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± 250 Álbuns Essenciais de Música Erudita Moderna & Contemporânea: Arte, inovações, avant-garde & hibridismos...

LIGETI | KAJA SAARIAHO | WYNTON MARSALIS | MOONDOG | JULIUS EASTMAN | TANIA LEÓN | ANTHONY BRAXTON | JOHN ADAMS | JOHN ZORN 

Este post me veio a calhar em 2020 através da nossa série 👉Atonalize-se!, onde convido nossos leitores a mergulhar nas dissonâncias e atonalidades da música erudita moderna e contemporânea. Mas aqui a ideia é ter uma lista mais abrangente que vá se completando através de um work in progress —— aliás, se os caros leitores puderem indicar álbuns, será uma grata contribuição! Encarem essa lista como um guia interdisciplinar: não há ordem específica; e a ideia é lembrar de alguns compositores importantes e suas obras seminais, e descobrir outros compositores mais "underrated" e suas obras instigantes durante o percurso. Só há um propósito nesta lista: trazer exemplos compilativos de uma variedade de compositores e suas obras que foram inventivos e seminais dentro dos séculos 20 e 21, com peças escritas para diferentes instrumentos, para diferentes orquestras, diferentes conjuntos de câmara, diferentes formatos de ensembles, e através de variados conceitos composicionais. Se há uma exigência a se fazer, aqui quero sugerir ao leitor e ouvinte que assimile o fato de que a música erudita moderna é, em sua essência, uma extensiva conexão sonora dos movimentos estéticos que transformaram as artes plásticas, as artes cênicas, a literatura, a arquitetura e todas as artes modernas desses dois séculos, sendo diferente da música estritamente pop ou popular, que está mais ligada ao folclore e às manifestações culturais dos povos e nações. Mas também aqui nesta nossa lista eu relaciono alguns compositores modernos e contemporâneos que trabalharam de forma inovadora as misturas de elementos do universo erudito com elementos do universo popular: compositores tais como Bela Bartók, Charles Ives e Villa-Lobos, por exemplo, os quais produziram obras com hibridismos altamente geniais ao transcrever elementos das tradições populares nacionalistas dentro da estética erudita. Trata-se de uma lista panorâmica que eu vinha procurando há anos nos principais sites e plataformas de música, mas não encontrava. Eu geralmente encontro listas totalmente parciais, quando não descaradamente tedenciosas e preconceituosas: ou são listas onde o crítico ou revisor responsável romantiza demais a música erudita com uma seletiva relação de compositores neoclássicos que soam quase sempre confortáveis e consonantes, sem relacionar as obras de vanguarda que revolucionaram esse gênero; ou são listas onde o crítico ou revisor responsável mostra apenas compositores mais apegados ao avant-garde, desconsiderando obras e compositores de cunho neoclássico que também foram importantíssimos; ou são listas onde, por exemplo, o crítico ou revisor responsável sintetiza a música contemporânea em um punhado de nomes pós-minimalistas encabeçados por compositores virais como Max Richter e Ludovico Einaudi; ou são listas como as playlists "lo-fi" para meditação e relaxamento que o algoritmo do Spotify nos indica... Enfim... Nesta lista, tento fugir desses estigmas seletivos e mercadológicos, mostrando um amplo panorama com a maioria, senão todos, os movimentos estéticos da música erudita dos séculos 20 e 21. Esta lista, enfim, foi gestada a partir de mais um daqueles esboços esquecidos que rascunhei durante as fases de lockdown pandêmico: e de quando em quando eu acrescentava discos até de fato chegar numa meta de mais ou menos 250 álbuns essenciais a serem indicados. Mas antes de apresentar os compositores, discos e obras, deixo aqui algumas reflexões adicionais.

Para além do fato de que o repertório dos teatros e salas de concerto ainda é levado a ser —— insistentemente —— um antiquário de repetitivas revisões museológicas, existem algumas outras demagogias irritantes e pedantes na dita "música clássica". Primeiro, que para esse tipo de música é mais apropriado usarmos o termo "música erudita", uma vez que o termo "clássico" já é amplamente usado para se referir aos fundamentos greco-romanos e para se referir à estética do período musical pós-barroco e pré-romântico, e até porque a essência desse tipo de música é realmente a erudição no sentido de conceitualização, de estudo, de materialização das ideias e abstrações do compositor numa pauta musical através de uma notação que é escrita para ser interpretada —— diferente da casualidade, informalidade e espontaneidade de alguns tipos de música popular e música improvisada, como o jazz e suas variantes já nos mostraram. Segundo, que chega a ser irritante, por exemplo, todos os rankings e endeusamentos que o mercado e as mídias conferem aos álbuns que são fixados como "clássicos irretocáveis", às orquestras que são fixadas como as mais rentáveis, aos virtuoses mais afamados e vendáveis e aos medalhões da batuta: aquela coisa do tipo "Hebert von Karajan é o maior regente de todos os tempos", "as versões de Carlos Kleiber para as sinfonias de Brahms e Beethoven são imbatíveis", "a Filarmônica de Berlim é a maior orquestra do mundo", "Daniil Trifonov é o maior pianista da atualidade"... e outras bobagens do tipo. Não que eu não admire o virtuosismo de alguns músicos, o vigor de algumas orquestras e as regências e leituras cirúrgicas de alguns maestros —— como Kent Nagano, Riccardo Chailly, Oliver Knussen, Reinbert de Leeuw, Pierre Boulez, Antoni Wit, John Neschling, etc ——, mas aqui nesta lista de álbuns abaixo esse tipo de ranqueamento inexiste não apenas porque eu não aprecio comparações e competições na música, mas principalmente porque estamos falando de música moderna e contemporânea enquanto arte de fato, onde o próprio formalismo experimental das obras já estabelece novos paradigmas conceituais e já se desconecta de qualquer lógica de comparação ou ranqueamento mercadológico, onde as próprias particularidades modernistas e experimentais das obras já promovem com força os hibridismos no âmbito das misturas erudito-popular-vanguarda, já promovem com força as individualidades de cada compositor e já desmontam com força os padrões orquestrais clássicos para remontá-los em incomuns e variados ensembles multidisciplinares, além de permitirem maior liberdade aos maestros e músicos em suas leituras e interpretações. E o mercado não foi feito para funcionar com essa liberdade. O mercado funciona com previsibilidade e foi feito para funcionar através de padrões vendáveis, padrões que viciem as pessoas numa certa zona de conforto, algo que é a antítese da arte inquietante. Para lhes trazer a lista abaixo, nem sempre consegui escapar desses padrões: isso porque, queiramos ou não, somos todos consumidores controlados dentro dessa lógica capitalista. Mas tentei ao máximo não segui-los.

ARNOLD SCHOENBERG | FRANK ZAPPA | BRIAN FERNEYHOUGH
Algo que também pode desagradar o ouvinte e o colecionador de música moderna e contemporânea é aquele conceito de discos onde os produtores e as gravadoras misturam uma obra clássica com uma obra moderna para torná-los mais vendáveis: ainda que esse tipo de padrão mercadológico seja benéfico no sentido de incitar o ouvinte a desenvolver uma escuta plural e despreconceituosa, muitas vezes a tal obra clássica foge completamente do contexto da obra moderna em questão, e os compositores modernos e os músicos contemporâneos perdem muito do espaço que poderiam ter e que já é um espaço pequeno, além do fato de que essas manipulações são descaradas e também não são justas com o ouvinte de música contemporânea que quer apreciar um álbum inteiro de, logicamente..., música contemporânea. Por isso, em alguns casos, as compilações são eficientes e mais apropriadas. Ademais, friso aqui que meu uso dos termos "moderno" e "contemporâneo" é apenas uma referência relativa e difere-se um tanto das generalizações que vemos na Wikipédia ou nos sites e plataformas mais mercadológicos: há aqueles que geralmente classificam toda a música dos séculos 20 e 21 —— de Schoenberg até John Adams —— como sendo tudo "música contemporânea" ou tudo "música moderna"; e há aqueles que usam esses termos de forma retórica em sentido pejorativo denotando e conotando que um determinado compositor é mais ou menos moderno do que aquele outro compositor. No meu caso, eu me situo com esses termos "moderno" e "contemporâneo" tendo em mente que houve um momento inicial de modernidade e um momento pós-moderno mais recente, apenas como uma referência mais meramente temporal do que tecnicamente estética para nos situarmos dentro da timeline dos séculos 20 e 21: ou seja, uso o termo "moderno" para me referir, por exemplo, às obras do início do século 20 a partir do dodecafonismo de Schoenberg até —— mais ou menos... —— a "nova complexidade" de Brian Ferneyhough a surgir entre as décadas de 1960 e 70; e, por outro lado, costumo usar o termo "contemporâneo" para me referir a um período pós-moderno que começa —— mais ou menos... —— com as obras mais ecléticas do pós Revolução de 1968, as quais já estabelecem um novo paradigma para além da modernidade do formalismo atonalista europeu, tais como as peças ecléticas de Frank Zappa e as peças minimalistas de Steve Reich e Philip Glass, e chega até as obras mais recentes deste início do século 21 a partir das peças de John Zorn e Wynton Marsalis, por exemplo. E isso é apenas uma referência relativa mesmo: não é nada linear, nem taxativo. Se tentássemos traçar uma genealogia linear dos movimentos artísticos que transformaram a música nos séculos 20 e 21, com certeza falharíamos vergonhosamente: isso porque houve —— e ainda há! —— uma certa bagunça com muitos desses movimentos modernistas acontecendo e se desenvolvendo paralelamente em respostas uns aos outros; com muitos desses movimentos sendo interrompidos por anomalias socio-político-culturais (guerras, ditaduras, fatores regionais, etc) e sendo retomados e transformados em períodos posteriores; com muitos dos elementos desses movimentos se misturando ante a globalização pós Guerra Fria nas décadas finais da segunda metade do século XX através de obras ecléticas e inclassificáveis; sem mencionar os individualismos dos compositores que também bagunçam esse coreto. Por isso, nossa lista é um panorama básico de todas essas particularidades e todos esses movimentos artísticos coexistentes, sem preconceitos!
 
Para efeitos práticos, para se situar sem "bugar" a compreensão, basta apenas ter em mente que a evolução da música erudita nos séculos 20 e 21 se dá através de três correntes principais e adjacentes: o modernismo iniciado pelas correntes do futurismo e da harmonia dodecafônica de Schoenberg (alinhados com o expressionismo abstrato, o dadaísmo e o surrealismo das artes plásticas), movimentos que deram origem ao que chamamos de avant-garde de uma forma geral (atonalismo, serialismo integral, música experimental, música microtonal, música concreta, música aleatória, música espectral, a "nova complexidade" etc.); o modernismo nacionalista que quase sempre comunga com as ressignificações do neoclassicismo e do neorromantismo, uma corrente de compositores que até se nutrirá da fonte do avant-garde para extrair algumas dissonâncias e ideias inovadoras, mas priorizará as releituras e as novas inflexões sobre elementos barrocos, clássicos, românticos, folclóricos e populares; e, por fim, o pós-modernismo que será desenvolvido a partir de compositores adeptos ao minimalismo, ao poliestilismo e ao ecletismo, a maioria deles adeptos a misturar elementos de vários tipos de música para se obter uma arte sonora inclassificável. O termo pós-modernismo, aliás, é outra das referências temporais frouxas dotadas de maleabilidades para a qual não devemos adotar definições rígidas em termos estéticos: trata-se de um termo do nosso tempo —— ainda em constante definição, acredito... —— que geralmente usamos para situar o ouvinte ante o ecletismo de compositores como Alfred Schnittke, Frank Zappa, John Zorn, Wynton Marsalis, Philip Glass... e outros compositores do final do século 20 e início deste século 21, os quais, cada um ao seu modo, começaram a ressignificar e misturar vários estilos de música. Ou seja, cada um desses compositores dito pós-modernos pode até ser mais adepto das escolas do avant-garde, do minimalismo ou mais adepto da escola neoclássica, mas todos eles têm em comum esse ecletismo no que diz respeito à mistura de vários estilos de música em suas escritas. Postos esses pontos de reflexão e esses meus pontos de vista, sigamos abaixo com a tal lista. Clique nas imagens dos álbuns para ouvi-los na íntegra!

 
 1                      Schönberg: Kammersymphonie Op. 9, Sechs Kleine Stücke, Op. 19 (Arr. Holliger) - Webern: Symphonie, Op. 21,Fünf Sätze, Op. 5 (Fuga Libera, 2022). 

O compositor, pintor e teórico austríaco Arnold Schönberg foi o principal revolucionário da música moderna porque foi sua obra quem rompeu, definitivamente, com os limites harmônicos consonantes e com as estruturas da tradição clássica através de um conceito técnico elaborado a partir de séries permutativas que permitiram organizar a composição usando o cromatismo expandido, com todas as 12 notas da escala cromática. Ainda que o uso de séries com linhas melódicas constituídas de 12 tons, 12 notas da escala cromática, já existisse mesmo na consonância clássica de Mozart, e ainda que essas linhas melódico-harmônicas já viessem se expandindo dentro dos coloridos românticos e sombreamentos cromáticos de Brahms, Wagner e Mahler, com esse cromatismo alcançando contornos harmônicos dissonantes já com Scriabin e com Josef Matthias Hauer, foi Schoenberg quem definitivamente criou uma técnica formal, a técnica dodecafônica, que de fato instaurou o expressionismo musical, substituiu os padrões clássicos e fez a música moderna evoluir para a expansividade do serialismo integral. A palavra "atonalismo", aliás, é meramente uma referência para se rotular esse movimento de compositores que começaram a escrever peças dissonantes onde não mais havia um centro tonal com a tonalidade sendo indicada nas claves, mas, na verdade, o que a técnica dodecafônica passou a possibilitar foi uma natural expansão onde se criava uma nova harmonia com novos encadeamentos cromáticos. Schoenberg e Anton Webern, por exemplo, desprezaram totalmente o termo "atonalismo" e afirmaram que a música dodefônica e o serialismo eram nada mais do que uma expansão natural das harmonias, da manipulação dos elementos composicionais e da organização das estruturas dentro da composição, uma expansão que já vinha se desenrolando na subjetividade expressiva do romantismo. No lendário "Watschenkonzert" de 31 de março de 1913, Schoenberg foi convidado para dar uma noite especial no Grande Salão do Musikverein (principal sala de concerto de Viena), e na programação do concerto ele inclui sua inédita Sinfonia de Câmera No.1 em Mi Maior, a Kammersymphonie concluída em 1906 num sistema de exploração dos intervalos de quartas, e outras obras de Alexander von Zemlinsky, Anton Webern, Alban Berg e Gustav Mahler. Mas o que era pra ser uma grande noite acabou como um transtorno. O show teve que ser interrompido prematuramente para controlar um certo tumulto causado por vários espectadores descontentes na plateia, todos confusos com aquele tipo de "música clássica" que já deixava o cromatismo romântico ultrapassado e já avançava para frases e estruturas incomuns e para as dissonâncias dos tetracordes e hexacordes precursores da atonalidade dodecafônica: o evento até foi notícia no jornal austríaco Die Zeit e entrou para os anais como um daqueles tumultos que de fato anunciaram a chegada de uma nova era de modernidade na história das artes. Essas obras foram precursoras e depois foram assimiladas e superadas pela teoria dodecafônica, tendo sido interpretadas dezenas de vezes ao longo do século 20 e neste início de século 21. Mas a modernidade daquelas dissonâncias gestativas causam estranheza para ouvidos adocicados ainda agora no século 21. Neste registro acima, temos versões e leituras recentes dessas obras empreendidas por músicos da Orchestre de Chambre de Lausanne sob direção do maestro Heinz Holliger. O álbum foi gravado em fevereiro de 2021, quando os concertos públicos foram cancelados por vários meses por causa do lockdown e os músicos puderam se encontrar às portas fechadas no palco da Opéra de Lausanne para transcrever aqueles momentos iniciais da música moderna com essas primeiras obras dissonantes de Schoenberg e seu aluno Anton Webern —— Webern que seria, aliás, autor de peças ainda mais atonais. É preciso lembrar que Heinz Holliger e a Orchestre de Chambre de Lausanne já haviam lançado um álbum similar em 2013, há exatos 100 anos do tumulto do "Watschenkonzert": na ocasião eles gravaram de Schoenberg a Kammersymphonie e a romântica Verklärte Nachte, além de incluir a peça Langsamer Satz de Anton Webern. Quase uma década depois, Holliger e a Orchestre de Chambre de Lausanne retoma esse tipo de repertório com uma leitura apimentada e ao mesmo tempo fresca do modernismo inicial desses dois ases da Segunda Escola de Viena.


 2                       Pierre Boulez conducts Schoenberg – Chamber Works, Orchestral Works, Vocal Works – (Sony Music, 1977). 

Schoenberg já vinha expandindo as possibilidades cromáticas desde suas peças românticas do final do século 19 e início do século 20, trabalhando com as mais inusuais variações e inversões sobre tetracordes e hexacordes dissonantes, e já soando atonal aos ouvidos mais puristas mesmo quando ainda indicava um determinado centro tonal nas claves das suas peças. Gradativamente, portanto, suas peças vão atingindo a expansão harmônica que ele buscava até que entre 1920 e 1922, de fato, ele escreve e publica sua teoria das séries harmônicas dodecafônicas. Este álbum acima, tendo Pierre Boulez como maestro, nos mostra essa evolução. Pierre Boulez, também importantíssimo compositor da evolução serialista, é figura central na disseminação do modernismo musical, tendo gravado uma grande quantidade de obras seminais que foram importantes para instaurar a música de vanguarda. A influência de Boulez foi tão expressiva que ele chegou a obter plenos apoios e poderes de presidentes franceses tais como Georges Pompidou e François Miterrand na captação de recursos para formar ensembles, construir e dirigir centros voltados para a música erudita, com especial foco para a música moderna: casos do Ensemble intercontemporain, do IRCAM (Institut de Recherche et Coordination Acoustique/Musique) e da Ópera da Bastilha. Esta compilação acima, com as composições de Schoenberg gravadas por Boulez como maestro, é interessante porque nos permite observar a evolução da expansão cromática até a vigência, de fato, da técnica dodecafônica: a começar pela ainda romântica Verklärte Nacht (1899), passando pelas expansões de peças como Erwartung (1905) e 5 Pieces for Orchestra Op.16 (1909), e englobando as peças que de fato inauguraram e instauraram a técnica dodecafônica tais como a Die Jakobsleiter (1914-26), Suite Op.29 (1925-26) e Variatons for Orchestra Op.31 (1926-28). Essa compilação é também um panorama importante para se observar as expressividades de Schoenberg em pelo menos três frentes: com compactos conjuntos de câmera, com orquestras maiores e em peças vocais ambientadas nas formas de lied, coral e ópera. Como uma indicação indireta, sugiro ao ouvinte mais aplicado que ouça 👉 este álbum com os músicos da London Sinfonietta dando suas interpretações para o Wind Quintet Op.29 (1923-24) e a já mencionada Suite Op.29, duas das primeiras peças a inaugurar o dodecafonismo.

 3                       Arnold Schoenberg: Piano Music – Paul Jacobs – (Nonesuch, 1975).

Os repertórios de peças para piano são interessantes no espectro da música moderna porque foram nelas —— ali na reclusão do lar, solitariamente junto à banqueta e suas 88 teclas —— que os compositores começaram a transcender e transpor os limites da tonalidade clássica. As Três Peças para Piano Opus 11 (Drei Klavierstücke) compostas por Schoenberg em 1909 são um exemplo, pois elas foram as primeiras peças por onde o compositor instaurou, de fato, a atonalidade ainda em escrita livre pré-dodecafônica. Segue-se Five Pieces Op.23 (1920-23) e Suite for Piano Op.25 (1921-23), as quais de fato inauguram a técnica dodecafônica e abrem definitivamente um novo caminho para uma nova harmonia e uma mudança drástica na forma de estruturar a composição. O universo pianístico de Schoenberg é, pois, um ambiente de estudos muito rico e muito importante para o estudo das estruturas e da harmonia moderna porque nessa fase da carreira, mais precisamente na passagem da década de 1900 para a década de 1910, mesmo suas peças ainda com tonalidades definidas já eram modernas em termos harmônicos e estruturais —— consequentemente, muitas delas foram publicamente contestadas e permaneceram inéditas por anos, subjugando o compositor até a sofrer uma crise financeira e a viver apenas do ensino. E estas interpretações do pianista Paul Jacobs, das peças para piano solo de Schoenberg, lançadas em vinil pela Nonesuch em 1975, ainda são referência mesmo depois de pianistas legendários como Glenn Gould, Maurizio Pollini, Peter Serkin, Peter Hill e Herbert Henck também terem gravado essa mesma integral. Diferente de Glenn Gould, por exemplo, que gravou uma versão dessa mesma integral com uma leitura mais inflexionada à introspectividade, Paul Jacobs é mais fiel às intenções que Schoenberg deixou anotadas na partitura. Além do mais, a maioria dos LP's da fase Nonesuch de Jacobs vem com primorosos ensaios escritos pelo próprio pianista.

 
 4                       Josef Matthias Hauer – Steffen Schleiermacher – Atonale Musik Op. 20 (MDG Scene, 2003). 

Josef Matthias Hauer (1883-1959) foi um teórico e compositor alemão, também austríaco, que desenvolveu uma técnica dodefônica própria dois anos antes de Schoenberg revelar ao mundo sua técnica inovadora que prenunciaria o serialismo. Em 1919 Hauer revelou ao mundo sua teoria através da publicação do seu estudo "Lei dos Doze Tons", abrindo definitivamente os caminhos para a expansão da harmonia moderna que viriam a seguir. Através de uma técnica de relação intervalar de hexacordes chamado de "tropos", Hauer desenvolveu 44 "tropos" a partir dos quais ele poderia variabilizar as sequências intervalares dos 12 tons, usando sempre dois hexacordes complementares não ordenados. Contudo, a técnica que Schoenberg vinha desenvolvendo se tornaria oficialmente a preferida de praticamente todos os compositores modernos, muito provavelmente por causa do seu arcabouço matemático-teórico mais desenvolvido que permitiu os compositores ordenar completamente as permutações dentro das linhas de tom e que logo evoluiria para o serialismo integral. Ordenando os tons das linhas melódicas em conjuntos ou séries (primária, retrógrada da primária, inversão e retrógrada da inversão), Schoenberg descobriu que qualquer linha melódica com base num sequenciamento de 12 tons cromáticos poderia resultar em mais 47 permutações possíveis, dando um total de 48 linhas melódicas possíveis: essa técnica, muito baseada no grupo abeliano dos quatro elementos dentro da Teoria dos Grupos desenvolvida pelo matemático Felix Klein, permitia que todas as 12 notas da escala cromática fossem tocadas antes que uma mesma nota fosse repetida e permitia que essas 12 notas soassem com a mesma frequência em uma peça musical, evitando a ênfase de qualquer nota dentro de uma linha melódica e suas permutações, evitando completamente qualquer sensação de tonalidade fixa tanto na linha melódica principal quanto nos acompanhamentos sobrepostos e suas relações. E para organizar as permutações, Schoenberg fez muito uso da Tabela de Cayley (desenvolvida pelo matemático inglês Arthur Cayley) para esquematizar uma matriz com as séries de linhas de tons (primária, retrógrada da primária, inversão e retrógrada da inversão). Contudo, posteriormente a técnica de tropos Josef Matthias Hauer foi amplamente estudada por compositores e estudiosos —— até mesmo para se ter um comparativo com a técnica de Schoengerg ——, o que aumentou o seu nível de influência. Neste álbum acima, o diletante pianista alemão Steffen Schleiermacher grava a integral do opus 20 para piano solo que, não coincidentemente, Hauer chamou de Atonale Musik. Neste ciclo de peças  —— com variações sobre peças simples que vão expandindo os níveis de atonalidade e execução ——, Hauer nos apresenta, então, as primeiras aplicações da sua técnica dodecafônica conhecida como "técnica de tropos". A impressão que a obra de Hauer nos passa é que, como veremos abaixo, ele considerava essa sua "técnica dos tropos" mais como uma nova ferramenta a ser explorada junto ao arsenal de possibilidades barrocas, clássicas e românticas já dantes convencionadas do que, propriamente, um novo modus operandi a substituir friamente todas essas outras técnicas da tradição clássica como Schoenberg, Webern, Berg fizeram, levando os discípulos da Escola Darmstadt para o total serialismo nos anos de 1940.

