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LIGETI | KAJA SAARIAHO | WYNTON MARSALIS | MOONDOG | JULIUS EASTMAN | TANIA LEÓN | ANTHONY BRAXTON | JOHN ADAMS | JOHN ZORN |
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ARNOLD SCHOENBERG | FRANK ZAPPA | BRIAN FERNEYHOUGH |


Os repertórios de peças para piano são interessantes no espectro da música moderna porque foram nelas —— ali na reclusão do lar, solitariamente junto à banqueta e suas 88 teclas —— que os compositores começaram a transcender e transpor os limites da tonalidade clássica. As Três Peças para Piano Opus 11 (Drei Klavierstücke) compostas por Schoenberg em 1909 são um exemplo, pois elas foram as primeiras peças por onde o compositor instaurou, de fato, a atonalidade ainda em escrita livre pré-dodecafônica. Segue-se Five Pieces Op.23 (1920-23) e Suite for Piano Op.25 (1921-23), as quais de fato inauguram a técnica dodecafônica e abrem definitivamente um novo caminho para uma nova harmonia e uma mudança drástica na forma de estruturar a composição. O universo pianístico de Schoenberg é, pois, um ambiente de estudos muito rico e muito importante para o estudo das estruturas e da harmonia moderna porque nessa fase da carreira, mais precisamente na passagem da década de 1900 para a década de 1910, mesmo suas peças ainda com tonalidades definidas já eram modernas em termos harmônicos e estruturais —— consequentemente, muitas delas foram publicamente contestadas e permaneceram inéditas por anos, subjugando o compositor até a sofrer uma crise financeira e a viver apenas do ensino. E estas interpretações do pianista Paul Jacobs, das peças para piano solo de Schoenberg, lançadas em vinil pela Nonesuch em 1975, ainda são referência mesmo depois de pianistas legendários como Glenn Gould, Maurizio Pollini, Peter Serkin, Peter Hill e Herbert Henck também terem gravado essa mesma integral. Diferentemente de Glenn Gould, por exemplo, que gravou uma versão dessa mesma integral com uma leitura mais inflexionada à introspectividade, Paul Jacobs é mais fiel às intenções que Schoenberg deixou anotadas na partitura. Além do mais, a maioria dos LP's da fase Nonesuch de Jacobs vem com primorosos ensaios escritos pelo próprio pianista.

Schoenberg, ao lado da maestrina e compositora Nadia Boulanger, foi um dos educadores mais célebres do século 20, tendo sido professor de algumas dezenas de outros compositores célebres —— alguns nem tão célebres, mas importantes para disseminar o modernismo. Por onde quer que o inventor da música dodecafônica ensinasse, haviam muitos discípulos dispotos a segui-lo: ele teve alunos brilhantes em Viena (nas décadas de 1910 e 1920), Berlim (1924-1933) e em Los Angeles (1936-1944), onde se exilou por causa da Segunda Guerra e viveu o restos dos seus dias. Curiosamente, Schoenberg seria tutor até mesmo de revolucionários que seguiriam por caminhos rivais e independentes e também seriam base para outras escolas influentes tais como Leon Kirchner, Lou Harrison e John Cage, alunos de Schoenberg em Los Angeles: John Cage, por exemplo, começa a carreira sendo influenciado pelo dodecafonismo, mas estabeleceria uma diretriz conceitual independente que o levaria a empreender seus próprios experimentos e conceitos reducionistas já totalmente distantes do formalismo serial e matemático que a técnica dodecafônica apresentara ao mundo. Paralelamente, Anton Webern e Alban Berg, os dois alunos mais célebres de Schoenberg, também seriam grandes educadores e também teriam seus alunos e seguidores. Esses três compositores fizeram escola e formam, então, o tripé de base para o que se convencionou chamar de Segunda Escola de Viena, em torno da qual a música moderna de fato se formalizou e se expandiu. Nestes álbuns indicados acima, o pianista alemão Steffen Schleiermacher nos mostra um interessante apanhado de peças escritas pelos alunos, pupilos e seguidores de Schoenberg, Alban Berg e Anton Webern, evidenciando, portanto, um caleidoscópio das relações e correlações musicais dessa grande escola que moldou a música erudita moderna. Nem todos esses alunos seguiram à risca os modelos dodecafônicos-seriais desenvolvidos por esse tripé de tutores, mas todos eles foram enormemente influenciados por essa escola. Música é matemática e sentimento em formas de sons, e Schoenberg e seus alunos comprovaram matematicamente que as possibilidades de cores harmônicas cromáticas desenvolvidas durante 400 anos de música consonante —— a contar dos séculos 16 até o século 19 —— de fato se expandiram a ponto de se saturarem. Assim, as expansões permutativas da Segunda Escola de Viena foram, verdadeiramente, fundamentos sólidos inovadores a substituir os fundamentos clássicos da Primeira Escola de Viena protagonizada por Mozart, Beethoven e Brahms, influenciando direta e indiretamente praticamente todos os compositores modernos do século 20. E esta série de álbuns com peças para piano de Schoenberg, Webern e Berg e alguns dos seus alunos só ratifica essa enorme influência.

Esta obra seminal foi composta por Schoenberg em 1912 a partir de uma encomenda da atriz e cantora Albertine Zehme: a ideia inicial era que Schoenberg compusesse um ciclo de lieder (canções para voz e piano) a partir de uma série de 21 poemas selecionados do escritor belga Albert Giraud. O que Schoenberg faz, então, foi trazer inspirações das canções do cabaré alemão —— usando um pastiche popular, portanto —— para o campo de um lied acompanhado de instrumentação compacta e desenvolvido sob harmonia atonal pré-dodecafônica, inflexionando essas "canções" com a declamação de versos poéticos de uma forma um tanto quanto incomum: uma mistura que inauguraria um novo estilo de expressão vocal chamado sprechstimme, técnica onde as entonações do vocalista transitam entre o canto e a poesia falada, uma abordagem que inovaria completamente o gênero do melodrama erudito dentro do repertório moderno. Ao longo dos anos, Pierrot Lunaire se transformaria na peça mais "popular" e influente de Schoenberg, tendo sido estreada até mesmo no teatro da Broadway, EUA, e tendo influenciado uma legião de compositores do século 20 —— de Kurt Weill à Pierre Boulez, a grande maioria dos compositores modernos do século 20 passaram a criar obras similares e a citar Pierrot Lunaire como uma inspiração indelével em termos de peça moderna para voz e instrumentos. A cantora lírica Christine Schäfer ganhou grande notoriedade a partir deste álbum. Uma obra vocal essencial no repertório do século XX.
O Concerto para Violino Opus 36 foi concluído por Schoenberg em 1936, sendo, portanto, uma obra que já prenuncia sua fase tardia, que é quando ele imerge no movimento do neoclassicismo, muito em voga na França e nos EUA. Esse concerto para violino foi composto por Schoenberg numa fase em que ele —— fugindo do nazismo, pois ele era austríaco de descendência judaica —— acabara de se mudar da Alemanha para os EUA, e portanto coincide com um período em que ele começa a revisitar os elementos clássicos e românticos e até voltar-se um pouco mais para a harmonia tonal, mesclando passagens atonais com passagens consonantes. Schoenberg compõe, então, seu concerto para violino usando a harmonia dodecafônica, mas também se inspira em aspectos desse movimento neoclássico, com diversas passagens em que a peça ruma para momentos majestosos e brilhantes com reminiscências melódico-tonais implícitas em contrastes com outros momentos mais ruidosos e puramente atonais, sem subtrair nada da sua densa carga expressionista. Esta versão acima com o violinista alemão Rolf Schulte e o legendário maestro americano Robert Craft é um tanto densa e confere a essa peça traços de uma rusticidade mais ruidosa e visceral em relação as interpretações e leituras mais polidas de outros violinistas e outros maestros, algo que acentua ainda mais o caráter vanguardista desse concerto para violino. O álbum também vem recheado com o oratório A Survivor from Warsaw Opus 46 (1947), obra vocal composta por Schoenberg em sistema atonal dodecafônico.

Alban Berg, também austríaco, foi um dos alunos mais célebres de Schoenberg e representa um passo adiante rumo ao dodecafonismo serial. Curiosamente, porém, sua música soa menos perigosa aos ouvidos românticos do que, por exemplo, a música de Anton Webern, talvez o aluno mais radical de Schoenberg. Em obras orquestrais, Berg costuma soar com orquestrações menos sombrias e mais cintilantes e brilhantes: seu atonalismo soa, por vezes, idílico, onírico, cheio de contrastes e citações. Este álbum acima gravado com Cláudio Abbado à frente da fantástica London Symphony Orchestra em 1971 traz três obras emblemáticas desse compositor: Lulu Suite (1935, inacabada...), Altenberg Lieder Opus 4 para voz e orquestra (1912), e Três Peças para Orquestra (Drei Orchesterstücke) Opus 6 (1915). A obra Três Peças para Orquestra Opus 6 é uma daquelas composições de transição entre os aspectos românticos e impressionistas e os aspectos modernistas, de fato. Enquanto a Lulu Suite é uma versão instrumental resumida da ópera Lulu que o compositor deixou inacabada em 1935, assim que faleceu. Tirando o tema vocal "Lulu's Song" —— canção central da peça entoada pela mezzo-soprano ——, a Lulu Suite é uma versão com apenas as partes instrumentais da ópera, uma peça serialista de grande requinte orquestral e com grande soma de detalhes: destaque, por exemplo, para a faixa "IV. Variations", onde temos humorísticas citações de um tema popular em meio aos entrelaces orquestrais modernistas, um paralelo ao que Charles Ives vinha fazendo (vide "Three Places in New England", estreada em 1929) e um prenúncio ao irônico poliestilismo que o compositor russo Alfred Schnittke desenvolveria.

Aqui o maestro Daniel Barenboim, à frente da Staatskapelle Berlin e do Chor der Deutschen Oper Berlin, traz uma ótima versão da ópera Wozzeck, concluída por Berg em 1922. Trata-se de uma obra que é considerada a grande ópera da música dodecafônica das primeiras décadas do século 20 —— considerada, aliás, a primeira grande ópera a ser composta em estilo vanguardista atonal. Usando como inspiração a peça de teatro "Woyzeck", do dramaturgo alemão Georg Büchner, Alban Berg também recheia a peça de diversos atos, efeitos e motivos dissonantes que dão vida aos personagens e denotam estados de espírito ligados ao militarismo, à insensibilidade humana, à exploração social e ao sadismo, deixando latente a influência que os aspectos da Primeira Guerra Mundial teve sobre a alma criativa do compositor —— aliás, é conhecido que entre 1915 e 1918 Berg servira ao exército alemão em um posto administrativo, ofício que lhe privou de lutar no front, mas lhe fez estar por dentro das atrocidades da guerra. Berg compõe essa ópera sem indicações de tons nas claves e suas abordagens para os personagens-vocalistas se inspiram, afinal, na estética do melodrama com o uso da técnica vocal chamada sprechstimme, explorada anteriormente por Schoenberg em seu inovador ciclo de "lieder" Pierrot Lunaire.

E este álbum acima é um daqueles clássicos indeléveis, um exemplo perfeito das expressividades e dinâmicas de Berg, tendo uma irretocável interpretação do seu Concerto para Violino (1935), uma das peças para violino mais tocadas desde sempre. O concerto inicia com o violinista emitindo um tema formado pelas notas das quatro cordas soltas sol-ré-lá-mi do violino —— algo que dá um tom inicial de sol menor melódico ——, e a partir desse arpejo vai desenvolvendo os contrastes entre consonâncias e dissonâncias numa esquematização serial mista de tonalidade e dodecafonia, onde o jogo de cromatismos e tons inteiros, os enxertos de citações de temas de outras peças e o uso do criptograma de B-A-C-H —— que correspondem à sequência de notas B (B ♭) – A – C – H (B ♮), em referência ao compositor barroco Johann Sebastian Bach —— forjam as linhas melódicas e os contrastes harmônicos da peça. Ademais, este álbum compilativo acima ainda traz o Kammerkonzert für Klavier und Geige mit 13 Bläsern (Concerto de Câmara para Piano e Violino com 13 Instrumentos de Sopro), peça concluída em 1925. Este emblemático Chamber Concert também contém vários esquemas seriais matemáticos, além do uso de criptogramas harmônicos que Berg elaborou a partir dos nomes dos seus colegas Arnold SCHönBERG (ADE ♭ – CBB ♭ -EG), Anton weBERn (AEB ♭ – E) e do seu próprio nome AlBAn BErG (AB ♭ – AB ♭ – EG). Ambas as peças dispostas no CD remasterizado foram gravadas em 1959: o Concerto para Violino foi gravado pelo violinista Isaac Stern e o maestro Leonard Bernstein à frente da New York Philharmonic; e o Concerto de Câmera foi gravado pelo maestro Claudio Abbado à frente de um conjunto formado por Isaac Stern (violino), Peter Serkin (piano) e mais 13 instrumentistas membros da London Symphony Orchestra.
A música radical de Anton Webern é um passo adiante da música do seu mestre Arnold Schoenberg e seu colega Alban Berg, todos compositores austríacos que fundaram a chamada Segunda Escola de Viena, escola que deu origem à música de vanguarda no início do século 20. Se Schoenberg inicia as séries dodecafônicas no campo da harmonia, Webern irá levar esse procedimento de criar séries para quase todos os elementos da música: estrutura, tom, ritmo, tessitura, timbre, dinâmica, articulação, linha melódica, contraponto..., criando uma música sempre formalista, esquemática, complexa e de desafiadora audição abstrata. Não à toa, Webern é considerado um dos protagonistas do expressionismo abstrato que exploraria dos serialismos mais intricados aos mais reducionitas, e, ao mesmo tempo, é considerado um precursor do movimento da Nova Complexidade, que será protagonizada na segunda metade do século 20 por compositores britânicos tais como Brian Ferneyhough, Michael Finnissy e seus pares. E um dos seus seguidores mais fiéis foi justamente Pierre Boulez, que é considerado um dos seus sucessores na evolução do serialismo integral, evoluindo para um serialismo altamente esquemático, detalhista, matemático e de escuta igualmente desafiadora. Não à toa, Boulez chegou a gravar, como maestro, boa parte da obra orquestral de Anton Webern, além de criar arranjos orquestrais de suas peças escritas para piano, trios e quartetos, faceta que pode ser atestada nesta compilação acima editada pela Deutsche Grammophon em 2000. Na verdade, para lançar esta compilação acima, Boulez atua não apenas como maestro e arranjador, mas como um organizador, um curador, já que ele seleciona, também, peças anteriormente gravadas por quartetos de cordas (com o Emerson String Quartet) e outros ensembles, afim de constituir uma compilação mais fiel à completude de Webern. O repertório inclui desde a Passacaglia para Orquestra Op. 1 (1908), essa com Webern ainda soando dentro da estética do romantismo tardio a La Brahms, passa por obras já seriais como a Five Pieces for Orchestra (1913), inclui arranjos e orquestrações das complexas peças originalmente escritas para quartetos de cordas, inclui sua produção camerística, inclui algo da sua produção para piano, passa por sua produção vocal, e segue adiante com obras para duos de cello e violino com piano... O box set vem com 6 CD's e oferece um paronama mais do que essencial para compreender a profundidade da obra dessa importante figura da música moderna!

O ciclo de obras para trios e quartetos de cordas de Webern é um primor à parte, pois é nessas obras que conseguimos observar sua evolução do romantismo tardio para o expressionismo abstrato com mais clareza. O álbum começa com a melódica e doce peça Slow Movement (1905), peça ainda em estética romântica tardia (com ecos, aliás, da Verklarte Nacht de Schoenberg), passa por sua evolução dodecafônica com Five Moments for String Quartet Op.5 (Fünf Sätze, de 1909) e "Six Bagatelles" Op. 9 (1911/13), e termina com a String Quartet Op.28 (1936-39), peça dodecafônica mais palatável e meditativa que utiliza tretacordes inflexionados sobre o tarimbado criptograma motívico de BACH (B ♭ , A , C, B ♮ ), sendo essa a última peça de câmera escrita pelo compositor. Embora na compilação que indico acima (empreendida por Boulez) essas obras estejam inclusas sob a interpretação do Emerson String Quartet, e embora diversos outros quartetos tenham gravado essa integral de Webern —— como o excelente Aditti Quartet, por exemplo ——, essas interpretações com o Artis Quartett Wien conseguem ser, na minha opinião, um tanto superiores em termos de timbre, vigor e expressividade.
O compositor alemão Hanns Eisler (1898-1962) foi outro dos alunos de Schoenberg e Webern que teria um papel de destaque no cenário mundial, apesar de hoje em dia não ter suas obras executadas com tanta frequência quanto as obras dos seus pares da Segunda Escola de Viena. Eisler ficou conhecido por ter composto o hino da antiga República Democrática Alemã (Alemanha Oriental) e por suas associações com o dramaturgo Bertolt Brecht (após o término da parceria de Brecht com Kurt Weill), mas tem uma recheada carreira marcada por canções e peças escritas sob as mais variadas temáticas e formas composicionais que vão do romantismo tardio ao atonalismo serial, passando pelo neoclassicismo e sofrendo até influências do agitprop russo, do realismo socialista e do conceito alemão de "música utilitária" (gebrauchsmusik), tendo adotado certo humor brechtiano e certo teor panfletário comunista em muitas das suas peças. Já a partir de 1933, as composições de Eisler e a poesia de Brecht foram proibidas pelo Partido Nazista e ambos os artistas foram para o exílio: Brecht se estabeleceu em Svendborg, Dinamarca, e Eisler viajou por vários anos e estabeleceu estadias em vários países, trabalhando em Praga, Viena, Paris, Londres, Moscou, Espanha, México e também Dinamarca. De certa forma, a música de Eisler também capta, em sua totalidade, um tanto dessa carreira nômade, com muitos contrastes e humores, sendo um dos compositores serialistas a adotar certa maleabilidade ao deixar-se influenciar por diversos gêneros de arte e de música popular, incluindo influências que iam da música de cabaret ao jazz das décadas de 1920 e 1930. Nesta série de álbuns compilativos acima, lançados nas décadas de 80 e 90 e dispostos no Spotify sob o selo Berlin Classics, temos boa parte do mosaico criativo desse compositor que foi um dos mais fervorosos adeptos do comunismo: as compilações estão divididas entre "obras orquestrais", "canções", "obras para câmera", leader, obras para coro vocal e etc. Ademais, outra faceta criativa que vale a penas investigar com profundidade é sua carreira como compositor de trilhas sonoras para teatro e filmes, tendo composto trilhas para dezenas de produções e tendo sido indicado duas vezes ao Oscar pelas trilhas dos filmes "Hangmen Also Die!" (com roteiro de Bertolt Brecht e direção de Fritz Lang, lançado em 1943 no Brasil e em Portugal sob o título "Os Carrascos Também Morrem") e "None but the Lonely Heart" (1944). Eisler é um daqueles compositores cosmopolitas que, por razões mercadológicas e capitalistas, ficou sitiado numa penumbra entre a genialidade e a subestimação.

