicos e diversas formas idiossincráticas de se criar música, podendo abranger desde a composição escrita repleta de influência erudita, passando pela improvisação livre, e indo até o enxerto de elementos díspares, de efeitos e manipulações eletrônicas e colagem de partes de gêneros diversos. E já há quem faça essas misturas de forma muito bem estruturada, com muita coesão e maestria composicional, sem deixar que as peças soem como apenas amontoados de retalhos inter-gêneros! É o caso desse fantástico baterista e compositor Ches Smith em seu mais recente projeto chamado Laugh Ash. Este registro, aliás, tem tudo para ser considerado um dos melhores lançamentos de 2024!!! E por vários motivos!!! A começar pelo timaço de brilhantes músicos do atual avant-jazz que Ches Smith (eletrônica, bateria, percussão) conseguiu reunir: Shara Lunon (voz e processamento vocal, letras), Anna Webber (flauta), Oscar Noriega (clarinetes), James Brandon Lewis (saxofone tenor), Nate Wooley (trompete), Jennifer Choi (violino), Kyle Armbrust (viola), Michael Nicolas (violoncelo) e Shahzad Ismaily (baixo e synth Moog). Abaixo, mergulharemos em algumas peças.
 

O álbum abre com a peça "Minimalism", que começa com um acorde de bela dissonância (formado por trompete, sax, cordas, clarinete e etc) dando introdução para um canto melódico e uma poesia evocada em spoken word a soar por cima de pulsos eletrônicos repetitivos: a peça não evoca fiel e essencialmente a estética do minimalismo musical tal como sugere o título, mas já mostra logo de imediato um tanto de ecleticidade pós minimalista e funciona como uma anunciação breve da distopia que está por vir nas peças seguintes. Muitas das peças, aliás, serão curiosamente marcadas por trechos melódicos cíclicos ou repetitivos a desenvolverem-se em inesperados improvisos, arranjos e sobreposições. Segue-se a peça "Remote Convivial", que parece denotar certa influência do lockdown pandêmico em seu título e é marcada por uma hiper criativa combinação de batidas eletrônicas frenéticas —— a lembrar um tanto dos beats assíncronos da estética IDM de Aphex Twin —— em contrapontos irregulares com vibrafone e cordas em pizzicato, enquanto por cima dessa combinação eletro-orgânica a flauta e o clarinete iniciam mais uma chamada em loop melódico que acaba se desenvolvendo em perguntas e respotas sequenciais com as cordas, a voz, o sax e o trompete, formando seguidas combinações de loops repetitivos sequenciais até que o saxofone imerge numa livre improvisação freejazzística alcochoada pela cacofonia das cordas. As cordas, aliás, funciona muito bem como um aditivo que pode tanto trazer uma massa sonora mais próxima da música de câmera erudita como também pode soar cacofônica, atonal e experimental em muitos momentos. E é assim, com essa massa camerística, que a terceira peça do album começa. "Suétered Webs (Hey Mom)" parece evocar um sino de igreja no início da peça a chamar por um prenúncio repleto de camadas camerísticas meditativas com cordas, flauta, clarinete, vibrafone e voz, camadas essas que soam combinando conssonância com dissonância em cantos e contracantos flutuantes e vão se encorpando com a entrada do trompete e do sax-tenor, até que o bassline, a eletrônica e a bateria nos imergem em algo próximo do hip hop onde a voz emite alguns versos em spoken word e o saxofone se insere ao discurso com improvisos jazzísticos —— após a citada introdução camerística, aliás, essa peça parece desenvolver-se com resquícios de algo que soa entre as misturas do m-base e do jazz-rap dos anos de 1980 e 90. A quarta faixa "Shaken, Stirred Silence" começa com camadas melódicas nebulosas, decai para um clima de suspense de abstração incidental, até que o canto imerge com um brado de esperança e a peça se desenvolve com as cordas a convocar o restante da instrumentação para dar vida num tema que soa por cima beats eletrônicos, tema esse que desembocará num alarmante caos sonoro, retornando em seguida ao canto e camadas sobrepostas. Ou seja, repleto de introduções, sequências, desenvolvimentos, camadas, pontes e improvisos, o conjunto de peças deste álbum parece até evocar a distopia de uma coesa trilha sonora de um filme pós apocalíptico. Ademais, seguem-se mais cinco peças igualmente bem recheadas de misturas estilísticas, arranjos e combinações geniais de timbres —— sem espaço para o tédio e a monotonia! Trata-se, enfim, de um álbum hiper criativo onde Ches Smith deixa de lado toda a preponderância da sua bateria —— a preponderância fritante das suas baquetas que tanto já ouvimos em suas participações em álbuns com Tim Berne e John Zorn, por exemplo —— para atuar mais como compositor, arranjador e um maestro a assegurar que os músicos soem de fato amalgamados diante de tantos elementos díspares, e ao mesmo tempo atuando para condimentar as peças com combinações de eletrônica e pitadas requintadas de percussão variada, usando vibrafone, bateria, sinos, glockenspiel, tímpanos, tam tam e placa de metal. As combinações de timbres, arranjos e camadas soam não menos que inteligentes! E a coesão composicional de Ches Smith aqui é surpreendente!