 
 5                       Josef Matthias Hauer – Violin Concerto, Apocalyptic Fantasy, Romantic Fantasy – Gottfried Rabl, Thomas Christian & Radio-Symphonieorchester Wien – (ORF-RSO/ CPO, 2007). 

Apesar de Josef Matthias Hauer (1883-1959) ter sido o primeiro a descobrir as possibilidades permutativas dos 12 tons, sua obra e carreira variaram bastante em direções ambivalentes, se diferindo um tanto, como vimos acima, das trilhas serialistas abertas pelo legado de Schoenberg. Hauer ora compunha peças dodecafônicas baseadas na sua "técnica dos tropos", mas outrora ressignificava elementos do passado —— do barroco, do classicismo e romantismo —— de uma forma totalmente própria e independente. Quando compunha música dodecafônica, atonal, Hauer costumava rechaçar qualquer possibilidade de a música aderir a um sentimento, a uma ideia ou a qualquer temática, dizendo que essa finalidade era destinada a fazer a música desenvolver-se somente pela própria música, um ideal que também foi ressaltado por grande parte dos compositores modernos, alguns dos quais passaram a usar até conceitos da matemática e da física para fins de expansão da arte musical. Quando compunha música romântica, Hauer costumava abundar-se em expressividade, tensão e emoção. Este álbum acima, lançado pela Orquestras Sinfônica da Rádio de Viena, passeia por esses contrastes, trazendo composições que Hauer escreveu com base em diferentes conceitos e estéticas. O álbum começa com as peças "românticas" Apokalyptische Phantasie Op.5 (1913) e Romantische Phantasie Op.37 (1925), passa por um Concerto para Violino Op.54 e finaliza com a dissonante Zwölftonspiel (1957), uma peça atonal desenvolvida sob o conceito de sobreposições do cânone barroco. Uma outra diferenciação em relação a Schoenberg que aqui pode ser percebida é que Hauer tinha uma predileção por pulsos e marcações rítmicas mais delimitadas, enquanto Schoenberg adotou a livre forma do rubato para acomodar sua técnica dodecafônica e para evitar repetições tonais e qualquer pulsação-padrão ou ênfase rítmica, inaugurando, assim, o expressionismo abstrato no âmbito da música.

 
 6                      Steffen Schleiermacher – The Viennese School – Teachers and Followerss – (MDG Scene, 2010).

Schoenberg, ao lado da maestrina e compositora Nadia Boulanger, foi um dos educadores mais célebres do século 20, tendo sido professor de algumas dezenas de outros compositores célebres —— alguns nem tão célebres, mas importantes para disseminar o modernismo. Por onde quer que o inventor da música dodecafônica ensinasse, haviam muitos discípulos dispotos a segui-lo: ele teve alunos brilhantes em Viena (nas décadas de 1910 e 1920), Berlim (1924-1933) e em Los Angeles (1936-1944), onde se exilou por causa da Segunda Guerra e viveu o restos dos seus dias. Curiosamente, Schoenberg seria tutor até mesmo de revolucionários que seguiriam por caminhos rivais e independentes e também seriam base para outras escolas influentes tais como Leon Kirchner, Lou Harrison e John Cage, alunos de Schoenberg em Los Angeles: John Cage, por exemplo, começa a carreira sendo influenciado pelo dodecafonismo, mas estabeleceria uma diretriz conceitual independente que o levaria a empreender seus próprios experimentos e conceitos já totalmente distantes do formalismo serial e matemático que a técnica dodecafônica apresentara ao mundo. Paralelamente, Anton Webern e Alban Berg, os dois alunos mais célebres de Schoenberg, também seriam grandes educadores e também teriam seus alunos e seguidores. Esses três compositores fizeram escola e formam, então, o tripé de base para o que se convencionou chamar de Segunda Escola de Viena, em torno da qual a música moderna de fato se formalizou e se expandiu. Nestes álbuns indicados acima, o pianista alemão Steffen Schleiermacher nos mostra um interessante apanhado de peças escritas pelos alunos, pupilos e seguidores de Schoenberg, Alban Berg e Anton Webern, evidenciando, portanto, um caleidoscópio das relações e correlações musicais dessa grande escola que moldou a música erudita moderna. Nem todos esses alunos seguiram à risca os modelos dodecafônicos-seriais desenvolvidos por esse tripé de tutores, mas todos eles foram enormemente influenciados por essa escola. Música é matemática e sentimento em formas de sons, e Schoenberg e seus alunos comprovaram matematicamente que as possibilidades de cores harmônicas cromáticas desenvolvidas durante 400 anos de música consonante —— a contar dos séculos 16 até o século 19 —— de fato se expandiram a ponto de se saturarem. Assim, as expansões permutativas da Segunda Escola de Viena foram, verdadeiramente, fundamentos sólidos inovadores a substituir os fundamentos clássicos da Primeira Escola de Viena protagonizada por Mozart, Beethoven e Brahms, influenciando direta e indiretamente praticamente todos os compositores modernos do século 20. E esta série de álbuns com peças para piano de Schoenberg, Webern e Berg e alguns dos seus alunos só ratifica essa enorme influência.


 7                      Schoenberg – Pierre Boulez, Christine Schäfer, Ensemble InterContemporain – Pierrot Lunaire – Herzgewächse – Ode To Napoleon Buonaparte – (Deutsche Grammophon, 1998).

Esta obra seminal foi composta por Schoenberg em 1912 a partir de uma encomenda da atriz e cantora Albertine Zehme: a ideia inicial era que Schoenberg compusesse um ciclo de lieder (canções para voz e piano) a partir de uma série de 21 poemas selecionados do escritor belga Albert Giraud. O que Schoenberg faz, então, foi trazer inspirações das canções do cabaré alemão —— usando um pastiche popular, portanto —— para o campo de um lied acompanhado de instrumentação compacta e desenvolvido sob harmonia atonal pré-dodecafônica, inflexionando essas "canções" com a declamação de versos poéticos de uma forma um tanto quanto incomum: uma mistura que inauguraria um novo estilo de expressão vocal chamado sprechstimme, técnica onde as entonações do vocalista transitam entre o canto e a poesia falada, uma abordagem que inovaria completamente o gênero do melodrama erudito dentro do repertório moderno. Ao longo dos anos, Pierrot Lunaire se transformaria na peça mais "popular" e influente de Schoenberg, tendo sido estreada até mesmo no teatro da Broadway, EUA, e tendo influenciado uma legião de compositores do século 20 —— de Kurt Weill à Pierre Boulez, a grande maioria dos compositores modernos do século 20 passaram a criar obras similares e a citar Pierrot Lunaire como uma inspiração indelével em termos de peça moderna para voz e instrumentos. A cantora lírica Christine Schäfer ganhou grande notoriedade a partir deste álbum. Uma obra vocal essencial no repertório do século XX.

 
 8                      Schoenberg – Rolf Schulte, David Wilson-Johnson, Simon Joly Chorale, Philharmonia Orchestra, Robert Craft – Violin Concerto / A Survivor From Warsaw – (Naxos, 2008).

O Concerto para Violino Opus 36 foi concluído por Schoenberg em 1936, sendo, portanto, uma obra que já prenuncia sua fase tardia, que é quando ele imerge no movimento do neoclassicismo, muito em voga na França e nos EUA. Esse concerto para violino foi composto por Schoenberg numa fase em que ele —— fugindo do nazismo, pois ele era austríaco de descendência judaica —— acabara de se mudar da Alemanha para os EUA, e portanto coincide com um período em que ele começa a revisitar os elementos clássicos e românticos e até voltar-se um pouco mais para a harmonia tonal, mesclando passagens atonais com passagens consonantes. Schoenberg compõe, então, seu concerto para violino usando a harmonia dodecafônica, mas também se inspira em aspectos desse movimento neoclássico, com diversas passagens em que a peça ruma para momentos majestosos e brilhantes com reminiscências melódico-tonais implícitas em contrastes com outros momentos mais ruidosos e puramente atonais, sem subtrair nada da sua densa carga expressionista. Esta versão acima com o violinista alemão Rolf Schulte e o legendário maestro americano Robert Craft é um tanto densa e confere a essa peça traços de uma rusticidade mais ruidosa e visceral em relação as interpretações e leituras mais polidas de outros violinistas e outros maestros, algo que acentua ainda mais o caráter vanguardista desse concerto para violino. O álbum também vem recheado com o oratório A Survivor from Warsaw Opus 46 (1947), obra vocal composta por Schoenberg em sistema atonal dodecafônico.

 
  9                      Alban Berg – Margaret Price, London Symphony Orchestra, Claudio Abbado – Lulu (Suite)/ Altenberg-Lieder Op. 4/ Drei Orchester-Stücke Op. 6 – (Deutsche Grammophon, 1971)

Alban Berg, também austríaco, foi um dos alunos mais célebres de Schoenberg e representa um passo adiante rumo ao dodecafonismo serial. Curiosamente, porém, sua música soa menos perigosa aos ouvidos românticos do que, por exemplo, a música de Anton Webern, talvez o aluno mais radical de Schoenberg. Em obras orquestrais, Berg costuma soar com orquestrações menos sombrias e mais cintilantes e brilhantes: seu atonalismo soa, por vezes, idílico, onírico, cheio de contrastes e citações. Este álbum acima gravado com Cláudio Abbado à frente da fantástica London Symphony Orchestra em 1971 traz três obras emblemáticas desse compositor: Lulu Suite (1935, inacabada...), Altenberg Lieder Opus 4 para voz e orquestra (1912), e Três Peças para Orquestra (Drei Orchesterstücke) Opus 6 (1915). A obra Três Peças para Orquestra Opus 6 é uma daquelas composições de transição entre os aspectos românticos e impressionistas e os aspectos modernistas, de fato. Enquanto a Lulu Suite é uma versão instrumental resumida da ópera Lulu que o compositor deixou inacabada em 1935, assim que faleceu. Tirando o tema vocal "Lulu's Song" —— canção central da peça entoada pela mezzo-soprano ——, a Lulu Suite é uma versão com apenas as partes instrumentais da ópera, uma peça serialista de grande requinte orquestral e com grande soma de detalhes: destaque, por exemplo, para a faixa "IV. Variations", onde temos humorísticas citações de um tema popular em meio aos entrelaces orquestrais modernistas, um paralelo ao que Charles Ives vinha fazendo (vide "Three Places in New England", estreada em 1929) e um prenúncio ao irônico poliestilismo que o compositor russo Alfred Schnittke desenvolveria.

 
  10                     Alban Berg – Chor Der Deutschen Staatsoper, Berlin, Staatskapelle Berlin, Daniel Barenboim – Wozzeck (Teldec, 1996).

Aqui o maestro Daniel Barenboim, à frente da Staatskapelle Berlin e do Chor der Deutschen Oper Berlin, traz uma ótima versão da ópera Wozzeck, concluída por Berg em 1922. Trata-se de uma obra que é considerada a grande ópera da música dodecafônica das primeiras décadas do século 20 —— considerada, aliás, a primeira grande ópera a ser composta em estilo vanguardista atonal. Usando como inspiração a peça de teatro "Woyzeck", do dramaturgo alemão Georg Büchner, Alban Berg também recheia a peça de diversos atos, efeitos e motivos dissonantes que dão vida aos personagens e denotam estados de espírito ligados ao militarismo, à insensibilidade humana, à exploração social e ao sadismo, deixando latente a influência que os aspectos da Primeira Guerra Mundial teve sobre a alma criativa do compositor —— aliás, é conhecido que entre 1915 e 1918 Berg servira ao exército alemão em um posto administrativo, ofício que lhe privou de lutar no front, mas lhe fez estar por dentro das atrocidades da guerra. Berg compõe essa ópera sem indicações de tons nas claves e suas abordagens para os personagens-vocalistas se inspiram, afinal, na estética do melodrama com o uso da técnica vocal chamada sprechstimme, explorada anteriormente por Schoenberg em seu inovador ciclo de "lieder" Pierrot Lunaire.

 
  11                     Alban Berg: Isaac Stern, London Symphony Orchestra, Peter Serkin, New York Philharmonic, Leonard Bernstein – Kammerkonzert / Violin Concerto – (CBS Masterworks, 1986).

E este álbum acima é um daqueles clássicos indeléveis, um exemplo perfeito das expressividades e dinâmicas de Berg, tendo uma irretocável interpretação do seu Concerto para Violino (1935), uma das peças para violino mais tocadas desde sempre. O concerto inicia com o violinista emitindo um tema formado pelas notas das quatro cordas soltas sol-ré-lá-mi do violino —— algo que dá um tom inicial de sol menor melódico ——, e a partir desse arpejo vai desenvolvendo os contrastes entre consonâncias e dissonâncias numa esquematização serial mista de tonalidade e dodecafonia, onde o jogo de cromatismos e tons inteiros, os enxertos de citações de temas de outras peças e o uso do criptograma de B-A-C-H —— que correspondem à sequência de notas B (B ♭) – A – C – H (B ♮), em referência ao compositor barroco Johann Sebastian Bach —— forjam as linhas melódicas e os contrastes harmônicos da peça. Ademais, este álbum compilativo acima ainda traz o Kammerkonzert für Klavier und Geige mit 13 Bläsern (Concerto de Câmara para Piano e Violino com 13 Instrumentos de Sopro), peça concluída em 1925. Este emblemático Chamber Concert também contém vários esquemas seriais matemáticos, além do uso de criptogramas harmônicos que Berg elaborou a partir dos nomes dos seus colegas Arnold SCHönBERG (ADE ♭ – CBB ♭ -EG), Anton weBERn (AEB ♭ – E) e do seu próprio nome AlBAn BErG (AB ♭ – AB ♭ – EG). Ambas as peças dispostas no CD remasterizado foram gravadas em 1959: o Concerto para Violino foi gravado pelo violinista Isaac Stern e o maestro Leonard Bernstein à frente da New York Philharmonic; e o Concerto de Câmera foi gravado pelo maestro Claudio Abbado à frente de um conjunto formado por Isaac Stern (violino), Peter Serkin (piano) e mais 13 instrumentistas membros da London Symphony Orchestra.

 
  12                     Complete Webern – Boulez – (Deutsche Grammophon, 2000).

A música radical de Anton Webern é um passo adiante da música do seu mestre Arnold Schoenberg e seu colega Alban Berg, todos compositores austríacos que fundaram a chamada Segunda Escola de Viena, escola que deu origem à música de vanguarda no início do século 20. Se Schoenberg inicia as séries dodecafônicas no campo da harmonia, Webern irá levar esse procedimento de criar séries para quase todos os elementos da música: estrutura, tom, ritmo, tessitura, timbre, dinâmica, articulação, linha melódica, contraponto..., criando uma música sempre formalista, esquemática, complexa e de desafiadora audição abstrata. Não à toa, Webern é considerado um dos protagonistas do expressionismo abstrato que exploraria dos serialismos mais intricados aos mais reducionitas, e, ao mesmo tempo, é considerado um precursor do movimento da Nova Complexidade, que será protagonizada na segunda metade do século 20 por compositores britânicos tais como Brian Ferneyhough, Michael Finnissy e seus pares. E um dos seus seguidores mais fiéis foi justamente Pierre Boulez, que é considerado um dos seus sucessores na evolução do serialismo integral, evoluindo para um serialismo altamente esquemático, detalhista, matemático e de escuta igualmente desafiadora. Não à toa, Boulez chegou a gravar, como maestro, boa parte da obra orquestral de Anton Webern, além de criar arranjos orquestrais de suas peças escritas para piano, trios e quartetos, faceta que pode ser atestada nesta compilação acima editada pela Deutsche Grammophon em 2000. Na verdade, para lançar esta compilação acima, Boulez atua não apenas como maestro e arranjador, mas como um organizador, um curador, já que ele seleciona, também, peças anteriormente gravadas por quartetos de cordas (com o Emerson String Quartet) e outros ensembles, afim de constituir uma compilação mais fiel à completude de Webern. O repertório inclui desde a Passacaglia para Orquestra Op. 1 (1908), essa com Webern ainda soando dentro da estética do romantismo tardio a La Brahms, passa por obras já seriais como a Five Pieces for Orchestra (1913), inclui arranjos e orquestrações das complexas peças originalmente escritas para quartetos de cordas, inclui sua produção camerística, inclui algo da sua produção para piano, passa por sua produção vocal, e segue adiante com obras para duos de cello e violino com piano... O box set vem com 6 CD's e oferece um paronama mais do que essencial para compreender a profundidade da obra dessa importante figura da música moderna!

 
  13                     Anton Webern – Complete Works for String Quartet and String Trio – Artis Quartett Wien (Nimbus Records/ Wyastone Estate Limited, 2001).

O ciclo de obras para trios e quartetos de cordas de Webern é um primor à parte, pois é nessas obras que conseguimos observar sua evolução do romantismo tardio para o expressionismo abstrato com mais clareza. O álbum começa com a melódica e doce peça Slow Movement (1905), peça ainda em estética romântica tardia (com ecos, aliás, da Verklarte Nacht de Schoenberg), passa por sua evolução dodecafônica com Five Moments for String Quartet Op.5 (Fünf Sätze, de 1909) e "Six Bagatelles" Op. 9 (1911/13), e termina com a String Quartet Op.28 (1936-39), peça dodecafônica mais palatável e meditativa que utiliza tretacordes inflexionados sobre o tarimbado criptograma motívico de BACH (B ♭ , A , C, B ♮ ), sendo essa a última peça de câmera escrita pelo compositor. Embora na compilação que indico acima (empreendida por Boulez) essas obras estejam inclusas sob a interpretação do Emerson String Quartet, e embora diversos outros quartetos tenham gravado essa integral de Webern —— como o excelente Aditti Quartet, por exemplo ——, essas interpretações com o Artis Quartett Wien conseguem ser, na minha opinião, um tanto superiores em termos de timbre, vigor e expressividade.

 
  14                     Hanns Eisler – Berlin Classics Compilations ("edel" Records GmbH/ Berlin Classics, 1980's & 90's).

O compositor alemão Hanns Eisler (1898-1962) foi outro dos alunos de Schoenberg e Webern que teria um papel de destaque no cenário mundial, apesar de hoje em dia não ter suas obras executadas com tanta frequência quanto as obras dos seus pares da Segunda Escola de Viena. Eisler ficou conhecido por ter composto o hino da antiga República Democrática Alemã (Alemanha Oriental) e por suas associações com o dramaturgo Bertolt Brecht (após o término da parceria de Brecht com Kurt Weill), mas tem uma recheada carreira marcada por canções e peças escritas sob as mais variadas temáticas e formas composicionais que vão do romantismo tardio ao atonalismo serial, passando pelo neoclassicismo e sofrendo até influências do agitprop russo, do realismo socialista e do conceito alemão de "música utilitária" (gebrauchsmusik), tendo adotado certo humor brechtiano e certo teor panfletário comunista em muitas das suas peças. Já a partir de 1933, as composições de Eisler e a poesia de Brecht foram proibidas pelo Partido Nazista e ambos os artistas foram para o exílio: Brecht se estabeleceu em Svendborg, Dinamarca, e Eisler viajou por vários anos e estabeleceu estadias em vários países, trabalhando em Praga, Viena, Paris, Londres, Moscou, Espanha, México e também Dinamarca. De certa forma, a música de Eisler também capta, em sua totalidade, um tanto dessa carreira nômade, com muitos contrastes e humores, sendo um dos compositores serialistas a adotar certa maleabilidade ao deixar-se influenciar por diversos gêneros de arte e de música popular, incluindo influências que iam da música de cabaret ao jazz das décadas de 1920 e 1930. Nesta série de álbuns compilativos acima, lançados nas décadas de 80 e 90 e dispostos no Spotify sob o selo Berlin Classics, temos boa parte do mosaico criativo desse compositor que foi um dos mais fervorosos adeptos do comunismo: as compilações estão divididas entre "obras orquestrais", "canções", "obras para câmera", leader, obras para coro vocal e etc. Ademais, outra faceta criativa que vale a penas investigar com profundidade é sua carreira como compositor de trilhas sonoras para teatro e filmes, tendo composto trilhas para dezenas de produções e tendo sido indicado duas vezes ao Oscar pelas trilhas dos filmes "Hangmen Also Die!" (com roteiro de Bertolt Brecht e direção de Fritz Lang, lançado em 1943 no Brasil e em Portugal sob o título "Os Carrascos Também Morrem") e "None but the Lonely Heart" (1944). Eisler é um daqueles compositores cosmopolitas que, por razões mercadológicas e capitalistas, ficou sitiado numa penumbra entre a genialidade e a subestimação.

 
  15                     Hans-Erich Apostel – Orchestral & Chamber Workds – ORF Vienna Radio Symphony Orchestra, Vienna Symphony Orchestra, Ensemble Kontrapunkte, etc (ORF, 2017).

O compositor austríaco Hans-Erich Apostel (1901-1972) estudou com Arnold Schoenberg de 1921 a 1925 e com Alban Berg de 1925 a 1935, também sendo uma figura importante da Segunda Escola de Viena e, posteriormente, sendo um dos professores a replicar os fundamentos dessa escola. Nos anos em que decorreram as agruras da Segunda Guerra e as perseguições nazistas, Hans-Erich Apostel foi um dos compositores acusados de fazer música indecente e arte degenerada aos ouvidos puristas do nazismo germânico, prontamente tendo suas obras proibidas de serem executadas. Nessa fase, Apostel se dedicou a ser professor, pianista acompanhante, editor e regente de música contemporânea na Áustria, Alemanha, Itália e Suíça, sendo responsável por estrear e publicar várias obras dos seus pares —— ao menos as obras que ainda não tinham sido censuradas. Após a Segunda Guerra Mundial, Apostel fundou a Gesellschaft für Neue Musik (Sociedade para Música Nova) em Viena e foi seu presidente de 1947 a 1950. Em seguida passa a atuar como editor e revisor na Universal Edition (que até hoje publica suas músicas), sendo o responsável pelas novas edições de Wozzeck (1955) e Lulu (1963) de Alban Berg. Sua obra autoral, propriamente dita, só começou a ter mais projeção a partir do final do século 20, muito por causa da repressão inicial que impossibilitou suas peças de serem executadas e repercutidas. As composições Hans-Erich Apostel demonstram sua particular afinidade com as artes, principalmente com a poesia simbolista e a pintura expressionista, tendo sido amigo de artistas tais como o pintor Emil Nolde, os poetas e dramaturgos Oskar Kokoschka e Alfred Kubin, e diversos outros artistas. De certa forma, conseguimos sentir verdadeiramente como sua música ainda faz uso de ecos classicistas e românticos, mas o faz com sombreamentos turvos e com uma gritante subjetividade que já anseia para inflexionar-se sob um brumoso expressionismo abstrato. Este álbum acima evidencia isso. O álbum começa com seu Réquiem Op.4 para coro de 8 vozes e orquestra (1937), com texto de Rainer Maria Rilke, que traz ainda certo sentimentalismo romântico conflitando com dissonâncias dodecafônicas e segue-se com a Variação sobre um tema de Joseph Haydn Op.17 para orquestra (1949), que é um exemplo perfeito de como o compositor inflexiona, deforma e transforma os delineamentos classicistas em formas abstratas atonais. Segue-se peças como Fischerhaus Serenade op.45 (para 4 sopros, 3 metais e quinteto de cordas), de 1971, e Sinfonia de Câmara op. 41 (5 andamentos para orquestra), de 1965-67, as quais já evidenciam um serialismo mais distante da sua veia expressiva inicial. E, por fim, o álbum termina com sua Passacaglia Op.50, de 1972, que inflexiona a forma barroca da passacaglia através de uma dissonante orquestra de cordas: nessa peça os delineamentos recebem variações sobrepostas entre as camadas dos violinos e violas e repetições dessas variações na linha do baixo com os cellos e contrabaixos, enquanto há alguns contrastes mínimos de sopros e harpas intervindo aqui e ali. Hans-Erich Apostel, enfim, foi um dos compositores que descobri muito posteriormente após já estar familiarizado com o repertório dodecafônico, um compositor que me soou poético e profundo, uma prova de que essa dodecafonia inicial ainda era munida de sentimento.