O compositor austríaco Hans-Erich Apostel (1901-1972) estudou com Arnold Schoenberg de 1921 a 1925 e com Alban Berg de 1925 a 1935, também sendo uma figura importante da Segunda Escola de Viena e, posteriormente, sendo um dos professores a replicar os fundamentos dessa escola. Nos anos em que decorreram as agruras da Segunda Guerra e as perseguições nazistas, Hans-Erich Apostel foi um dos compositores acusados de fazer música indecente e arte degenerada aos ouvidos puristas do nazismo germânico, prontamente tendo suas obras proibidas de serem executadas. Nessa fase, Apostel se dedicou a ser professor, pianista acompanhante, editor e regente de música contemporânea na Áustria, Alemanha, Itália e Suíça, sendo responsável por estrear e publicar várias obras dos seus pares —— ao menos as obras que ainda não tinham sido censuradas. Após a Segunda Guerra Mundial, Apostel fundou a Gesellschaft für Neue Musik (Sociedade para Música Nova) em Viena e foi seu presidente de 1947 a 1950. Em seguida passa a atuar como editor e revisor na Universal Edition (que até hoje publica suas músicas), sendo o responsável pelas novas edições de Wozzeck (1955) e Lulu (1963) de Alban Berg. Sua obra autoral, propriamente dita, só começou a ter mais projeção a partir do final do século 20, muito por causa da repressão inicial que impossibilitou suas peças de serem executadas e repercutidas. As composições Hans-Erich Apostel demonstram sua particular afinidade com as artes, principalmente com a poesia simbolista e a pintura expressionista, tendo sido amigo de artistas tais como o pintor Emil Nolde, os poetas e dramaturgos Oskar Kokoschka e Alfred Kubin, e diversos outros artistas. De certa forma, conseguimos sentir verdadeiramente como sua música ainda faz uso de ecos classicistas e românticos, mas o faz com sombreamentos turvos e com uma gritante subjetividade que já anseia para inflexionar-se sob um brumoso expressionismo abstrato. Este álbum acima evidencia isso. O álbum começa com seu Réquiem Op.4 para coro de 8 vozes e orquestra (1937), com texto de Rainer Maria Rilke, que traz ainda certo sentimentalismo romântico conflitando com dissonâncias dodecafônicas e segue-se com a Variação sobre um tema de Joseph Haydn Op.17 para orquestra (1949), que é um exemplo perfeito de como o compositor inflexiona, deforma e transforma os delineamentos classicistas em formas abstratas atonais. Segue-se peças como Fischerhaus Serenade op.45 (para 4 sopros, 3 metais e quinteto de cordas), de 1971, e Sinfonia de Câmara op. 41 (5 andamentos para orquestra), de 1965-67, as quais já evidenciam um serialismo mais distante da sua veia expressiva inicial. E, por fim, o álbum termina com sua Passacaglia Op.50, de 1972, que inflexiona a forma barroca da passacaglia através de uma dissonante orquestra de cordas: nessa peça os delineamentos recebem variações sobrepostas entre as camadas dos violinos e violas e repetições dessas variações na linha do baixo com os cellos e contrabaixos, enquanto há alguns contrastes mínimos de sopros e harpas intervindo aqui e ali. Hans-Erich Apostel, enfim, foi um dos compositores que descobri muito posteriormente após já estar familiarizado com o repertório dodecafônico, um compositor que me soou poético e profundo, uma prova de que essa dodecafonia inicial ainda era munida de sentimento.

O compositor austríaco, naturalizado americano, Ernst Krenek (1900-1991) é outro dos nomes menos lembrados da Segunda Escola de Viena, mas com uma carreira rica e prolífica. Inicialmente ele se associa com músicos como Ferruccio Busoni, Hermann Scherchen e Eduard Erdmann, mas posteriormente ele estuda com Arnold Schoenberg e estabelece uma longa relação com a técnica dodecafônica, sendo um dos pioneiros do serialismo. Seus primeiros trabalhos são escritos ainda em atonalidade livre num estilo altamente individual, como se pode atestar na ópera cômica "Der Sprung über den Schatten" ("Der Leap over the Shadow"), obra concluída em 1924 já dentro do gênero zeitoper com paródias sobre o expressionismo, a psicanálise e inspirações no jazz. Essa sua primeira ópera já prefigurava, aliás, a sua mais famosa obra do gênero, o zeitoper "Jonny spielt auf" (1927), que tem como protagonista um músico negro de jazz: essa peça emblemática foi um sucesso absoluto na transitória República de Weimar na passagem da década de 1920 para a década de 30, mas começou a ser duramente censurada com a chegada do Partido Nazista no poder. Junto a Kurt Weill, Ernst Krenek é considerado, então, um dos maiores nomes desse gênero conhecido como zeitoper, um gênero de ópera curta quase sempre com teor no cômico e no satírico. Em 1937, com a anexação da Áustria pela Alemanha Socialista, Krenek muda-se para os EUA e fixa residência em Nova Iorque, lecionando no Vassar College, em Poughkeepsie, e sendo convidado para lecionar e palestrar em diversas outras universidades americanas. Nessa fase, entre os anos 30 e 40, Krenek chegou a ser fortemente influenciado pelo neoclassicismo de Stravinsky, mas manter-se-ia, também, fortemente associado com a técnica dodecafônica. Em seu retorno à Alemanha, em 1950, Krenek seria um dos grandes pioneiros do serialismo e da música eletroacústica, associando-se logo com o inovador Studio für Elektronische Musik, em Colônia, e ficando conhecido por ser o principal difusor dos sintetizadores Buchla. A obra de Ernst Krenek apresenta, pois, um cosmopolitismo que se nutriu de vários gêneros e subgêneros: romantismo tardio, técnica dodecafônica, zeitoper, jazz, cabaret, teatro, neoclassicismo (muito inspirado por Schubert), música aleatória, técnicas estendidas, música eletroacústica e diversas outras inspirações. Sua obra, contudo, não chegou a firmar-se nas tendências panfletárias e no conceito de "música utilitária" como aconteceu nas obras de, por exemplo, Hanns Eiler. Aqui neste post, deixo essa introdução biográfica para que o ouvinte se disponha a encontrar essas suas óperas iniciais por conta própria, uma vez que aqui já indiquei bastante peças do gênero através dos álbuns de Hanns Eisler e Kurt Weill. Portanto, aqui dou ênfase nas suas obras mais fundamentalmente serialistas. A peça vocal Sestina (com texto dele próprio) Op.161 para soprano a 8 instrumentos (1957) marca exatamente a fase onde Krenek inicia o uso intensivo da composição serial, uma extensão da técnica dodecafônica: o compositor compõe a peça baseando-se na sextina, um dos sistemas estróficos da poesia, e numerando as linhas de tons desenvolvidas por pares de hexacordes, variando essas linhas de tons em séries permutativas. Segue-se, no álbum acima, sua peça 5 Pieces for Trombone and Piano Op.198 (1967), composta para ser estreada na própria gravação deste álbum: nesta peça o compositor mostra certa influência dos conceitos aleatórios dadaístas ao sugerir que o trombonista e pianista apresentem curiosas intervenções de técnicas estendidas incluindo curiosos vibrações, estalos e golpes de língua, remoção de válvulas do trombone, trinados, latidos, pigarros, sacudir um plástico no meio da peça, manusear o sino e raspar o sino ou outro objeto nas cordas do piano, entre outras intervenções. E, por fim, o álbum finaliza para a sua peça serialista "Flute Piece", em nove fases para flauta e piano, Op.171 (1959), que também sugere intervenções aleatórias de técnicas estendidas. Este registro, lançado pela Baroque Records, é um histórico documento dessa pioneira fase serialista que Krenek engrenou entre meados dos anos 50 e 60.

Neste álbum acima temos as peças serialistas já em desenvolvimentos maduros de Ernst Krenek, numa fase onde ele já tinha retornado aos Estados Unidos e já se estabelecera como um dos principais ases do serialismo integral, agora já sendo influenciado pelos conceitos de aleatoriedade e indeterminismo encabeçado por John Cage e seus pares. Essa intersecção do seu vocabulário serial integral com conceitos da música aleatória ficou ainda mais patente em obras como como Horizon Circled (1967), From Three Make Seven (1960-61) e Fibonacci-Mobile (peça de 1964, que, além da dodecafonia usa a base matemática de Fibonacci e princípios aleatórios). "Horizon Circled" é um termo que caracterizaria não apenas sua música dessa fase, mas todo o seu contexto de ideário musical já maduro em termos de bagagem e experiências, algo que ele expressou em seu livro Horizons Circled: Reflections on my Music (1974). O álbum acima registra obras exatamente dessa fase. Segue-se a peça Von vorn herein (1974) para uma pequena orquestra de câmera e sintetizadores, mas que no álbum acima é registrada com piano acústico sendo abordado com tratativas estendidas. As peças são conduzidas pelo próprio compositor. Essas gravações são interessantes porque foram as primeiras gravações dessas pioneiras peças que marcam esse encontro do serialismo integral com os conceitos de indeterminismo e aleatoriedade, misturando escritas seriais altamente formalistas com conceitos livres, improvisativos e estendidos de se fazer arte musical. Por essas obras altamente criativas e outras, Krenek é um daqueles compositores que merecem maior visibilidade!
Neste álbum acima temos um interessante exemplo de uso do órgão em composições dodecafônicas e serialistas. E Krenek foi um dos compositores de vanguarda que se interessaram pelo instrumento, principalmente em sua fase serialista madura dos anos 60 e 70. Particularmente, aliás, considero que o órgão dá até uma certa dramaticidade de mistério e ludismo para as linhas de tons e acordes dissonantes dessas peças seriais, as quais, em outros instrumentos ou com ensembles, soariam naturalmente mais "frias" —— até porque uma das máximas da maioria dos compositores seriais é não ficar refém da temática ou do sentimento, ainda que essa não seja uma regra intransponível aplicada a todos ou por todos os compositores. Nem todos os opus executados no álbum acima foram escritos exclusivamente para o órgão: é caso da Sonata for viola solo Op.92 No. 3 (1942), que o compositor também transcreveu numa versão para órgão; e é o caso dos 10 Pequenos Prelúdios para Coral Op.211, transcritos também para órgão. Segue-se a Suíte Quatro Ventos Op.223, a peça Orga-Nastro Op.212, a Sonata for Violin and Organ Op.231 231 para violino e órgão e a peça de Opus 239 para trompa e órgão. Os músicos são Martin Haselböck (órgão), Ernst Kovacic (violino), Jeff von der Schmidt e Kurt Martin (trompa). Aos que, como eu, aprecia peças modernas para órgão, este álbum, assim como os registros com peças para órgão de Messiaen, vem muito a calhar!

O compositor francês Edgar Varèse (1883-1965) foi um gênio futurista que revolucionou os conceitos de efeitos timbrísticos, uso timbrístico da percussão através de rítmicas livres, orquestrações luminosas lapidadas com "massas sonoras", inspiração na poesia concreta e também foi um fundador da música eletrônica, tendo inspirações direta na física molecular e quântica dos sons no espaço tempo. Varèse foi um dos primeiros compositores a usar instrumentos eletrônicos como um fator timbrístico em suas composições: as suas aplicações do teremin e do ondas maternot, dois dos primeiros instrumentos eletrônicos, já eram precursoras desde os anos de 1920 e 1930. Varèse, contudo, escreveu pouco e teve muitas das suas primeiras composições dos anos de 1900 e 1910 perdidas em um incêndio em seu depósito na França, mas foi muito inovador a partir da década de 20. Sua obra completa não ultrapassa mais do que 3 horas de duração, mas trata-se de um repertório genial de obras que influenciaram praticamente a todos os compositores concretistas, pós modernistas e espectralistas. Frank Zappa, por exemplo, foi um dos gênios que se inspiraram em Varèse pelas vias do uso timbrístico da percussão. E, mais tarde, compositores do final do século XX que foram responsáveis pelas inovações da "música espectral" e da "música computacional", tais como Gérard Grisey e Kaija Saariaho, também enfatizariam a grande influência de Edgard Varèse. Neste compêndio acima, temos um projeto empreendido pelo grande maestro Riccardo Chailly —— na minha opinião um dos cinco maiores maestros dos últimos tempos, com capacidade de dar versões grandiosas tanto para o repertório clássico-romântico como para o repertório moderno-contemporâneo —— à frente da Royal Concertgebouw Orchestra e do Asko Ensemble. Com a Royal Concertgebouw Orchestra, inclusive, Riccardo Chailly expandiu sobremaneira o repertório contemporâneo dentro do rol das gravações aclamadas, estabelecendo um contrato de mais de três décadas com a Decca. Neste álbum acima, Riccardo Chailly aborda as peças de Varèse usando edições cirúrgicas de Antony Beaumont (musicólogo, copista, revisor, maestro alemão, especialista em música moderna) e Chou Wen-chung (compositor sino-americano que foi mentorado pelo próprio Varèse em boa parte da sua carreira): a versão orquestral da peça Un grand sommeil noir (canção com voz e piano, escrita em 1906), a leitura do poema sinfônico Arcana (1927-32), dos arranjos de "Amériques" (1921), obra para orquestra e sirenes que Varèse escreveu inspirado pela cacofonia da cidade de Nova Iorque (de quando ele se mudou para os EUA), e a versão da peça "Ecuatorial" para vozes, piano, órgão, ondas martenot, percussão e ensemble são fulgurantes, luminosas, vigorosas, e estão entre as mais impressionantes interpretações da essência timbrística de Varèse. Riccardo Chailly também inclui, entre essas e outras obras, sua versão para a pioneira peça para percussão "Ionisation" (1929-31) e as pré-gravadas versões histórias de Déserts para orquestra e fita magnética e Poème Électronique (1958), precursoras peças eletrônicas que foram influências incontestes entre os concretistas. Riccardo Chailly, enfim, é responsável por três premières aqui neste registro: pela estreia mundial da gravação da versão revisada de "Amériques" e pelas estreias mundiais das peças "Turning Up" e Dance for Burgess. Esse é o retrato mais completo e luminoso da música de Edgard Varèse que você encontrará!
Ao lado do expressionismo, o futurismo foi um dos primeiros movimentos generalizados de vanguarda a se rebelar contra o sistema e a dominar todas as artes no início do século 20, tendo na Itália seu principal nascedouro. Ora, isso porque a Itália vivera séculos de apego à tradição clássico-renascentista e quando a modernidade dessa fase de pós Revolução Industrial dominou o país, os jovens artistas dessa geração passaram a não mais suportar esse tradicionalismo, pregando uma derribada de todos os valores culturais e tudo o que tinha haver com as tradições clássicas e estabelecendo um novo paradigma de inovações em todos os tipos de arte: escritores, poetas, arquitetos, pintores, músicos, compositores, dramaturgos, coreógrafos e artistas italianos de todos os gêneros passaram a se autodenominar futuristas e mostraram enorme frustração com a sensação de que a Itália estava atrasada em relação ao restante da Europa, estava ainda presa ao passado, estagnada em tradições e museus —— essa virada de paradigma cultural foi tão relevante que até a tradicionalíssima cozinha italiana sofreria mudanças em seus cardápios, com novas diretrizes gastronômicas que pregariam até a substituição dos tradicionais pratos de massas por novos sabores e novas combinações. Nas artes, como um todo, vários manifestos de grupos de futuristas organizados foram impressos e divulgados: caso do "Manifesto Futurista" publicado pelo escritor Filippo Tommaso Marinetti no jornal francês Le Figaro em 20 de fevereiro de 1909, e caso também do "Manifesto dos Músicos Futuristas" publicados pelos compositores Francesco Balilla Pratella (1880-1955) e Luigi Russolo (1885-1947) no ano seguinte. Na música, aliás, Pratella e Russolo não apenas defenderiam que os músicos começassem a ter uma educação livre e uma produção musical iconoclasta, experimental, e abandonassem os conservatórios e seus valores clássicos —— entre outras rebeldias! ——, mas eles foram sobretudo precursores na derribada dos padrões da harmonia clássica e na difusão dos ruídos urbanos e eletrônicos como novos ingrediente dessa nova música moderna que nascia, atuando em paralelo ao expressionismo alemão no advento de uma nova música que fosse condizente com as modernidades do tempo presente. O futuristas foram, de fato, os primeiros precursores da música eletrônica, criando, eles mesmos, novos instrumentos e aparatos elétrico-eletrônicos que foram os precursores dos sintetizadores! E fora da Itália, o futurismo também foi muito bem aceito entre os músicos, compositores e artistas russos que já vinham se saturando com todos os velhos valores czaristas. E neste álbum acima, o diletante pianista Steffen Schleiermacher, um dos maiores pesquisadores do repertório moderno para piano, faz uma incursão nos ventos iniciais desse movimento. Ele inclui no programa as peças La Battaglia (1913) de Francesco Balilla Pratella, Les Chants de La Mi-Mort (1914) de Alberto Savinio, La Notte Alta (1917) de Alfredo Casella e Stati D'Animo (1923) e Profilo Sintetico Musicale di F.T. Marinetti (1924), ambas compostas por Silvio Mix. Moldadas por estranhas combinações de linhas melódicas e acordes (algo que na Rússia Roslavets chamou de "acordes sintéticos"), e desprezando as métricas e rítmicas clássicas, essas peças são o suprassumo da rebeldia e da radicalidade musical nesse período anterior ao protagonismo da técnica dodecafônica que Schoenberg encabeçaria.
A vanguarda artística da Rússia foi, inicialmente, tão ou mais revolucionária quanto a vanguarda europeia. O modernismo musical russo já desabrochava com vigor desde os anos finais de 1890, se tornando vigente nos anos iniciais de 1900 com os cromatismos sinestésicos de Alexander Scriabin (1871-1915) e as teorias modais de Boleslav Yavorsky (1877-1942), já colorindo a música com novas paletas dissonantes de cores mesmo antes de Arnold Schöenberg (1874-1951) expandir completamente o cromatismo para o serialismo dodecafônico e fundar a Segunda Escola de Viena: Roslavets (1881-1944), por exemplo, já compunha usando surreais hexacordes dissonantes e já idealizava um sistema novo de "acordes inventados", também chamados de "acordes sintéticos". Os compositores russos do início do século 20, então, já surgiam influenciados pelas ideias modernistas de Scriabin e Yavorsky, com muitos deles sendo verdadeiros experimentalistas e pioneiros do Movimento Futurista —— iniciado a partir do Manifesto Futurista na Itália, mas com forte adesão na Rússia e nos EUA. Assim, os anos de 1910 e de 1920 testemunharão grande liberdade criativa, com obras muitas das vezes tão —— ou mais ainda! —— modernas e revolucionárias quanto as obras do eminente futurismo italiano, do expressionismo alemão ou do surrealismo francês. Porém, na década de 1930, com a chegada de Stalin ao poder, a doutrina do Realismo Socialista forçaria todos esses compositores modernistas a limitarem-se esteticamente à sua cartilha doutrinária, interrompendo esse ímpeto criativo que rumava para uma total expansividade desse modernismo pós Segunda Revolução Industrial. Muitos desses futuristas fugiram do país —— caso de Nikolai Obukhov, Arthur Lourié, Stravinsky e tantos outros. Mas muitos ficaram e peitaram o regime com obras dissonantes e amargas aos ouvidos da política socialista, sendo instantaneamente condenados ao ostracismo, quando não eram presos nas gulags. E esta compilação acima, que ao todo totaliza cinco volumes, traz justamente algumas dessas composições modernistas criadas por alguns desses compositores russos adeptos ao futurismo do início do século XX, tendo obras de Mossolov (1900-1973), Roslavets (1881-1944), Goedicke (1877-1957), Krein (1883-1951), Gnesin (1883 - 1957), Kirkor (1910-1980) e Lev Knipper (1898-1974), com alguns deles tendo permanecido em solo russo mesmo tendo suas obras canceladas.
Ainda que Stravinsky (1882-1971) não seja um compositor de obras de audições das mais difíceis no campo harmônico —— mesmo em sua fase tardia, quando ele volta-se para o atonalismo dodecafônico ——, a exuberância da sua música é particularmente revolucionária nos campos das rítmicas e das combinações inéditas de naipes dentro das suas orquestrações, trazendo ao mundo moderno combinações rítmicas, combinações instrumentais e efeitos timbrísticos orquestrais sem precedentes já a partir dos seus três balés iniciais O Pássaro de Fogo (1910), Petrushka (1911) e O Rito da Primavera (1913), escritos quando ainda morava na Rússia para a revolucionária companhia de dança moderna Ballets Russes, do empreendedor artístico Serguei Diaguilev. Inicialmente influenciado pelo Futurismo Russo nos anos de 1910, e adotando a sina de criar inflexões cada vez mais exuberantes em suas rítmicas e arranjos em torno do folclore russo e da eminência dos primeiros elementos do jazz, Stravinsky logo seria um dos mais jovens compositores russos mundialmente famosos por seu estilo idiossincrático, intrincado e exuberantemente incomparável. Também sendo um dos pais do neoclassicismo moderno em sua estadia francesa, Stravinsky praticamente revoluciona os procedimentos revisionistas de ressignificação das inovações do passado clássico, inspirando inúmeros compositores dos mais modernistas a adotar tratativas similares de ressignificação. Em 1939 ele vai lecionar e morar nos EUA e lá é influenciado ainda mais pelo jazz e pela música de cinema, tornando-se uma referência na academia e no universo artístico americano. Posteriormente, contudo, Stravinsky voltar-se-ia mais para as dissonâncias do dodecafonismo, sem perder suas exuberantes combinações timbrísticas e rítmicas. Este box set indicado acima, The New Stravinsky Complete Edition, é o compêndio perfeito para atestar essa amplitude stravinskyana. O box set traz um conjunto de 30 CDs que a Deutsche Grammophon editou para lançar a mais completa coletânea das obras de Stravinsky já compilada. Você conseguirá comprá-lo nas plataformas de e-commerce (eBay, Amazon, Discogs e etc) por módicos 2.000 dólares... Para colecionadores e completistas, vale à pena!!!
O Concerto para Violino No.1 em ré maior Op. 19 de Prokofiev, iniciado em 1915 e concluído em 1917, é uma das obras de maior variabilidade de sentimentos, tons e humores da história da música erudita. Trata-se de uma peça que intercala ecos do romantismo com rompantes do modernismo, que traz contrastes entre lirismo e passagens altamente imagéticas com tons lúdicos e ares futuristas, ainda refletindo a fase inicial em que o compositor esteve fortemente influenciado pelo movimento futurista protagonizado por Lourié, Roslavets e companhia. A influência do futurismo na música de Prokofiev é melhor representada por seu Concerto para Piano N.2 Op.16 e pela peça Sarcasm for Piano Op.17, peças compostas entre os anos de 1913 e 1914. Nos anos seguintes, Prokofiev começa a suavizar os arroubos e as dissonâncias mais latentes do futurismo em suas obras, muito por causa das críticas que ele recebeu no Concerto para Piano No.2. Este seu Concerto para Violino N.1 é, pois, dessa fase e marca essa transição, mas ainda traz contrastes, contracenações, ironias, divertimentos e até certa jocosidade futurista com muitas mudanças de tons, de rítmicas e de ares ao longo de cada um dos três movimentos. Já o Concerto para Violino N.2 Op.63, concluído por volta de 1934-35, traz tons mais comedidos e passagens neoclássicas com certa profundidade tonal advinda de inflexões de excertos que Prokofiev coletou da música folclórica russa tradicional. Ambos os dois concertos estão entre os mais tocados do repertório violinístico. Essas leituras e interpretação com o maestro André Previn, a London Symphony Orchestra e o violinista Gil Shaham são equilibradas, claras, bem executadas e enfatizam bem os contrates citados. O álbum também traz a Sonata para Violino Solo Op.115, composta por Prokofiev sob uma encomenda do Comitê de Assuntos Artísticos da União Soviética que solicitou uma obra pedagógica para estudantes-violinistas talentosos.