★★★★ - Ben Wendel - All One (Edition Records, 2023).
Através deste mui sofisticado álbum, o saxofonista Ben Wendel foi um dos destaques de 2023, tendo sido nomeado para concorrer a um prêmio Grammy na categoria de "Melhor Álbum Instrumental Contemporâneo". Ben Wendel é conhecido por seu post-bop imagético e super sofisticado que também inclui influências do pop, do post-rock e da eletrônica, tendo sido cofundador do grupo Kneebody —— com o qual também recebeu uma nomeação a um prêmio Grammy em 2009 —— e tendo sempre tocado com grandes bandas e muitas das grandes figuras do jazz contemporâneo e doutros gêneros da música pop tais como a banda Moonchild, os pianista Tigran Hamasyan e Gerald Clayton, o multi-instrumentista e cantor Louis Cole, o rapper Snoop Dogg, o multi-instrumentista e cantor Prince, o produtor Daedelus, o trompetista Ambrose Akinmusire, dentre outros. Interessante notar que a música de Ben Wendel é sempre muito conectada com aspectos e reflexões existenciais que estão muito presentes na sociedade contemporânea. Se em seu álbum anterior, High Heart (Edition Records, 2020) —— resenhado aqui no blog em 2021 ——, Wendel tocava na ferida do impacto que a a cultura cibernética, as redes sociais e a alta tecnologia impõem sobre nossas vidas, este álbum acima já advém de inspirações surtidas do impacto que o confinamento pandêmico da COVID-19 teve em sua criatividade. Para se manter criativo mesmo diante do confinamento e das restrições do lockdown, Wendel teve a idéia de realizar alguns experimentos em estúdio que incluíram mixar várias camadas de sopros e processar esses sopros eletronicamente, criando peças através da ideia de algo parecido como "mini orquestras" de sopros processados. Outra ideia pouco usual foi também usar o timbre do fagote para enriquecer essas sonoridades de sopros processados eletronicamente, uma vez que o confinamento do lockdown também lhe serviu para ele retomar os estudos e a prática desse instrumento, que é mais comum nos meadros da música erudita de câmera. Essas idéias foram somadas ao amplo espectro de experiências e influências que Ben Wendel adquriu em seu contato com o pop, a eletronica e post-rock, de forma que o projeto evoluiu para peças híbridas que pudessem contar com participações especiais de vários músicos igualmente ecléticos e abertos a novas experiêcias. Assim, Wendel conseguiu que cada uma das seis faixas do álbum tivesse a participação especial de uma grande figura eclética do jazz contemporâneo. Empunhando saxofone tenor e soprano, fagote e efeitos de EFX, Wendel conta com participações especiais, então, do guitarrista Bill Frisell, da cantora Cécile McLorin Salvant, do trompetista Terence Blanchard, do cantor José James, da flautista Elena Pinderhughes e do pianista Tigran Hamasyan. As peças e canções foram arranjadas e mixadas através de partes, ideias e fragmentos gravados em vários estúdios e locais, uma vez que as restrições pandêmicas impossibilitava a experiência das gravações em grupo, sendo essa uma inovadora prática criativa usada por muitos músicos durante os anos da pandemia da COVID-19.

★★★ - Avishai Cohen & Abraham Rodriguez Jr - Iroko - (Naïve, 2023).
Neste mui descontraído álbum, o grande contrabaixista israelense Avishai Cohen —— um dos maiores do mundo e da sua geração —— encontra o multifacetado percussionista e vocalista cubano Abraham Rodriguez Jr, que também passa por uma fase de estadia em Israel, para registrar um dueto que ambos já há décadas esperava realizar. Avishai Cohen conta que conheceu Rodriguez em 1993, na época em quem que ele iniciava sua carreira em Nova Iorque após formar-se na New School, quando ambos tocaram juntos na banda do pianista porto-riquenho Ray Santiago, no Lower East Side de Manhattan. E sempre que se encontravam, eles mencionavam a ideia de empreenderem-se num projeto em parceria. Avishai Cohen se tornou um dos grandes contrabaixistas dos últimos tempos e começou a ser muito requisitado para gravar e excursionar em turnês com mestres do calibre de Danilo Perez, Chick Corea, Kurt Rosenwinkel, Amos Hoffman, dentre outros, além de ocupar-se numa mui elogiada carreira solo que já soma mais de duas dezenas de álbuns. Da mesma forma, sempre muito ocupado, nessas últimas décadas Abraham Rodriguez Jr se tornou um dos músicos mais requisitados da comunidade afro-latina de Nova Iorque —— os chamados "nuyoricans" —— e tocou com uma infinidade de grupos, bandas e músicos de vários gêneros tais como Orlando Rios Y Su Nueva Generacion, Andy Gonzalez e Conjunto Libre, Tania Leon, Alfredo “Chocolateo” Armenteros, Nelson Gonzalez, os Conga Kings, Rafi Malkiel, Pupi Legarretta, Pedrito Martinez, Roman Diaz, Changuito, Los Afortunados, Kip Hanrahan e muitos outros. Atualmente Abraham é membro ativo do Grupo Folclórico Experimental Nueva Yorquino e do Oyu Oro Afro-Cuban Dance Ensemble, tendo explorado vários aspectos e elementos da tradição iorubá e da santeria em sua música. Pois só foi agora, em 2023, que Avishai Cohen e Rodriguês encontraram um momento e ambiente propício para lançar o projeto da parceria, já que ambos estavam radicados em Israel. A idéia do álbum é unir a personalidade do contrabaixo poderoso de Avishai Cohen com os cânticos da santeria e a percussão afro-latina iorubá, sem deixar de permear, também, outras influências do espectro musical afro-caribenhos.





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