 
  16                     Ernst Krenek – Sestina, 5 Pieces for Trombone & Piano, Flute Pieces in Nine Phases – (Baroque Records, 1967).

O compositor austríaco, naturalizado americano, Ernst Krenek (1900-1991) é outro dos nomes menos lembrados da Segunda Escola de Viena, mas com uma carreira rica e prolífica. Inicialmente ele se associa com músicos como Ferruccio Busoni, Hermann Scherchen e Eduard Erdmann, mas posteriormente ele estuda com Arnold Schoenberg e estabelece uma longa relação com a técnica dodecafônica, sendo um dos pioneiros do serialismo. Seus primeiros trabalhos são escritos ainda em atonalidade livre num estilo altamente individual, como se pode atestar na ópera cômica "Der Sprung über den Schatten" ("Der Leap over the Shadow"), obra concluída em 1924 já dentro do gênero zeitoper com paródias sobre o expressionismo, a psicanálise e inspirações no jazz. Essa sua primeira ópera já prefigurava, aliás, a sua mais famosa obra do gênero, o zeitoper "Jonny spielt auf" (1927), que tem como protagonista um músico negro de jazz: essa peça emblemática foi um sucesso absoluto na transitória República de Weimar na passagem da década de 1920 para a década de 30, mas começou a ser duramente censurada com a chegada do Partido Nazista no poder. Junto a Kurt Weill, Ernst Krenek é considerado, então, um dos maiores nomes desse gênero conhecido como zeitoper, um gênero de ópera curta quase sempre com teor no cômico e no satírico. Em 1937, com a anexação da Áustria pela Alemanha Socialista, Krenek muda-se para os EUA e fixa residência em Nova Iorque, lecionando no Vassar College, em Poughkeepsie, e sendo convidado para lecionar e palestrar em diversas outras universidades americanas. Nessa fase, entre os anos 30 e 40, Krenek chegou a ser fortemente influenciado pelo neoclassicismo de Stravinsky, mas manter-se-ia, também, fortemente associado com a técnica dodecafônica. Em seu retorno à Alemanha, em 1950, Krenek seria um dos grandes pioneiros do serialismo e da música eletroacústica, associando-se logo com o inovador Studio für Elektronische Musik, em Colônia, e ficando conhecido por ser o principal difusor dos sintetizadores Buchla. A obra de Ernst Krenek apresenta, pois, um cosmopolitismo que se nutriu de vários gêneros e subgêneros: romantismo tardio, técnica dodecafônica, zeitoper, jazz, cabaret, teatro, neoclassicismo (muito inspirado por Schubert), música aleatória, técnicas estendidas, música eletroacústica e diversas outras inspirações. Sua obra, contudo, não chegou a firmar-se nas tendências panfletárias e no conceito de "música utilitária" como aconteceu nas obras de, por exemplo, Hanns Eiler. Aqui neste post, deixo essa introdução biográfica para que o ouvinte se disponha a encontrar essas suas óperas iniciais por conta própria, uma vez que aqui já indiquei bastante peças do gênero através dos álbuns de Hanns Eisler e Kurt Weill. Portanto, aqui dou ênfase nas suas obras mais fundamentalmente serialistas. A peça vocal Sestina (com texto dele próprio) Op.161 para soprano a 8 instrumentos (1957) marca exatamente a fase onde Krenek inicia o uso intensivo da composição serial, uma extensão da técnica dodecafônica: o compositor compõe a peça baseando-se na sextina, um dos sistemas estróficos da poesia, e numerando as linhas de tons desenvolvidas por pares de hexacordes, variando essas linhas de tons em séries permutativas. Segue-se, no álbum acima, sua peça 5 Pieces for Trombone and Piano Op.198 (1967), composta para ser estreada na própria gravação deste álbum: nesta peça o compositor mostra certa influência dos conceitos aleatórios dadaístas ao sugerir que o trombonista e pianista apresentem curiosas intervenções de técnicas estendidas incluindo curiosos vibrações, estalos e golpes de língua, remoção de válvulas do trombone, trinados, latidos, pigarros, sacudir um plástico no meio da peça, manusear o sino e raspar o sino ou outro objeto nas cordas do piano, entre outras intervenções. E, por fim, o álbum finaliza para a sua peça serialista "Flute Piece", em nove fases para flauta e piano, Op.171 (1959), que também sugere intervenções aleatórias de técnicas estendidas. Este registro, lançado pela Baroque Records, é um histórico documento dessa pioneira fase serialista que Krenek engrenou entre meados dos anos 50 e 60.

 
  17                      Ernst Krenek – Krenek Conducts Krenek – Horizon Circled Op.196/ From Three Make Seven, Op.171/ Von Vorn Herein Op.219 (Baroque Record, 1978).

Neste álbum acima temos as peças serialistas já em desenvolvimentos maduros de Ernst Krenek, numa fase onde ele já tinha retornado aos Estados Unidos e já se estabelecera como um dos principais ases do serialismo integral, agora já sendo influenciado pelos conceitos de aleatoriedade e indeterminismo encabeçado por John Cage e seus pares. Essa intersecção do seu vocabulário serial integral com conceitos da música aleatória ficou ainda mais patente em obras como como Horizon Circled (1967), From Three Make Seven (1960-61) e Fibonacci-Mobile (peça de 1964, que, além da dodecafonia usa a base matemática de Fibonacci e princípios aleatórios). "Horizon Circled" é um termo que caracterizaria não apenas sua música dessa fase, mas todo o seu contexto de ideário musical já maduro em termos de bagagem e experiências, algo que ele expressou em seu livro Horizons Circled: Reflections on my Music (1974). O álbum acima registra obras exatamente dessa fase. Segue-se a peça Von vorn herein (1974) para uma pequena orquestra de câmera e sintetizadores, mas que no álbum acima é registrada com piano acústico sendo abordado com tratativas estendidas. As peças são conduzidas pelo próprio compositor. Essas gravações são interessantes porque foram as primeiras gravações dessas pioneiras peças que marcam esse encontro do serialismo integral com os conceitos de indeterminismo e aleatoriedade, misturando escritas seriais altamente formalistas com conceitos livres, improvisativos e estendidos de se fazer arte musical. Por essas obras altamente criativas e outras, Krenek é um daqueles compositores que merecem maior visibilidade!

 
  18                     Ernst Krenek – The Organ Works – (VMS/ Zappel Msuci, 1980).

Neste álbum acima temos um interessante exemplo de uso do órgão em composições dodecafônicas e serialistas. E Krenek foi um dos compositores de vanguarda que se interessaram pelo instrumento, principalmente em sua fase serialista madura dos anos 60 e 70. Particularmente, aliás, considero que o órgão dá até uma certa dramaticidade de mistério e ludismo para as linhas de tons e acordes dissonantes dessas peças seriais, as quais, em outros instrumentos ou com ensembles, soariam naturalmente mais "frias" —— até porque uma das máximas da maioria dos compositores seriais é não ficar refém da temática ou do sentimento, ainda que essa não seja uma regra intransponível aplicada a todos ou por todos os compositores. Nem todos os opus executados no álbum acima foram escritos exclusivamente para o órgão: é caso da Sonata for viola solo Op.92 No. 3 (1942), que o compositor também transcreveu numa versão para órgão; e é o caso dos 10 Pequenos Prelúdios para Coral Op.211, transcritos também para órgão. Segue-se a Suíte Quatro Ventos Op.223, a peça Orga-Nastro Op.212, a Sonata for Violin and Organ Op.231 231 para violino e órgão e a peça de Opus 239 para trompa e órgão. Os músicos são Martin Haselböck (órgão), Ernst Kovacic (violino), Jeff von der Schmidt e Kurt Martin (trompa). Aos que, como eu, aprecia peças modernas para órgão, este álbum, assim como os registros com peças para órgão de Messiaen, vem muito a calhar!

 
19                      Varèse - Royal Concertgebouw Orchestra, Asko Ensemble, Riccardo Chailly – The Complete Works – (Decca, 1998).

O compositor francês Edgar Varèse (1883-1965) foi um gênio futurista que revolucionou os conceitos de efeitos timbrísticos, uso timbrístico da percussão através de rítmicas livres, orquestrações luminosas lapidadas com "massas sonoras", inspiração na poesia concreta e também foi um fundador da música eletrônica, tendo inspirações direta na física molecular e quântica dos sons no espaço tempo. Varèse foi um dos primeiros compositores a usar instrumentos eletrônicos como um fator timbrístico em suas composições: as suas aplicações do teremin e do ondas maternot, dois dos primeiros instrumentos eletrônicos, já eram precursoras desde os anos de 1920 e 1930. Varèse, contudo, escreveu pouco e teve muitas das suas primeiras composições dos anos de 1900 e 1910 perdidas em um incêndio em seu depósito na França, mas foi muito inovador a partir da década de 20. Sua obra completa não ultrapassa mais do que 3 horas de duração, mas trata-se de um repertório genial de obras que influenciaram praticamente a todos os compositores concretistas, pós modernistas e espectralistas. Frank Zappa, por exemplo, foi um dos gênios que se inspiraram em Varèse pelas vias do uso timbrístico da percussão. E, mais tarde, compositores do final do século XX que foram responsáveis pelas inovações da "música espectral" e da "música computacional", tais como Gérard Grisey e Kaija Saariaho, também enfatizariam a grande influência de Edgard Varèse. Neste compêndio acima, temos um projeto empreendido pelo grande maestro Riccardo Chailly —— na minha opinião um dos cinco maiores maestros dos últimos tempos, com capacidade de dar versões grandiosas tanto para o repertório clássico-romântico como para o repertório moderno-contemporâneo —— à frente da Royal Concertgebouw Orchestra e do Asko Ensemble. Com a Royal Concertgebouw Orchestra, inclusive, Riccardo Chailly expandiu sobremaneira o repertório contemporâneo dentro do rol das gravações aclamadas, estabelecendo um contrato de mais de três décadas com a Decca. Neste álbum acima, Riccardo Chailly aborda as peças de Varèse usando edições cirúrgicas de Antony Beaumont (musicólogo, copista, revisor, maestro alemão, especialista em música moderna) e Chou Wen-chung (compositor sino-americano que foi mentorado pelo próprio Varèse em boa parte da sua carreira): a versão orquestral da peça Un grand sommeil noir (canção com voz e piano, escrita em 1906), a leitura do poema sinfônico Arcana (1927-32), dos arranjos de "Amériques" (1921), obra para orquestra e sirenes que Varèse escreveu inspirado pela cacofonia da cidade de Nova Iorque (de quando ele se mudou para os EUA), e a versão da peça "Ecuatorial" para vozes, piano, órgão, ondas martenot, percussão e ensemble são fulgurantes, luminosas, vigorosas, e estão entre as mais impressionantes interpretações da essência timbrística de Varèse. Riccardo Chailly também inclui, entre essas e outras obras, sua versão para a pioneira peça para percussão "Ionisation" (1929-31) e as pré-gravadas versões histórias de Déserts para orquestra e fita magnética e Poème Électronique (1958), precursoras peças eletrônicas que foram influências incontestes entre os concretistas. Riccardo Chailly, enfim, é responsável por três premières aqui neste registro: pela estreia mundial da gravação da versão revisada de "Amériques" e pelas estreias mundiais das peças "Turning Up" e Dance for Burgess. Esse é o retrato mais completo e luminoso da música de Edgard Varèse que você encontrará!

 
20                      Steffen Schleiermacher – Futurism & Early Italian Avantgarde – (MDG Scene, 2019).

Ao lado do expressionismo, o futurismo foi um dos primeiros movimentos generalizados de vanguarda a se rebelar contra o sistema e a dominar todas as artes no início do século 20, tendo na Itália seu principal nascedouro. Ora, isso porque a Itália vivera séculos de apego à tradição clássico-renascentista e quando a modernidade dessa fase de pós Revolução Industrial dominou o país, os jovens artistas dessa geração passaram a não mais suportar esse tradicionalismo, pregando uma derribada de todos os valores culturais e tudo o que tinha haver com as tradições clássicas e estabelecendo um novo paradigma de inovações em todos os tipos de arte: escritores, poetas, arquitetos, pintores, músicos, compositores, dramaturgos, coreógrafos e artistas italianos de todos os gêneros passaram a se autodenominar futuristas e mostraram enorme frustração com a sensação de que a Itália estava atrasada em relação ao restante da Europa, estava ainda presa ao passado, estagnada em tradições e museus —— essa virada de paradigma cultural foi tão relevante que até a tradicionalíssima cozinha italiana sofreria mudanças em seus cardápios, com novas diretrizes gastronômicas que pregariam até a substituição dos tradicionais pratos de massas por novos sabores e novas combinações. Nas artes, como um todo, vários manifestos de grupos de futuristas organizados foram impressos e divulgados: caso do "Manifesto Futurista" publicado pelo escritor Filippo Tommaso Marinetti no jornal francês Le Figaro em 20 de fevereiro de 1909, e caso também do "Manifesto dos Músicos Futuristas" publicados pelos compositores Francesco Balilla Pratella (1880-1955) e Luigi Russolo (1885-1947) no ano seguinte. Na música, aliás, Pratella e Russolo não apenas defenderiam que os músicos começassem a ter uma educação livre e uma produção musical iconoclasta, experimental, e abandonassem os conservatórios e seus valores clássicos —— entre outras rebeldias! ——, mas eles foram sobretudo precursores na derribada dos padrões da harmonia clássica e na difusão dos ruídos urbanos e eletrônicos como novos ingrediente dessa nova música moderna que nascia, atuando em paralelo ao expressionismo alemão no advento de uma nova música que fosse condizente com as modernidades do tempo presente. O futuristas foram, de fato, os primeiros precursores da música eletrônica, criando, eles mesmos, novos instrumentos e aparatos elétrico-eletrônicos que foram os precursores dos sintetizadores! E fora da Itália, o futurismo também foi muito bem aceito entre os músicos, compositores e artistas russos que já vinham se saturando com todos os velhos valores czaristas. E neste álbum acima, o diletante pianista Steffen Schleiermacher, um dos maiores pesquisadores do repertório moderno para piano, faz uma incursão nos ventos iniciais desse movimento. Ele inclui no programa as peças La Battaglia (1913) de Francesco Balilla Pratella, Les Chants de La Mi-Mort (1914) de Alberto Savinio, La Notte Alta (1917) de Alfredo Casella e Stati D'Animo (1923) e Profilo Sintetico Musicale di F.T. Marinetti (1924), ambas compostas por Silvio Mix. Moldadas por estranhas combinações de linhas melódicas e acordes (algo que na Rússia Roslavets chamou de "acordes sintéticos"), e desprezando as métricas e rítmicas clássicas, essas peças são o suprassumo da rebeldia e da radicalidade musical nesse período anterior ao protagonismo da técnica dodecafônica que Schoenberg encabeçaria.

 
21                      Russian Futurism – Volumes I ao V – (Arte Nova Classics, 2007).

A vanguarda artística da Rússia foi, inicialmente, tão ou mais revolucionária quanto a vanguarda europeia. O modernismo musical russo já desabrochava com vigor desde os anos finais de 1890, se tornando vigente nos anos iniciais de 1900 com os cromatismos sinestésicos de Alexander Scriabin (1871-1915) e as teorias modais de Boleslav Yavorsky (1877-1942), já colorindo a música com novas paletas dissonantes de cores mesmo antes de Arnold Schöenberg (1874-1951) expandir completamente o cromatismo para o serialismo dodecafônico e fundar a Segunda Escola de Viena: Roslavets (1881-1944), por exemplo, já compunha usando surreais hexacordes dissonantes e já idealizava um sistema novo de "acordes inventados", também chamados de "acordes sintéticos". Os compositores russos do início do século 20, então, já surgiam influenciados pelas ideias modernistas de Scriabin e Yavorsky, com muitos deles sendo verdadeiros experimentalistas e pioneiros do Movimento Futurista —— iniciado a partir do Manifesto Futurista na Itália, mas com forte adesão na Rússia e nos EUA. Assim, os anos de 1910 e de 1920 testemunharão grande liberdade criativa, com obras muitas das vezes tão —— ou mais ainda! —— modernas e revolucionárias quanto as obras do eminente futurismo italiano, do expressionismo alemão ou do surrealismo francês. Porém, na década de 1930, com a chegada de Stalin ao poder, a doutrina do Realismo Socialista forçaria todos esses compositores modernistas a limitarem-se esteticamente à sua cartilha doutrinária, interrompendo esse ímpeto criativo que rumava para uma total expansividade desse modernismo pós Segunda Revolução Industrial. Muitos desses futuristas fugiram do país —— caso de Nikolai Obukhov, Arthur Lourié, Stravinsky e tantos outros. Mas muitos ficaram e peitaram o regime com obras dissonantes e amargas aos ouvidos da política socialista, sendo instantaneamente condenados ao ostracismo, quando não eram presos nas gulags. E esta compilação acima, que ao todo totaliza cinco volumes, traz justamente algumas dessas composições modernistas criadas por alguns desses compositores russos adeptos ao futurismo do início do século XX, tendo obras de Mossolov (1900-1973), Roslavets (1881-1944), Goedicke (1877-1957), Krein (1883-1951), Gnesin (1883 - 1957), Kirkor (1910-1980) e Lev Knipper (1898-1974), com alguns deles tendo permanecido em solo russo mesmo tendo suas obras canceladas.

 
22                      The New Stravinsky Complete Edition (Deutsche Grammophon, 2021)

Ainda que Stravinsky (1882-1971) não seja um compositor de obras de audições das mais exigentes no campo harmônico —— mesmo em sua fase tardia, quando ele volta-se para o atonalismo dodecafônico ——, a exuberância da sua música é particularmente revolucionária nos campos das rítmicas e das combinações inéditas de naipes dentro das suas orquestrações, trazendo ao mundo moderno combinações rítmicas, combinações instrumentais e efeitos timbrísticos orquestrais sem precedentes já a partir dos seus três balés iniciais O Pássaro de Fogo (1910), Petrushka (1911) e O Rito da Primavera (1913), escritos quando ainda morava na Rússia para a revolucionária companhia de dança moderna Ballets Russes, do empreendedor artístico Serguei Diaguilev. Inicialmente influenciado pelo Futurismo Russo nos anos de 1910, e adotando a sina de criar inflexões cada vez mais exuberantes em suas rítmicas e arranjos em torno do folclore russo e da eminência dos primeiros elementos do jazz, Stravinsky logo seria um dos mais jovens compositores russos mundialmente famosos por seu estilo idiossincrático, intrincado e exuberantemente incomparável. Também sendo um dos pais do neoclassicismo moderno em sua estadia francesa, Stravinsky praticamente revoluciona os procedimentos revisionistas de ressignificação das inovações do passado clássico, inspirando inúmeros compositores dos mais modernistas a adotar tratativas similares de ressignificação. Em 1939 ele vai lecionar e morar nos EUA e lá é influenciado ainda mais pelo jazz e pela música de cinema, tornando-se uma referência na academia e no universo artístico americano. Posteriormente, contudo, Stravinsky voltar-se-ia mais para as dissonâncias do dodecafonismo, sem perder suas exuberantes combinações timbrísticas e rítmicas. Este box set indicado acima, The New Stravinsky Complete Edition, é o compêndio perfeito para atestar essa amplitude stravinskyana. O box set traz um conjunto de 30 CDs que a Deutsche Grammophon editou para lançar a mais completa coletânea das obras de Stravinsky já compilada. Você conseguirá comprá-lo nas plataformas de e-commerce (eBay, Amazon, Discogs e etc) por módicos 2.000 dólares... Para colecionadores e completistas, vale à pena!!!

 
23                       Sergei Prokofiev – Violin Concertos Nos.1 & 2, Sonata for Solo Violin – André Previn, Gil Shaham, London Symphony Orchestra (Deutsche Grammophon, 1996)

O Concerto para Violino No.1 em ré maior Op. 19 de Prokofiev, iniciado em 1915 e concluído em 1917, é uma das obras de maior variabilidade de sentimentos, tons e humores da história da música erudita. Trata-se de uma peça que intercala ecos do romantismo com rompantes do modernismo, que traz contrastes entre lirismo e passagens altamente imagéticas com tons lúdicos e ares futuristas, ainda refletindo a fase inicial em que o compositor esteve fortemente influenciado pelo movimento futurista protagonizado por Lourié, Roslavets e companhia. A influência do futurismo na música de Prokofiev é melhor representada por seu Concerto para Piano N.2 Op.16 e pela peça Sarcasm for Piano Op.17, peças compostas entre os anos de 1913 e 1914. Nos anos seguintes, Prokofiev começa a suavizar os arroubos e as dissonâncias mais latentes do futurismo em suas obras, muito por causa das críticas que ele recebeu no Concerto para Piano No.2. Este seu Concerto para Violino N.1 é, pois, dessa fase e marca essa transição, mas ainda traz contrastes, contracenações, ironias, divertimentos e até certa jocosidade futurista com muitas mudanças de tons, de rítmicas e de ares ao longo de cada um dos três movimentos. Já o Concerto para Violino N.2 Op.63, concluído por volta de 1934-35, traz tons mais comedidos e passagens neoclássicas com certa profundidade tonal advinda de inflexões de excertos que Prokofiev coletou da música folclórica russa tradicional. Ambos os dois concertos estão entre os mais tocados do repertório violinístico. Essas leituras e interpretação com o maestro André Previn, a London Symphony Orchestra e o violinista Gil Shaham são equilibradas, claras, bem executadas e enfatizam bem os contrates citados. O álbum também traz a Sonata para Violino Solo Op.115, composta por Prokofiev sob uma encomenda do Comitê de Assuntos Artísticos da União Soviética que solicitou uma obra pedagógica para estudantes-violinistas talentosos.

 
24                       Gil Shaham – 1930's Violin Concertos – Barber, Berg, Hartmann, Stravinsky & Britten (Canary Classics, 2014)

O violinista americano Gil Shaham realiza aqui um trabalho verdadeiramente grande: de pesquisa e de interpretação. Ele viaja até a década de 1930 e nos desperta para o fato de que essa década foi incrivelmente rica em relação ao repertório de concertos para violino. Eclodira uma fase de miséria e incertezas com a Quebra da Bolsa de N.Y em 1929, mas a música não deixou de cumprir seu papel de evocar esperança. Shaham nos lembra que mais de 30 concertos de violino foram publicados ao longo dessa década de 1930, com mais de uma dúzia deles —— incluindo os concertos de Stravinsky, Alban Berg e os concertos icônicos de Barber e Britten aqui apresentados ——, ocupando um lugar de destaque no repertório dos grandes violinistas. Sendo um dos grandes virtuoses das últimas décadas, Shaham frequentemente combina generosidade de espírito, mentalidade humanista e conscientizadora com técnica violinística impecável, realizando trabalhos verdadeiramente divertidos e impressionantes. É o caso deste trabalho fantástico, onde o violinista nos presenteia com dois volumes em CD com gravações suas de alguns desses grandes concertos para violino compostos na década de 1930. O CD no.1 traz: o Concerto para Violino do compositor americano Samuel Barber, uma peça de arranjos modernistas inspirados nos sons de uma América já urbana, com certo imagetismo evocando, no último movimento, seus carros em trânsito congestionado, seus arranha-céus e sirenes; o Concerto para Violino de Alban Berg, lindamente harmonizado com a então eminente técnica dodecafônica; e traz, por fim, o Concerto Funebre do compositor alemão Karl Amadeus Hartmann Fúnebre, onde o violinista evoca bem o espírito angustiado e ocasionalmente raivoso da obra. O CD no.2 traz: o moderníssimo Concerto para Violino de Stravinsky numa interpretação luminosa e ao mesmo tempo dançante, enfatizando com leveza e clareza a rebusquês e as exuberâncias melódicas, rítmicas e harmônicas do compositor; e por fim segue-se o sombrio e tecnicamete desafiador Concerto para Violino do compositor inglês Benjamin Britten, que apresenta até certo contraste em relação aos outros concertos mais luminosos apresentados nos dois volumes dessa coleção por se tratar de uma peça que evoca certo drama marcial, necessitando de uma execução que enfatiza bem contrastes entre passagens enérgicas, violentas, misteriosas... com surreais bitonalidades e sobreposições de tons em vários momentos.