O violinista americano Gil Shaham realiza aqui um trabalho verdadeiramente grande: de pesquisa e de interpretação. Ele viaja até a década de 1930 e nos desperta para o fato de que essa década foi incrivelmente rica em relação ao repertório de concertos para violino. Eclodira uma fase de miséria e incertezas com a Quebra da Bolsa de N.Y em 1929, mas a música não deixou de cumprir seu papel de evocar esperança. Shaham nos lembra que mais de 30 concertos de violino foram publicados ao longo dessa década de 1930, com mais de uma dúzia deles —— incluindo os concertos de Stravinsky, Alban Berg e os concertos icônicos de Barber e Britten aqui apresentados ——, ocupando um lugar de destaque no repertório dos grandes violinistas. Sendo um dos grandes virtuoses das últimas décadas, Shaham frequentemente combina generosidade de espírito, mentalidade humanista e conscientizadora com técnica violinística impecável, realizando trabalhos verdadeiramente divertidos e impressionantes. É o caso deste trabalho fantástico, onde o violinista nos presenteia com dois volumes em CD com gravações suas de alguns desses grandes concertos para violino compostos na década de 1930. O CD no.1 traz: o Concerto para Violino do compositor americano Samuel Barber, uma peça de arranjos modernistas inspirados nos sons de uma América já urbana, com certo imagetismo evocando, no último movimento, seus carros em trânsito congestionado, seus arranha-céus e sirenes; o Concerto para Violino de Alban Berg, lindamente harmonizado com a então eminente técnica dodecafônica; e traz, por fim, o Concerto Funebre do compositor alemão Karl Amadeus Hartmann Fúnebre, onde o violinista evoca bem o espírito angustiado e ocasionalmente raivoso da obra. O CD no.2 traz: o moderníssimo Concerto para Violino de Stravinsky numa interpretação luminosa e ao mesmo tempo dançante, enfatizando com leveza e clareza a rebusquês e as exuberâncias melódicas, rítmicas e harmônicas do compositor; e por fim segue-se o sombrio e tecnicamete desafiador Concerto para Violino do compositor inglês Benjamin Britten, que apresenta até certo contraste em relação aos outros concertos mais luminosos apresentados nos dois volumes dessa coleção por se tratar de uma peça que evoca certo drama marcial, necessitando de uma execução que enfatiza bem contrastes entre passagens enérgicas, violentas, misteriosas... com surreais bitonalidades e sobreposições de tons em vários momentos.

Neste álbum acima, Silver Age (Deutsche Grammophon, 2021), o celebrado pianista Daniil Trifonov dá um foco maior para peças emblemáticas do modernismo inicial russo, sequenciando tanto obras para piano solo como obras concertantes, bem como algumas transcrições: começa com a Serenade (1925) de Stravinsky, peça neoclássica que inflexiona a forma clássica da serenata com tons dissonantes e sombreamentos de música folclórica russa; segue com a moderníssima Sarcasm for Piano (1914), peça onde Prokofiev busca inovar na temática da ironia e do sarcasmo, nas estrutura de como as notas são distribuídas e na politonalidade dos acordes conflitantes; segue com a Sonata No. 8 (1944) de Prokofiev, que pertence ao ciclo das sonatas onde o compositor traz inspirações da Segunda Guerra, já adentrando o modernismo neoclássico; traz também instigantes transcrições para piano dos balés Passáro de Fogo e Petrushka, de Stravinsky; e termina o álbum com os Estudos, os Dois Poemas Op.32 (1902) e com Concerto para Piano em Fa# Op.20 (1896) de Scriabin. A abordagem pianística de Daniil Trifonov é interessante tanto na lógica com a qual ele escolheu o repertório, no sentido da intenção de mostrar esse modernismo pianístico russo inicial, quanto na execução virtuosística e imponente do mesmo, com um toque pianístico forte e ao mesmo tempo dinâmico que enfatiza bem os ataques, as acentuações e os contrates entre as intensidades, as velocidades e as poéticas.
Shostakovitch foi a síntese do modernismo musical russo moldado pelas exigências do realismo socialista. Mas essa diretriz não foi, de todo, por vontade própria. Foi, mesmo!, por imposição e sob reais ameaças de expurgo e até ameaças morte, algo que só não aconteceu porque Shostakovitch rapidamente se tornou o símbolo maior da música erudita russa já a partir da década de 1930. Por consequência, Shostakovitch mantém certo classicismo russo banhado com as influências folclóricas e proletárias, como bem exigido pela "polícia" cultural do regime, mas o faz com tons irônicos e até grotescos em muitas obras. Dessa forma, irônico e grotesco, Shostakovitch evocou vários momentos onde transcendeu seu modernismo musical para além das convenções socialistas, sendo prontamente criticado e até censurado por isso. É o caso da sua fantástica ópera "Lady Macbeth de Mtsensk". Essa ópera, composta entre os anos de 1930 e 1932, com libreto de Alexander Preis, é baseada no romance de Nikolai Leskov. A história se passa na Rússia do século XIX e narra a vida de Katerina Lvovna Izmailova, uma mulher infeliz em seu casamento com um comerciante mais velho e autoritário. Ela acaba se envolvendo em um caso amoroso com Sergei, um dos trabalhadores da propriedade. O relacionamento proibido leva a uma série de eventos trágicos, incluindo o assassinato do marido de Katerina. A culpa e o remorso assombram a protagonista, culminando em um final trágico. A peça é conhecida por sua abordagem ousada e realista, retratando temas como paixão, opressão, violência e moralidade, com Shostakovich utilizando-se de uma linguagem musical expressiva e intensa para transmitir as emoções dos personagens e a atmosfera tensa da história através de inflexões sobre elementos da música folclórica russa combinadas com técnicas modernas e dissonâncias. Com sua estreia ocorrendo em 1934 no Teatro de Ópera de Leningrado, atual São Petersburgo, "Lady Macbeth de Mtsensk" recebeu uma recepção inicialmente positiva, mas em 1936, após uma crítica negativa no jornal oficial Pravda, a ópera foi atacada e prontamente censurada pelo regime soviético: a música de Shostakovich foi considerada nocivamente "caótica" e "formalista" para os ouvidos proletários e a obra foi banida. E esse foi o episódio que, para o bem e para o mal, teve um impacto significativo na "liberdade" criativa de Shostakovich: a partir daí, então, o compositor manter-se-ia dentro das exigências do realismo socialista com um certo teor neorromântico, mas o faria adotando certo cinismo, certa ironia e certos ares grotescos e jocosos. Contudo, "Lady Macbeth de Mtsensk" ganharia enorme reconhecimento internacional nas décadas seguintes, sendo agora considerada uma das obras-primas do repertório operístico do século XX: é uma obra que desafiou as convenções e máscaras do regime socialista por oferecer uma visão crítica da sociedade e da moralidade, também se eternizando como um testemunho vivo da capacidade modernista e da coragem de Shostakovich ante as restrições impostas pelo regime soviético. Essa ópera nos faz perguntar o quão mais moderno Shostakovich soaria em suas obras posteriores se os demônios daquele regime ditatorial não tivessem lhe censurado e frequentemente lhe cerceado.

Os dois concertos para violino de Shostakovich já são obras que enfatizarão seu neorromantismo mais tardio, mas sempre evocando certa latência modernista aqui e ali. O Primeiro Concerto foi escrito em 1947-1948 e foi dedicado ao renomado violinista David Oistrakh, enquanto o Segundo Concerto foi composto em 1967 para o violinista Yehudi Menuhin. O Primeiro Concerto é mais modernista faz uso frequente do criptograma motívico DSCH: uma linha melódica, inspirada pelo motivo BACH, onde o compositor associa as letras iniciais do seu nome e sobrenome DMITRI SHOSTAKOVICH ao tetracorde formado pelas notas Ré, Mi bemol, Dó e Si natural, constituindo o criptograma D, Es, C, H (na notação musical alemã). Este seu Concerto para Violino No.1 começa a ser gestado depois da acusação de "formalismo" pela censura do regime e, portanto, ficou alguns anos escondido até ser efetivamente publicado em 1955 (após a morte de Stalin), sendo um exemplo perfeito, então, para se observar esse contraste eminente entre romantismo tardio e modernismo mais formalista, com passagens mais modernistas no seu segundo movimento, Allegro - Scherzo, que soa frenético numa sequência irregular de métricas. A peça é intensa e expressiva, com uma variedade de emoções e contrastes, sendo dividido em quatro movimentos: começa com um Nocturne lírico e introspectivo, segue por um Scherzo enérgico e virtuosístico e termina com uma Passacaglia sombria e melancólica construída sobre um tema cíclico, com um final cheio de energia e drama. Já o Segundo Concerto tem uma abordagem mais lírica e melódica, com uma atmosfera mais etérea e misteriosa, por vezes combinando passagens virtuosísticas com belas melodias. Neste álbum acima temos grandes interpretações desses dois concertos através do tato e do arco do violinista alemão Frank Peter Zimmermann. O violinista se destaca pelo vigor, pelo tom imponente e por dar uma versão mais veloz ao Concerto No.1 em relação a outras gravações de outros violinistas: isso porque ele segue exatamente as marcações de metrônomo e instruções de arco presentes no manuscrito original de Shostakovich, potencializando, ainda, as passagens mais virtuosísticas da peça. Já a interpretação de Zimmermann do Concerto No.2 é mais comedida e reflete o amadurecimento tardio do compositor. Não estão na lista dos meus concertos favoritos, mas vale aqui indicar pela expressividade de ambos. O brilhantismo e a capacidade improvisativa de Zimmermann nas cadências de ambos os concertos são notáveis!

O Concerto para Cello No.1 (1959) é um exemplo de como Shostakovich usa a ironia, o grotesco e a jocosidade para se opor as exigências estéticas do realismo socialista. O concerto, gravado após o Concerto para Violino No.1, também é marcados pela dissonância do já citado criptograma motívico DSCH e é inspirado Sinfonia Concertante de Prokofiev, tendo sido composto e dedicado exclusivamente para o cellista Mstislav Rostropovich. A peça nos traz sinuosidades que variam entre as inflexões sobre o criptograma motívico DSCH e inflexões sobre o tema melódico de "Suliko", canção preferida de Stalin, tema também usado por Shostakovich em sua cantata "Antiformalist Rayok": uma tratativa de Shostakovich que é, na verdade, uma sátira ao regime soviético e à censura do Realismo Socialista ao "formalismo", pratica que seria comum em suas obras a partir de então. Já o Concerto para Cello No.2 é marcados por contrastes entre motivos dissonantes e inflexões baseadas na cultura cancionista e folclórica russa, já trazendo um tom mais profundo, sombrio e menos frenético, algo já bem próximo do seu estilo tardio. Recomenda-se procurar a versão gravada por Mstislav Rostropovitch, concertista para o qual Shostakovitch dedicou tais peças. Mas os álbuns onde seu filho Maxim Shostakovich esteja envolvido como maestro também são altamente recomendáveis, pois trazem uma versão mais fielmente crua e menos romantizada desse concerto. O álbum acima com o violoncelista Heirinch Schiff e Maxim Shostakovich à frente da Orquestra Sinfônica da Rádio Bávara é altamente recomendável: essa versão foi, inclusive, premiada com o Grand Prix du Disque em 1985.

Há diversas versões fantásticas dessas peças de Gershwin disponíveis com outros grandes maestros por aí nas lojas e plataformas, mas estes dois discos (acima e abaixo), com as leituras da maestrina JoAnn Falleta são os mais indicados em minha opinião pela leitura brilhante, apaixonada, e por reunir mais essencialmente as peças de Gershwin num só contexto de gravações —— já presenciei diversos discos onde essas obras estão misturadas com outras obras de outros compositores, álbuns sem nenhum contexto discográfico. Gershwin ficou conhecido por hibridificar o popular com o erudito no âmbito da música essencialmente americana. Em resumo, as obras de Gershwin abordadas por Falleta —— Rhapsody in Blue, Strike Up the Band, Overture, Promenade e Catfish Row —— são exemplos notáveis da habilidade de Gershwin em combinar influências do jazz, da canção popular americana com a música erudita. Seu estilo único e cativante trouxe uma nova sonoridade para a música americana, estabelecendo-o como um dos compositores mais importantes do século XX. Rhapsody in Blue é uma das obras mais conhecidas e amadas de George Gershwin: foi composta em 1924 e estreou em um concerto intitulado "Experiment in Modern Music" no Aeolian Hall, em Nova York, no mesmo ano. A peça combina elementos do jazz e da música erudita, incorporando improvisação, uma sonoridade híbrida com inflexões sobre motivos populares, um solo de virtuosístico de piano e uma orquestração rica e colorida que reflete bem a modernidade americana tão caracterizada pelas big bands de jazz. Falleta nos apresenta, em seguida, a peça Strike Up the Band, que é uma opereta satírica composta por Gershwin em 1927, com letras de Ira Gershwin: uma que peça aborda temas políticos e sociais, utilizando o humor como uma forma de crítica, utilizando elementos do jazz e das marchning bands. Segue-se Overture, também conhecida como Cuban Overture: composta por Gershwin em 1932, após sua viagem a Havana, Cuba, peça que captura os ritmos, os metais, a percussão e a atmosfera vibrante da música afro-cubana. Temos ainda Promenade, que é uma peça curta para piano solo, composta por Gershwin em 1920: originalmente escrita sob influência do ragtime como uma peça de música incidental para a peça de teatro "Sweet Little Devil". E, por fim, temos a peça Catfish Row, uma suíte orquestral que Gershwin compilou em 1936 a partir de sua famosa ópera "Porgy and Bess": essa suíte apresenta trechos instrumentais selecionados da ópera, incluindo a famosa ária "Summertime", capturando a essência da história e dos personagens de "Porgy and Bess" através da riqueza do folclore afro-americano e da característica mistura de elementos musicais populares e clássicos que permeou toda a obra do compositor.
As gravações da maestrina JoAnn Falleta com foco nas obras de Gershwin são conhecidas pelo brilhantismo e por enfatizar bem as cores, os contrastes e os elementos que fizeram da música desse compositor um dos principais emblemas na criação de uma música erudita distintamente americana —— outros compositores antes e em paralelo, tais como Charles Ives e Aaron Copland, também são corresponsáveis por darem forma à "alma americana" no âmbito musical, mas Gershwin conseguiu conquistar as massas com um apelo mais populista. Neste álbum acima, Falleta segue abordando peças como Concerto in F, Rhapsody No. 2 e I Got Rhythm" Variations. O Concerto in F foi composto por Gershwin em 1925, sendo sua primeira incursão na forma de concerto para piano e orquestra, tendo sido estreado em dezembro de 1925, com o próprio Gershwin ao piano e Walter Damrosch conduzindo a New York Symphony Orchestra: seguindo o formato clássico-tradicional de três movimentos (Allegro, Adagio, Andante con moto e Allegro agitato), Gershwin explora um pianismo com ritmos sincopados, harmonias inovadoras com base em acordes de jazz e melodias inspiradas pela canção popular, tornando essa uma das suas obras que mais sintetizam o "estilo americano". A peça Rhapsody No. 2 foi escrita por Gershwin em 1931 como uma continuação de sua famosa Rhapsody in Blue: trata-se de uma peça vibrante e exuberante que combina elementos de jazz, do pianismo clássico ao estilo das rapsódias de Lizst e influências folclóricas americanas, apresentando variações temáticas em uma estrutura livre e improvisatória. Já as Variações sobre a canção "I Got Rhythm" foram compostas por Gershwin em 1934 como parte de seu musical Girl Crazy, sendo posteriormente orquestradas pelo arranjador Don Rose para um formato de orquestra popular ou big band, posteriormente recebendo arranjos também eruditos: trata-se uma série de variações virtuosísticas baseadas no tema da canção "I Got Rhythm" com Gershwin explorando uma variedade de estilos e técnicas tipicamente americanas, incluindo passagens rápidas, escalas cromáticas e improvisações jazzísticas, inflexionando o tema-canção numa emblemática peça instrumental.
Com um apelo menos populista mas tão ou mais emblemático que Gershwin, o compositor americano Aaron Copland (1900-1990) ficou altamente reconhecido por ser um dos responsáveis por criar uma música erudita tipicamente americana através de composições que incorporam inúmeros elementos do folclore americano —— elementos afros, indígenas, temáticas dos faroestes e afins —— num estilo de modernidade constituída de muitos contrastes e imagens sonoras, talvez sendo o compositor da primeira metade do século 20 que mais refletiu o patriotismo e a história americana no espectro musical erudito. Copland era, enfim, mais antenado com o neoclassicismo a La Stravinsky e, por vezes, se inspirava no avant-garde através de leves dissonâncias aqui e ali para colorir suas temáticas. No geral, a música de Copland adota um modernismo de inflexões claras e texturas cinematográficas, sem ter nenhuma intenção de chocar ou trazer modernismos polêmicos aos ouvidos experimentados: a única intenção é, mesmo, construir um panorama estritamente nacionalista para a música erudita americana. Para o leitor e ouvinte mais aplicado, vale a pena procurar pelas compilações e coletâneas de discos que a Columbia Records (CBS) lançou sob a alcunha de "Copland Conducts Copland", onde tem-se um panorama das principais obras deste mui importante compositor americano regidas e lideradas por ele mesmo. A peça "Appalachian Spring" (1944), por exemplo, foi composta como uma suíte para um balé de Martha Graham, sendo uma obra reconhecida por suas melodias inspiradas pelas canções populares dos Apalaches, oferecendo uma atmosfera evocativa e pastoral mui bem inspirada no folk e bluegrass americano. Já a peça "Fanfare for the Common Man" (1942) foi encomendada pela Cincinnati Symphony Orchestra como uma peça curta para comemorar o envolvimento dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial: trata-se de fanfarra marcada por tons de heroísmo e patriotismo caracterizada por uma cintilante orquestração que evoca as bandas militares de forma marcante e grandiosa. Já na suíte "Rodeo" (1942), Copland compõe um balé para Agnes de Mille que conta a história de uma garota do campo que deseja conquistar a atenção dos vaqueiros, apresentando inflexões sobre inspirações em dançantes melodias de cowboy e de danças de quadrilha americana. Outra peça emblemática de Copland é "Billy the Kid" (1938), uma suíte de balé que retrata a vida do famoso fora-da-lei do Velho Oeste americano, peça coreografada por Eugene Loring e também disposta de inspirações sobre canções populares e melodias de cowboy. A coletânea de discos indicada acima traz essas e várias outras peças deste compositor que tão profundamente captou as essências culturais dos Estados Unidos, incluindo peças onde o compositor se inspira nas influências latinas dos entornos do Texas, Nova México, Cuba e etc, e incluindo peças eruditas mais formais como suas peças para conjuntos de câmera e suas sonatas para violino, piano, flauta e etc. Essencial!

O clarinete foi um dos instrumentos protagonistas do jazz nos anos 20, 30 e 40, as primeiras décadas efervescentes do gênero. Neste álbum acima, temos alguns dos grandes concertos e peças escritas para clarinete por compositores eruditos que se inspiraram no jazz, algumas dessas peças escritas exclusivamente para Benny Goodman e Woody Herman, dois clarinetistas célebres do jazz que também tinham fluência na estética erudita. O álbum começa com a peça Prelude, Fugue And Riffs (1949) escrita por Leonard Bernstein para conjunto de jazz com clarinete solo e orquestra para ser interpretado pelo clarinetista Woody Herman, mas estreada posteriormente por Benny Goodman. Em seguida temos o Concerto for Clarinet, Strings and Harp de Aaron Copland, que apresenta uma estética lúdica do neoclássico americano, sendo uma peça escrita originalmente para o balé Pied Piper (1951), mas posteriormente adaptada para ser um concerto para clarinete. Segue-se a peça Ebony Concerto, que traz as exuberâncias timbrísticas e rítmicas características das inspirações jazzísticas de Stravinsky, sendo uma peça originalmente escrita também para Woody Herman e sua big band, em 1945. Segue-se a peça Derivations For Clarinet And Band (1955) escrita por Morton Gould exclusivamente para Benny Goodman. E, por fim, temos Constrasts (1938), peça para piano, violino e clarinete que Bela Bartók escreveu em resposta a uma carta do violinista Joseph Szigeti, embora a peça tenha sido oficialmente encomendada pelo clarinetista Benny Goodman. Gravações históricas!
Carl Orff (1895-1982) é daqueles compositores do século 20 em que sua principal obra é muito mais popular do que seu próprio nome. Isso porque sua fantástica cantata "Carmina Burana" emplacou um hit que alcançou enorme popularidade na cultura pop: trata-se do tema de abertura "O Fortuna", que aparece na primeira e na última parte dessa cantata e apresenta um coro épico e marcante que começa com uma anunciação misteriosa e depois explode em tensão, acompanhado por uma orquestra imponente com uma poderosa marcação rítmica de bumbo, evocando uma sensação de grandeza e drama. Devido à sua natureza grandiosa e impactante, "O Fortuna" tem sido amplamente utilizado em trilhas sonoras de filmes, comerciais de televisão, programas de TV e eventos esportivos, contribuindo para sua ampla familiaridade e popularidade. No geral, o compositor alemão Carl Orff é conhecido por suas contribuições para a ópera e para a música vocal no âmbito das ressignificações épicas das formas vocais medievais: corais, missas, canto gregoriano, cantatas e etc. Esta sua obra mais famosa, "Carmina Burana", é uma cantata escrita para dar vida a uma arte cênica e é baseada em um conjunto de poemas medievais do século XIII, descobertos em um mosteiro na Baviera: a peça é dividida em três partes e apresenta uma variedade de temáticas humanistas, incluindo amor, natureza, prazeres mundanos e a efemeridade da vida, combinando uma orquestração grandiosa com elementos medievais e uma abordagem percussiva muito poderosa através de instrumentos como tambores, bumbos, gongos e xilofones. A esplendida gravação acima é do maestro húngaro Antal Doráti à frente do Coral do Festival de Brighton e da Royal Philharmonic Orchestra.
Tendo sua estreia em 1972, "De temporum fine comoedia" é uma ópera composta por Carl Orff já em sua fase tardia, sendo uma da suas peças mais dramáticas e mais rigorosamente talhada, detalhada e revisada. O libreto foi escrito pelo próprio Orff e baseia-se em textos medievais e renascentistas, especialmente em obras filosóficas e poéticas relacionadas ao tema do fim dos tempos e à natureza cíclica da existência. A ópera é dividida em três partes: "Primum tempus", "Secundum tempus" e "Tertium tempus". Cada parte aborda diferentes aspectos do fim dos tempos e explora temas como o destino humano, a decadência da sociedade e a busca pela salvação espiritual. O enredo de "De temporum fine comoedia" não é linear e apresenta uma série de personagens e eventos simbólicos, incluindo passagens com coro infantil para evocar as passagens mais angelicais. A ópera começa com uma proclamação sobre a vinda do Juízo Final e a necessidade de redenção. Ao longo da obra, os personagens enfrentam provações e desafios que refletem a condição humana e a luta entre o bem e o mal. Tendo feito várias revisões da obra, sendo a revisão mais profunda realizada pouco antes da sua morte, entre 1979 e 1981, Carl Orff foi aos poucos potencializando a orquestração e acrescentando mais instrumentos de sopro e mais instrumentos de percussão, sendo necessário o uso de uma descomunal grande orquestra —— praticamente com números dobrados de instrumentos em cada naipe —— e uma descomunal seção de percussões com 25 a 30 percussionistas. Em sua sina de ressignificar formas medievais e barrocas dentro de tratativas mais modernistas, em algumas passagens Carl Orff abandona o seu diatonicismo recorrente e adota um cromatismo marcado por escalas octatônicas e inflexões sobre inspirações e citações do BWV 668 de Bach (Vor deinen Thron tret ich hiermit), evocando um cânone conhecido como pandiatônico. Ainda que haja outros registros que documentam as revisões estentidas que o compositor efetuou posteriormente, esta gravação com Herbert von Karajan e a Orquestra Filarmônica de Berlim é considerada uma das referências acessíveis dessa obra, que talvez seja a peça vocal mais rigorosa e perfeccionista de Orff.

O compositor francês e ornitólogo (estudioso dos pássaros) Olivier Messiaen (1908-1992) foi, ao lado do seu compatriota Edgard Varèse, um dos primeiros músicos a propagar os primeiros instrumentos eletrônicos, sendo que seu uso do ondas martenot foi especialmente notável. Já em 1937, por exemplo, Messiaen compõe a inventiva peça "Fête des belles eaux" para seis ondas martenot, sendo essa uma das primeiras peças estritamente eletrônica da história da música moderna a ser escrita para um instrumento eletrônico portátil, um prenúncio da revolução que seria protagonizada pelos sintetizadores décadas mais tarde. E ele seguiria inventando muitas peças para esse instrumento: em formatos solo, em formatos camerísticos e até sinfônicos —— vide sua Turangalîla-Symphonie, da qual falaremos abaixo. Neste álbum acima, temos Jeanne Loriod —— irmã mais nova de Yvonne Loriod, grande pianista e segunda esposa de Olivier Messiaen —— interpretando, com seu ensemble, algumas dessas obras de Messiaen para ondas martenot. A sonoridade é futurista e já demonstra uma concepção musical à frente do seu tempo. Messiaen, de fato, incluiu novas sinestesias, novas cores e sonoridades à música moderna! Sua música, muitas vezes inspirada pelo som dos pássaros, tem um colorido e um brilho especialmente lúdico.

Olivier Messiaen foi um dos mais influentes e prolíficos compositores do século 20, também tendo sido professor de grandes figuras que protagonizariam as transformações musicais na fase pós Schoenberg-Berg-Webern, segunda fase da música moderna que se inicia em finais dos anos 40, e na fase tardia do modernismo espectralista: entre eles, Iannis Xenakis, Pierre Boulez, Karlheinz Stockhausen, György Kurtág, Tristan Murail (esse um dos pioneiros da "música espectral"), dentre outros. Suas peças são especialmente distintas por causa das suas inspirações religiosas, das suas concepções de colorimetria sonora, do seu fascínio pela imitação do canto dos pássaros, dos seus contrastes entre consonâncias e atonalidades embasados numa técnica harmônica própria chamada "modos de transposição limitada", do seu arraigado imagetismo, entre outras idiossincrasias. E a sua célebre peça "Turangalîla-Symphonie" é um exemplo dessas distinções: trata-se de uma peça que mistura temas cíclicos em conotação conceitual e subjetiva ao amor ou às figuras épicas com partes atonais e graves que se conotam com o terror, sendo que o segundo movimento da sinfonia já dá um enfoque para uma série fixa inspirada pelas séries dodecafônicas, inaugurando o interesse do compositor pelo serialismo. O título da obra é um tanto simbólico e deriva-se da junção de duas palavras do sânscrito: turaṅga (ritmo do tempo, tempo em movimento, tempo que flui como numa ampulheta) e līlā (jogo divino no sentido de cosmos, vida e morte, criação e apocalipse). Junto com o ciclo de canções "Harawi" e com e peça "Cinq Rechants" para coro misto a cappella, essa sinfonia forma uma trilogia que Messiaen dedicou subjetivamente à história de Tristão e Isolda. Turangalîla foi concluída entre 1946 e 1948 sob encomenda do maestro Serge Koussevitzky, na época diretor artístico da Boston Symphony Orchestra, e é célebre por usar o ondas martenot nas passagens relacionadas ao amor e ao divino, o que dá um tom timbrístico bem distinto e incomparável à peça. Essa versão acima com o célebre maestro sul-coreano Myung-whun Chung à frente da Orchestre de la Bastille, tendo também Yvonne Loriod (sua esposa) ao piano e Jeanne Loriod (sua cunhada) no ondas maternot, é uma leitura vigorosa e foi supervisionada pelo próprio compositor.

Sou fã do maestro Kent Nagano desde que ouvi suas interpretações para as peças de Frank Zappa nos idos anos de 2000. Sendo um dos maiores especialistas no repertório de Olivier Messiaen —— tendo, inclusive, estreado algumas de suas peças tardias ——, aqui ele dá sua leitura madura para as peças de inspiração religiosa de Messiaen, incluindo ao meio, e como um contraste, a extraordinária peça para grande orquestra Chronochromie (1959-1960). Nagano inicia o álbum com a extensa peça La Transfiguration de Notre Seigneur Jésus-Christ (1965-69): uma peça vocal consonante —— com dissonâncias apresentadas apenas como contrastes e sombreamentos —— na qual o compositor dá vazão para uma profunda inspiração religiosa baseada na passagem bíblica da transfiguração de Cristo e na Summa Theologica de Tomás de Aquino; uma peça que necessita de ao menos 200 participantes, somando os músicos de uma grande orquestra, os vocais solos e o coro de vozes; e nessa obra Messiaen também faz um uso extensivo e inflexionado de entonações de cantos de vários pássaros ao longo da peça. Em seguida, temos o ciclo de canções Poèmes pour Mi ciclo para canto lírico (soprano) e piano que Olivier Messiaen também transcreveu para orquestra: composto entre 1936 e 1937 e sendo dedicado à sua primeira esposa, Claire Delbos, as canções musicam poemas surrealistas que o próprio compositor escreveu baseando-se no Novo Testamento, além de ser um exemplo claro de como ele empregou sua técnica conhecida como cromoestesia (sinestesia som-cor) para trabalhar ludicamente com os coloridos timbrísticos dos naipes de instrumentos, bem como um exemplo de como ele explora sobreposições de repetições e métricas permutativas usando como inspiração as entonações de cantos de vários tipos de pássaros e sons de cachoeiras e motanhas que ele observou nos Alpes franceses —— o pontilhismo orquestral dessa peça nos soa, em várias passagens, como sons entrelaçados de inúmeros pássaros em uma selva. Nagano reúne essas peças num essencial box set de 3 CD's recentemente lançados!

Neste álbum acima, o maestro Pierre Boulez, outro especialista no repertório de Messiaen —— e aqui nesta lista vocês irão perceber que Boulez foi o maior difusor do repertório moderno —— dá sua versão para três obras seminais desse compositor: "Poèmes pour Mi" (1936-37, já abordado acima com Kent Nagano), "Réveil des oiseaux" (1953) e Sept haïkaï (1962). A peça "Réveil des oiseaux", dedicada ao ornitólogo Jacques Delamain, é um exemplo seminal de como Messiaen explorou cantos de pássaros: é a primeira de uma série de obras orquestrais baseadas em cantos de pássaros (vide, entre elas, as peças "Exotic Birds" e "Chronochromie"), com a diferença de que essa é uma das suas peças baseadas puramente e totalmente em cantos de pássaros que o compositor coletou e transcreveu para a pauta, enquanto outras peças suas abordam o canto dos pássaros apenas como um elemento inflexionado em meio a tantos outros elementos. Já a peça "Sept haïkaï" é um concerto para piano, percussão e pequena orquestra que Messiaen compôs enquanto estava em lua de mel no Japão com sua nova segunda esposa, Yvonne Loriod: inspirando-se em elementos orientais, ritmos indiano, na tradição do gagaku, na música característica do teatro Noh, no canto dos pássaros do Japão, e também fazendo um uso moderno do isorritmo, uma técnica musical que usa um padrão rítmico repetitivo advindo das repetições do canto medieval conhecido como taleae.

Quatuor pour la fin du temps (1941) é a principal obra de câmera de Messiaen e uma das peças camerísticas mais populares do repertório moderno. Trata-se de uma peça escrita para um quarteto formado por clarinete, violino, cello e piano, peça que foi fruto de uma fase em que Messiaen foi prisioneiro de guerra no cativeiro alemão do Stalag VIII-A, em Görlitz, Alemanha (atual Zgorzelec, Polônia), em plena Segunda Guerra Mundial. Enquanto estava na prisão, Messiaen encontrou alguns músicos profissionais também presos e, barganhando lápis e papel com os guardas do exército nazista, começou a escrever para esses músicos alguns esboços que posteriormente se tornariam partes de obras robustas, chegando, enfim, a concluir esse quarteto, que foi estreado ainda na prisão em 15 de janeiro de 1941 para cerca de 400 prisioneiros e guardas. Em entrevistas e declarações posteriores, Messiaen afirma que os músicos tiveram de se contentar com instrumentos ruins, apreendidos e encostados pelos nazistas, e tiveram até de coletar doações dos presos do acampamento para adquirir o violoncelo. A peça se tornou popular não apenas pelas estórias e pelo contexto deprimente ao qual o compositor estava imergido, mas também pelos tons emotivos e pela sua estrutura programática baseada nas imagens do Livro do Apocalípse, numa clara alusão crítica às agruras da guerra. É uma das primeiras peças a evidenciar mais veementemente os traços idiossincráticos de Messiaen, incluindo suas inspirações litúrgico-religiosas e suas inspiração no canto dos pássaros. Neste álbum acima temos uma quente e coesa leitura dessa peça a cargo do Groupe Instrumental de Paris.
Católico fervoroso, Olivier Messiaen foi organista por 61 anos na Église de la Sainte-Trinité, em Paris. Começando ainda jovem, aos 20 anos, sob a tutela do seu professor de órgão Marcel Dupré, Messiaen foi nomeado como o organista titular dessa igreja histórica já em 1931, substituindo o organista Charles Quef e se comprometendo com esse posto até sua morte. Com a invasão da França pela Alemanha Nazista em 1940, Messiaen é preso —— ele servia ao exército francês como auxiliar médico ——, mas retorna à atividade de organista quando é solto da prisão. Além das suas interpretações e transcrições de obras de Bach para orgão, já em 1927 Messiaen compõe sua primeira peça para orgão chamada "Le banquet céleste", seguindo com "Apparition de l'église éternelle" em 1932, evoluindo em 1935 com a célebre peça para órgão "La Nativité du Seigneur", e expandindo seu repertório organístico em uma sequência intitulada Les Corps glorieux, um ciclo completo de peças para orgão concluído em 1939 e estreada em 1945. Para os organistas contemporâneos essas peças se tornariam tão benquistas quanto as peças escritas por Johann Sebastian Bach ou César Franck, dois dos maiores compositores, respectivamente do barroco e romantismo, que se dedicaram ao enriquecimento do repertório para órgão de tubos. Pontualmente, Messiaen continuaria a criar peças para orgão durante todo o restante da carreira. Em 1969 ele conclui sua "Méditations sur le Mystère de la Sainte Trinité", uma peça que introduz o órgão na estética serialista. E em 1984 ele pública um grande catálogo de peças para orgão chamado Livre du Saint Sacrament. Todas essas obras, dentre outras, são abordadas acima pelo célebre organista Hans-Ola Ericsson, um dos maiores especialistas no repertório organístico de Messiaen. O box vem com 7 CD's.