 
25                      Daniil Trifonov  Scriabin, Stravinsky, Prokofiev – Marrinsky Orchestra & Valery Gergiev – Silver Age (Deutsche Grammophon, 2021)

Neste álbum acima, Silver Age (Deutsche Grammophon, 2021), o celebrado pianista Daniil Trifonov dá um foco maior para peças emblemáticas do modernismo inicial russo, sequenciando tanto obras para piano solo como obras concertantes, bem como algumas transcrições: começa com a Serenade (1925) de Stravinsky, peça neoclássica que inflexiona a forma clássica da serenata com tons dissonantes e sombreamentos de música folclórica russa; segue com a moderníssima Sarcasm for Piano (1914), peça onde Prokofiev busca inovar na temática da ironia e do sarcasmo, nas estrutura de como as notas são distribuídas e na politonalidade dos acordes conflitantes; segue com a Sonata No. 8 (1944) de Prokofiev, que pertence ao ciclo das sonatas onde o compositor traz inspirações da Segunda Guerra, já adentrando o modernismo neoclássico; traz também instigantes transcrições para piano dos balés Passáro de Fogo e Petrushka, de Stravinsky; e termina o álbum com os Estudos, os Dois Poemas Op.32 (1902) e com Concerto para Piano em Fa# Op.20 (1896) de Scriabin. A abordagem pianística de Daniil Trifonov é interessante tanto na lógica com a qual ele escolheu o repertório, no sentido da intenção de mostrar esse modernismo pianístico russo inicial, quanto na execução virtuosística e imponente do mesmo, com um toque pianístico forte e ao mesmo tempo dinâmico que enfatiza bem os ataques, as acentuações e os contrates entre as intensidades, as velocidades e as poéticas.

 
26                      Dmitri Shostakovich – Galina Vishnevskaya, Nicolai Gedda, Dimiter Petkov, The Ambrosian Opera Chorus, The London Philharmonic Orchestra, Mstislav Rostropovich – Lady Macbeth Of Mtsensk (EMI, 1979)

Shostakovitch foi a síntese do modernismo musical russo moldado pelas exigências do realismo socialista. Mas essa diretriz não foi, de todo, por vontade própria. Foi, mesmo!, por imposição e sob reais ameaças de expurgo e até ameaças morte, algo que só não aconteceu porque Shostakovitch rapidamente se tornou o símbolo maior da música erudita russa já a partir da década de 1930. Por consequência, Shostakovitch mantém certo classicismo russo banhado com as influências folclóricas e proletárias, como bem exigido pela "polícia" cultural do regime, mas o faz com tons irônicos e até grotescos em muitas obras. Dessa forma, irônico e grotesco, Shostakovitch evocou vários momentos onde transcendeu seu modernismo musical para além das convenções socialistas, sendo prontamente criticado e até censurado por isso. É o caso da sua fantástica ópera "Lady Macbeth de Mtsensk". Essa ópera, composta entre os anos de 1930 e 1932, com libreto de Alexander Preis, é baseada no romance de Nikolai Leskov. A história se passa na Rússia do século XIX e narra a vida de Katerina Lvovna Izmailova, uma mulher infeliz em seu casamento com um comerciante mais velho e autoritário. Ela acaba se envolvendo em um caso amoroso com Sergei, um dos trabalhadores da propriedade. O relacionamento proibido leva a uma série de eventos trágicos, incluindo o assassinato do marido de Katerina. A culpa e o remorso assombram a protagonista, culminando em um final trágico. A peça é conhecida por sua abordagem ousada e realista, retratando temas como paixão, opressão, violência e moralidade, com Shostakovich utilizando-se de uma linguagem musical expressiva e intensa para transmitir as emoções dos personagens e a atmosfera tensa da história através de inflexões sobre elementos da música folclórica russa combinadas com técnicas modernas e dissonâncias. Com sua estreia ocorrendo em 1934 no Teatro de Ópera de Leningrado, atual São Petersburgo, "Lady Macbeth de Mtsensk" recebeu uma recepção inicialmente positiva, mas em 1936, após uma crítica negativa no jornal oficial Pravda, a ópera foi atacada e prontamente censurada pelo regime soviético: a música de Shostakovich foi considerada nocivamente "caótica" e "formalista" para os ouvidos proletários e a obra foi banida. E esse foi o episódio que, para o bem e para o mal, teve um impacto significativo na "liberdade" criativa de Shostakovich: a partir daí, então, o compositor manter-se-ia dentro das exigências do realismo socialista com um certo teor neorromântico, mas o faria adotando certo cinismo, certa ironia e certos ares grotescos e jocosos. Contudo, "Lady Macbeth de Mtsensk" ganharia enorme reconhecimento internacional nas décadas seguintes, sendo agora considerada uma das obras-primas do repertório operístico do século XX: é uma obra que desafiou as convenções e máscaras do regime socialista por oferecer uma visão crítica da sociedade e da moralidade, também se eternizando como um testemunho vivo da capacidade modernista e da coragem de Shostakovich ante as restrições impostas pelo regime soviético. Essa ópera nos faz perguntar o quão mais moderno Shostakovich soaria em suas obras posteriores se os demônios daquele regime ditatorial não tivessem lhe censurado e frequentemente lhe cerceado.

 
27                      Dmitri Shostakovich – Frank Peter Zimmermann, NDR Elbphilharmonie Orchester, Alan Gilbert – Shostakovich Violin Concertos 1 & 2 (BIS, 2016)

Os dois concertos para violino de Shostakovich já são obras que enfatizarão seu neorromantismo mais tardio, mas sempre evocando certa latência modernista aqui e ali. O Primeiro Concerto foi escrito em 1947-1948 e foi dedicado ao renomado violinista David Oistrakh, enquanto o Segundo Concerto foi composto em 1967 para o violinista Yehudi Menuhin. O Primeiro Concerto é mais modernista faz uso frequente do criptograma motívico DSCH: uma linha melódica, inspirada pelo motivo BACH, onde o compositor associa as letras iniciais do seu nome e sobrenome DMITRI SHOSTAKOVICH ao tetracorde formado pelas notas Ré, Mi bemol, Dó e Si natural, constituindo o criptograma D, Es, C, H (na notação musical alemã). Este seu Concerto para Violino No.1 começa a ser gestado depois da acusação de "formalismo" pela censura do regime e, portanto, ficou alguns anos escondido até ser efetivamente publicado em 1955 (após a morte de Stalin), sendo um exemplo perfeito, então, para se observar esse contraste eminente entre romantismo tardio e modernismo mais formalista, com passagens mais modernistas no seu segundo movimento, Allegro - Scherzo, que soa frenético numa sequência irregular de métricas. A peça é intensa e expressiva, com uma variedade de emoções e contrastes, sendo dividido em quatro movimentos: começa com um Nocturne lírico e introspectivo, segue por um Scherzo enérgico e virtuosístico e termina com uma Passacaglia sombria e melancólica construída sobre um tema cíclico, com um final cheio de energia e drama. Já o Segundo Concerto tem uma abordagem mais lírica e melódica, com uma atmosfera mais etérea e misteriosa, por vezes combinando passagens virtuosísticas com belas melodias. Neste álbum acima temos grandes interpretações desses dois concertos através do tato e do arco do violinista alemão Frank Peter Zimmermann. O violinista se destaca pelo vigor, pelo tom imponente e por dar uma versão mais veloz ao Concerto No.1 em relação a outras gravações de outros violinistas: isso porque ele segue exatamente as marcações de metrônomo e instruções de arco presentes no manuscrito original de Shostakovich, potencializando, ainda, as passagens mais virtuosísticas da peça. Já a interpretação de Zimmermann do Concerto No.2 é mais comedida e reflete o amadurecimento tardio do compositor. Não estão na lista dos meus concertos favoritos, mas vale aqui indicar pela expressividade de ambos. O brilhantismo e a capacidade improvisativa de Zimmermann nas cadências de ambos os concertos são notáveis!

 
28                      Dmitri Shostakovich – Heinrich Schiff, Symphonie-Orchester Des Bayerischen Rundfunks, Maxim Shostakovich – Cello Concertos Nos. 1 & 2 – (Philips, 1985)

O Concerto para Cello No.1 (1959) é um exemplo de como Shostakovich usa a ironia, o grotesco e a jocosidade para se opor as exigências estéticas do realismo socialista. O concerto, gravado após o Concerto para Violino No.1, também é marcados pela dissonância do já citado criptograma motívico DSCH e é inspirado Sinfonia Concertante de Prokofiev, tendo sido composto e dedicado exclusivamente para o cellista Mstislav Rostropovich. A peça nos traz sinuosidades que variam entre as inflexões sobre o criptograma motívico DSCH e inflexões sobre o tema melódico de "Suliko", canção preferida de Stalin, tema também usado por Shostakovich em sua cantata "Antiformalist Rayok": uma tratativa de Shostakovich que é, na verdade, uma sátira ao regime soviético e à censura do Realismo Socialista ao "formalismo", pratica que seria comum em suas obras a partir de então. Já o Concerto para Cello No.2 é marcados por contrastes entre motivos dissonantes e inflexões baseadas na cultura cancionista e folclórica russa, já trazendo um tom mais profundo, sombrio e menos frenético, algo já bem próximo do seu estilo tardio. Recomenda-se procurar a versão gravada por Mstislav Rostropovitch, concertista para o qual Shostakovitch dedicou tais peças. Mas os álbuns onde seu filho Maxim Shostakovich esteja envolvido como maestro também são altamente recomendáveis, pois trazem uma versão mais fielmente crua e menos romantizada desse concerto. O álbum acima com o violoncelista Heirinch Schiff e Maxim Shostakovich à frente da Orquestra Sinfônica da Rádio Bávara é altamente recomendável: essa versão foi, inclusive, premiada com o Grand Prix du Disque em 1985.

 
29                      George Gershwin – Orion Weiss, John Fullam, Buffalo Philharmonic Orchestra, JoAnn Falletta – Rhapsody In Blue, Catfish Row, Promenade – (Naxos, 2013)

Há diversas versões fantásticas dessas peças de Gershwin disponíveis com outros grandes maestros por aí nas lojas e plataformas, mas estes dois discos (acima e abaixo), com as leituras da maestrina JoAnn Falleta são os mais indicados em minha opinião pela leitura brilhante, apaixonada, e por reunir mais essencialmente as peças de Gershwin num só contexto de gravações —— já presenciei diversos discos onde essas obras estão misturadas com outras obras de outros compositores, álbuns sem nenhum contexto discográfico. Gershwin ficou conhecido por hibridificar o popular com o erudito no âmbito da música essencialmente americana. Em resumo, as obras de Gershwin abordadas por Falleta —— Rhapsody in Blue, Strike Up the Band, Overture, Promenade e Catfish Row —— são exemplos notáveis da habilidade de Gershwin em combinar influências do jazz, da canção popular americana com a música erudita. Seu estilo único e cativante trouxe uma nova sonoridade para a música americana, estabelecendo-o como um dos compositores mais importantes do século XX. Rhapsody in Blue é uma das obras mais conhecidas e amadas de George Gershwin: foi composta em 1924 e estreou em um concerto intitulado "Experiment in Modern Music" no Aeolian Hall, em Nova York, no mesmo ano. A peça combina elementos do jazz e da música erudita, incorporando improvisação, uma sonoridade híbrida com inflexões sobre motivos populares, um solo de virtuosístico de piano e uma orquestração rica e colorida que reflete bem a modernidade americana tão caracterizada pelas big bands de jazz. Falleta nos apresenta, em seguida, a peça Strike Up the Band, que é uma opereta satírica composta por Gershwin em 1927, com letras de Ira Gershwin: uma que peça aborda temas políticos e sociais, utilizando o humor como uma forma de crítica, utilizando elementos do jazz e das marchning bands. Segue-se Overture, também conhecida como Cuban Overture: composta por Gershwin em 1932, após sua viagem a Havana, Cuba, peça que captura os ritmos, os metais, a percussão e a atmosfera vibrante da música afro-cubana. Temos ainda Promenade, que é uma peça curta para piano solo, composta por Gershwin em 1920: originalmente escrita sob influência do ragtime como uma peça de música incidental para a peça de teatro "Sweet Little Devil". E, por fim, temos a peça Catfish Row, uma suíte orquestral que Gershwin compilou em 1936 a partir de sua famosa ópera "Porgy and Bess": essa suíte apresenta trechos instrumentais selecionados da ópera, incluindo a famosa ária "Summertime", capturando a essência da história e dos personagens de "Porgy and Bess" através da riqueza do folclore afro-americano e da característica mistura de elementos musicais populares e clássicos que permeou toda a obra do compositor.

 
30                      George Gershwin – Orion Weiss, Buffalo Philharmonic Orchestra, JoAnn Falletta – Concerto In F (Rhapsody No. 2 I Got Rhythm Variations) – (Naxos, 2012)

As gravações da maestrina JoAnn Falleta com foco nas obras de Gershwin são conhecidas pelo brilhantismo e por enfatizar bem as cores, os contrastes e os elementos que fizeram da música desse compositor um dos principais emblemas na criação de uma música erudita distintamente americana —— outros compositores antes e em paralelo, tais como Charles Ives e Aaron Copland, também são corresponsáveis por darem forma à "alma americana" no âmbito musical, mas Gershwin conseguiu conquistar as massas com um apelo mais populista. Neste álbum acima, Falleta segue abordando peças como Concerto in F, Rhapsody No. 2 e I Got Rhythm" Variations. O Concerto in F foi composto por Gershwin em 1925, sendo sua primeira incursão na forma de concerto para piano e orquestra, tendo sido estreado em dezembro de 1925, com o próprio Gershwin ao piano e Walter Damrosch conduzindo a New York Symphony Orchestra: seguindo o formato clássico-tradicional de três movimentos (Allegro, Adagio, Andante con moto e Allegro agitato), Gershwin explora um pianismo com ritmos sincopados, harmonias inovadoras com base em acordes de jazz e melodias inspiradas pela canção popular, tornando essa uma das suas obras que mais sintetizam o "estilo americano". A peça Rhapsody No. 2 foi escrita por Gershwin em 1931 como uma continuação de sua famosa Rhapsody in Blue: trata-se de uma peça vibrante e exuberante que combina elementos de jazz, do pianismo clássico ao estilo das rapsódias de Lizst e influências folclóricas americanas, apresentando variações temáticas em uma estrutura livre e improvisatória. Já as Variações sobre a canção "I Got Rhythm" foram compostas por Gershwin em 1934 como parte de seu musical Girl Crazy, sendo posteriormente orquestradas pelo arranjador Don Rose para um formato de orquestra popular ou big band, posteriormente recebendo arranjos também eruditos: trata-se uma série de variações virtuosísticas baseadas no tema da canção "I Got Rhythm" com Gershwin explorando uma variedade de estilos e técnicas tipicamente americanas, incluindo passagens rápidas, escalas cromáticas e improvisações jazzísticas, inflexionando o tema-canção numa emblemática peça instrumental.

 
31                      Aaron Copland – Copland Conducts Copland Series – (CBS Masterworks, 1988...)

Com um apelo menos populista mas tão ou mais emblemático que Gershwin, o compositor americano Aaron Copland (1900-1990) ficou altamente reconhecido por ser um dos responsáveis por criar uma música erudita tipicamente americana através de composições que incorporam inúmeros elementos do folclore americano —— elementos afros, indígenas, temáticas dos faroestes e afins —— num estilo de modernidade constituída de muitos contrastes e imagens sonoras, talvez sendo o compositor da primeira metade do século 20 que mais refletiu o patriotismo e a história americana no espectro musical erudito. Copland era, enfim, mais antenado com o neoclassicismo a La Stravinsky e, por vezes, se inspirava no avant-garde através de leves dissonâncias aqui e ali para colorir suas temáticas. No geral, a música de Copland adota um modernismo de inflexões claras e texturas cinematográficas, sem ter nenhuma intenção de chocar ou trazer modernismos polêmicos aos ouvidos experimentados: a única intenção é, mesmo, construir um panorama estritamente nacionalista para a música erudita americana. Para o leitor e ouvinte mais aplicado, vale a pena procurar pelas compilações e coletâneas de discos que a Columbia Records (CBS) lançou sob a alcunha de "Copland Conducts Copland", onde tem-se um panorama das  principais obras deste mui importante compositor americano regidas e lideradas por ele mesmo. A peça "Appalachian Spring" (1944), por exemplo, foi composta como uma suíte para um balé de Martha Graham, sendo uma obra reconhecida por suas melodias inspiradas pelas canções populares dos Apalaches, oferecendo uma atmosfera evocativa e pastoral mui bem inspirada no folk e bluegrass americano. Já a peça "Fanfare for the Common Man" (1942) foi encomendada pela Cincinnati Symphony Orchestra como uma peça curta para comemorar o envolvimento dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial: trata-se de fanfarra marcada por tons de heroísmo e patriotismo caracterizada por uma cintilante orquestração que evoca as bandas militares de forma marcante e grandiosa. Já na suíte "Rodeo" (1942), Copland compõe um balé para Agnes de Mille que conta a história de uma garota do campo que deseja conquistar a atenção dos vaqueiros, apresentando inflexões sobre inspirações em dançantes melodias de cowboy e de danças de quadrilha americana. Outra peça emblemática de Copland é "Billy the Kid" (1938), uma suíte de balé que retrata a vida do famoso fora-da-lei do Velho Oeste americano, peça coreografada por Eugene Loring e também disposta de inspirações sobre canções populares e melodias de cowboy. A coletânea de discos indicada acima traz essas e várias outras peças deste compositor que tão profundamente captou as essências culturais dos Estados Unidos, incluindo peças onde o compositor se inspira nas influências latinas dos entornos do Texas, Nova México, Cuba e etc, e incluindo peças eruditas mais formais como suas peças para conjuntos de câmera e suas sonatas para violino, piano, flauta e etc. Essencial!

 
32                      Benny Goodman Collector's Edition: Compositions & Collaborations – Bartók, Berstein, Copland, Gould, Stravinsky – (CBS Masterworks, 1986).

O clarinete foi um dos instrumentos protagonistas do jazz nos anos 20, 30 e 40, as primeiras décadas efervescentes do gênero. Neste álbum acima, temos alguns dos grandes concertos e peças escritas para clarinete por compositores eruditos que se inspiraram no jazz, algumas dessas peças escritas exclusivamente para Benny Goodman e Woody Herman, dois clarinetistas célebres do jazz que também tinham fluência na estética erudita. O álbum começa com a peça Prelude, Fugue And Riffs (1949) escrita por Leonard Bernstein para conjunto de jazz com clarinete solo e orquestra para ser interpretado pelo clarinetista Woody Herman, mas estreada posteriormente por Benny Goodman. Em seguida temos o Concerto for Clarinet, Strings and Harp de Aaron Copland, que apresenta uma estética lúdica do neoclássico americano, sendo uma peça escrita originalmente para o balé Pied Piper (1951), mas posteriormente adaptada para ser um concerto para clarinete. Segue-se a peça Ebony Concerto, que traz as exuberâncias timbrísticas e rítmicas características das inspirações jazzísticas de Stravinsky, sendo uma peça originalmente escrita também para Woody Herman e sua big band, em 1945. Segue-se a peça Derivations For Clarinet And Band (1955) escrita por Morton Gould exclusivamente para Benny Goodman. E, por fim, temos Constrasts (1938), peça para piano, violino e clarinete que Bela Bartók escreveu em resposta a uma carta do violinista Joseph Szigeti, embora a peça tenha sido oficialmente encomendada pelo clarinetista Benny Goodman. Gravações históricas!

 
33                      Carl Orff – Antal Dorati, The Royal Philharmonic Orchestra, Norma Burrowes, Louis Devos, John Shirley-Quirk – Carmina Burana – (Decca, 1976).

Carl Orff (1895-1982) é daqueles compositores do século 20 em que sua principal obra é muito mais popular do que seu próprio nome. Isso porque sua fantástica cantata "Carmina Burana" emplacou um hit que alcançou enorme popularidade na cultura pop: trata-se do tema de abertura "O Fortuna", que aparece na primeira e na última parte dessa cantata e apresenta um coro épico e marcante que começa com uma anunciação misteriosa e depois explode em tensão, acompanhado por uma orquestra imponente com uma poderosa marcação rítmica de bumbo, evocando uma sensação de grandeza e drama. Devido à sua natureza grandiosa e impactante, "O Fortuna" tem sido amplamente utilizado em trilhas sonoras de filmes, comerciais de televisão, programas de TV e eventos esportivos, contribuindo para sua ampla familiaridade e popularidade. No geral, o compositor alemão Carl Orff é conhecido por suas contribuições para a ópera e para a música vocal no âmbito das ressignificações épicas das formas vocais medievais: corais, missas, canto gregoriano, cantatas e etc. Esta sua obra mais famosa, "Carmina Burana", é uma cantata escrita para dar vida a uma arte cênica e é baseada em um conjunto de poemas medievais do século XIII, descobertos em um mosteiro na Baviera: a peça é dividida em três partes e apresenta uma variedade de temáticas humanistas, incluindo amor, natureza, prazeres mundanos e a efemeridade da vida, combinando uma orquestração grandiosa com elementos medievais e uma abordagem percussiva muito poderosa através de instrumentos como tambores, bumbos, gongos e xilofones. A esplendida gravação acima é do maestro húngaro Antal Doráti à frente do Coral do Festival de Brighton e da Royal Philharmonic Orchestra.

 
34                      Carl Orff – Herbert von Karajan – De Temporum Fine Comoedia – (Deutsche Grammophon, 1974).

Tendo sua estreia em 1972, "De temporum fine comoedia" é uma ópera composta por Carl Orff já em sua fase tardia, sendo uma da suas peças mais dramáticas e mais rigorosamente talhada, detalhada e revisada. O libreto foi escrito pelo próprio Orff e baseia-se em textos medievais e renascentistas, especialmente em obras filosóficas e poéticas relacionadas ao tema do fim dos tempos e à natureza cíclica da existência. A ópera é dividida em três partes: "Primum tempus", "Secundum tempus" e "Tertium tempus". Cada parte aborda diferentes aspectos do fim dos tempos e explora temas como o destino humano, a decadência da sociedade e a busca pela salvação espiritual. O enredo de "De temporum fine comoedia" não é linear e apresenta uma série de personagens e eventos simbólicos, incluindo passagens com coro infantil para evocar as passagens mais angelicais. A ópera começa com uma proclamação sobre a vinda do Juízo Final e a necessidade de redenção. Ao longo da obra, os personagens enfrentam provações e desafios que refletem a condição humana e a luta entre o bem e o mal. Tendo feito várias revisões da obra, sendo a revisão mais profunda realizada pouco antes da sua morte, entre 1979 e 1981, Carl Orff foi aos poucos potencializando a orquestração e acrescentando mais instrumentos de sopro e mais instrumentos de percussão, sendo necessário o uso de uma descomunal grande orquestra —— praticamente com números dobrados de instrumentos em cada naipe —— e uma descomunal seção de percussões com 25 a 30 percussionistas. Em sua sina de ressignificar formas medievais e barrocas dentro de tratativas mais modernistas, em algumas passagens Carl Orff abandona o seu diatonicismo recorrente e adota um cromatismo marcado por escalas octatônicas e inflexões sobre inspirações e citações do BWV 668 de Bach (Vor deinen Thron tret ich hiermit), evocando um cânone conhecido como pandiatônico. Ainda que haja outros registros que documentam as revisões estentidas que o compositor efetuou posteriormente, esta gravação com Herbert von Karajan e a Orquestra Filarmônica de Berlim é considerada uma das referências acessíveis dessa obra, que talvez seja a peça vocal mais rigorosa e perfeccionista de Orff.