Villa-Lobos (1887-1959) é mundialmente conhecido como o maior dos compositores latino-americanos e o compositor que mais traduz a alma brasileira para as formas sinfônicas, concertantes, camerísticas e instrumentais, incluindo em sua obra um repertório de violão erudito muito benquisto. O modernismo musical brasileiro começa, inclusive, com Villa-Lobos na passagem dos anos de 1910 para 1920: um fato que, aliás, nada tem a ver com a Semana da Arte Moderna (1922) —— como equivocadamente tem-se dito por aí ——, um evento que foi um emblema simbólico para datar e referenciar mais o modernismo no âmbito da literatura e das artes plásticas do que para indicar um movimento de modernidade no âmbito da música erudita brasileira, uma vez que Villa-Lobos foi o único compositor participante e o repertório impressionista tocado no evento pela pianista Guiomar Novaes —— com peças de Debussy e Erik Satie —— já estava um tanto atrasado em relação ao modernismo internacional em voga. Aliás, é preciso frisar que, no caso de Villa-Lobos, estamos falando de um modernismo nacionalista que já não se conecta com as correntes avant-garde em voga no cenário internacional, apesar desse modernismo nacionalista sutilmente ser influenciado pelas novas dissonâncias que já surgiam. Ainda que houvesse uma inclinação modernista acontecendo nos circuitos culturais do eixo RJ-MG-SP, nada muito próximo das correntes expressionistas e futuristas do avant-garde internacional poderia se esperar de um cenário onde os mecenas e a elite econômica da época ainda eram regidos pelo conservadorismo da oligarquia cafeeira. Mas Villa-Lobos já soava sutilmente moderno, ainda que esse modernismo, pelos fatores político-culturais mencionados, tenha sido polido para agradar os ouvidos demagógicos desse público conservador. Entre fins de 1910 e início de 1920, ao menos três correntes estéticas davam rumo para o modernismo musical no mundo: o futurismo de Russolo, Roslavets, George Antheil e companhia (em voga na Itália, Russia, EUA); o expressionismo abstrato iniciado pelo dodecafonismo de Schoenberg, Berg, Webern e companhia (em voga na Áustria e Alemanha); e o neoclassicismo que surgia como uma resposta mais "mainstream" à essas correntes de vanguarda, movimento que surgiria em seguida (na França, Leste Europeu, Russia, EUA...) tendo como representantes figuras como Darius Milhaud, Bela Bartók, Aaron Copland e os russos Stravinsky e Prokofiev (os quais inicialmente também beberam das fontes do futurismo). Foi essa corrente neoclassicista que permitiu os compositores nacionalistas e tradicionalistas a abraçarem os interesses e os elementos folclóricos dos seus países dentro desse novo contexto de modernidade: ou seja, tratava-se de uma diretriz que prezava pela hibridificação entre a ressignificação dos elementos da tradição clássica, a inflexão dos traços e adereços do folclore e o uso pontual e temperado das novas dissonâncias modernas —— considerando que a cultura popular (o samba, o jazz, o tango, e etc) também produzia seus acordes exóticos e vinha se modernizando com novas dissonâncias, novas cores harmônicas e novos timbres. No Brasil, era uma época em que os elementos do samba, das rodas de choro e dos folclores regionais desciam dos morros e advinham dos lugarejos para adentrar as artes nos teatros, e muitos artistas e pesquisadores iam aos lugarejos, subúrbios e subiam os morros para se inteirar da cultura nacional. A musicologia de Mário de Andrade foi deveras importante para a altivez desse pensamento de valorização do folclore nacional. E Villa-Lobos, considerando o contexto cultural e socio-político do Brasil e dos ambientes e cenários que ele frequentava, conectou-se melhor com esse movimento do neoclassicismo que lhe permitia abraçar esses traços folclóricos e nacionalistas. As visitas que Villa-Lobos fazia aos morros, aos terreiros e às favelas para curtir os choros e sambas de Donga e Pixinguinha, foram muito importantes para a formação desse nacionalismo moderno. Portanto, o ciclo de "Chôros" que o jovem Villa compôs na década de 1920 é uma obra mais do que importante para se analisar esse modernismo nacionalista inicial, um ciclo que Villa apresentou na França, nos EUA... e obteve grande sucesso de público e crítica, e grande admiração de outros compositores modernistas que foram assistir suas peças. Neste álbum acima, lançado pelo maestro inglês Adrian Leaper e a Orquestra Filarmónica de Gran Canária, temos uma excelente interpretação de parte do ciclo de "Chôros": o álbum aborda do No.1 ao No.7 e começa com a moderna "Introdução ao Choros" para violão e orquestra, peça que Villa compôs em 1929 na ocasião da conclusão desse ciclo que vai até o No.12. Para o ouvinte mais aplicado, no Spotify há as gravações do ciclo completo de "Chôros" realizadas pelo maestro John Neschling e os músicos da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP). O ciclo inflexiona, em formas e estruturas eruditas, elementos do choro e da brasilidade para duo, ensembles, orquestra e outras formações. Essencial!

Neste álbum acima, a leitura do conjunto de câmera formado pelos músicos alemães da Deutsche Staatsphilharmonie Rheinland-Pfalz (Orquestra Filarmônica Estatal da Renânia-Palatinado) dá uma roupagem um tanto vigorosa e moderna para algumas peças de Villa-Lobos. O álbum começa com o septeto de "Choros No.7" (1924), passa por "Choros No.2" (1924), um duo de flauta e clarinete, aborda o "Quinteto em Forma de Choro" (1928) e termina com a "Fantasia Concertante" para piano, clarineta e fagote (1953). A obra de Villa-Lobos não é apenas multifacetada em termos estéticos —— com muitos hibridismos de formas e elementos populares entranhados ——, mas também é multifacetada em termos de combinações e formações instrumentais no âmbito do que se convencionou chamar de "música de câmera": duos, trios, quartetos, septetos, ensembles compactos, uso criativo de instrumentos como violão, flauta, saxofones, clarinetes e fagotes..., sempre evocando, de forma inflexionada, os populares elementos dos choros e canções. E este álbum atesta isso. Não seria exagero dizer, aliás, que sua produção camerística soa mais moderna e interessante que sua produção sinfônica, por exemplo.

A maioria das peças de Villa-Lobos tem histórias a serem contadas, geralmente sendo histórias advindas dos adereços culturais, ritmos e imagens que ele coletava em suas viagens pelo Brasil afora. Após a morte do seu pai em 1899, Villa-Lobos passou por uma fase de seguidas viagens pelo interior do Brasil, coletando influências geográficas, etnográficas e culturais que tiveram profunda importância no desenvolvimento da sua estética pessoal, e lhe serviu para não ficar refém, totalmente, das amarras estéticas europeias, uma vez que o Brasil vinha de uma nova fase onde deixara de ser colônia para ser uma República independente e a nova classe artística anseava por uma arte autenticamente brasileira. Nos anos de 1920, como já atestamos acima no seu ciclo de "Choros", Villa-Lobos passou algumas temporadas em Paris e a influência daquele ambiente modernista parisiense também lhe sortiu de muitos elementos que foram importantes para seu desenvolvimento. Ao voltar para o Brasil, ele encontra um novo país agora marcado pelas revoluções da República Nova, fato que irá acentuar ainda mais seus traços nacionalistas: ou seja, tirando de fora as Bachianas Brasileiras —— que são primorosas por unir uma linguagem neobarroca com adereços nacionalistas ——, muitas das suas obras das décadas de 1930, 1940 e até 1950 são preponderantemente populistas e propagandistas, uma verve que ele incorpora para surfar na onda do populismo getulista e conseguir dinheiro e popularidade para realizar seu desejo de alcançar mais pessoas e revolucionar o ensino musical no Brasil. Tanto que em 1932 ele torna-se diretor da Superintendência de Educação Musical e Artística (SEMA). Sua produção camerística desse período, contudo, continua a evocar traços modernistas mesmo quando faz uso de adereços folclóricos e populares. E este álbum acima, projeto do oboísta americano Jared Hauser, traz algumas das peças mais criativas dessa produção. Neste álbum acima temos: o Duo para Oboé e Fagote (1957), que na verdade é sua "Bachiana brasileira No. 6"; temos três dos Prelúdios para Violão (1940), sendo que o Prelúdio No. 2 foi escrito com a intenção de evocar a malandragem do carioca (morador das chamadas "favelas") e o Prelúdio No.4 foi referido como uma "homenagem ao índio brasileiro"; segue-se "Chôros No. 5" para piano (1925), que tem como subtítulo "Alma brasileira"; seguem-se "Caixinha de Música Quebrada" (1931) e "Poema Singelo" (1938), duas peças para piano solo onde Villa usa dissonâncias e cromatismos de uma forma bem lúdica; depois temos a peça "Distribuição de Flores" para oboé e violão (1937), essa claramente mais nacionalista, mas com uma temática que ele resgata da sua "Suite Floral" para piano (1918); depois temos a "Fantasia para Saxofone" e pequeno grupo de câmera (três trompas, cordas e piano) (1948), aqui num arranjo para saxofone e piano que enfatiza bem as mudanças métricas entre 7/4 e 4/4; e por fim temos o "Sexteto Místico" (1917) para flauta, oboé, saxofone alto, violão, harpa e celesta que, à época da sua escritura, ainda evoca traços do impressionismo de figuras como Debussy e Ravel.

O repertório pianístico de Villa-Lobos também é muito interessante, e tem até uma inclinação tecnicista que desafia os virtuoses. Nesta auspiciosa compilação, intercalando gravações de peças escritas para sax e violão, temos alguns registros desse repertório a cargo de dois dos maiores nomes do piano erudito: a brasileira Cristina Ortiz e o russo Vladimir Ashkenazy, que aqui atua como maestro à frente da New Philharmonia Orchestra. O álbum inicia com a Bachianas Brasileiras No.3 para Piano e Orquestra (1938) em quatro movimentos: neste concerto temos um real exemplo da faceta mais neoclassicista de Villa no sentido de usar o pastiche de ressignificar o contraponto barroco de Bach dentro da sua abrasileirada linguagem erudita —— é uma obra que soará doce aos ouvidos mais experimentados no repertorio moderno, mas com um pouco de concentração o ouvinte conseguirá observar algumas passagens bem aventurosas. Segue-se a peça "Momo Precoce (Fantasia para Piano e Orquestra)" (1929) em movimento uno, essa claramente representando sua primeira fase mais modernista da década de 1920. Depois, com o saxofonista John Harle e o maestro Neville Marriner à frente da Academy of St. Martin in the Filds, temos a Fantasia para Saxofone Soprano e Pequena Orquestra (1948), que é um dos poucos e mais belos concertos dedicados a este instrumento, sendo uma das obras a iniciar sua terceira fase criativa munida de um neoclassicismo mais maduro —— sax soprano que, aliás, não é um instrumento com tradição erudita e nem com tradição no choro, o que sugere que Villa vinha escutando muito jazz, provavelmente tendo ouvido Sidney Bechet, que foi o introdutor do sax soprano no jazz e tinha considerável fama na França. Segue-se o violonista Ángel Romero e o maestro Jésus Lópes-Cobos à frente da London Philharmonic Orchestra interpretando o Concerto para Violão e Pequena Orquestra (1951), escrito para o virtuose espanhol André Segóvia (com uma cadência acrescentada em 1956). E por fim o álbum finaliza com a ótima Cristina Ortiz em piano solo interpretando a lúdica e impressionista peça Prole do Bebê nº 1 (1918) e temas como "Festa no Sertão" (do Ciclo Brasileiro nº 3, escrito em 1937), "Alma Brasileira" de "Chôros No. 5" (1925), Lenda do Caboclo (1920) e "Impressões Seresteiras" (do Ciclo Brasileiro nº 2, escrito em 1936).

O Mark Rothko Ensemble foi criado em 2011 a partir do encontro de alguns dos melhores instrumentistas de cordas do nordeste da Itália, e conta com três álbuns disponíveis na plataforma do Spotify. Como bem sugere o nome do ensemble —— considerando que Mark Rothko foi um dos ases do movimento expressionista americano ——, a inclinação dos músicos é preponderantemente modernista. E este álbum corrobora com o fato de que no repertório de Villa-Lobos há algumas peças camerísticas que soam de fato modernas mesmo diante da fase mais panfletaria do compositor. Ou seja, embora no período dos anos de 1930 a 1950 Villa-Lobos dê vazão numa fase sinfônica mais palatável, e comece a criar cirandas, canções e outras peças de verve popular, paralelamente ele reserva sua produção camerística para se expressar de forma mais modernista. É o caso do Trio para Cordas (1945), registrado neste álbum acima. É o caso, também, do Duo para violino e viola (1946), também abordado no álbum. O álbum segue com Assobio a Jato (1950) para flauta e cello e com Quinteto Instrumental (1957) para trio de cordas, flauta e harpa, sendo essas duas peças da fase criativa final do compositor. Essas peças são interessantes porque hibridificam o melodismo particular de Villa —— melodismo advindo das suas pesquisas sobre as serestas, modinhas e cantigas —— com resquícios modernistas, produzindo traços lúdicos não menos que marcantes. Álbum revelador!

O periodo de direção de John Neschling à frente da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP) deixou um legado realmente profundo. E este álbum, com uma leitura e interpretação fantástica de Neschling, é um dos registros que ratificam esse legado. A peça "A Floresta do Amazonas", uma das últimas composições de Villa-Lobos antes do seu falecimento, foi comissionada pela produtora Metro Goldwin Mayer para ser a trilha sonora do filme "Green Mansions", do cineasta Mel Ferrer. O filme (lançado no Brasil com o título A Flor Que Não Morreu), apesar de ter sido estrelado por Audrey Hepburn e Anthony Perkins, foi um fracasso comercial, mas acabou sendo o estopim para Villa gestar uma das suas obras mais profundas e imagéticas, com a temática da Amazônia permeando a criação: conta-se que Villa não ficou satisfeito com as edições e modificações realizadas pelo também compositor Bronislau Kaper para sincronizá-la com as imagens do filme, e decidiu, então, transformá-la em uma suíte sinfônica. Sendo uma obra híbrida para voz e orquestra, a peça é uma das mais extensas de Villa e traz alguns temas e canções que já foram abordados tanto entre cantores líricos como também entre cantores da música popular.

A assustadora produção musical de Villa-Lobos gestou 17 (dezessete!) quartetos de cordas, sendo o primeiro composto em 1915 e o último composto em 1957. E o renomado Cuarteto Latinoamericano, fundado no México em 1982, realizou a façanha de gravar a integral dessa obra grandiosa (!), intercalando de forma bem interessante a ordem dos quartetos. Quartetos de Cordas são interessantes porque é um dos combos mais populares da música erudita, sendo, muitas das vezes, por onde alguns compositores modernistas —— como Shostakovitch, por exemplo, que escreveu 11 (onze!) deles —— mais expressaram seus traços idiossincráticos: é um combo clássico e ao mesmo tempo versátil, capaz de expressar do mais comovente lirismo até os surtos criativos mais impactantes. E com Villa-Lobos não é diferente. Deixo aqui algumas observâncias: o Quarteto No.1 (1915) é melodioso e impressionista e no seu último movimento evoca a figura saltitante do Saci sob uma ressignificação moderna do contraponto barroco; enquanto o hiper criativo Quarteto No.3 (1916) tem um frenético segundo movimento inteiramente tocado em pizzicato; e eu gosto, particularmente, dos Quartetos de No.7 (1942), No.9 (1945) e No.10 (1946) que soam com um modernismo mais arraigado e particular. É uma viagem e tanto!

Descobri este álbum acima enquanto pesquisava mais sobre Darius Milhaud, que foi um dos modernistas de verve neoclássica a representar o nacionalismo francês e foi, talvez, o mais célebre membro do grupo Les Six, grupo de compositores que ele formava com Georges Auric, Louis Durey, Arthur Honegger, Francis Poulenc e Germaine Tailleferre. Milhaud também é conhecido por ter se inspirado no jazz e na música brasileira. Uma das suas obras modernistas mais conhecidas é La Création du Monde (1923), um balé para saxofone e pequena orquestra que foi escrito claramente inspirado pelo jazz depois de uma viagem do compositor pelos EUA, onde conheceu essa nova música que infestava as ruas do Harlem. E este álbum acima, lançado pelo ensemble holandês Ebony Band, nos apresenta justamente essa temática de obras precursoras e pioneiras do início do século 20 escrita por compositores que se inspiraram no jazz. Além de La Création du Monde (1923) de Milhaud, a Ebony Band nos apresenta peças de compositores como o tcheco Emil František Burian (sua "Suite Américaine", de 1926), o também tcheco Bohuslav Martinů (sua "Jazz Suite, de 1928), o húngaro-britânico Mátyás Seiber (suas duas Jazzoletes, escritas entre 1929 e 1932) e peças do hiper criativo compositor naturalizado norte-americano Stefan Wolpe. É, enfim, um álbum que nos mostra como o surgimento do jazz influenciou a música erudita não apenas dentro dos EUA, mas também vários compositores por toda a Europa —— muitos desses compositores eruditos europeus iniciaram essa associação com o jazz ainda a partir de acentuações rítmicas dentro de formas de danças clássicas e tradicionais como foxtrot, valsa, polca e etc. A Ebony Band é um ensemble fundado em 1990 por Werner Herbers, ex-oboísta principal da Royal Concertgebouworchestra. Seu núcleo é formado por músicos dessa mesma orquestra. O ensemble é especializado em música moderna e aventureira da primeira metade do século XX, na maioria das vezes dando especial atenção para compositores menos conhecidos, considerados dignos de maior reconhecimento. Abaixo, indico mais dois outros registros lançados por este excelente ensemble. Interessante!

O subestimado Stefan Wolpe (1902-1972), um dos discípulos de Webern, foi um hiper criativo compositor judeu-alemão-americano que adotou uma carreira totalmente interdisciplinar, tendo incorporado várias correntes estéticas em sua produção musical —— muitas vezes entrelaçando vários estilos, tipos e formas musicais numa mesma peça. Isso porque sua vida o forçou a passar por várias mudanças: ele viveu e trabalhou em Berlim (1902–1933) até que a tomada do poder pelos nazistas o forçou a se mudar primeiro para Viena (1933–34), Jerusalém (1934–38) e, por fim, cidade de Nova York (1938–72), onde se estabeleceu e viveu até a morte. Sua carreira, então, acabou refletindo essa condição de quase-nômade: suas obras expressam uma gama hiper variada de influências que vão do neoclássico ao avant-garde, que vão do teatro agitprop russo —— uma vez que ele era socialista e produziu bastante peças e canções panfletárias —— até a música utilitária alemã (a gebrauchsmusik incorporada por Hindemith e Kurt Weill), que vão do jazz americano, passa por elementos da música árabe e do klezmer judaico e chega até os elementos da vanguarda de Darmstadt. Neste álbum acima temos uma interpretação das suas fantásticas óperas "Schöne Geschichten" e "Zeus und Elida" (1928), que trazem citações neoclássicas, traços do jazz, das técnicas sprechgesang e sprechstimme (técnica vocais expressionistas usadas por Schoenberg) e da abordagem brechtiana de Kurt Weill, sempre de uma forma muito particular, totalmente única. Stefan Wolpe é, portanto, um daqueles compositores pouco conhecidos com uma obra abundantemente original e inovadora, podendo ser relacionado entre os grandes precursores do ecleticismo pós-moderno que surgiria algumas décadas mais tarde. Neste álbum acima temos esta magnífica ópera eclética sendo interpretada pela Ebony Band junto com os vocalistas da Cappella Amsterdam. O álbum termina com uma peça sugestivamente jazzística chamada de "Blues". Registro divertido e revelador!
De Frank Zappa a John Zorn, a música pós anos de 1970 entrou numa onda de ecletismo que desafiou qualquer senso de categorização. Mas isso já se prenuncia com Kurt Weill, só tendo paralelos com Stefan Wolpe e Hans Eisler. Na segunda metade dos anos de 1920 até o início dos anos 30, a música de Kurt Weill esteve intrinsecamente ligada ao chamado "teatro épico" do poeta e dramaturgo alemão Bertolt Brecht, considerado um dos grandes pioneiros do teatro moderno: nessa fase ele escreveu grandes peças musicais que deram vida às encenações de Brecht, tais como The Threepenny Opera (1928), Rise and Fall of the City of Mahagonny (1930) e The Seven Deadly Sins (1933), obras que estrearam com grande sucesso em Leipzig e Paris, no Théâtre des Champs-Élysées. Já a partir de 1933, ele foge do nazismo alemão, pois ele era descendente de judeus, e se estabelece nos EUA, onde começa a escrever canções populares e musicais para o Teatro da Broadway, com vários dos seus temas e canções tornando-se standards populares no repertório dos músicos de jazz e dos crooners. De certa forma, Kurt Weill é um dos precursores do ecleticismo, que é um dos pilares da "música pós-moderna". Isso porque ele foi um dos primeiros a usar os elementos da sátira, da paródia, da ironia, do humor e do pastiche dentro de um conceito de hibridismo musical que já desafiava qualquer senso de categorização mesmo nos anos 20 e 30: sua música misturava elementos do caberet alemão, do canto lírico (ópera, lieder), do teatro musical, dos vários tipos danças, fanfarras, da canção popular, do jazz, da música clássica e englobava até o modernismo dodecafônico de Schoenberg... e tudo o que mais se tinha direito em termos da produção musical dos anos 20, 30 e 40. O seu idiossincrático Concerto para Violino (1926) sugere um encontro entre a influência que ele adquiriu estudando com Ferrucio Busoni com a influência da música de Schoenberg —— sem, contudo, aderir de fato ao dodecafonismo. Dentro da seara do teatro musical, propriamente dito, Kurt Weill e Bertolt Brecht também empregariam algo similar às técnicas conhecidas como sprechgesang e sprechstimme, técnicas de "canto falado" ou "fala cantada", surgidas na obra Pierrot Lunaire (1912) de Schoenberg. Uma outra influência que foi crucial na formação de Weill foram as ideias de Paul Hindemith em torno do conceito de "música utilitária", desenvolvido a partir da ideia de "música de mobiliário" do influente poeta Jean Cocteau: um conceito de música moderna que procurava fugir das amarras estritas do formalismo serialista —— daquela coisa experimental de "música pela música" —— a partir da ideia de que toda composição musical deveria servir a uma utilidade prática e social (um teatro, um comício político, um evento, uma cerimônia militar, uma crítica social, e etc). Neste álbum acima, a London Sinfonietta nos apresenta esse rico hibridismo de Kurt Weill, com um tipo de mistura musical que influenciaria grandemente compositores pós modernistas da música erudita e do jazz tais como Frank Zappa, Charles Mingus, Gil Evans, Carla Bley, dentre tantos outros.
Mais um tento diletante da Ebony Band, onde ela resgata obras de compositores esquecidos da velha Tchecoslováquia, um país com ricos hibridismos de culturas advindos de povos tchecos, eslovacos, húngaros, ciganos, ucranianos, alemães, polacos, judeus e etc. Seu primeiro presidente, Tomás Masaryk, considerado um dos responsáveis pela independência do país, apoiou fortemente a cultura e transformou a capital Praga num centro de efervescente atividade, algo que se repetiu com seu sucessor Edvard Beneš. Sendo assim, nas décadas de 1920 e 1930, o país assistiu sua música —— e as artes como um todo —— a elevar-se numa guinada de modernidade criativa tão admirável como a modernidade musical que se instaurara na França, na Alemanha, na Áustria, na Russia, e etc. Neste álbum acima, pois, a Ebony Band dá vazão nas obras de alguns dos compositores tchecos que representam a modernidade desse período. Temos peças de Alois Hába (1893-1973), Miroslav Ponc (1902-1976), Hanus Aldo Schimmerling (1900-1967), Emil František Burian (1904-1959) e Viktor Ullmann (1898-1944), esse último falecido no campo de concentração de Auschwitz, Polônia. Com a Segunda Guerra Mundial, o país, que sempre teve uma história de conflitos entres seus povos e etnias, se dividiu totalmente entre as disputas da Alemanha Nazista e da Rússia, e muito dessa sua rica e moderna música ficou esquecida ou perdida. Portanto, este álbum é um documento de resgate muito importante para conhecermos essa música de expressão exótica. Destaque, por exemplo, para algumas peças de Miroslav Ponc, onde, além das entonações peculiares das suas linhas melódicas, ele usa acompanhamentos microtonais!
Paul Hindemith, violinista e compositor, foi um gigante da música moderna alemã que adotou certos procedimentos neoclássicos e neobarrocos comungados com um modernismo bem particular. De certa forma, ele até adota procedimentos atonais advindos do dodecafonismo de Schoenberg, mas sem partir totalmente para o atonalismo ou totalmente para a técnica de composição serialista, ressignificando muito recorrentemente as formas e estruturas clássicas e barrocas de um jeito pessoal muito idiossincrático. Ele ficou conhecido por defender ao menos dois conceitos distintos: a Neue Sachlichkeit (Nova Objetividade), que defende uma modernidade mais prática e objetiva como resposta ao expressionismo abstrato; e a Gebrauchsmusik (música utilitária), que defende que toda peça musical seja composta sempre com base na necessidade de utilização (para um evento, para uma dança, para um comício político, para uma cerimônia militar, e etc), um conceito que, enfim, acabou levando a música erudita alemã para hibridismos com as músicas populares e para os anseios políticos panfletários e propagandistas. Contudo, o modernismo musical de Hindemith não chegou a servir aos ouvidos e aos anseios do Partido Nazista Alemão: ao contrário disso, por ter adotado algumas dissonâncias, o compositor foi prontamente acusado de fazer uma "música degenerada" e foi duramente perseguido pelos nazistas, tendo que se exilar na Suíça, antes de ir viver nos EUA. Acima temos uma das obras seminais de Hindemith: Kammermusik, um extenso ciclo de oito composições para orquestra de câmera e diferentes conjuntos formados com instrumentos variados, ciclo que foi composto durante toda a década de 1920 e que foi inspirada nas polifonias dos Concertos de Brandemburgo de Bach, sendo um exemplo perfeito de como Hindemith ressignificava esses elementos barrocos dentro da sua linguagem moderna. O maestro italiano Riccardo Chailly é quem dirige esplendorosamente o projeto, à frente da Orquestra Real do Concertgebouw, de Amsterdam.

Outro exemplo perfeito de como Hindemith ressignificava os elementos clássicos e barrocos dentro da sua linguagem moderna é este álbum acima. Temos aqui duas peças: seu Konzertmusik for Strings and Brass Op.50 (1930) e seu Konzertmusik for Piano, Brass and Two Harps Op.49 (1930). São, pois, duas peças um tanto peculiares por valorizar os metais (trompetes, trompas, trombones e tubas) dentro das estéticas sinfônicas e concertantes —— daí o termo "brass". Mas nesses concertos, os naipes soam combinados em obbligato: ou seja, a intenção do compositor não é destacar um instrumento ou outro, um naipe ou outro, mas a intenção é fazê-los soar num entrelace de cores e timbres sobrepostos e combinados. Outra particularidade é que esses concertos são exemplos incontestes de como Hindemith efetua com maestria transições e contrastes entre consonância e dissonância: ele começa com um motivo em território consonantal, progride em tensão dissonante e se resolve em acordes e cadências consonantais perfeitas, ou vice-versa. As interpretações são do maestro Elgar Howarth à frente do Philip Jones Brass Ensemble, do pianista Paul Crossley e músicos adjuntos.

Bela Bartók foi outro dos gigantes do século 20 —— e o foi sob vários aspectos! Com uma produção assustadora, praticamente todos os seus ciclos criativos são essenciais. A obra de Bartók apresenta todo um colorido particular advindo das misturas de entonações das tradições étnico-populares-folclóricas nacionalistas da Hungria e região com as combinações harmônicas entre consonâncias e dissonâncias que começaram a vigorar na era moderna: suas folk songs, sua obra pianística, sua obra orquestral, seus quartetos de cordas..., toda sua produção é inteiramente instigante e o estabelece, talvez, como o compositor mais influente e venerado por todos os outros compositores ditos nacionalistas. Aqui neste post, indico apenas esses dois discos —— este acima, e o abaixo —— que, acredito, já apresentam os gatilhos e as características suficientes para introduzir o ouvinte ao rico repertório bartokiano. A fantástica peça The Miraculous Mandarin é um balé de pantomina —— uma espécie de obra teatral encenada apenas por gestos, dança e mímicas, sem palavras —— que Béla Bartók escreveu entre 1918 e 1924 baseando-se numa história criada pelo dramaturgo húngaro Melchior Lengyel. A obra causou grande impacto e escandalizou muito o público, a crítica e os setores reacionários dos anos 20 e 30 por causa da orquestração colorida e cheia de efeitos aliada às encenações eróticas da peça, tendo sido muitas das vezes banida ou tendo tido autorizada apenas a execução da sua suíte orquestral sem a encenação teatral. Para além do seu particular colorido melódico-harmônico, Bartók potencializa o ludismo em torno dessa história sem palavras através de inúmeros efeitos orquestrais: os instrumentos soam às vezes cacofônicos; os naipes de metais e madeiras se serpenteiam em torno de trinados, glissandos e velozes escalas cromáticas que sobem e descem a todo vapor; as cordas empregam efeitos com técnicas estendidas em torno de glissandos, trêmolos, harmônicos, sul ponticello (o tocar com o arco muito próximo ao cavalete, alterando o timbre), o col legno (efeito do arco sendo percutido nas cordas); entre outros inúmeros arranjos e efeitos timbrísticos. Essa interpretação do maestro estoniano Paavo Järvi à frente da Orquestra Sinfônica NHK, do Japão, é soberba e realça bem esses coloridos e efeitos timbrísticos. No álbum acima, Paavo Järvi e a NHK Symphony também interpretam o popular Concerto for Orchestra (1943) de Bartók: a peça marca a chegada do compositor nos EUA —— fugindo das consequências da Segunda Guerra Mundial sobre sua amada Hungria —— e marca, também, uma postura mais neoclássica, com ressignificações de elementos classicistas combinados com modos harmônicos húngaros.
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Em 1904, numa estadia prolongada numa fazenda do vilarejo eslovaco Hrlica, o compositor húngaro Béla Bartok —— na época com 23 anos —— teve uma epifania quando ouviu uma jovem de 19 anos chamada Lidi Dósa cantar algumas canções folclóricas e camponesas locais. O impacto que aquelas canções tiveram sobre a alma criativa de Bartok foi imediato. De forma que, a partir daquele momento, ele dedicaria todos os esforços possíveis para conhecer e coletar canções camponesas, canções de ninar, canções infantis e cânticos folclóricos de todo o Reino da Hungria: ao todo, de 1905 até 1918, o jovem compositor coletou mais de 9.000 canções, aproximadamente cerca de 3.400 canções romenas, 3.000 canções eslovacas, 2.700 canções húngaras e cerca de 250 canções búlgaras, árabes, sérvias, turcas... e ele foi coletar canções até de regiões mais afastadas como a Argélia, na África. Esse seria não apenas o maior trabalho de etnomusicologia já realizado na primeira metade do século 20, como também seria uma das principais bases de inspiração para a própria obra a ser desenvolvida por Bartók, uma obra pioneira que trouxe para a modernidade da música erudita muitos coloridos tonais advindos destas canções —— influenciando, inclusive, diversos outros compositores a seguirem essa linhagem modernista com inspirações étnicas e folclóricas. Bartok transformaria muitos dos temas e motivos principais dessas canções em peças para piano, quartetos, orquestras e outros ensembles: tanto peças de caráter pedagógico, tais como as miniaturas que fazem parte do seu catálogo Mikrokosmos, como peças concertantes mais engenhosas nas quais ele inflexiona as características tonais dessas canções folclóricas combinadas com às dissonâncias modernas. E este álbum acima, lançado pelo pianista húngaro Jenő Jandó, é um exemplo perfeito. Jandó tem um contrato fixo há anos com a Naxos e, ao que parece, já gravou toda a integral para piano solo de Bartók. Neste álbum acima, o pianista inicia com a Dance Suite (1923), uma peça para piano adaptada da suíte orquestral de mesmo nome que Bartók compôs em 1923 para comemorar o 50º aniversário da união das cidades Buda e Pest (que formaram a capital húngara de Budapeste), e já em seguida emenda a Slovakian Dance (1923), que fazia parte dessa mesma suíte, mas foi posteriormente retirada e deixada como um esboço à parte: a suíte é composta por cinco danças com melodias árabes, valáquias e húngaras e um final que sintetiza todas as entonações modais usadas. Segue-se a interessantíssima Eight Improvisations on Hungarian Peasant Songs (1920): são oito peças compostas partir de improvisações sobre canções camponesas húngaras para as quais Bartók deu uma tratativa mais vanguardista, empregando dissonantes bitonalidades e politonalidades. Depois segue-se Petite Suite (1936), que são seis adaptações que o compositor fez a partir do seu ciclo de 44 Duos para Dois Violinos. Segue-se Romanian Folk Dances, uma suíte de seis peças curtas para piano compostas em 1915: essas peças são baseadas em sete melodias romenas da Transilvânia, originalmente tocadas em violino ou flauta pastoril, que foram publicadas sob o título Romanian Folk Dances from Hungary, mas o título foi posteriormente alterado quando a Transilvânia se tornou parte da Romênia em 1920. Depois temos a Sonatina (1915), que foi composta a partir de canções coletadas na Romênia. E, para finalizar, Jenő Jandó interpreta as duas séries de miniaturas do book Romanian Christmas Carols, que Bartók compôs baseado em curtas canções natalinas tradicionais da Romênia chamadas de colindes (muito tradicional também na Moldávia). Essencial.

Além da chanson francesa, da música de cabaret, do jazz e ritmos sincopados, Darius Milhaud (1892-1974) foi um compositor nacionalista que se interessou por vários tipos de música, incluindo obras infantis. Tendo sido, certa feita, contratado como secretário pelo dramaturgo Paul Claudel, Milhaud tão logo se interessou por literatura e pela faceta de musicar textos literários, algo que o levou a escrever óperas e peças infantis como estas registradas neste álbum acima. O CD acima traz as peça "Un petit peu de musique" (1932) e "Un petit peu d'exercice" (1934), duas adaptações musicais de pequenos textos e pequenos poemas infantis escritos por Armand Lunel, e também traz orquestrações do ciclo "Récréation" (1938) para canto infantil e piano, uma adaptação sobre um tema do compositor Johann Krieger (1651-1735): essas obras, com melodias cantadas com textos de estórias e fantasias, envolvem canto infantil acompanhado com piano e um coral uníssono de crianças acompanhadas por arranjos orquestrais, onde Milhaud embrenha de forma muito sutil certa modernidade bitonal aqui e ali. O coral infantil Maîtrise de l'Opéra de Lyon é acompanhado pela Orquestra da Ópera de Lyon sob a regência de Claire Gibault. O CD finaliza, enfim, com "Cinq chansons de Charles Vildrac", um ciclo de lieder para soprano (agora com canto adulto) e piano, uma peça onde Milhaud música poemas de Charles Vildrac e também traz um caráter nonsense que se soma ao propósito infantil do álbum. Embora este CD se destoe, um pouco, do caráter modernista deste post, achei interessante também aqui listar ao menos uma ou outra obra da categoria de peças infantis, afim de deixar nossa lista mais diversificada.