 
35                      Olivier Messiaen – Les Ondes Martenot Par Le Sextuor Jeanne Loriod - Fête Des Belles Eaux / Hexade – (Disques Adès, 1983).

O compositor francês e ornitólogo (estudioso dos pássaros) Olivier Messiaen (1908-1992) foi, ao lado do seu compatriota Edgard Varèse, um dos primeiros músicos a propagar os primeiros instrumentos eletrônicos, sendo que seu uso do ondas martenot foi especialmente notável. Já em 1937, por exemplo, Messiaen compõe a inventiva peça "Fête des belles eaux" para seis ondas martenot, sendo essa uma das primeiras peças estritamente eletrônica da história da música moderna a ser escrita para um instrumento eletrônico portátil, um prenúncio da revolução que seria protagonizada pelos sintetizadores décadas mais tarde. E ele seguiria inventando muitas peças para esse instrumento: em formatos solo, em formatos camerísticos e até sinfônicos —— vide sua Turangalîla-Symphonie, da qual falaremos abaixo. Neste álbum acima, temos Jeanne Loriod —— irmã mais nova de Yvonne Loriod, grande pianista e segunda esposa de Olivier Messiaen —— interpretando, com seu ensemble, algumas dessas obras de Messiaen para ondas martenot. A sonoridade é futurista e já demonstra uma concepção musical à frente do seu tempo. Messiaen, de fato, incluiu novas sinestesias, novas cores e sonoridades à música moderna! Sua música, muitas vezes inspirada pelo som dos pássaros, tem um colorido e um brilho especialmente lúdico.

 
36                      Olivier Messiaen - Yvonne Loriod, Jeanne Loriod, Orchestre De L'Opéra Bastille, Myung-Whun Chung – Turangalîla-Symphonie – (Deutsche Grammophon, 1991).

Olivier Messiaen foi um dos mais influentes e prolíficos compositores do século 20, também tendo sido professor de grandes figuras que protagonizariam as transformações musicais na fase pós Schoenberg-Berg-Webern, segunda fase da música moderna que se inicia em finais dos anos 40, e na fase tardia do modernismo espectralista: entre eles, Iannis Xenakis, Pierre Boulez, Karlheinz Stockhausen, György Kurtág, Tristan Murail (esse um dos pioneiros da "música espectral"), dentre outros. Suas peças são especialmente distintas por causa das suas inspirações religiosas, das suas concepções de colorimetria sonora, do seu fascínio pela imitação do canto dos pássaros, dos seus contrastes entre consonâncias e atonalidades embasados numa técnica harmônica própria chamada "modos de transposição limitada", do seu arraigado imagetismo, entre outras idiossincrasias. E a sua célebre peça "Turangalîla-Symphonie" é um exemplo dessas distinções: trata-se de uma peça que mistura temas cíclicos em conotação conceitual e subjetiva ao amor ou às figuras épicas com partes atonais e graves que se conotam com o terror, sendo que o segundo movimento da sinfonia já dá um enfoque para uma série fixa inspirada pelas séries dodecafônicas, inaugurando o interesse do compositor pelo serialismo. O título da obra é um tanto simbólico e deriva-se da junção de duas palavras do sânscrito: turaṅga (ritmo do tempo, tempo em movimento, tempo que flui como numa ampulheta) e līlā (jogo divino no sentido de cosmos, vida e morte, criação e apocalipse). Junto com o ciclo de canções "Harawi" e com e peça "Cinq Rechants" para coro misto a cappella, essa sinfonia forma uma trilogia que Messiaen dedicou subjetivamente à história de Tristão e Isolda. Turangalîla foi concluída entre 1946 e 1948 sob encomenda do maestro Serge Koussevitzky, na época diretor artístico da Boston Symphony Orchestra, e é célebre por usar o ondas martenot nas passagens relacionadas ao amor e ao divino, o que dá um tom timbrístico bem distinto e incomparável à peça. Essa versão acima com o célebre maestro sul-coreano Myung-whun Chung à frente da Orchestre de la Bastille, tendo também Yvonne Loriod (sua esposa) ao piano e Jeanne Loriod (sua cunhada) no ondas maternot, é uma leitura vigorosa e foi supervisionada pelo próprio compositor.

 
37                      Olivier Messiaen - Orchestral Works – Kent Nagano & Bavarian Radio Symphony Orchestra & Chorus (Deutsche Grammophon, 1997).

Sou fã do maestro Kent Nagano desde que ouvi suas interpretações para as peças de Frank Zappa nos idos anos de 2000. Sendo um dos maiores especialistas no repertório de Olivier Messiaen —— tendo, inclusive, estreado algumas de suas peças tardias ——, aqui ele dá sua leitura madura para as peças de inspiração religiosa de Messiaen, incluindo ao meio, e como um contraste, a extraordinária peça para grande orquestra Chronochromie (1959-1960). Nagano inicia o álbum com a extensa peça La Transfiguration de Notre Seigneur Jésus-Christ (1965-69): uma peça vocal consonante —— com dissonâncias apresentadas apenas como contrastes e sombreamentos —— na qual o compositor dá vazão para uma profunda inspiração religiosa baseada na passagem bíblica da transfiguração de Cristo e na Summa Theologica de Tomás de Aquino; uma peça que necessita de ao menos 200 participantes, somando os músicos de uma grande orquestra, os vocais solos e o coro de vozes; e nessa obra Messiaen também faz um uso extensivo e inflexionado de entonações de cantos de vários pássaros ao longo da peça. Em seguida, temos o ciclo de canções Poèmes pour Mi ciclo para canto lírico (soprano) e piano que Olivier Messiaen também transcreveu para orquestra: composto entre 1936 e 1937 e sendo dedicado à sua primeira esposa, Claire Delbos, as canções musicam poemas surrealistas que o próprio compositor escreveu baseando-se no Novo Testamento, além de ser um exemplo claro de como ele empregou sua técnica conhecida como cromoestesia (sinestesia som-cor) para trabalhar ludicamente com os coloridos timbrísticos dos naipes de instrumentos, bem como um exemplo de como ele explora sobreposições de repetições e métricas permutativas usando como inspiração as entonações de cantos de vários tipos de pássaros e sons de cachoeiras e motanhas que ele observou nos Alpes franceses —— o pontilhismo orquestral dessa peça nos soa, em várias passagens, como sons entrelaçados de inúmeros pássaros em uma selva. Nagano reúne essas peças num essencial box set de 3 CD's recentemente lançados!


38                      Olivier Messiaen - Poèmes pour Mi, Chronochromie, Sept Haïkaï – Pierre Boulez & The Cleveland Orchestra (Deutsche Grammophon, 1997).

Neste álbum acima, o maestro Pierre Boulez, outro especialista no repertório de Messiaen —— e aqui nesta lista vocês irão perceber que Boulez foi o maior difusor do repertório moderno —— dá sua versão para três obras seminais desse compositor: "Poèmes pour Mi" (1936-37, já abordado acima com Kent Nagano), "Réveil des oiseaux" (1953) e Sept haïkaï (1962). A peça "Réveil des oiseaux", dedicada ao ornitólogo Jacques Delamain, é um exemplo seminal de como Messiaen explorou cantos de pássaros: é a primeira de uma série de obras orquestrais baseadas em cantos de pássaros (vide, entre elas, as peças "Exotic Birds" e "Chronochromie"), com a diferença de que essa é uma das suas peças baseadas puramente e totalmente em cantos de pássaros que o compositor coletou e transcreveu para a pauta, enquanto outras peças suas abordam o canto dos pássaros apenas como um elemento inflexionado em meio a tantos outros elementos. Já a peça "Sept haïkaï" é um concerto para piano, percussão e pequena orquestra que Messiaen compôs enquanto estava em lua de mel no Japão com sua nova segunda esposa, Yvonne Loriod: inspirando-se em elementos orientais, ritmos indiano, na tradição do gagaku, na música característica do teatro Noh, no canto dos pássaros do Japão, e também fazendo um uso moderno do isorritmo, uma técnica musical que usa um padrão rítmico repetitivo advindo das repetições do canto medieval conhecido como taleae.

 
39                      Olivier Messiaen - Quatuor pour la fin du temps – Groupe Instrumental de Paris (Mangora Classical, 2015).

Quatuor pour la fin du temps (1941) é a principal obra de câmera de Messiaen e uma das peças camerísticas mais populares do repertório moderno. Trata-se de uma peça escrita para um quarteto formado por clarinete, violino, cello e piano, peça que foi fruto de uma fase em que Messiaen foi prisioneiro de guerra no cativeiro alemão do Stalag VIII-A, em Görlitz, Alemanha (atual Zgorzelec, Polônia), em plena Segunda Guerra Mundial. Enquanto estava na prisão, Messiaen encontrou alguns músicos profissionais também presos e, barganhando lápis e papel com os guardas do exército nazista, começou a escrever para esses músicos alguns esboços que posteriormente se tornariam partes de obras robustas, chegando, enfim, a concluir esse quarteto, que foi estreado ainda na prisão em 15 de janeiro de 1941 para cerca de 400 prisioneiros e guardas. Em entrevistas e declarações posteriores, Messiaen afirma que os músicos tiveram de se contentar com instrumentos ruins, apreendidos e encostados pelos nazistas, e tiveram até de coletar doações dos presos do acampamento para adquirir o violoncelo. A peça se tornou popular não apenas pelas estórias e pelo contexto deprimente ao qual o compositor estava imergido, mas também pelos tons emotivos e pela sua estrutura programática baseada nas imagens do Livro do Apocalípse, numa clara alusão crítica às agruras da guerra. É uma das primeiras peças a evidenciar mais veementemente os traços idiossincráticos de Messiaen, incluindo suas inspirações litúrgico-religiosas e suas inspiração no canto dos pássaros. Neste álbum acima temos uma quente e coesa leitura dessa peça a cargo do Groupe Instrumental de Paris.

 
40                      Olivier Messiaen - Complete Organ Works – Hans-Ola Ericsson (BIS, 2009).

Católico fervoroso, Olivier Messiaen foi organista por 61 anos na Église de la Sainte-Trinité, em Paris. Começando ainda jovem, aos 20 anos, sob a tutela do seu professor de órgão Marcel Dupré, Messiaen foi nomeado como o organista titular dessa igreja histórica já em 1931, substituindo o organista Charles Quef e se comprometendo com esse posto até sua morte. Com a invasão da França pela Alemanha Nazista em 1940, Messiaen é preso —— ele servia ao exército francês como auxiliar médico ——, mas retorna à atividade de organista quando é solto da prisão. Além das suas interpretações e transcrições de obras de Bach para orgão, já em 1927 Messiaen compõe sua primeira peça para orgão chamada "Le banquet céleste", seguindo com "Apparition de l'église éternelle" em 1932, evoluindo em 1935 com a célebre peça para órgão "La Nativité du Seigneur", e expandindo seu repertório organístico em uma sequência intitulada Les Corps glorieux, um ciclo completo de peças para orgão concluído em 1939 e estreada em 1945. Para os organistas contemporâneos essas peças se tornariam tão benquistas quanto as peças escritas por Johann Sebastian Bach ou César Franck, dois dos maiores compositores, respectivamente do barroco e romantismo, que se dedicaram ao enriquecimento do repertório para órgão de tubos. Pontualmente, Messiaen continuaria a criar peças para orgão durante todo o restante da carreira. Em 1969 ele conclui sua "Méditations sur le Mystère de la Sainte Trinité", uma peça que introduz o órgão na estética serialista. E em 1984 ele pública um grande catálogo de peças para orgão chamado Livre du Saint Sacrament. Todas essas obras, dentre outras, são abordadas acima pelo célebre organista Hans-Ola Ericsson, um dos maiores especialistas no repertório organístico de Messiaen. O box vem com 7 CD's.

 
41                        Heitor Villa-Lobos – Chôros 1 ao 7 – Adrian Leaper & Orquestra Filarmonica de Gran Canaria (ASV, 2003).

Villa-Lobos (1887-1959) é mundialmente conhecido como o maior dos compositores latino-americanos e o compositor que mais traduz a alma brasileira para as formas sinfônicas, concertantes, camerísticas e instrumentais, incluindo em sua obra um repertório de violão erudito muito benquisto. O modernismo musical brasileiro começa, inclusive, com Villa-Lobos na passagem dos anos de 1910 para 1920: um fato que, aliás, nada tem a ver com a Semana da Arte Moderna (1922) —— como equivocadamente tem-se dito por aí ——, um evento que foi um emblema simbólico para datar e referenciar mais o modernismo no âmbito da literatura e das artes plásticas do que para indicar um movimento de modernidade no âmbito da música erudita brasileira, uma vez que Villa-Lobos foi o único compositor participante e o repertório impressionista tocado no evento pela pianista Guiomar Novaes —— com peças de Debussy e Erik Satie —— já estava um tanto atrasado em relação ao modernismo internacional em voga. Aliás, é preciso frisar que, no caso de Villa-Lobos, estamos falando de um modernismo nacionalista que já não se conecta com as correntes avant-garde em voga no cenário internacional, apesar desse modernismo nacionalista sutilmente ser influenciado pelas novas dissonâncias que já surgiam. Ainda que houvesse uma inclinação modernista acontecendo nos circuitos culturais do eixo RJ-MG-SP, nada muito próximo das correntes expressionistas e futuristas do avant-garde internacional poderia se esperar de um cenário onde os mecenas e a elite econômica da época ainda eram regidos pelo conservadorismo da oligarquia cafeeira. Mas Villa-Lobos já soava sutilmente moderno, ainda que esse modernismo, pelos fatores político-culturais mencionados, tenha sido polido para agradar os ouvidos demagógicos desse público conservador. Entre fins de 1910 e início de 1920, ao menos três correntes estéticas davam rumo para o modernismo musical no mundo: o futurismo de Russolo, Roslavets, George Antheil e companhia (em voga na Itália, Russia, EUA); o expressionismo abstrato iniciado pelo dodecafonismo de Schoenberg, Berg, Webern e companhia (em voga na Áustria e Alemanha); e o neoclassicismo que surgia como uma resposta mais "mainstream" à essas correntes de vanguarda, movimento que surgiria em seguida (na França, Leste Europeu, Russia, EUA...) tendo como representantes figuras como Darius Milhaud, Bela Bartók, Aaron Copland e os russos Stravinsky e Prokofiev (os quais inicialmente também beberam das fontes do futurismo). Foi essa corrente neoclassicista que permitiu os compositores nacionalistas e tradicionalistas a abraçarem os interesses e os elementos folclóricos dos seus países dentro desse novo contexto de modernidade: ou seja, tratava-se de uma diretriz que prezava pela hibridificação entre a ressignificação dos elementos da tradição clássica, a inflexão dos traços e adereços do folclore e o uso pontual e temperado das novas dissonâncias modernas —— considerando que a cultura popular (o samba, o jazz, o tango, e etc) também produzia seus acordes exóticos e vinha se modernizando com novas dissonâncias, novas cores harmônicas e novos timbres. No Brasil, era uma época em que os elementos do samba, das rodas de choro e dos folclores regionais desciam dos morros e advinham dos lugarejos para adentrar as artes nos teatros, e muitos artistas e pesquisadores iam aos lugarejos, subúrbios e subiam os morros para se inteirar da cultura nacional. A musicologia de Mário de Andrade foi deveras importante para a altivez desse pensamento de valorização do folclore nacional. E Villa-Lobos, considerando o contexto cultural e socio-político do Brasil e dos ambientes e cenários que ele frequentava, conectou-se melhor com esse movimento do neoclassicismo que lhe permitia abraçar esses traços folclóricos e nacionalistas. As visitas que Villa-Lobos fazia aos morros, aos terreiros e às favelas para curtir os choros e sambas de Donga e Pixinguinha, foram muito importantes para a formação desse nacionalismo moderno. Portanto, o ciclo de "Chôros" que o jovem Villa compôs na década de 1920 é uma obra mais do que importante para se analisar esse modernismo nacionalista inicial, um ciclo que Villa apresentou na França, nos EUA... e obteve grande sucesso de público e crítica, e grande admiração de outros compositores modernistas que foram assistir suas peças. Neste álbum acima, lançado pelo maestro inglês Adrian Leaper e a Orquestra Filarmónica de Gran Canária, temos uma excelente interpretação de parte do ciclo de "Chôros": o álbum aborda do No.1 ao No.7 e começa com a moderna "Introdução ao Choros" para violão e orquestra, peça que Villa compôs em 1929 na ocasião da conclusão desse ciclo que vai até o No.12. Para o ouvinte mais aplicado, no Spotify há as gravações do ciclo completo de "Chôros" realizadas pelo maestro John Neschling e os músicos da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP). O ciclo inflexiona, em formas e estruturas eruditas, elementos do choro e da brasilidade para duo, ensembles, orquestra e outras formações. Essencial!

 
42                       Heitor Villa-Lobos – Die Kammersolisten Der Staatsphilharmonie Rheinland-Pfalz – Kammermusik "En Forme De Chôros" – (Signum, 1988).

Neste álbum acima, a leitura do conjunto de câmera formado pelos músicos alemães da Deutsche Staatsphilharmonie Rheinland-Pfalz (Orquestra Filarmônica Estatal da Renânia-Palatinado) dá uma roupagem um tanto vigorosa e moderna para algumas peças de Villa-Lobos. O álbum começa com o septeto de "Choros No.7" (1924), passa por "Choros No.2" (1924), um duo de flauta e clarinete, aborda o "Quinteto em Forma de Choro" (1928) e termina com a "Fantasia Concertante" para piano, clarineta e fagote (1953). A obra de Villa-Lobos não é apenas multifacetada em termos estéticos —— com muitos hibridismos de formas e elementos populares entranhados ——, mas também é multifacetada em termos de combinações e formações instrumentais no âmbito do que se convencionou chamar de "música de câmera": duos, trios, quartetos, septetos, ensembles compactos, uso criativo de instrumentos como violão, flauta, saxofones, clarinetes e fagotes..., sempre evocando, de forma inflexionada, os populares elementos dos choros e canções. E este álbum atesta isso. Não seria exagero dizer, aliás, que sua produção camerística soa mais moderna e interessante que sua produção sinfônica, por exemplo.

 
43                       Heitor Villa-Lobos – Die Kammersolisten Der Staatsphilharmonie Rheinland-Pfalz – Kammermusik "En Forme De Chôros" – (Naxos, 2011).

A maioria das peças de Villa-Lobos tem histórias a serem contadas, geralmente sendo histórias advindas dos adereços culturais, ritmos e imagens que ele coletava em suas viagens pelo Brasil afora. Após a morte do seu pai em 1899, Villa-Lobos passou por uma fase de seguidas viagens pelo interior do Brasil, coletando influências geográficas, etnográficas e culturais que tiveram profunda importância no desenvolvimento da sua estética pessoal, e lhe serviu para não ficar refém, totalmente, das amarras estéticas europeias, uma vez que o Brasil vinha de uma nova fase onde deixara de ser colônia para ser uma República independente e a nova classe artística anseava por uma arte autenticamente brasileira. Nos anos de 1920, como já atestamos acima no seu ciclo de "Choros", Villa-Lobos passou algumas temporadas em Paris e a influência daquele ambiente modernista parisiense também lhe sortiu de muitos elementos que foram importantes para seu desenvolvimento. Ao voltar para o Brasil, ele encontra um novo país agora marcado pelas revoluções da República Nova, fato que irá acentuar ainda mais seus traços nacionalistas: ou seja, tirando de fora as Bachianas Brasileiras —— que são primorosas por unir uma linguagem neobarroca com adereços nacionalistas ——, muitas das suas obras das décadas de 1930, 1940 e até 1950 são preponderantemente populistas e propagandistas, uma verve que ele incorpora para surfar na onda do populismo getulista e conseguir dinheiro e popularidade para realizar seu desejo de alcançar mais pessoas e revolucionar o ensino musical no Brasil. Tanto que em 1932 ele torna-se diretor da Superintendência de Educação Musical e Artística (SEMA). Sua produção camerística desse período, contudo, continua a evocar traços modernistas mesmo quando faz uso de adereços folclóricos e populares. E este álbum acima, projeto do oboísta americano Jared Hauser, traz algumas das peças mais criativas dessa produção. Neste álbum acima temos: o Duo para Oboé e Fagote (1957), que na verdade é sua "Bachiana brasileira No. 6"; temos três dos Prelúdios para Violão (1940), sendo que o Prelúdio No. 2 foi escrito com a intenção de evocar a malandragem do carioca (morador das chamadas "favelas") e o Prelúdio No.4 foi referido como uma "homenagem ao índio brasileiro"; segue-se "Chôros No. 5" para piano (1925), que tem como subtítulo "Alma brasileira"; seguem-se "Caixinha de Música Quebrada" (1931) e "Poema Singelo" (1938), duas peças para piano solo onde Villa usa dissonâncias e cromatismos de uma forma bem lúdica; depois temos a peça "Distribuição de Flores" para oboé e violão (1937), essa claramente mais nacionalista, mas com uma temática que ele resgata da sua "Suite Floral" para piano (1918); depois temos a "Fantasia para Saxofone" e pequeno grupo de câmera (três trompas, cordas e piano) (1948), aqui num arranjo para saxofone e piano que enfatiza bem as mudanças métricas entre 7/4 e 4/4; e por fim temos o "Sexteto Místico" (1917) para flauta, oboé, saxofone alto, violão, harpa e celesta que, à época da sua escritura, ainda evoca traços do impressionismo de figuras como Debussy e Ravel.

 
44                       Heitor Villa-Lobos – Instrumental and Orchestral Works – Cristina Ortiz, Vladimir Ashkenazy, John Harle, Neville Marriner, Ángel Romero, Jésus Lópes-Cobos, New Philharmonia Orchestra, Academy of St. Martin in the Fields, London Philharmonic Orchestra – (Warner/ EMI, 1998).

O repertório pianístico de Villa-Lobos também é muito interessante, e tem até uma inclinação tecnicista que desafia os virtuoses. Nesta auspiciosa compilação, intercalando gravações de peças escritas para sax e violão, temos alguns registros desse repertório a cargo de dois dos maiores nomes do piano erudito: a brasileira Cristina Ortiz e o russo Vladimir Ashkenazy, que aqui atua como maestro à frente da New Philharmonia Orchestra. O álbum inicia com a Bachianas Brasileiras No.3 para Piano e Orquestra (1938) em quatro movimentos: neste concerto temos um real exemplo da faceta mais neoclassicista de Villa no sentido de usar o pastiche de ressignificar o contraponto barroco de Bach dentro da sua abrasileirada linguagem erudita —— é uma obra que soará doce aos ouvidos mais experimentados no repertorio moderno, mas com um pouco de concentração o ouvinte conseguirá observar algumas passagens bem aventurosas. Segue-se a peça "Momo Precoce (Fantasia para Piano e Orquestra)" (1929) em movimento uno, essa claramente representando sua primeira fase mais modernista da década de 1920. Depois, com o saxofonista John Harle e o maestro Neville Marriner à frente da Academy of St. Martin in the Filds, temos a Fantasia para Saxofone Soprano e Pequena Orquestra (1948), que é um dos poucos e mais belos concertos dedicados a este instrumento, sendo uma das obras a iniciar sua terceira fase criativa munida de um neoclassicismo mais maduro —— sax soprano que, aliás, não é um instrumento com tradição erudita e nem com tradição no choro, o que sugere que Villa vinha escutando muito jazz, provavelmente tendo ouvido Sidney Bechet, que foi o introdutor do sax soprano no jazz e tinha considerável fama na França. Segue-se o violonista Ángel Romero e o maestro Jésus Lópes-Cobos à frente da London Philharmonic Orchestra interpretando o Concerto para Violão e Pequena Orquestra (1951), escrito para o virtuose espanhol André Segóvia (com uma cadência acrescentada em 1956). E por fim o álbum finaliza com a ótima Cristina Ortiz em piano solo interpretando a lúdica e impressionista peça Prole do Bebê nº 1 (1918) e temas como "Festa no Sertão" (do Ciclo Brasileiro nº 3, escrito em 1937), "Alma Brasileira" de "Chôros No. 5" (1925), Lenda do Caboclo (1920) e "Impressões Seresteiras" (do Ciclo Brasileiro nº 2, escrito em 1936).