Intercalando nacionalismo com o uso de técnicas e conceitos vanguardistas, Witold Lutoslawski (1913-1994) foi, ao lado de Krzysztof Penderecki, o principal compositor modernista da Polônia, sendo um dos principais e mais executados compositores do século 20 e desse início do século 21. Acima temos fantásticas interpretações das suas obras à cargo do maestro Hannu Lintu e a Orquestra Sinfônica Rádio Finlandesa, uma das orquestras mais vigorosas no que diz respeito ao repertório moderno. A neoclássica Sinfonia No.1 em quatro movimentos de Lutoslawski é emblemática porque ele a começou escrever sob as inspirações e pressões geopolíticas da época —— a começar pela Invasão da Russia na Polônia em 1939, seguida da eclosão da Segunda Guerra Mundial —— e o compositor teve, inclusive, a conclusão e estreia dessa sua peça diretamente afetadas pela guerra e pela censura soviética: apenas nesse período ele assiste a Rússia dominar o seu país, escapa por pouco de ser capturado pelo nazistas alemães, passa a tocar por mixarias nos bares de Varsóvia, e assim que a guerra termina, quando ele tem a oportunidade de retomar suas atividades à frente de uma grande orquestra para estrear suas obras, essa sua primeira sinfonia é proibida de ser executada sob acusação de "formalismo". Mesmo Lutoslawski atenuando sua verve modernista, adotando uma postura neoclássica aliada às danças e linhas melódicas da música tradicional polaca —— inspirando-se, inclusive, em Bartók e Prokofiev ——, ainda assim o vigor e os rompantes da peça soaram um tanto violentos e desconfortáveis para os tímpanos da censura russa que se instalara na Polônia. No álbum acima, o maestro Hannu Lintu e a Finnish Radio Symphony Orchestra também interpretam a ultra modernista Jeux venitiens (1961), peça que Lutoslawski escreveu combinando, de uma forma bem particular, conceitos da "música aleatória" de John Cage com a técnica dodecafônica de Schoenberg: nesta peça ele se utiliza de vários jogos, esquemas, séries e eventos aleatórios espaçados por silêncios, separando os naipes e combinações de instrumentos por seções e agrupamentos, e desenvolvendo as linhas de tons a partir da técnica de séries dodecafônicas. O álbum termina com a sua Sinfonia No.4 em movimento único, que na verdade é composto por duas partes, preparação e evento principal: trata-se de uma peça cheia de contrastes que começa nos incitando ao mistério de um lento arpejo neobarroco com baixo-contínuo, até que surge uma intervenção de linhas melódicas dissonantes de clarinete e flauta, tendo em seguida intervenções pontilhistas de trompetes, cordas, piano... e retornando para a linha melódica misteriosa do clarinete e flauta até, novamente, receber intervenções de novos pontilhismos e, enfim, se desembocar em cacofonias e rompantes mais tensos, intensos e explosivos com metais combinados com percussão e madeiras..., também tendo um uso muito modernista do naipe de cordas num interessante jogo de glissandos por entre as linhas melódicas sobrepostas. Este álbum mostra, então, que o maestro Hannu Lintu foi muito inteligente na escolha do repertório, sintetizando a carreira de Lutoslawski em três fases criativas: sua Sinfonia No.1 (1941-47), uma obra que marca seu modernismo inicial destilado sob pressão da censura soviética e sob influências neoclássicas; sua já ultra modernista Jeux venitiens (1961), que combina conceitos e técnicas de Schoenberg e John Cage; e sua Sinfonia No.4 (1988-92), obra cheia de contrastes que marca o seu período tardio agora sob influência da queda do regime comunista.
Este álbum acima com o maestro polonês Antoni Wit registra o emblemático Concerto for Orchestra escrito por Lutoslawski entre 1950 e 1954 e o moderníssimo Cello Concerto (1970). Este concerto para orquestra de Lutoslawski —— lembrando que "concerto para orquestra", diferentemente do concerto para instrumento solo, é um tipo de peça onde o compositor dá espaços mais solísticos para que grupos de instrumentos ou naipes se destaquem dentro da orquestra —— é um passo adiante na evolução da sua música após suas duas primeiras sinfonias, tendo sido considerada uma das obras que lhe trouxe ainda maior respeito e prestígio. É, contudo, uma das suas últimas obras ainda "neoclássicas", já que nos anos posteriores ele adotaria uma criação musical marcada por inspiradas tratativas influenciadas pelo aleatorismo de Cage e pelo dodecafonismo de Schoenberg. Aqui neste seu concerto, inspirando-se no Concerto for Orchestra (1943) de Bartók, Lutoslawski faz uso das folclóricas inspirações que ele coletou da tradicional região de Kurpie, inflexionando os motivos melódicos das canções dessa região de forma um tanto implícita em meio a sobreposições e contrapontos intrincados desenvolvidos a partir de iconoclastas inflexões de formas clássicas e barrocas. De uma forma muito própria, iconoclasta e modernista, Lutoslawski desenvolve este seu concerto a partir de inflexões instrumentais e orquestrais sobre formas como capriccio (um tipo de peça livre e virtuosística), arioso (um tipo peça para vocal solo, uma ária que faz uso da técnica do "canto recitado" ou "canto falado"), passacaglia (um tipo de peça que evoca seriedade, onde os contrabaixos e os naipes mais graves protagonizam a linha melódica), seguido de uma vívida toccatta (tipo de peça onde as cordas protagonizam, juntas e em contrapontos, linhas melódicas velozes) e, por fim, coral (uma inflexão orquestral dos estilos usados em coral de vozes). O álbum finaliza com seu moderníssimo Cello Concerto escrita por volta de 1969 para ser dedicada ao célebre violoncelista russo Mstislav Rostropovich. Muito influenciado pelos conceitos de aleatoriedade (de John Cage, Morton Feldman e etc), Lutoslawski cria um incomum concerto onde por mais de cinco minutos o solo do cello paira praticamente sozinho até que aleatórios pontilhismos e rompantes orquestrais surgem para conferir novas dinâmicas à peça.

Henry Cowell (1897-1965) é um dos ases da primeira geração de vanguarda a surgir nos EUA no início do século 20 —— ele comumente é referenciado como parte do Grupo dos Cinco ao lado de Ives, Charles Ruggles, John J. Becker e Wallingford Rieggerele, grupo precursor da música de vanguarda americana, que surgiu sem aderir ao escopo dodecafônico de Schoenberg, mas surgiu como uma resposta independente à influência do mestre austríaco. Sendo um compositor excêntrico, cheio de ideias inovadoras e experimentais, Cowell era um músico e compositor autodidata que desenvolveu suas próprias ideias no campo da invenção musical e sua própria linguagem composicional, muitas vezes misturando melodias folclóricas, contrapontos dissonantes, agrupamentos inusuais de acordes (clusters), orquestrações e combinações instrumentais não convencionais e até temas do paganismo irlandês. Também foi um dos precursores da música eletrônica, tendo sido, junto com Joseph Schillinger, autor do projeto do Rhythmicon, o primeiro instrumento eletrônico, construído em 1931 pelo inventor russo Leon Theremin, a possibilitar a produção automática de ritmos. Henry Cowell foi, enfim, um dos primeiros inovadores a propor novas técnicas composicionais a partir de notações gráficas experimentais. Sua música para piano é experimental e prenuncia as técnicas e abordagens do piano preparado, uso de agrupamentos de tons (clusters), harmonias politonais e notação gráfica idiossincrática, sendo o seu Concerto para Piano e Orquestra (1928) um dos exemplos contumazes dessas suas inovações. O álbum acima, lançado pela Col Legno em 2001, traz o pianista Stefan Litwin interpretando esse seu Concerto Para Piano, peças sortidas para piano solo baseadas em canções do paganismo irlandês, a peça Four Irish Tales para piano e Orquestra (1940) também baseada em canções irlandesas, sua Sinfonietta (1928) e seu Concerto Piccolo (1941-45).

Para além do fato de apresentar inúmeras excentricidades e inovações que contribuíram para o nascimento da vanguarda nos EUA, Henry Cowell não deixa de ser considerado um dos pais do nacionalismo americano, tendo sido um dos compositores, ao lado de Charles Ives e Aaron Copland, a contribuir para o florescimento de uma certa "alma americana" dentro da música erudita moderna. E este álbum acima, centrado em compilar peças da sua produção camerística, é um dos registros que atestam essa contribuição. O álbum reúne peças gravadas pela maestrina Tania Léon à frente do ensemble Musicians' Accord e pelo Colorado String Quartet e reúne, então, um caleidoscópio que abrange toda a carreira de Henry Cowell, desde a sua juventude até sua última fase pré-falecimento: a começar pela peça "Pedantic" (1916), passando por "String Quartet No.1" (1916), "Quartet Romantic" (1915-1917), "Quartet Euphometric" (1916-1919), "Movimento para Quarteto de Cordas" (String Quartet No. 2) (1928), "Suite for Woodwind Quintet" (1934), "Return" (1939) para percussão, "Quarteto para Flauta, Oboé, Violoncelo e Harpa" (1962), "26 Simultaneous Mosaics” (1963) e etc. Essas peças reúnem, então, todo um conjunto de cores, imagens sonoras e características americanas que Cowell conseguiu combinar de forma muito original com suas dissonâncias bitonais e politonais, com seus clusters e com sua concepção rhythm-harmony (harmonia rítmica).
Charles Ives (1874-1954) é o mais importante compositor quando o assunto é o nascimento da música erudita moderna genuinamente americana. Mas Ives também é considerado um precursor da música de vanguarda nos EUA, tendo antecipado diversos experimentos que evoluiriam diretamente para o avant-garde pioneiro de compositores com Henry Cowell e Lou Harrison, dois dos modernistas que, inclusive, pleiteariam um maior reconhecimento a ele. Charles Ives, muito ignorado em suas primeiras décadas da carreira, conseguiu, portanto, ser o pai do movimento do nacionalismo americano ao mesmo tempo de acender a fagulha do movimento de experimentação dessa nova música genuinamente americana. Sua música é marcada pelo início da música microtonal, pelo uso de imagens sonoras e por diversas citações de adereços culturais, de canções populares, hinos protestantes, além do uso de elementos proto-jazz, danças e sincopações, marchas militares, métricas irregulares e diversos outros adereços americanos combinados com partes dissonantes, algumas vezes bitonais e até politonais, além de haver partes em suas partituras onde há sobreposições de linhas melódicas em compassos e andamentos diferentes, entre outros experimentos e modernidades. Este álbum acima traz alguns exemplos claros dessa modernidade que se esticava para estourar a bolsa amniótica já nos anos iniciais de 1900. Neste álbum temos um registro que promete introduzir o ouvinte ao mundo misterioso de Charles Ives, um compositor que precisou sobreviver trabalhando por 30 anos como vendedor de seguros antes de começar a ter sua música reconhecida. O álbum começa com a peça Three Places in New England, que teve alguns dos seus primeiros esboços escritos já em 1903, mas que passou por diversas adições, modificações e revisões até de fato ser concluída em 1929: a obra apresenta um interessante jogo de texturas, de melodias sobrepostas, nuvens e agrupamentos de tons sobre tons, cacofonias, bitonalidade, politonalidade, citações reconhecíveis de marchas e hinos e um certo imagetismo ligado ao enaltecimento do patriotismo americano da fase pós-Guerra Civil. Segue-se a meditativa peça "The Unanswered Question", que forma, junto com a aclamada Central Park in the Dark, as duas partes da obra Two Contemplations, composta em 1908: essa peça, também revisada algumas vezes até obter sua forma definitiva em 1935, conta uma história existencial que se desenrola de forma misteriosa e meditativa com a massa sonora dos violinos soando o tempo todo num "pppp" quase silencioso representando "O Silêncio dos Druídas", com intervenções sobrepostas de um trompete que representa "A Questão Perene da Existência", com o qual um quarteto de sopros tenta separadamente dialogar representando as "Respostas Lutadoras", respostas essas que vão aumentando a intensidade, mostrando frustração e soando mais dissonantes. O álbum segue com os três movimentos da peça "A Set of Pieces for Theatre Orchestra", que Charles Ives escreveu entre os anos de 1899 e 1906, peça onde o ouvinte terá o contato com uma música já eminentemente moderna —— e até radical, considerando a época da sua conclusão ——, uma peça que inexplicavelmente antecipa muito do modernismo que viria a seguir: a obra apresenta várias flutuações anacrônicas de linhas melódicas sobrepostas, incomuns agrupamentos de sons sobrepostos que beiram a cacofonia, várias mudanças irregulares de métricas, seguindo-se um tom mais misterioso e outros contrastes. Segue-se a sua Sinfonia No.3 (1908-10), uma peça mais nostálgica e comedida, soando com inspirações em melodias campestres, canções da Guerra Civil, danças e hinos protestantes misturados com elementos da tradição clássica. E, por fim, o álbum finaliza com a moderníssima Set No.1 for Chamber Orchestra (1907-11), que é uma peça que apresenta uma combinação exuberante de contrapontos e sincopações envolvendo ritmos marchantes, elementos proto-jazz, clusters, bitonalidades e outras facetas idiossincráticas. Charles Ives foi, acima de tudo, um profeta!

Achei interessante variar nossa lista indicando este álbum temático. Esta compilação de composições americanas do século 20 para conjunto de metais (trompetes, trompas, trombones, tubas e outros horns) apresenta como faixa-título a peça "From the Steeples to the Mountains" de Charles Ives, uma peça que tenta recriar a imagem sonora dos sinos das igrejas ecoando nas montanhas. O álbum consegue, de fato, mostrar essa temática dos conjuntos e orquestras de metais conectada com as estéticas nacionalistas americanas, numa linha do tempo que vai de Charles Ives, no início do século 20, até o minimalismo de Philip Glass no final desse século, apresentando um mosaico luminoso do repertório para esse naipe nessa linha do tempo. O álbum ainda traz obras de outros modernistas como Carl Ruggles, Virgil Thompson, Elliott Carter, Samuel Barber e Roy Harris. Uma peça interessante é a "Mutations From Bach" de Samuel Barber, onde o compositor faz uma recomposição das passagens da Cantata No. 23 de Bach em um estilo modernista concernente com o século 20, algo que tenderá a soar intrigante para quem é familiarizado em Bach. Na mesma direção, Elliott Carter faz um estudo modernista da "Fantasia upon One Note" de Henry Purcell, compositor do barroco inglês. Da repaginação moderna das fanfarras e fantasias clássico-barrocas às populares brass bands que eclodiram pós Guerra Civil Americana, dos hinos protestantes aos resquícios de jazz, do modernismo do início do século 20 aos efeitos repetitivos da música minimalista, este CD traz ao ouvinte ecos variados dentro desse mosaico estético no qual o repertório erudito americano para instrumentos de metais se encaixa. Ouçam!

Um dos maiores virtuoses da história da música, tendo sido o único trompetista e compositor a estar simultaneamente no topo dos rankings de excelência do jazz e da dita música clássica nessas últimas décadas, Wynton Marsalis é altamente reconhecido —— e criticado —— por seu neotradicionalismo bem polido e seletivo, conseguindo soar tão tecnicista quanto original. No ramo da composição, Wynton seguiu as trilhas de Duke Ellington, Stravinsky, Charles Ives e Leonard Berstein e evoluiu gradativamente para se tornar um dos principais compositores contemporâneos da atualidade —— e na minha opinião, ele é um dos cinco mais inventivos compositores americanos vivos ao lado de gênios como Steve Reich, John Adams, John Zorn e Philip Glass. Já enquanto trompetista, Wynton explodiu no início dos anos 80 como um intérprete original e irretocável dos repertórios barroco e clássico, sem dar nenhuma atenção para o repertório moderno, até que em 1993 ele e a pianista Judith Lynn Stillman gravam este registro acima, que é basicamente uma compilação de temas tirados de peças escritas no século 20 por compositores da estirpe do neoclassicismo nacionalista tais como Paul Hindemith (Alemanha), Francis Poulenc (França), Leonard Berstein (EUA), Maurice Ravel (França), Arthur Honegger (Suíça/ França), Henri Tomassi (Fança), Eugène Bozza (França), George Enescu (Romênia) e Halsey Stevens (EUA). É o único álbum no qual Wynton se dedica a explorar o repertório moderno na condição de intérprete. É, enfim, uma dica válida para o ouvinte que quer ter uma introdução tranquila no repertório moderno para trompete. A Sonata For Trumpet and Piano (1959) de Halsey Stevens é a minha peça preferida.
Ainda que o caráter açucarado e popular dessa obra possa induzir o ouvinte de paladar auditivo mais vanguardista a um coma glicêmico, vale aqui mencioná-la como uma das obras que revolucionaram a categoria dos musicais americanos. Em meados dos anos 50, Leonard Berstein, na época já maestro de renome e compositor em ascensão, recebeu uma encomenda do célebre coreógrafo e diretor de teatro e cinema Jerome Robbins (na época com produções em alta no Teatro da Broadway) para escrever a música que daria vida à sua adaptação contemporânea da história de Romeu & Julieta de William Shakespeare. O livreto foi reescrito pelo célebre dramaturgo Arthur Laurents, que adaptou esse clássico romance para aqueles dias atuais dos anos 50 através de uma história que se dá no operário e multirracial distrito de Upper West Side de Manhattan, na cidade de Nova York. A readaptação centra-se numa trama onde a polícia tinha de lidar com a disputa pelo domínio do bairro entre a gangue dos brancos chamada Jets e a gangue porto-riquenha dos Sharks, sendo que o protagonista Tony (evocando Romeu) era um ex-membro dos Jets e melhor amigo do líder dessa gangue, Riff, e se apaixona por Maria (que evoca Julieta), irmã de Bernardo, líder dos Sharks —— uma história de amor impossível, portanto. Com a produção sendo confirmada para várias temporadas no Teatro da Broadway, Berstein compõe uma masterpiece híbrida de música sinfônica, solos de jazz, big band, canção popular, ritmos latinos, teatro musical, inspirações em trilhas cinematográficas, entre outros elementos americanos, produzindo um musical de renovado hibridismo americano que recebeu automática aclamação de crítica. Posteriormente, Berstein apresentaria uma versão instrumental mais sinfônica sem as partes faladas e cantadas chamada Symphonic Dances from West Side Story, enquanto a versão teatral continuava a apresentar uma orquestração mais híbrida e popular. Aliás, essa versão estritamente instrumental e sinfônica já recebeu diversos arranjos diferentes, incluindo um arranjo para violino com aclamada interpretação do célebre violinista americano Joshua Bell. Acima deixo-vos a versão original do musical encenado na Broadway.

Maestro de renome, o sueco Christian Lindberg também é um dos maiores trombonistas de todos os tempos, tendo uma carreira marcada por centenas de gravações que enriquecem o repertório específico do trombone e ainda permite agregar, no repertório desse instrumento, arranjos de peças e temas escritos para outros instrumentos e/ou escritos para outros contextos e gêneros: suas gravações inclui arranjos que vão de releituras dos temas de Sgt. Pepper's dos Beatles até gravações de canções natalinas, passando por releituras para trombone de peças de Schubert, Liszt, Beethoven, e várias peças contemporâneas, muitas delas escritas exclusivamente para ele. Neste álbum acima, Lindberg interpreta peças concertantes escritas para trombone e orquestra por compositores americanos tais como Paul Creston (1906-1985), Gunther Schuller (1925-2015), George Walker (1922-2018) e Ellen Taaffe Zwilich (1939- ), algumas dessas peças com certos hibridismos entre o neoclássico modernista, o jazz e outros resquícios que ratificam essa verve de mistura entre erudito e popular. Gunther Schuller, por exemplo, é reconhecido por ter cunhado o termo e o conceito de hibridificação da música erudita moderna com o jazz nos anos 50, um conceito que ficou conhecido como "third stream" —— e do qual, hoje, Wynton Marsalis é o grande representante. George Walker, outro exemplo, foi o primeiro compositor erudito afro-americano a ganhar um Pulitzer Prize em 1996 através da sua obra Lilacs. E a compositora Ellen Taaffe Zwilich, já tendo um estilo mais neorromântico com pontuais inflexões dissonantes, foi a primeira compositora a ganhar um Pulitzer Prize através da sua peça "Sinfonia Nº 1 - Três Movimentos para Orquestra", em 1983. Deixo este álbum acima, na verdade, como uma porta aberta para os aficionados em trombone pesquisar outras pepitas do tipo na discografia de Christian Lindberg: o trombonista lançou outros volumes de álbuns nesta mesma linha de trabalho, tais como os dois volumes desse "American Trombone Concertos" e o volume de "British Trombone Concertos".

Anteriormente, lhes trouxe o trombonista Christian Lindberg interpretando peças de compositores americanos que transitam, mais ou menos, em torno da estética neoclássica, com alguma influência nacionalista aqui e ali. Já aqui neste álbum lhes trago peças compostas por compositores ligados ao avant-garde europeu. Desta forma, o ouvinte poderá sentir diferentes nuances e percepções entre uma estética e outra. E neste álbum acima temos um caso emblemático de primeiras gravações de peças que os compositores escreveram para serem exclusivamente dedicadas ao trombonista. Nos anos de 1980, o compositor grego Iannis Xenákis (1922-2001) encontra Lindberg e lhe dedica, então, um concerto para trombone que se chamaria Troorkh (título derivado de trombone + orkhestra): o trombonista conta, inclusive, que para dar vida a este concerto de Xenákis, ele teve que realizar um rigoroso programa de estudos para adquirir a leitura e a resistência técnica exigida pelo compositor, algo que levou dois anos. Já o concerto SOLO é uma adaptação para trombone e orquestra de uma das partes da ópera Cronaca del Luogo (1999), que Luciano Berio (1925-2003) escreveu exclusivamente para Lindberg. O álbum finaliza com a peça "Yet Another Set To" (2004) que o compositor britânico Mark-Anthony Turnage (1960- ) também escreveu exclusivamente para ser estreado por Christian Lindberg: a obra é inspirada pelo brilhantismo da estética modernista inglesa —— que sempre deu uma tratativa muito fulgurante e luminosa para os metais —— e também traz resquícios inflexionados do jazz, sendo uma das obras mais técnicas e difíceis dentro do repertório moderno do trombone. Lindberg é acompanhado pela Filarmônica de Oslo, aqui regida pelo célebre maestro Peter Rundel.