 
45                      Villa-Lobos – Mark Rothko Ensemble – String Trio and Other Chamber Works – (Urania Records, 2021).

O Mark Rothko Ensemble foi criado em 2011 a partir do encontro de alguns dos melhores instrumentistas de cordas do nordeste da Itália, e conta com três álbuns disponíveis na plataforma do Spotify. Como bem sugere o nome do ensemble —— considerando que Mark Rothko foi um dos ases do movimento expressionista americano ——, a inclinação dos músicos é preponderantemente modernista. E este álbum corrobora com o fato de que no repertório de Villa-Lobos há algumas peças camerísticas que soam de fato modernas mesmo diante da fase mais panfletaria do compositor. Ou seja, embora no período dos anos de 1930 a 1950 Villa-Lobos dê vazão numa fase sinfônica mais palatável, e comece a criar cirandas, canções e outras peças de verve popular, paralelamente ele reserva sua produção camerística para se expressar de forma mais modernista. É o caso do Trio para Cordas (1945), registrado neste álbum acima. É o caso, também, do Duo para violino e viola (1946), também abordado no álbum. O álbum segue com Assobio a Jato (1950) para flauta e cello e com Quinteto Instrumental (1957) para trio de cordas, flauta e harpa, sendo essas duas peças da fase criativa final do compositor. Essas peças são interessantes porque hibridificam o melodismo particular de Villa —— melodismo advindo das suas pesquisas sobre as serestas, modinhas e cantigas —— com resquícios modernistas, produzindo traços lúdicos não menos que marcantes. Álbum revelador!

 
46                      Heitor Villa-Lobos - Floresta do Amazonas – John Neschling & Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (BIS, 2010).

O periodo de direção de John Neschling à frente da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP) deixou um legado realmente profundo. E este álbum, com uma leitura e interpretação fantástica de Neschling, é um dos registros que ratificam esse legado. A peça "A Floresta do Amazonas", uma das últimas composições de Villa-Lobos antes do seu falecimento, foi comissionada pela produtora Metro Goldwin Mayer para ser a trilha sonora do filme "Green Mansions", do cineasta Mel Ferrer. O filme (lançado no Brasil com o título A Flor Que Não Morreu), apesar de ter sido estrelado por Audrey Hepburn e Anthony Perkins, foi um fracasso comercial, mas acabou sendo o estopim para Villa gestar uma das suas obras mais profundas e imagéticas, com a temática da Amazônia permeando a criação: conta-se que Villa não ficou satisfeito com as edições e modificações realizadas pelo também compositor Bronislau Kaper para sincronizá-la com as imagens do filme, e decidiu, então, transformá-la em uma suíte sinfônica. Sendo uma obra híbrida para voz e orquestra, a peça é uma das mais extensas de Villa e traz alguns temas e canções que já foram abordados tanto entre cantores líricos como também entre cantores da música popular. 

 
47                      Heitor Villa-Lobos – Cuarteto Latinoamericano – The Complete String Quartets – (Sono Luminus, 2009).

A assustadora produção musical de Villa-Lobos gestou 17 (dezessete!) quartetos de cordas, sendo o primeiro composto em 1915 e o último composto em 1957. E o renomado Cuarteto Latinoamericano, fundado no México em 1982, realizou a façanha de gravar a integral dessa obra grandiosa (!), intercalando de forma bem interessante a ordem dos quartetos. Quartetos de Cordas são interessantes porque é um dos combos mais populares da música erudita, sendo, muitas das vezes, por onde alguns compositores modernistas —— como Shostakovitch, por exemplo, que escreveu 11 (onze!) deles —— mais expressaram seus traços idiossincráticos: é um combo clássico e ao mesmo tempo versátil, capaz de expressar do mais comovente lirismo até os surtos criativos mais impactantes. E com Villa-Lobos não é diferente. Deixo aqui algumas observâncias: o Quarteto No.1 (1915) é melodioso e impressionista e no seu último movimento evoca a figura saltitante do Saci sob uma ressignificação moderna do contraponto barroco; enquanto o hiper criativo Quarteto No.3 (1916) tem um frenético segundo movimento inteiramente tocado em pizzicato; e eu gosto, particularmente, dos Quartetos de No.7 (1942), No.9 (1945) e No.10 (1946) que soam com um modernismo mais arraigado e particular. É uma viagem e tanto!


48                      Ebony Band – Dancing: The Jazzfever of Milhaud, Martinü, Seiber, Burian & Wolpe – (Channel Classics, 2011).

Descobri este álbum acima enquanto pesquisava mais sobre Darius Milhaud, que foi um dos modernistas de verve neoclássica a representar o nacionalismo francês e foi, talvez, o mais célebre membro do grupo Les Six, grupo de compositores que ele formava com Georges Auric, Louis Durey, Arthur Honegger, Francis Poulenc e Germaine Tailleferre. Milhaud também é conhecido por ter se inspirado no jazz e na música brasileira. Uma das suas obras modernistas mais conhecidas é La Création du Monde (1923), um balé para saxofone e pequena orquestra que foi escrito claramente inspirado pelo jazz depois de uma viagem do compositor pelos EUA, onde conheceu essa nova música que infestava as ruas do Harlem. E este álbum acima, lançado pelo ensemble holandês Ebony Band, nos apresenta justamente essa temática de obras precursoras e pioneiras do início do século 20 escrita por compositores que se inspiraram no jazz. Além de La Création du Monde (1923) de Milhaud, a Ebony Band nos apresenta peças de compositores como o tcheco Emil František Burian (sua "Suite Américaine", de 1926), o também tcheco Bohuslav Martinů (sua "Jazz Suite, de 1928), o húngaro-britânico Mátyás Seiber (suas duas Jazzoletes, escritas entre 1929 e 1932) e peças do hiper criativo compositor naturalizado norte-americano Stefan Wolpe. É, enfim, um álbum que nos mostra como o surgimento do jazz influenciou a música erudita não apenas dentro dos EUA, mas também vários compositores por toda a Europa —— muitos desses compositores eruditos europeus iniciaram essa associação com o jazz ainda a partir de acentuações rítmicas dentro de formas de danças clássicas e tradicionais como foxtrot, valsa, polca e etc. A Ebony Band é um ensemble fundado em 1990 por Werner Herbers, ex-oboísta principal da Royal Concertgebouworchestra. Seu núcleo é formado por músicos dessa mesma orquestra. O ensemble é especializado em música moderna e aventureira da primeira metade do século XX, na maioria das vezes dando especial atenção para compositores menos conhecidos, considerados dignos de maior reconhecimento. Abaixo, indico mais dois outros registros lançados por este excelente ensemble. Interessante!


49                      Stefan Wolpe – Zeus und Elida/ Schöne Geschichten/ Blues – Ebony Band, Cappella Amsterdam, Werner Herbers – (Decca, 1999).

O subestimado Stefan Wolpe (1902-1972), um dos discípulos de Webern, foi um hiper criativo compositor judeu-alemão-americano que adotou uma carreira totalmente interdisciplinar, tendo incorporado várias correntes estéticas em sua produção musical —— muitas vezes entrelaçando vários estilos, tipos e formas musicais numa mesma peça. Isso porque sua vida o forçou a passar por várias mudanças: ele viveu e trabalhou em Berlim (1902–1933) até que a tomada do poder pelos nazistas o forçou a se mudar primeiro para Viena (1933–34), Jerusalém (1934–38) e, por fim, cidade de Nova York (1938–72), onde se estabeleceu e viveu até a morte. Sua carreira, então, acabou refletindo essa condição de quase-nômade: suas obras expressam uma gama hiper variada de influências que vão do neoclássico ao avant-garde, que vão do teatro agitprop russo —— uma vez que ele era socialista e produziu bastante peças e canções panfletárias —— até a música utilitária alemã (a gebrauchsmusik incorporada por Hindemith e Kurt Weill), que vão do jazz americano, passa por elementos da música árabe e do klezmer judaico e chega até os elementos da vanguarda de Darmstadt. Neste álbum acima temos uma interpretação das suas fantásticas óperas "Schöne Geschichten" e "Zeus und Elida" (1928), que trazem citações neoclássicas, traços do jazz, das técnicas sprechgesang e sprechstimme (técnica vocais expressionistas usadas por Schoenberg) e da abordagem brechtiana de Kurt Weill, sempre de uma forma muito particular, totalmente única. Stefan Wolpe é, portanto, um daqueles compositores pouco conhecidos com uma obra abundantemente original e inovadora, podendo ser relacionado entre os grandes precursores do ecleticismo pós-moderno que surgiria algumas décadas mais tarde. Neste álbum acima temos esta magnífica ópera eclética sendo interpretada pela Ebony Band junto com os vocalistas da Cappella Amsterdam. O álbum termina com uma peça sugestivamente jazzística chamada de "Blues". Registro divertido e revelador!


50                      Kurt Weill: Kleine Dreigroschenmusik / Mahagonny Songspiel / Concerto for Violin and Wind Orchestra, Op. 12 / Happy End / The Berlin Requiem / Pantomime I from "The Protagonist" / Death in the Forest – David Atherton & The London Sinfonietta (Deutsche Grammophon, 2007).

De Frank Zappa a John Zorn, a música pós anos de 1970 entrou numa onda de ecletismo que desafiou qualquer senso de categorização. Mas isso já se prenuncia com Kurt Weill, só tendo paralelos com Stefan Wolpe e Hans Eisler. Na segunda metade dos anos de 1920 até o início dos anos 30, a música de Kurt Weill esteve intrinsecamente ligada ao chamado "teatro épico" do poeta e dramaturgo alemão Bertolt Brecht, considerado um dos grandes pioneiros do teatro moderno: nessa fase ele escreveu grandes peças musicais que deram vida às encenações de Brecht, tais como The Threepenny Opera (1928), Rise and Fall of the City of Mahagonny (1930) e The Seven Deadly Sins (1933), obras que estrearam com grande sucesso em Leipzig e Paris, no Théâtre des Champs-Élysées. Já a partir de 1933, ele foge do nazismo alemão, pois ele era descendente de judeus, e se estabelece nos EUA, onde começa a escrever canções populares e musicais para o Teatro da Broadway, com vários dos seus temas e canções tornando-se standards populares no repertório dos músicos de jazz e dos crooners. De certa forma, Kurt Weill é um dos precursores do ecleticismo, que é um dos pilares da "música pós-moderna". Isso porque ele foi um dos primeiros a usar os elementos da sátira, da paródia, da ironia, do humor e do pastiche dentro de um conceito de hibridismo musical que já desafiava qualquer senso de categorização mesmo nos anos 20 e 30: sua música misturava elementos do caberet alemão, do canto lírico (ópera, lieder), do teatro musical, dos vários tipos danças, fanfarras, da canção popular, do jazz, da música clássica e englobava até o modernismo dodecafônico de Schoenberg... e tudo o que mais se tinha direito em termos da produção musical dos anos 20, 30 e 40. O seu idiossincrático Concerto para Violino (1926) sugere um encontro entre a influência que ele adquiriu estudando com Ferrucio Busoni com a influência da música de Schoenberg —— sem, contudo, aderir de fato ao dodecafonismo. Dentro da seara do teatro musical, propriamente dito, Kurt Weill e Bertolt Brecht também empregariam algo similar às técnicas conhecidas como sprechgesang e sprechstimme, técnicas de "canto falado" ou "fala cantada", surgidas na obra Pierrot Lunaire (1912) de Schoenberg. Uma outra influência que foi crucial na formação de Weill foram as ideias de Paul Hindemith em torno do conceito de "música utilitária", desenvolvido a partir da ideia de "música de mobiliário" do influente poeta Jean Cocteau: um conceito de música moderna que procurava fugir das amarras estritas do formalismo serialista —— daquela coisa experimental de "música pela música" —— a partir da ideia de que toda composição musical deveria servir a uma utilidade prática e social (um teatro, um comício político, um evento, uma cerimônia militar, uma crítica social, e etc). Neste álbum acima, a London Sinfonietta nos apresenta esse rico hibridismo de Kurt Weill, com um tipo de mistura musical que influenciaria grandemente compositores pós modernistas da música erudita e do jazz tais como Frank Zappa, Charles Mingus, Gil Evans, Carla Bley, dentre tantos outros.


51                      Ebony Band – Around Prague 1922-1937 – (Channel Classics, 2013).

Mais um tento diletante da Ebony Band, onde ela resgata obras de compositores esquecidos da velha Tchecoslováquia, um país com ricos hibridismos de culturas advindos de povos tchecos, eslovacos, húngaros, ciganos, ucranianos, alemães, polacos, judeus e etc. Seu primeiro presidente, Tomás Masaryk, considerado um dos responsáveis pela independência do país, apoiou fortemente a cultura e transformou a capital Praga num centro de efervescente atividade, algo que se repetiu com seu sucessor Edvard Beneš. Sendo assim, nas décadas de 1920 e 1930, o país assistiu sua música —— e as artes como um todo —— a elevar-se numa guinada de modernidade criativa tão admirável como a modernidade musical que se instaurara na França, na Alemanha, na Áustria, na Russia, e etc. Neste álbum acima, pois, a Ebony Band dá vazão nas obras de alguns dos compositores tchecos que representam a modernidade desse período. Temos peças de Alois Hába (1893-1973), Miroslav Ponc (1902-1976), Hanus Aldo Schimmerling (1900-1967), Emil František Burian (1904-1959) e Viktor Ullmann (1898-1944), esse último falecido no campo de concentração de Auschwitz, Polônia. Com a Segunda Guerra Mundial, o país, que sempre teve uma história de conflitos entres seus povos e etnias, se dividiu totalmente entre as disputas da Alemanha Nazista e da Rússia, e muito dessa sua rica e moderna música ficou esquecida ou perdida. Portanto, este álbum é um documento de resgate muito importante para conhecermos essa música de expressão exótica. Destaque, por exemplo, para algumas peças de Miroslav Ponc, onde, além das entonações peculiares das suas linhas melódicas, ele usa acompanhamentos microtonais!


52                      Paul Hindemith: Kammermusik – Riccardo Chailly & Royal Concertgebouw Orchestra – (Decca, 2007).

Paul Hindemith, violinista e compositor, foi um gigante da música moderna alemã que adotou certos procedimentos neoclássicos e neobarrocos comungados com um modernismo bem particular. De certa forma, ele até adota procedimentos atonais advindos do dodecafonismo de Schoenberg, mas sem partir totalmente para o atonalismo ou totalmente para a técnica de composição serialista, ressignificando muito recorrentemente as formas e estruturas clássicas e barrocas de um jeito pessoal muito idiossincrático. Ele ficou conhecido por defender ao menos dois conceitos distintos: a Neue Sachlichkeit (Nova Objetividade), que defende uma modernidade mais prática e objetiva como resposta ao expressionismo abstrato; e a Gebrauchsmusik (música utilitária), que defende que toda peça musical seja composta sempre com base na necessidade de utilização (para um evento, para uma dança, para um comício político, para uma cerimônia militar, e etc), um conceito que, enfim, acabou levando a música erudita alemã para hibridismos com as músicas populares e para os anseios políticos panfletários e propagandistas. Contudo, o modernismo musical de Hindemith não chegou a servir aos ouvidos e aos anseios do Partido Nazista Alemão: ao contrário disso, por ter adotado algumas dissonâncias, o compositor foi prontamente acusado de fazer uma "música degenerada" e foi duramente perseguido pelos nazistas, tendo que se exilar na Suíça, antes de ir viver nos EUA. Acima temos uma das obras seminais de Hindemith: Kammermusik, um extenso ciclo de oito composições para orquestra de câmera e diferentes conjuntos formados com instrumentos variados, ciclo que foi composto durante toda a década de 1920 e que foi inspirada nas polifonias dos Concertos de Brandemburgo de Bach, sendo um exemplo perfeito de como Hindemith ressignificava esses elementos barrocos dentro da sua linguagem moderna. O maestro italiano Riccardo Chailly é quem dirige esplendorosamente o projeto, à frente da Orquestra Real do Concertgebouw, de Amsterdam.


53                      Paul Hindemith: Konzertmusik for Strings and Brass & Konzertmusik for Piano, Brass and Two Harps – Philip Jones Brass Ensemble (Argo/ Decca, 1981).

Outro exemplo perfeito de como Hindemith ressignificava os elementos clássicos e barrocos dentro da sua linguagem moderna é este álbum acima. Temos aqui duas peças: seu Konzertmusik for Strings and Brass Op.50 (1930) e seu Konzertmusik for Piano, Brass and Two Harps Op.49 (1930). São, pois, duas peças um tanto peculiares por valorizar os metais (trompetes, trompas, trombones e tubas) dentro das estéticas sinfônicas e concertantes —— daí o termo "brass". Mas nesses concertos, os naipes soam combinados em obbligato: ou seja, a intenção do compositor não é destacar um instrumento ou outro, um naipe ou outro, mas a intenção é fazê-los soar num entrelace de cores e timbres sobrepostos e combinados. Outra particularidade é que esses concertos são exemplos incontestes de como Hindemith efetua com maestria transições e contrastes entre consonância e dissonância: ele começa com um motivo em território consonantal, progride em tensão dissonante e se resolve em acordes e cadências consonantais perfeitas, ou vice-versa. As interpretações são do maestro Elgar Howarth à frente do Philip Jones Brass Ensemble, do pianista Paul Crossley e músicos adjuntos.


54                    Béla Bartók – Concerto for Orchestra & The Miraculous Mandarin - Paavo Järvi & NHK Symphony Orchestra – (Sony Music, 2023).

Bela Bartók foi outro dos gigantes do século 20 —— e o foi sob vários aspectos! Com uma produção assustadora, praticamente todos os seus ciclos criativos são essenciais. A obra de Bartók apresenta todo um colorido particular advindo das misturas de entonações das tradições étnico-populares-folclóricas nacionalistas da Hungria e região com as combinações harmônicas entre consonâncias e dissonâncias que começaram a vigorar na era moderna: suas folk songs, sua obra pianística, sua obra orquestral, seus quartetos de cordas..., toda sua produção é inteiramente instigante e o estabelece, talvez, como o compositor mais influente e venerado por todos os outros compositores ditos nacionalistas. Aqui neste post, indico apenas esses dois discos —— este acima, e o abaixo —— que, acredito, já apresentam os gatilhos e as características suficientes para introduzir o ouvinte ao rico repertório bartokiano. A fantástica peça The Miraculous Mandarin é um balé de pantomina —— uma espécie de obra teatral encenada apenas por gestos, dança e mímicas, sem palavras —— que Béla Bartók escreveu entre 1918 e 1924 baseando-se numa história criada pelo dramaturgo húngaro Melchior Lengyel. A obra causou grande impacto e escandalizou muito o público, a crítica e os setores reacionários dos anos 20 e 30 por causa da orquestração colorida e cheia de efeitos aliada às encenações eróticas da peça, tendo sido muitas das vezes banida ou tendo tido autorizada apenas a execução da sua suíte orquestral sem a encenação teatral. Para além do seu particular colorido melódico-harmônico, Bartók potencializa o ludismo em torno dessa história sem palavras através de inúmeros efeitos orquestrais: os instrumentos soam às vezes cacofônicos; os naipes de metais e madeiras se serpenteiam em torno de trinados, glissandos e velozes escalas cromáticas que sobem e descem a todo vapor; as cordas empregam efeitos com técnicas estendidas em torno de glissandos, trêmolos, harmônicos, sul ponticello (o tocar com o arco muito próximo ao cavalete, alterando o timbre), o col legno (efeito do arco sendo percutido nas cordas); entre outros inúmeros arranjos e efeitos timbrísticos. Essa interpretação do maestro estoniano Paavo Järvi à frente da Orquestra Sinfônica NHK, do Japão, é soberba e realça bem esses coloridos e efeitos timbrísticos. No álbum acima, Paavo Järvi e a NHK Symphony também interpretam o popular Concerto for Orchestra (1943) de Bartók: a peça marca a chegada do compositor nos EUA —— fugindo das consequências da Segunda Guerra Mundial sobre sua amada Hungria —— e marca, também, uma postura mais neoclássica, com ressignificações de elementos classicistas combinados com modos harmônicos húngaros.


55                      Bela Bartók – Romanian Folk Dances, Dance Suite, Improvisations, Sonatina – Jenő Jandó – (Naxos, 2002).

Em 1904, numa estadia prolongada numa fazenda do vilarejo eslovaco Hrlica, o compositor húngaro Béla Bartok —— na época com 23 anos —— teve uma epifania quando ouviu uma jovem de 19 anos chamada Lidi Dósa cantar algumas canções folclóricas e camponesas locais. O impacto que aquelas canções tiveram sobre a alma criativa de Bartok foi imediato. De forma que, a partir daquele momento, ele dedicaria todos os esforços possíveis para conhecer e coletar canções camponesas, canções de ninar, canções infantis e cânticos folclóricos de todo o Reino da Hungria: ao todo, de 1905 até 1918, o jovem compositor coletou mais de 9.000 canções, aproximadamente cerca de 3.400 canções romenas, 3.000 canções eslovacas, 2.700 canções húngaras e cerca de 250 canções búlgaras, árabes, sérvias, turcas... e ele foi coletar canções até de regiões mais afastadas como a Argélia, na África. Esse seria não apenas o maior trabalho de etnomusicologia já realizado na primeira metade do século 20, como também seria uma das principais bases de inspiração para a própria obra a ser desenvolvida por Bartók, uma obra pioneira que trouxe para a modernidade da música erudita muitos coloridos tonais advindos destas canções —— influenciando, inclusive, diversos outros compositores a seguirem essa linhagem modernista com inspirações étnicas e folclóricas. Bartok transformaria muitos dos temas e motivos principais dessas canções em peças para piano, quartetos, orquestras e outros ensembles: tanto peças de caráter pedagógico, tais como as miniaturas que fazem parte do seu catálogo Mikrokosmos, como peças concertantes mais engenhosas nas quais ele inflexiona as características tonais dessas canções folclóricas combinadas com às dissonâncias modernas. E este álbum acima, lançado pelo pianista húngaro Jenő Jandó, é um exemplo perfeito. Jandó tem um contrato fixo há anos com a Naxos e, ao que parece, já gravou toda a integral para piano solo de Bartók. Neste álbum acima, o pianista inicia com a Dance Suite (1923), uma peça para piano adaptada da suíte orquestral de mesmo nome que Bartók compôs em 1923 para comemorar o 50º aniversário da união das cidades Buda e Pest (que formaram a capital húngara de Budapeste), e já em seguida emenda a Slovakian Dance (1923), que fazia parte dessa mesma suíte, mas foi posteriormente retirada e deixada como um esboço à parte: a suíte é composta por cinco danças com melodias árabes, valáquias e húngaras e um final que sintetiza todas as entonações modais usadas. Segue-se a interessantíssima Eight Improvisations on Hungarian Peasant Songs (1920): são oito peças compostas partir de improvisações sobre canções camponesas húngaras para as quais Bartók deu uma tratativa mais vanguardista, empregando dissonantes bitonalidades e politonalidades. Depois segue-se Petite Suite (1936), que são seis adaptações que o compositor fez a partir do seu ciclo de 44 Duos para Dois Violinos. Segue-se Romanian Folk Dances, uma suíte de seis peças curtas para piano compostas em 1915: essas peças são baseadas em sete melodias romenas da Transilvânia, originalmente tocadas em violino ou flauta pastoril, que foram publicadas sob o título Romanian Folk Dances from Hungary, mas o título foi posteriormente alterado quando a Transilvânia se tornou parte da Romênia em 1920. Depois temos a Sonatina (1915), que foi composta a partir de canções coletadas na Romênia. E, para finalizar, Jenő Jandó interpreta as duas séries de miniaturas do book Romanian Christmas Carols, que Bartók compôs baseado em curtas canções natalinas tradicionais da Romênia chamadas de colindes (muito tradicional também na Moldávia). Essencial.