No final dos anos de 1940, o trompista e maestro Gunther Schuller já influenciava os músicos de jazz com suas ideias ao apregoar um conceito de hibridificação do jazz com a música erudita moderna de forma a criar uma "terceira corrente". Esse conceito foi chamado então de "third stream" e na década de 1950 até chegou a influenciar alguns músicos tais como John Lewis, Miles Davis, Gil Evans, Charles Mingus e outros. Esse conceito ficou registrado, inclusive, no emblemático álbum The Birth Of The Third Stream (Columbia, 1957/ 1958). Ainda que o conceito da "third stream" não culminasse num movimento criativo generalizado, vários outros músicos de jazz se inspiraram nessas ideias parar criar obras híbridas —— atualmente, inclusive, temos em Wynton Marsalis um forte exemplo de aplicação dessa estética. A partir dos anos de 1950, Gunther Schuller comporia várias peças de fusão entre os elementos do jazz e os elementos da música erudita moderna, intensificando-se nessa nova seara a partir dos anos 60 com obra cada vez mais modernas, algo como sendo um "Duke Ellington meets Arnold Schoenberg", onde ele misturas improvisos, ritmos e texturas das big bands e dos combos de jazz dentro das estruturas e dissonâncias sinfônicas numa só peça híbrida. É o caso das peças registradas no álbum acima pela excelente Boston Modern Orchestra Project, uma das mais proficientes orquestras a atualmente dar vazão no repertório criado pelos compositores modernos e contemporâneos dos EUA. Neste álbum acima, a BMPO interpreta de Schuller as peças Concertino for Jazz Quartet and Orchestra (1959), Variants for Jazz Quartet and Orchestra (1960) e Journey into Jazz (1962) para narrador e orquestra. Essas peças do anos 60 marcam, inclusive, uma maior adesão de Schuller às modernidades harmônicas sopradas pelos ventos da vanguarda europeia. Curiosamente, a peça Journey into Jazz (1962) para narrador e orquestra é inspirada na clássica obra infantil de Peter and the Wolf (1936) de Prokofiev, mas traz uma composição musical eminentemente calcada nas inspirações dodecafônicas, misturando as acentuações do jazz com texturas sinfônicas dissonantes. Outra observação interessante é que essas duas obras "para quarteto de jazz orquestra" trazem ecos da parceria que Gunther Schuller efetuou por muitos anos com o emblemático Mondern Jazz Quartet, formado com o pianista John Lewis, o contrabaixista Percy Heath, o baterista Kenny Clarke e o vibrafonista Milt Jackson.

"The Fisherman and His Wife" é outra das peças de Gunther Schuller que vem ganhando atenção dentro desse processo de renovação e expansão do repertório moderno ao qual algumas orquestras americanas estão se submetendo. A peça foi encomendada como uma ópera infantil pela Junior League of Boston na época em que Gunther Schuller presidia o New England Conservatory, e foi estreada em 1970 pela Sarah Caldwell's Opera Company de Boston. Trata-se de uma ópera de 65 minutos que é baseada numa famosa estória coletada pelos Irmãos Grimm em 1812, tendo tido seu libreto escrito por ninguém menos que John Updike, duas vezes ganhador do Prêmio Pullitzer de literatura: e o libreto conta a história de um humilde pescador que faz repetidas viagens em meio ao mar agitado para invocar um peixe mágico que ele pescou e soltou, sendo que esse peixe é, na verdade, um príncipe encantado para o qual o pescador irá pedir a realização dos desejos cada vez mais grandiosos sonhados por sua esposa. Para dar vida à essa estória, Schuller adota um esquema de temas e variações com um caráter orquestral mais lúdico e diluído dentro do seu conceito de third stream que hibridifica jazz com dissonâncias dodecafônicas, deixando suas influências jazzísticas soarem apenas implícitas e diluídas, e criando uma peça cheia de timbres, cores, tons misteriosos e passagens imagéticas, onde os usos timbrísticos do orgão, da celesta, da guitarra elétrica, dos clarinetes, das flautas, da harpa, das cordas, dos sopros, dos metais... são todos bem pensados em prol do ludismo colorido e misterioso da estória. Este álbum registra, então, mais uma das peças modernas que tem sido resgatadas dentro do repertório da Boston Modern Orchestra Project (BMOP), orquestra que tem sido um modelo de excelência entre as orquestras americanas que estão renovando e expandindo o repertório erudito moderno.
O proficiente trombonista francês Jacques Mauger nos apresenta acima um caleidoscópio de peças para trombone escritas pelo compositor Jean-Michel Defaye (1932- ), que também foi músico calcado no jazz —— pianista da Olympia Big Band ——, arranjador e maestro francês, conhecido por sua colaboração com o poeta e cantor e compositor francês Léo Ferré. Essas peças são, inclusive, fruto da amizade e parceria que o próprio trombonista Jacques Mauger nutre com o compositor. Com um estilo consonante cativante, neoclássico com elementos do jazz, e com uma escolha de timbres bem inteligente, Jean-Michel Defaye nos mostra no álbum acima uma peça escrita para um conjunto de trombones combinados com percussão. Segue-se peças para trombone e piano: uma dessas parafraseando a poética de uma balada de jazz, enquanto as outras soam com mais ponteios, improvisos e floreios. Segue-se paráfrases que ressignifica os estilos de Johann Sebastian Bach e de Schumann. Temos também uma peça escrita para conjunto de trombones e vozes. E assim, compositor e trombonista nos presenteia com um variado caleidoscópio de combinações. Um álbum cativante e divertido.
O sueco Håkan Hardenberger é um dos maiores nomes do trompete de todos os tempos. Se Wynton Marsalis é considerado um dos mais originais entre as sumidades desse tecnicismo trompetístico, Håkan Hardenberger foi chamado de "o trompetista de som mais limpo e sutil da Terra" numa crítica do jornal britânico The Times. O fato é que ele consegue ter um tom claro, limpo e sutil mesmo nas frases e passagens ultra difíceis de se executar. Para além do repertório barroco e clássico, Håkan Hardenberger tem sido há décadas um especialista no repertório moderno e contemporâneo, com vários compositores já tendo escrito peças exclusivamente para ele: Harrison Birtwistle, Toru Takemitsu, Hans Werner Henze, Rolf Martinsson, Mark-Anthony Turnage, Heinz Karl Gruber e Arvo Pärt são alguns deles. Neste álbum acima temos um curioso —— e nem tão comum —— registro de peças para trompete solo, sem acompanhamento. O álbum contém as seguintes peças: Sonatina For Solo Trumpet (1974); Paths, In Memoriam Witold Lutoslawski, for trumpet (1994) do compositor japonês Toru Takemitsu; a já constantemente tocada Sequenza X de Luciano Berio; a peça Old/New (Study For Solo Trumpet) (1986) de Maurice Kagel; a peça Emotion for trumpet and dance de Antoine Tisné; a peça La Mort De L'aigle (1948) de Michael Blake Watkins; e, por fim, a peça Die Große Schildkröten-Fanfare Vom Südchinesischen Meer (1985) de György Ligeti. Algumas dessas peças foram encomendas ou comissionamentos exclusivamente dedicados para Håkan Hardenberger.

Håkan Hardenberger tem sido há décadas um defensor e contribuinte para a necessária expansão do repertório de peças modernas para trompete. Neste álbum acima, Håkan Hardenberger dá sua interpretação clara e virtuosa para três peças concertantes escritas por três compositores ingleses da música modernista da segunda metade do século 20. O álbum começa com a peça-título Endless Parade (1987) de Sir Harrison Birtwistle (1934-2022): essa peça traz um luminoso e divertido diálogo entre os ponteios realizados pelo trompete e os pontilhismos das cordas, com uma clara intenção de aplicar contrastes de intensidades, texturas e timbres. Segue-se o Concerto for Trumpet (1988) do compositor Peter Maxwell Davies (1934-2016): inspirada pela canção medieval "Franciscus pauper et humilis", de Francisco de Assis, trata-se de uma daquelas peças modernistas com inspirações religiosas que adotam um sombreamento mais meditativo, mais espiritual, ainda que não deixe de apresentar certos pontilhismos mais aventurosos em partes pontuais dos três movimentos, principalmente em seu "Presto" final. Por último, o álbum nos traz o Concerto for Trumpet (1988) de Michael Blake Watkins (1948- ), uma obra modernista que adota tons renovados de elementos neoclássicos e neorromânticos, com um certo melodismo subjetivo e imagético ecoando e nos prendendo a atenção por todo o percurso da peça. A BBC Philharmonic Orchestra é quem acompanha Hakan Hardenberger e o maestro Elgar Howarth é quem dirige o espetáculo. Nesta 👉 entrevista para a VAN Magazine, Hakan Hardenberger fala um pouco sobre a necessidade de se continuar a fomentar a criação de um repertório novo para o trompete —— o que vale, também, para o trombone, a trompa, a tuba e outros horns ——, uma vez que, ao contrário do protagonismo que o trompete alcançou no jazz, trata-se de um dos instrumentos mais carentes de repertório inédito dentro da seara erudita. Todas as três peças foram escritas exclusivamente para Hardenberger.

Neste álbum o trombonista americano John Swallow também apresenta três peças concertantes de compositores modernistas da segunda metade do século 20. O álbum começa com a peça Eine Kleine Posaunenmusik (1980), que Gunther Schuller escreveu exclusivamente para o próprio John Swallow: trata-se de uma obra em cinco movimentos escrita para um ensemble de sopros com 22 dois integrantes, incluindo harpa, piano, celesta e contrabaixo, onde o compositor dá uma tratativa timbrística mais essencial aos metais dentro de um contexto de ensemble modernista sem a maciez das cordas (sem o uso dos violinos, viola e cellos), com um uso muito reduzido, também, das influências jazzísticas, deixando pra usar essas suas inspirações advindas do jazz apenas implicitamente no jogo de cores e timbres. Segue-se a Sequenza V para trombone Solo de Luciano Berio, essa gravada ao vivo com o trombonista provocando reações de surpresa e risos na plateia, conforme aplica suas técnicas estendidas. Segue-se a peça Ritornelli: for trombone, wind instruments, and percussion Op. 85 (1974) do compositor galês Alun Hoddinott (1929-2008), peça encomendada ao compositor no início dos anos de 1970 pela London Sinfonietta, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian de Portugal. E, por fim, o álbum termina com o neoclássico Concertino d'Hiver Op. 327 para trombone e orquestra de cordas (1953) do compositor francês Darius Milhaud.

A tuba é um dos instrumentos que também vem aumentando seu repertório nesses últimos tempos, deixando, gradativamente, de ser um instrumento mais ligado a brass bands, big bands e fanfarras para ter um espaço cativo também no meio sinfônico-concertante. Mas aqui quero lhes trazer alguns concertos para tuba escritos ainda no século 20. O álbum acima nos traz o Tuba Concerto de Edward Gregson (1945- ), originalmente escrito em 1976 para banda de metais (brass band), com sua versão orquestral feita em 1978 e sua primeira apresentação datada em 1983: trata-se de um melodioso e cinematográfico concerto neoclássico com referência clara a Vaughan Williams no desenvolvimento do tema de abertura, uma peça de fácil apreciação auditiva, mas de latente modernismo neoclássico inglês. Segue-se o Concerto para Tuba e Cordas (1983) de Roger Steptoe (1953- ), que já apresenta um modernismo de verve neoclássica, sim, mas com delineamentos e sombreamentos mais subjetivos e com carga melódica menos explícita, onde o que mais importa são os diálogos, entrelaces e sobreposições entre a dramaticidade da tuba e os delineamentos das cordas. Segue-se o já bem conhecido, entre os tubistas, Tuba Concerto in F Minor (1954) de Vaughan Williams (1872-1958): sendo uma das obras tardias deste importantíssimo compositor do modernismo neoclássico inglês, este concerto coloca a tuba no centro daquele estilo cheio de rompantes e tons majestosos e neorromânticos característicos da música erudita inglesa. E, por fim, o álbum termina com o Concerto para Tuba Op.46: com a partitura da peça encontrada após a morte de John Golland, em 1993, e sendo estreada em julho de 1997 pela Halle Orchestra no Halle Proms no Bridgewater Hall, Manchester, a obra coloca a tuba em meio a coloridos ponteios e contrapontos contracenados entre metais e percussão, nos detalhando toda a expertise de um compositor que se especializara em escrever peças para brass bands e seus vários horns. Neste álbum acima, as interpretações são do tubista James Gourley e do maestro Garvey Sutherland à frente da Royal Ballet Sinfonia.

Há muitas estrelas na galáxia da música erudita moderna inglesa de verve neoclássica, de forma que encontrar uma compilação com as principais obras dos compositores dessa seara foi o melhor a se fazer. Nesta compilação acima, temos um amplo panorama da música erudita britânica, a começar por figuras que fizeram a transição da música romântica do século 19 para a música moderna do século 20 tais como Vaughan Williams e Edward Elgar, passando por figuras emblemáticas do modernismo inglês das décadas de 1930, 40, 50 e 60 tais como William Walton e Benjamin Britten, até abordar obras de compositores subestimados como John Foulds, Arthur Sullivan e Malcolm Arnold (esses, aqui, regendo suas próprias obras) —— só faltando mesmo "The Planets" de Gustav Holst. E para completar esse amplo panorama, a Warner também inclui peças de compositores contemporâneos que se revelaram entre fins do século 20 e início deste século 21, tais como Thomas Àdes e Mark-Anthony Turnage. Todas as obras são orquestrais. E a centenária Orquestra Sinfônica da Cidade de Birmingham, embora mais conhecida pela fase gloriosa liderada por Simon Rattle nos anos 90, tem aqui vários dos grandes maestros do universo clássico à sua frente, nos mostrando o porquê dela ser considerada uma das maiores orquestras do mundo.
Poderíamos até dizer que Sir Michael Tippett (1905-1998) —— honrado em 1983 com um título de Ordem do Mérito do Reino Unido pela rainha Elizabeth II —— foi uma espécie de nacionalista inglês, mas fica-se em dúvida se essa categoria lhe é a ideal. Michael Tippett foi aquele tipo de compositor inquieto e altamente original que demorou para ser reconhecido com um dos grandes compositores do século XX, mas, quando ele chegou a alcançar esse status, sua carreira e obra passou a suscitar os mais desencontrados entendimentos diante do fato de que ele variou bastante em seus estilos de composição, ficando difícil rotulá-lo ou categorizá-lo. Em geral, críticos e pesquisadores costumam emitir uma certa síntese simplista de que Michael Tippett foi um dos compositores mais líricos do modernismo britânico, com melodias longas e profundamente belas, além do fato dele ter sido um diletante estudioso das músicas inglesas medieval e barroca. Mas resumi-lo a essa síntese também seria apequená-lo demais, uma vez que ele transitou por diversos outros estilos e também explorou bastante aspectos contrapontísticos, rítmicos e folclóricos. Em sua vida pessoal e sua carreira prolífica, Tippett passou por algumas crises existenciais e criativas, incluindo crises de autoconhecimento no que diz respeito a não aceitar sua homossexualidade, somando-se ao fato dele ser um perfeccionista, um obstinado pelo passado, e, talvez, também somando-se ao fato dele constantemente ter que atenuar seu lirismo em busca de novas inspirações. Tendo ele mesmo destruído a maioria das suas obras compostas na juventude e no início da carreira, Tippett só começou a estrear suas primeiras obras na casa dos seus 30 anos de idade, e só começou a alcançar certo reconhecimento entre seus 40 e 50 anos. Numa análise mais linear da sua carreira e obra, poderíamos presumir e resumir que Tippett passou por ao menos três períodos criativos. Um primeiro período da sua carreira, que se estendeu até o final dos anos 1950, Tippett explorou influências do passado, como Beethoven, Handel, Purcell e os madrigalistas ingleses, incluindo nesse molho elementos rítmicos e folclóricos: caso de obras como o seu Quarteto de Cordas No. 1, a ópera A Child of Our Time e a sua Sinfonia No. 1. No segundo período, que começou com a ópera "King Priam", Tippett adotou um estilo mais modernista, com maior adesão à dissonância e atonalidade, incluindo influências americanas —— principalmente após sua visita aos EUA em 1965 —— e explorando temáticas como guerra, violência e sexualidade: obras notáveis desse período incluem The Knot Garden e a Terceira Sinfonia. E depois tem-se seu terceiro período, que começou mais ou menos em 1977, onde Tippett retorna ao seu lirismo do início da carreira e começa a produzir obras instrumentais de movimento único com melodias longas: como a Sinfonia No. 4, o Quarteto de Cordas No. 4, o oratório The Mask of Time e a ópera New Year. Neste álbum acima, pertencente a um box de 4 CDs lançado pela Nimbus Records, temos algumas das suas principais obras. O álbum começa com o extraordinário Concerto for Double String Orchestra (1938-39), uma peça que se resultou da busca de Tippett por um estilo musical distintamente inglês, através de uma pesquisa que ele fará voltando-se na história da música inglesa, começando a analisar desde o Renascimento até os compositores barrocos ingleses: nessa peça ele tem a ideia, então, de contracenar duas orquestras de cordas independentes, ressignificando de forma moderna elementos desse passado musical inglês e criando um rico jogo de polifonias e contrapontos, uma rica tapeçaria neobarroca com camadas de texturas e cores. Segue-se a sua "Fantasia Concertante on a Theme of Corelli" (1953): onde Tippett utiliza técnicas originais de variação e desenvolvimento a partir de um tema do compositor italiano Arcangelo Corelli. Em seguida temos a obra "Five Negro Spirituals" (from "A Child of Our Time") (1941): uma peça que faz parte da ópera de Tippett intitulada "A Child of Our Time" e reflete a fase em que o compositor se inspirou profundamente em elementos americanos, principalmente no lirismo e melancolia das canções do gênero "negro spirituals" (canções espirituais que os escravos negros cantavam nas lavouras e em seus cultos evangélicos), uma peça que retrata temáticas como sofrimento, redenção e esperança. Segue-se "Little Music for Strings" (1946): pequena suíte para orquestra de cordas em três movimentos, mais um exemplo de peça que explora uma variedade de texturas, pulsações, contrapontos, contrastes e timbres no âmbito dos conjuntos e orquestras de cordas, sempre com muito dinamismo e lirismo melódico. E, por fim, o álbum termina com "Magnificat and Nunc Dimittis" (1947): duas peças sacras compostas para um coro de vozes a capella, sendo "Magnificat" uma celebração do cântico bíblico de Maria, enquanto "Nunc Dimittis" é uma reflexão sobre o cântico de Simeão. Essas peças já são o suficiente para se perceber como Michael Tippett ressignificava elementos do passado e das tradições folclóricas mais relacionadas ao lírico e ao contemplativo a partir de inflexões modernas e originais. Fica a dica para se conhecer suas outras facetas!





















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