56                      Darius Milhaud – Canções Infantis (para voz e piano; coro de vozes e orquestra) – Maîtrise de l'Opéra de Lyon & Orchestre De L'Opéra De Lyon – (Opus 111/ Naive, 2014).

Além da chanson francesa, da música de cabaret, do jazz e ritmos sincopados, Darius Milhaud (1892-1974) foi um compositor nacionalista que se interessou por vários tipos de música, incluindo obras infantis. Tendo sido, certa feita, contratado como secretário pelo dramaturgo Paul Claudel, Milhaud tão logo se interessou por literatura e pela faceta de musicar textos literários, algo que o levou a escrever óperas e peças infantis como estas registradas neste álbum acima. O CD acima traz as peça "Un petit peu de musique" (1932) e "Un petit peu d'exercice" (1934), duas adaptações musicais de pequenos textos e pequenos poemas infantis escritos por Armand Lunel, e também traz orquestrações do ciclo "Récréation" (1938) para canto infantil e piano, uma adaptação sobre um tema do compositor Johann Krieger (1651-1735): essas obras, com melodias cantadas com textos de estórias e fantasias, envolvem canto infantil acompanhado com piano e um coral uníssono de crianças acompanhadas por arranjos orquestrais, onde Milhaud embrenha de forma muito sutil certa modernidade bitonal aqui e ali. O coral infantil Maîtrise de l'Opéra de Lyon é acompanhado pela Orquestra da Ópera de Lyon sob a regência de Claire Gibault. O CD finaliza, enfim, com "Cinq chansons de Charles Vildrac", um ciclo de lieder para soprano (agora com canto adulto) e piano, uma peça onde Milhaud música poemas de Charles Vildrac e também traz um caráter nonsense que se soma ao propósito infantil do álbum. Embora este CD se destoe, um pouco, do caráter modernista deste post, achei interessante também aqui listar ao menos uma ou outra obra da categoria de peças infantis, afim de deixar nossa lista mais diversificada.


57                      Witold Lutosławski – Symphonies No.1 & No.4, Jeux vénitiens – Finnish Radio Symphony Orchestra, Hannu Lintu – (Ondine, 2018).

Intercalando nacionalismo com o uso de técnicas e conceitos vanguardistas, Witold Lutoslawski (1913-1994) foi, ao lado de Krzysztof Penderecki, o principal compositor modernista da Polônia, sendo um dos principais e mais executados compositores do século 20 e desse início do século 21. Acima temos fantásticas interpretações das suas obras à cargo do maestro Hannu Lintu e a Orquestra Sinfônica Rádio Finlandesa, uma das orquestras mais vigorosas no que diz respeito ao repertório moderno. A neoclássica Sinfonia No.1 em quatro movimentos de Lutoslawski é emblemática porque ele a começou escrever sob as inspirações e pressões geopolíticas da época —— a começar pela Invasão da Russia na Polônia em 1939, seguida da eclosão da Segunda Guerra Mundial —— e o compositor teve, inclusive, a conclusão e estreia dessa sua peça diretamente afetadas pela guerra e pela censura soviética: apenas nesse período ele assiste a Rússia dominar o seu país, escapa por pouco de ser capturado pelo nazistas alemães, passa a tocar por mixarias nos bares de Varsóvia, e assim que a guerra termina, quando ele tem a oportunidade de retomar suas atividades à frente de uma grande orquestra para estrear suas obras, essa sua primeira sinfonia é proibida de ser executada sob acusação de "formalismo". Mesmo Lutoslawski atenuando sua verve modernista, adotando uma postura neoclássica aliada às danças e linhas melódicas da música tradicional polaca —— inspirando-se, inclusive, em Bartók e Prokofiev ——, ainda assim o vigor e os rompantes da peça soaram um tanto violentos e desconfortáveis para os tímpanos da censura russa que se instalara na Polônia. No álbum acima, o maestro Hannu Lintu e a Finnish Radio Symphony Orchestra também interpretam a ultra modernista Jeux venitiens (1961), peça que Lutoslawski escreveu combinando, de uma forma bem particular, conceitos da "música aleatória" de John Cage com a técnica dodecafônica de Schoenberg: nesta peça ele se utiliza de vários jogos, esquemas, séries e eventos aleatórios espaçados por silêncios, separando os naipes e combinações de instrumentos por seções e agrupamentos, e desenvolvendo as linhas de tons a partir da técnica de séries dodecafônicas. O álbum termina com a sua Sinfonia No.4 em movimento único, que na verdade é composto por duas partes, preparação e evento principal: trata-se de uma peça cheia de contrastes que começa nos incitando ao mistério de um lento arpejo neobarroco com baixo-contínuo, até que surge uma intervenção de linhas melódicas dissonantes de clarinete e flauta, tendo em seguida intervenções pontilhistas de trompetes, cordas, piano... e retornando para a linha melódica misteriosa do clarinete e flauta até, novamente, receber intervenções de novos pontilhismos e, enfim, se desembocar em cacofonias e rompantes mais tensos, intensos e explosivos com metais combinados com percussão e madeiras..., também tendo um uso muito modernista do naipe de cordas num interessante jogo de glissandos por entre as linhas melódicas sobrepostas. Este álbum mostra, então, que o maestro Hannu Lintu foi muito inteligente na escolha do repertório, sintetizando a carreira de Lutoslawski em três fases criativas: sua Sinfonia No.1 (1941-47), uma obra que marca seu modernismo inicial destilado sob pressão da censura soviética e sob influências neoclássicas; sua já ultra modernista Jeux venitiens (1961), que combina conceitos e técnicas de Schoenberg e John Cage; e sua Sinfonia No.4 (1988-92), obra cheia de contrastes que marca o seu período tardio agora sob influência da queda do regime comunista.

 
58                      Wiltold Lutosławski – Concerto For Orchestra, Cello Concerto - Warsaw Philharmonic Symphony Orchestra, Rafał Kwiatkowski, Antoni Wit – (DUX, 2005).

Este álbum acima com o maestro polonês Antoni Wit registra o emblemático Concerto for Orchestra escrito por Lutoslawski entre 1950 e 1954 e o moderníssimo Cello Concerto (1970). Este concerto para orquestra de Lutoslawski —— lembrando que "concerto para orquestra", diferentemente do concerto para instrumento solo, é um tipo de peça onde o compositor dá espaços mais solísticos para que grupos de instrumentos ou naipes se destaquem dentro da orquestra —— é um passo adiante na evolução da sua música após suas duas primeiras sinfonias, tendo sido considerada uma das obras que lhe trouxe ainda maior respeito e prestígio. É, contudo, uma das suas últimas obras ainda "neoclássicas", já que nos anos posteriores ele adotaria uma criação musical marcada por inspiradas tratativas influenciadas pelo aleatorismo de Cage e pelo dodecafonismo de Schoenberg. Aqui neste seu concerto, inspirando-se no Concerto for Orchestra (1943) de Bartók, Lutoslawski faz uso das folclóricas inspirações que ele coletou da tradicional região de Kurpie, inflexionando os motivos melódicos das canções dessa região de forma um tanto implícita em meio a sobreposições e contrapontos intrincados desenvolvidos a partir de iconoclastas inflexões de formas clássicas e barrocas. De uma forma muito própria, iconoclasta e modernista, Lutoslawski desenvolve este seu concerto a partir de inflexões instrumentais e orquestrais sobre formas como capriccio (um tipo de peça livre e virtuosística), arioso (um tipo peça para vocal solo, uma ária que faz uso da técnica do "canto recitado" ou "canto falado"), passacaglia (um tipo de peça que evoca seriedade, onde os contrabaixos e os naipes mais graves protagonizam a linha melódica), seguido de uma vívida toccatta (tipo de peça onde as cordas protagonizam, juntas e em contrapontos, linhas melódicas velozes) e, por fim, coral (uma inflexão orquestral dos estilos usados em coral de vozes). O álbum finaliza com seu moderníssimo Cello Concerto escrita por volta de 1969 para ser dedicada ao célebre violoncelista russo Mstislav Rostropovich. Muito influenciado pelos conceitos de aleatoriedade (de John Cage, Morton Feldman e etc), Lutoslawski cria um incomum concerto onde por mais de cinco minutos o solo do cello paira praticamente sozinho até que aleatórios pontilhismos e rompantes orquestrais surgem para conferir novas dinâmicas à peça.

 
59                      Henry Cowell - American Piano Concertos – Stefan Litwin & Radio Symphony Orchestra Saarbrücken (Col Legno, 2001).

Henry Cowell (1897-1965) é um dos ases da primeira geração de vanguarda a surgir nos EUA no início do século 20 —— ele comumente é referenciado como parte do Grupo dos Cinco ao lado de Ives, Charles Ruggles, John J. Becker e Wallingford Rieggerele, grupo precursor da música de vanguarda americana, que surgiu sem aderir ao escopo dodecafônico de Schoenberg, mas surgiu como uma resposta independente à influência do mestre austríaco. Sendo um compositor excêntrico, cheio de ideias inovadoras e experimentais, Cowell era um músico e compositor autodidata que desenvolveu suas próprias ideias no campo da invenção musical e sua própria linguagem composicional, muitas vezes misturando melodias folclóricas, contrapontos dissonantes, agrupamentos inusuais de acordes (clusters), orquestrações e combinações instrumentais não convencionais e até temas do paganismo irlandês. Também foi um dos precursores da música eletrônica, tendo sido, junto com Joseph Schillinger, autor do projeto do Rhythmicon, o primeiro instrumento eletrônico, construído em 1931 pelo inventor russo Leon Theremin, a possibilitar a produção automática de ritmos. Henry Cowell foi, enfim, um dos primeiros inovadores a propor novas técnicas composicionais a partir de notações gráficas experimentais. Sua música para piano é experimental e prenuncia as técnicas e abordagens do piano preparado, uso de agrupamentos de tons (clusters), harmonias politonais e notação gráfica idiossincrática, sendo o seu Concerto para Piano e Orquestra (1928) um dos exemplos contumazes dessas suas inovações. O álbum acima, lançado pela Col Legno em 2001, traz o pianista Stefan Litwin interpretando esse seu Concerto Para Piano, peças sortidas para piano solo baseadas em canções do paganismo irlandês, a peça Four Irish Tales para piano e Orquestra (1940) também baseada em canções irlandesas, sua Sinfonietta (1928) e seu Concerto Piccolo (1941-45).

 
60                      Henry Cowell - Chamber Works – The Colorado String Quartet, Musician's Accord & Tania Léon – (Mode Records, 1999).

Para além do fato de apresentar inúmeras excentricidades e inovações que contribuíram para o nascimento da vanguarda nos EUA, Henry Cowell não deixa de ser considerado um dos pais do nacionalismo americano, tendo sido um dos compositores, ao lado de Charles Ives e Aaron Copland, a contribuir para o florescimento de uma certa "alma americana" dentro da música erudita moderna. E este álbum acima, centrado em compilar peças da sua produção camerística, é um dos registros que atestam essa contribuição. O álbum reúne peças gravadas pela maestrina Tania Léon à frente do ensemble Musicians' Accord e pelo Colorado String Quartet e reúne, então, um caleidoscópio que abrange toda a carreira de Henry Cowell, desde a sua juventude até sua última fase pré-falecimento: a começar pela peça "Pedantic" (1916), passando por "String Quartet No.1" (1916), "Quartet Romantic" (1915-1917), "Quartet Euphometric" (1916-1919), "Movimento para Quarteto de Cordas" (String Quartet No. 2) (1928), "Suite for Woodwind Quintet" (1934), "Return" (1939) para percussão, "Quarteto para Flauta, Oboé, Violoncelo e Harpa" (1962), "26 Simultaneous Mosaics” (1963) e etc. Essas peças reúnem, então, todo um conjunto de cores, imagens sonoras e características americanas que Cowell conseguiu combinar de forma muito original com suas dissonâncias bitonais e politonais, com seus clusters e com sua concepção rhythm-harmony (harmonia rítmica).

 
61                      Charles Ives - Three Places in New England, The Unanswered Question, Symphony No.3, A Set of Pieces – Orpheus Chamber Orchestra – (Deutsche Grammophon, 1994).

Charles Ives (1874-1954) é o mais importante compositor quando o assunto é o nascimento da música erudita moderna genuinamente americana. Mas Ives também é considerado um precursor da música de vanguarda nos EUA, tendo antecipado diversos experimentos que evoluiriam diretamente para o avant-garde pioneiro de compositores com Henry Cowell e Lou Harrison, dois dos modernistas que, inclusive, pleiteariam um maior reconhecimento a ele. Charles Ives, muito ignorado em suas primeiras décadas da carreira, conseguiu, portanto, ser o pai do movimento do nacionalismo americano ao mesmo tempo de acender a fagulha do movimento de experimentação dessa nova música genuinamente americana. Sua música é marcada pelo início da música microtonal, pelo uso de imagens sonoras e por diversas citações de adereços culturais, de canções populares, hinos protestantes, além do uso de elementos proto-jazz, danças e sincopações, marchas militares, métricas irregulares e diversos outros adereços americanos combinados com partes dissonantes, algumas vezes bitonais e até politonais, além de haver partes em suas partituras onde há sobreposições de linhas melódicas em compassos e andamentos diferentes, entre outros experimentos e modernidades. Este álbum acima traz alguns exemplos claros dessa modernidade que se esticava para estourar a bolsa amniótica já nos anos iniciais de 1900. Neste álbum temos um registro que promete introduzir o ouvinte ao mundo misterioso de Charles Ives, um compositor que precisou sobreviver trabalhando por 30 anos como vendedor de seguros antes de começar a ter sua música reconhecida. O álbum começa com a peça Three Places in New England, que teve alguns dos seus primeiros esboços escritos já em 1903, mas que passou por diversas adições, modificações e revisões até de fato ser concluída em 1929: a obra apresenta um interessante jogo de texturas, de melodias sobrepostas, nuvens e agrupamentos de tons sobre tons, cacofonias, bitonalidade, politonalidade, citações reconhecíveis de marchas e hinos e um certo imagetismo ligado ao enaltecimento do patriotismo americano da fase pós-Guerra Civil. Segue-se a meditativa peça "The Unanswered Question", que forma, junto com a aclamada Central Park in the Dark, as duas partes da obra Two Contemplations, composta em 1908: essa peça, também revisada algumas vezes até obter sua forma definitiva em 1935, conta uma história existencial que se desenrola de forma misteriosa e meditativa com a massa sonora dos violinos soando o tempo todo num "pppp" quase silencioso representando "O Silêncio dos Druídas", com intervenções sobrepostas de um trompete que representa "A Questão Perene da Existência", com o qual um quarteto de sopros tenta separadamente dialogar representando as "Respostas Lutadoras", respostas essas que vão aumentando a intensidade, mostrando frustração e soando mais dissonantes. O álbum segue com os três movimentos da peça "A Set of Pieces for Theatre Orchestra", que Charles Ives escreveu entre os anos de 1899 e 1906, peça onde o ouvinte terá o contato com uma música já eminentemente moderna —— e até radical, considerando a época da sua conclusão ——, uma peça que inexplicavelmente antecipa muito do modernismo que viria a seguir: a obra apresenta várias flutuações anacrônicas de linhas melódicas sobrepostas, incomuns agrupamentos de sons sobrepostos que beiram a cacofonia, várias mudanças irregulares de métricas, seguindo-se um tom mais misterioso e outros contrastes. Segue-se a sua Sinfonia No.3 (1908-10), uma peça mais nostálgica e comedida, soando com inspirações em melodias campestres, canções da Guerra Civil, danças e hinos protestantes misturados com elementos da tradição clássica. E, por fim, o álbum finaliza com a moderníssima Set No.1 for Chamber Orchestra (1907-11), que é uma peça que apresenta uma combinação exuberante de contrapontos e sincopações envolvendo ritmos marchantes, elementos proto-jazz, clusters, bitonalidades e outras facetas idiossincráticas. Charles Ives foi, acima de tudo, um profeta!

 
62                      American Music for Brass – From the Steeples and the Mountains – The London Gabrieli Brass Ensemble & Christopher Larkin – (Hyperion Helios, 1999).

Achei interessante variar nossa lista indicando este álbum temático. Esta compilação de composições americanas do século 20 para conjunto de metais (trompetes, trompas, trombones, tubas e outros horns) apresenta como faixa-título a peça "From the Steeples to the Mountains" de Charles Ives, uma peça que tenta recriar a imagem sonora dos sinos das igrejas ecoando nas montanhas. O álbum consegue, de fato, mostrar essa temática dos conjuntos e orquestras de metais conectada com as estéticas nacionalistas americanas, numa linha do tempo que vai de Charles Ives, no início do século 20, até o minimalismo de Philip Glass no final desse século, apresentando um mosaico luminoso do repertório para esse naipe nessa linha do tempo. O álbum ainda traz obras de outros modernistas como Carl Ruggles, Virgil Thompson, Elliott Carter, Samuel Barber e Roy Harris. Uma peça interessante é a "Mutations From Bach" de Samuel Barber, onde o compositor faz uma recomposição das passagens da Cantata No. 23 de Bach em um estilo modernista concernente com o século 20, algo que tenderá a soar intrigante para quem é familiarizado em Bach. Na mesma direção, Elliott Carter faz um estudo modernista da "Fantasia upon One Note" de Henry Purcell, compositor do barroco inglês. Da repaginação moderna das fanfarras e fantasias clássico-barrocas às populares brass bands que eclodiram pós Guerra Civil Americana, dos hinos protestantes aos resquícios de jazz, do modernismo do início do século 20 aos efeitos repetitivos da música minimalista, este CD traz ao ouvinte ecos variados dentro desse mosaico estético no qual o repertório erudito americano para instrumentos de metais se encaixa. Ouçam!


63                      Wynton Marsalis & Judith Lynn Stillman – On the Twentieth Century – Hindemith, Poulenc, Berstein, Ravel e etc – (Sony Classical, 1993).

Um dos maiores virtuoses da história da música, tendo sido o único trompetista e compositor a estar simultaneamente no topo dos rankings de excelência do jazz e da dita música clássica nessas últimas décadas, Wynton Marsalis é altamente reconhecido —— e criticado —— por seu neotradicionalismo bem polido e seletivo, conseguindo soar tão tecnicista quanto original. No ramo da composição, Wynton seguiu as trilhas de Duke Ellington, Stravinsky, Charles Ives e Leonard Berstein e evoluiu gradativamente para se tornar um dos principais compositores contemporâneos da atualidade —— e na minha opinião, ele é um dos cinco mais inventivos compositores americanos vivos ao lado de gênios como Steve Reich, John Adams, John Zorn e Philip Glass. Já enquanto trompetista, Wynton explodiu no início dos anos 80 como um intérprete original e irretocável dos repertórios barroco e clássico, sem dar nenhuma atenção para o repertório moderno, até que em 1993 ele e a pianista Judith Lynn Stillman gravam este registro acima, que é basicamente uma compilação de temas tirados de peças escritas no século 20 por compositores da estirpe do neoclassicismo nacionalista tais como Paul Hindemith (Alemanha), Francis Poulenc (França), Leonard Berstein (EUA), Maurice Ravel (França), Arthur Honegger (Suíça/ França), Henri Tomassi (Fança), Eugène Bozza (França), George Enescu (Romênia) e Halsey Stevens (EUA). É o único álbum no qual Wynton se dedica a explorar o repertório moderno na condição de intérprete. É, enfim, uma dica válida para o ouvinte que quer ter uma introdução tranquila no repertório moderno para trompete. A Sonata For Trumpet and Piano (1959) de Halsey Stevens é a minha peça preferida.

 
64                      Leonard Berstein – West Side Story – (Sony Music, 1961).

Ainda que o caráter açucarado e popular dessa obra possa induzir o ouvinte de paladar auditivo mais vanguardista a um coma glicêmico, vale aqui mencioná-la como uma das obras que revolucionaram a categoria dos musicais americanos. Em meados dos anos 50, Leonard Berstein, na época já maestro de renome e compositor em ascensão, recebeu uma encomenda do célebre coreógrafo e diretor de teatro e cinema Jerome Robbins (na época com produções em alta no Teatro da Broadway) para escrever a música que daria vida à sua adaptação contemporânea da história de Romeu & Julieta de William Shakespeare. O livreto foi reescrito pelo célebre dramaturgo Arthur Laurents, que adaptou esse clássico romance para aqueles dias atuais dos anos 50 através de uma história que se dá no operário e multirracial distrito de Upper West Side de Manhattan, na cidade de Nova York. A readaptação centra-se numa trama onde a polícia tinha de lidar com a disputa pelo domínio do bairro entre a gangue dos brancos chamada Jets e a gangue porto-riquenha dos Sharks, sendo que o protagonista Tony (evocando Romeu) era um ex-membro dos Jets e melhor amigo do líder dessa gangue, Riff, e se apaixona por Maria (que evoca Julieta), irmã de Bernardo, líder dos Sharks —— uma história de amor impossível, portanto. Com a produção sendo confirmada para várias temporadas no Teatro da Broadway, Berstein compõe uma masterpiece híbrida de música sinfônica, solos de jazz, big band, canção popular, ritmos latinos, teatro musical, inspirações em trilhas cinematográficas, entre outros elementos americanos, produzindo um musical de renovado hibridismo americano que recebeu automática aclamação de crítica. Posteriormente, Berstein apresentaria uma versão instrumental mais sinfônica sem as partes faladas e cantadas chamada Symphonic Dances from West Side Story, enquanto a versão teatral continuava a apresentar uma orquestração mais híbrida e popular. Aliás, essa versão estritamente instrumental  e sinfônica já recebeu diversos arranjos diferentes, incluindo um arranjo para violino com aclamada interpretação do célebre violinista americano Joshua Bell. Acima deixo-vos a versão original do musical encenado na Broadway.

 
65                      Christian Lindberg - American Trombone Concertos Volume 1 – Malmö Symphony Orchestra & James Preist (BIS, 1993).

Maestro de renome, o sueco Christian Lindberg também é um dos maiores trombonistas de todos os tempos, tendo uma carreira marcada por centenas de gravações que enriquecem o repertório específico do trombone e ainda permite agregar, no repertório desse instrumento, arranjos de peças e temas escritos para outros instrumentos e/ou escritos para outros contextos e gêneros: suas gravações inclui arranjos que vão de releituras dos temas de Sgt. Pepper's dos Beatles até gravações de canções natalinas, passando por releituras para trombone de peças de Schubert, Liszt, Beethoven, e várias peças contemporâneas, muitas delas escritas exclusivamente para ele. Neste álbum acima, Lindberg interpreta peças concertantes escritas para trombone e orquestra por compositores americanos tais como Paul Creston (1906-1985), Gunther Schuller (1925-2015), George Walker (1922-2018) e Ellen Taaffe Zwilich (1939- ), algumas dessas peças com certos hibridismos entre o neoclássico modernista, o jazz e outros resquícios que ratificam essa verve de mistura entre erudito e popular. Gunther Schuller, por exemplo, é reconhecido por ter cunhado o termo e o conceito de hibridificação da música erudita moderna com o jazz nos anos 50, um conceito que ficou conhecido como "third stream" —— e do qual, hoje, Wynton Marsalis é o grande representante. George Walker, outro exemplo, foi o primeiro compositor erudito afro-americano a ganhar um Pulitzer Prize em 1996 através da sua obra Lilacs. E a compositora Ellen Taaffe Zwilich, já tendo um estilo mais neorromântico com pontuais inflexões dissonantes, foi a primeira compositora a ganhar um Pulitzer Prize através da sua peça "Sinfonia Nº 1 - Três Movimentos para Orquestra", em 1983. Deixo este álbum acima, na verdade, como uma porta aberta para os aficionados em trombone pesquisar outras pepitas do tipo na discografia de Christian Lindberg: o trombonista lançou outros volumes de álbuns nesta mesma linha de trabalho, tais como os dois volumes desse "American Trombone Concertos" e o volume de "British Trombone Concertos".

 
66                      Dedicated to Christian Lindberg – Berio, Xenakis, Turnage – Peter Rundel & Oslo Philharmonic Orchestra (BIS, 2007).

Anteriormente, lhes trouxe o trombonista Christian Lindberg interpretando peças de compositores americanos que transitam, mais ou menos, em torno da estética neoclássica, com alguma influência nacionalista aqui e ali. Já aqui neste álbum lhes trago peças compostas por compositores ligados ao avant-garde europeu. Desta forma, o ouvinte poderá sentir diferentes nuances e percepções entre uma estética e outra. E neste álbum acima temos um caso emblemático de primeiras gravações de peças que os compositores escreveram para serem exclusivamente dedicadas ao trombonista. Nos anos de 1980, o compositor grego Iannis Xenákis (1922-2001) encontra Lindberg e lhe dedica, então, um concerto para trombone que se chamaria Troorkh (título derivado de trombone + orkhestra): o trombonista conta, inclusive, que para dar vida a este concerto de Xenákis, ele teve que realizar um rigoroso programa de estudos para adquirir a leitura e a resistência técnica exigida pelo compositor, algo que levou dois anos. Já o concerto SOLO é uma adaptação para trombone e orquestra de uma das partes da ópera Cronaca del Luogo (1999), que Luciano Berio (1925-2003) escreveu exclusivamente para Lindberg. O álbum finaliza com a peça "Yet Another Set To" (2004) que o compositor britânico Mark-Anthony Turnage (1960- ) também escreveu exclusivamente para ser estreado por Christian Lindberg: a obra é inspirada pelo brilhantismo da estética modernista inglesa —— que sempre deu uma tratativa muito fulgurante e luminosa para os metais —— e também traz resquícios inflexionados do jazz, sendo uma das obras mais técnicas e difíceis dentro do repertório moderno do trombone. Lindberg é acompanhado pela Filarmônica de Oslo, aqui regida pelo célebre maestro Peter Rundel.


67                      Gunther Schuller – Journey into Jazz, Variants, Concertino – Boston Modern Orchestra Project & Gil Rose (BMOP Sound, 2008).

No final dos anos de 1940, o trompista e maestro Gunther Schuller já influenciava os músicos de jazz com suas ideias ao apregoar um conceito de hibridificação do jazz com a música erudita moderna de forma a criar uma "terceira corrente". Esse conceito foi chamado então de "third stream" e na década de 1950 até chegou a influenciar alguns músicos tais como John Lewis, Miles Davis, Gil Evans, Charles Mingus e outros. Esse conceito ficou registrado, inclusive, no emblemático álbum The Birth Of The Third Stream (Columbia, 1957/ 1958). Ainda que o conceito da "third stream" não culminasse num movimento criativo generalizado, vários outros músicos de jazz se inspiraram nessas ideias parar criar obras híbridas —— atualmente, inclusive, temos em Wynton Marsalis um forte exemplo de aplicação dessa estética. A partir dos anos de 1950, Gunther Schuller comporia várias peças de fusão entre os elementos do jazz e os elementos da música erudita moderna, intensificando-se nessa nova seara a partir dos anos 60 com obra cada vez mais modernas, algo como sendo um "Duke Ellington meets Arnold Schoenberg", onde ele misturas improvisos, ritmos e texturas das big bands e dos combos de jazz dentro das estruturas e dissonâncias sinfônicas numa só peça híbrida. É o caso das peças registradas no álbum acima pela excelente Boston Modern Orchestra Project, uma das mais proficientes orquestras a atualmente dar vazão no repertório criado pelos compositores modernos e contemporâneos dos EUA. Neste álbum acima, a BMPO interpreta de Schuller as peças Concertino for Jazz Quartet and Orchestra (1959), Variants for Jazz Quartet and Orchestra (1960) e Journey into Jazz (1962) para narrador e orquestra. Essas peças do anos 60 marcam, inclusive, uma maior adesão de Schuller às modernidades harmônicas sopradas pelos ventos da vanguarda europeia. Curiosamente, a peça Journey into Jazz (1962) para narrador e orquestra é inspirada na clássica obra infantil de Peter and the Wolf (1936) de Prokofiev, mas traz uma composição musical eminentemente calcada nas inspirações dodecafônicas, misturando as acentuações do jazz com texturas sinfônicas dissonantes. Outra observação interessante é que essas duas obras "para quarteto de jazz orquestra" trazem ecos da parceria que Gunther Schuller efetuou por muitos anos com o emblemático Mondern Jazz Quartet, formado com o pianista John Lewis, o contrabaixista Percy Heath, o baterista Kenny Clarke e o vibrafonista Milt Jackson.

 
68                      Gunther Schuller - The Fisherman and His Wife – Boston Modern Orchestra Project & Gil Rose (BMOP Sound, 2020).

"The Fisherman and His Wife" é outra das peças de Gunther Schuller que vem ganhando atenção dentro desse processo de renovação e expansão do repertório moderno ao qual algumas orquestras americanas estão se submetendo. A peça foi encomendada como uma ópera infantil pela Junior League of Boston na época em que Gunther Schuller presidia o New England Conservatory, e foi estreada em 1970 pela Sarah Caldwell's Opera Company de Boston. Trata-se de uma ópera de 65 minutos que é baseada numa famosa estória coletada pelos Irmãos Grimm em 1812, tendo tido seu libreto escrito por ninguém menos que John Updike, duas vezes ganhador do Prêmio Pullitzer de literatura: e o libreto conta a história de um humilde pescador que faz repetidas viagens em meio ao mar agitado para invocar um peixe mágico que ele pescou e soltou, sendo que esse peixe é, na verdade, um príncipe encantado para o qual o pescador irá pedir a realização dos desejos cada vez mais grandiosos sonhados por sua esposa. Para dar vida à essa estória, Schuller adota um esquema de temas e variações com um caráter orquestral mais lúdico e diluído dentro do seu conceito de third stream que hibridifica jazz com dissonâncias dodecafônicas, deixando suas influências jazzísticas soarem apenas implícitas e diluídas, e criando uma peça cheia de timbres, cores, tons misteriosos e passagens imagéticas, onde os usos timbrísticos do orgão, da celesta, da guitarra elétrica, dos clarinetes, das flautas, da harpa, das cordas, dos sopros, dos metais... são todos bem pensados em prol do ludismo colorido e misterioso da estória. Este álbum registra, então, mais uma das peças modernas que tem sido resgatadas dentro do repertório da Boston Modern Orchestra Project (BMOP), orquestra que tem sido um modelo de excelência entre as orquestras americanas que estão renovando e expandindo o repertório erudito moderno.

 
69                      Jacques Mauger – Infinite Trombone – Intégrale Jean-Michel Defaye – (Indéssens Records, 2012).

O proficiente trombonista francês Jacques Mauger nos apresenta acima um caleidoscópio de peças para trombone escritas pelo compositor Jean-Michel Defaye (1932- ), que também foi músico calcado no jazz —— pianista da Olympia Big Band ——, arranjador e maestro francês, conhecido por sua colaboração com o poeta e cantor e compositor francês Léo Ferré. Essas peças são, inclusive, fruto da amizade e parceria que o próprio trombonista Jacques Mauger nutre com o compositor. Com um estilo consonante cativante, neoclássico com elementos do jazz, e com uma escolha de timbres bem inteligente, Jean-Michel Defaye nos mostra no álbum acima uma peça escrita para um conjunto de trombones combinados com percussão. Segue-se peças para trombone e piano: uma dessas parafraseando a poética de uma balada de jazz, enquanto as outras soam com mais ponteios, improvisos e floreios. Segue-se paráfrases que ressignifica os estilos de Johann Sebastian Bach e de Schumann. Temos também uma peça escrita para conjunto de trombones e vozes. E assim, compositor e trombonista nos presenteia com um variado caleidoscópio de combinações. Um álbum cativante e divertido.

 
70                      Håkan Hardenberger – Emotion – Berio, Henze, Ligeti, Kagel, Takemitsu – (Decca, 1996).

O sueco Håkan Hardenberger é um dos maiores nomes do trompete de todos os tempos. Se Wynton Marsalis é considerado um dos mais originais entre as sumidades desse tecnicismo trompetístico, Håkan Hardenberger foi chamado de "o trompetista de som mais limpo e sutil da Terra" numa crítica do jornal britânico The Times. O fato é que ele consegue ter um tom claro, limpo e sutil mesmo nas frases e passagens ultra difíceis de se executar. Para além do repertório barroco e clássico, Håkan Hardenberger tem sido há décadas um especialista no repertório moderno e contemporâneo, com vários compositores já tendo escrito peças exclusivamente para ele: Harrison Birtwistle, Toru Takemitsu, Hans Werner Henze, Rolf Martinsson, Mark-Anthony Turnage, Heinz Karl Gruber e Arvo Pärt são alguns deles. Neste álbum acima temos um curioso —— e nem tão comum —— registro de peças para trompete solo, sem acompanhamento. O álbum contém as seguintes peças: Sonatina For Solo Trumpet (1974); Paths, In Memoriam Witold Lutoslawski, for trumpet (1994) do compositor japonês Toru Takemitsu; a já constantemente tocada Sequenza X de Luciano Berio; a peça Old/New (Study For Solo Trumpet) (1986) de Maurice Kagel; a peça Emotion for trumpet and dance de Antoine Tisné; a peça La Mort De L'aigle (1948) de Michael Blake Watkins; e, por fim, a peça Die Große Schildkröten-Fanfare Vom Südchinesischen Meer (1985) de György Ligeti. Algumas dessas peças foram encomendas ou comissionamentos exclusivamente dedicados para Håkan Hardenberger.

 
71                      Håkan Hardenberger – Endless Parade – Trumpet Concertos – Birtwistle, Blake Watkins, Maxwell Davies – (Philips, 1991).

Håkan Hardenberger tem sido há décadas um defensor e contribuinte para a necessária expansão do repertório de peças modernas para trompete. Neste álbum acima, Håkan Hardenberger dá sua interpretação clara e virtuosa para três peças concertantes escritas por três compositores ingleses da música modernista da segunda metade do século 20. O álbum começa com a peça-título Endless Parade (1987) de Sir Harrison Birtwistle (1934-2022): essa peça traz um luminoso e divertido diálogo entre os ponteios realizados pelo trompete e os pontilhismos das cordas, com uma clara intenção de aplicar contrastes de intensidades, texturas e timbres. Segue-se o Concerto for Trumpet (1988) do compositor Peter Maxwell Davies (1934-2016): inspirada pela canção medieval "Franciscus pauper et humilis", de Francisco de Assis, trata-se de uma daquelas peças modernistas com inspirações religiosas que adotam um sombreamento mais meditativo, mais espiritual, ainda que não deixe de apresentar certos pontilhismos mais aventurosos em partes pontuais dos três movimentos, principalmente em seu "Presto" final. Por último, o álbum nos traz o Concerto for Trumpet (1988) de Michael Blake Watkins (1948- ), uma obra modernista que adota tons renovados de elementos neoclássicos e neorromânticos, com um certo melodismo subjetivo e imagético ecoando e nos prendendo a atenção por todo o percurso da peça. A BBC Philharmonic Orchestra é quem acompanha Hakan Hardenberger e o maestro Elgar Howarth é quem dirige o espetáculo. Nesta 👉 entrevista para a VAN Magazine, Hakan Hardenberger fala um pouco sobre a necessidade de se continuar a fomentar a criação de um repertório novo para o trompete —— o que vale, também, para o trombone, a trompa, a tuba e outros horns ——, uma vez que, ao contrário do protagonismo que o trompete alcançou no jazz,  trata-se de um dos instrumentos mais carentes de repertório inédito dentro da seara erudita. Todas as três peças foram escritas exclusivamente para Hardenberger.


72                      John Swallow – A Little Trombone Music – Schuller, Hoddinott, Milhaud, Berio – (GM Recordins, 1985).

Neste álbum o trombonista americano John Swallow também apresenta três peças concertantes de compositores modernistas da segunda metade do século 20. O álbum começa com a peça Eine Kleine Posaunenmusik (1980), que Gunther Schuller escreveu exclusivamente para o próprio John Swallow: trata-se de uma obra em cinco movimentos escrita para um ensemble de sopros com 22 dois integrantes, incluindo harpa, piano, celesta e contrabaixo, onde o compositor dá uma tratativa timbrística mais essencial aos metais dentro de um contexto de ensemble modernista sem a maciez das cordas (sem o uso dos violinos, viola e cellos), com um uso muito reduzido, também, das influências jazzísticas, deixando pra usar essas suas inspirações advindas do jazz apenas implicitamente no jogo de cores e timbres. Segue-se a Sequenza V para trombone Solo de Luciano Berio, essa gravada ao vivo com o trombonista provocando reações de surpresa e risos na plateia, conforme aplica suas técnicas estendidas. Segue-se a peça Ritornelli: for trombone, wind instruments, and percussion Op. 85 (1974) do compositor galês Alun Hoddinott (1929-2008), peça encomendada ao compositor no início dos anos de 1970 pela London Sinfonietta, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian de Portugal. E, por fim, o álbum termina com o neoclássico Concertino d'Hiver Op. 327 para trombone e orquestra de cordas (1953) do compositor francês Darius Milhaud.

 
73                      James Gourlay – British Tuba Concertos – Vaughan Williams, Gregson, Steptoe, Golland – Royal Ballet Sinfonia & Gavin Sutherland (Naxos, 2006).

A tuba é um dos instrumentos que também vem aumentando seu repertório nesses últimos tempos, deixando, gradativamente, de ser um instrumento mais ligado a brass bands, big bands e fanfarras para ter um espaço cativo também no meio sinfônico-concertante. Mas aqui quero lhes trazer alguns concertos para tuba escritos ainda no século 20. O álbum acima nos traz o Tuba Concerto de Edward Gregson (1945- ), originalmente escrito em 1976 para banda de metais (brass band), com sua versão orquestral feita em 1978 e sua primeira apresentação datada em 1983: trata-se de um melodioso e cinematográfico concerto neoclássico com referência clara a Vaughan Williams no desenvolvimento do tema de abertura, uma peça de fácil apreciação auditiva, mas de latente modernismo neoclássico inglês. Segue-se o Concerto para Tuba e Cordas (1983) de Roger Steptoe (1953- ), que já apresenta um modernismo de verve neoclássica, sim, mas com delineamentos e sombreamentos mais subjetivos e com carga melódica menos explícita, onde o que mais importa são os diálogos, entrelaces e sobreposições entre a dramaticidade da tuba e os delineamentos das cordas. Segue-se o já bem conhecido, entre os tubistas, Tuba Concerto in F Minor (1954) de Vaughan Williams (1872-1958): sendo uma das obras tardias deste importantíssimo compositor do modernismo neoclássico inglês, este concerto coloca a tuba no centro daquele estilo cheio de rompantes e tons majestosos e neorromânticos característicos da música erudita inglesa. E, por fim, o álbum termina com o Concerto para Tuba Op.46: com a partitura da peça encontrada após a morte de John Golland, em 1993, e sendo estreada em julho de 1997 pela Halle Orchestra no Halle Proms no Bridgewater Hall, Manchester, a obra coloca a tuba em meio a coloridos ponteios e contrapontos contracenados entre metais e percussão, nos detalhando toda a expertise de um compositor que se especializara em escrever peças para brass bands e seus vários horns. Neste álbum acima, as interpretações são do tubista James Gourley e do maestro Garvey Sutherland à frente da Royal Ballet Sinfonia.

 
74                      British Composers – City of Birmingham Symphony Orchestra – Britten, Vaughan Williams, Elgar, Walton, Sullivan, Arnold, Foulds, Àdes, Turnage... (Warner Classics, 2022).

Há muitas estrelas na galáxia da música erudita moderna inglesa de verve neoclássica, de forma que encontrar uma compilação com as principais obras dos compositores dessa seara foi o melhor a se fazer. Nesta compilação acima, temos um amplo panorama da música erudita britânica, a começar por figuras que fizeram a transição da música romântica do século 19 para a música moderna do século 20 tais como Vaughan Williams e Edward Elgar, passando por figuras emblemáticas do modernismo inglês das décadas de 1930, 40, 50 e 60 tais como William Walton e Benjamin Britten, até abordar obras de compositores subestimados como John Foulds, Arthur Sullivan e Malcolm Arnold (esses, aqui, regendo suas próprias obras) —— só faltando mesmo "The Planets" de Gustav Holst. E para completar esse amplo panorama, a Warner também inclui peças de compositores contemporâneos que se revelaram entre fins do século 20 e início deste século 21, tais como Thomas Àdes e Mark-Anthony Turnage. Todas as obras são orquestrais. E a centenária Orquestra Sinfônica da Cidade de Birmingham, embora mais conhecida pela fase gloriosa liderada por Simon Rattle nos anos 90, tem aqui vários dos grandes maestros do universo clássico à sua frente, nos mostrando o porquê dela ser considerada uma das maiores orquestras do mundo.


75                        Sir Michael Tippett – Box Set w/ 4 CD's Sir Michael Tippett 1905-1998 (Nimbus Records, 1998).

Poderíamos até dizer que Sir Michael Tippett (1905-1998) —— honrado em 1983 com um título de Ordem do Mérito do Reino Unido pela rainha Elizabeth II —— foi uma espécie de nacionalista inglês, mas fico em dúvida se essa categoria lhe é a ideal. Michael Tippett foi aquele tipo de compositor inquieto e altamente original que demorou para ser reconhecido com um dos grandes compositores do século XX, mas, quando ele chegou a alcançar esse status, sua carreira e obra passou a suscitar os mais desencontrados entendimentos diante do fato de que ele variou muito em seus estilos de composição, ficando difícil rotulá-lo ou categorizá-lo. Em geral críticos e pesquisadores costumam emitir uma certa síntese de que Michael Tippett foi um dos compositores mais líricos do modernismo britânico, com melodias longas e profundamente belas, além do fato dele ter sido um diletante estudioso das músicas inglesas medieval e barroca. Mas resumi-lo a essa síntese também seria apequená-lo demais, uma vez que ele transitou por diversos outros estilos e também explorou bastante aspectos contrapontísticos, rítmicos e folclóricos. Em sua vida pessoal e sua carreira prolífica, Tippett passou por algumas crises existenciais e criativas, incluindo crises de autoconhecimento no que diz respeito a não aceitar sua homossexualidade e somando-se ao fato dele ser um perfeccionista, um obstinado pelo passado, e, talvez, também somando-se ao fato dele constantemente ter que atenuar seu lirismo em busca de novas inspirações. Tendo ele mesmo destruído a maioria das suas obras compostas na juventude e no início da carreira, Tippett só começou a estrear suas primeiras obras na casa dos seus 30 anos de idade, e só começou a alcançar certo reconhecimento entre seus 40 e 50 anos. Numa análise mais linear da sua carreira e obra, poderíamos presumir e resumir que Tippett passou por ao menos três períodos criativos. No primeiro período de sua carreira, que se estendeu até o final dos anos 1950, Tippett explorou influências do passado, como Beethoven, Handel, Purcell e os madrigalistas ingleses, incluindo nesse molho elementos rítmicos e folclóricos: caso de obras como o seu Quarteto de Cordas No. 1, a ópera A Child of Our Time e a sua Sinfonia No. 1. No segundo período, que começou com a ópera King Priam, Tippett adotou um estilo mais modernista, com maior propensão à dissonância e atonalidade, incluindo influências americanas —— principalmente após sua visita aos EUA em 1965 —— e explorando temáticas como guerra, violência e sexualidade: obras notáveis desse período incluem The Knot Garden e a Terceira Sinfonia. Já no terceiro período, que começou mais ou menos em 1977, Tippett retorna ao seu lirismo do início da carreira e começa a produzir obras instrumentais de movimento único e com melodias longas: como a Sinfonia No. 4, o Quarteto de Cordas No. 4, o oratório The Mask of Time e a ópera New Year. Neste álbum acima, pertencente a um box de 4 CDs lançado pela Nimbus Records, temos algumas das suas principais obras. O álbum começa com o extraordinário Concerto for Double String Orchestra (1938-39), uma peça que se resultou da busca de Tippett por um estilo musical distintamente inglês, uma pesquisa que ele fará voltando-se na história da música inglesa, começando a analisar desde o Renascimento até os compositores barrocos ingleses: nessa peça ele tem a ideia, então, de contracenar duas orquestras de cordas independentes, ressignificando de forma moderna elementos desse passado musical inglês e criando um rico jogo de polifonias e contrapontos, e uma rica tapeçaria sonora com camadas de texturas e cores. Segue-se a sua "Fantasia Concertante on a Theme of Corelli" (1953): onde Tippett utiliza técnicas originais de variação e desenvolvimento a partir de um tema do compositor italiano Arcangelo Corelli. Em seguida temos a obra "Five negro spirituals" (from "A Child of Our Time") (1941): uma peça que faz parte da ópera de Tippett intitulada "A Child of Our Time" e reflete a fase em que o compositor se inspirou profundamente em elementos americanos, principalmente no lirismo e melancolia das canções do gênero "negro spirituals" (canções espirituais que os escravos negros cantavam nas lavouras e em seus cultos), uma peça que retrata temáticas como sofrimento, redenção e esperança. Segue-se "Little Music for Strings" (1946): pequena suíte para orquestra de cordas em três movimentos, mais um exemplo de peça que explora uma variedade de texturas, pulsações, contrapontos, contrastes e timbres no âmbito dos conjuntos e orquestras de cordas, sempre com muito dinamismo e lirismo melódico. E, por fim, o álbum termina com "Magnificat and Nunc Dimittis" (1947): que são duas peças sacras compostas para um coro de vozes a capella, sendo "Magnificat" uma celebração do cântico bíblico de Maria, enquanto o "Nunc Dimittis" é uma reflexão sobre o cântico de Simeão. Essas peças já são o suficiente para o ouvinte perceber como Michael Tippett ressignificava elementos do passado e das tradições folclóricas mais relacionadas ao lírico e ao contemplativo a partir de inflexões modernas e originais.

 
76                                The 25-Year Retrospective Concert Of The Music Of John Cage - Recorded in performance at Town Hall, N.Y.C, May 15, 1958.

John Cage foi um grande revolucionário no campo das ideias, experimentos e conceitos que desafiaram a percepção musical e a compreensão do que poderia ou não poderia ser considerado música, dos procedimentos que poderiam ou não serem considerados composicionais, dos objetos que poderiam ou não serem considerados instrumentos, dos ruídos e silêncios que poderiam ou não serem considerados musicais. Dessa forma, sua música inicial até se inspira em Schoenberg, mas não fica abraçada ao modernismo europeu e seus complexos cromatismos dodecafônicos e serialismos matemáticos, seguindo logo seu próprio caminho e propondo conceitos até então inconcebíveis —— inconcebíveis até mesmo para os serialistas adeptos ao experimental. Abordagens reducionistas com notas bem espaçadas por longas pausas em silêncio, o uso de jogos e desafios para compor música, o uso de objetos como placas de metais e gramofones (toca-discos) para criar peças musicais, o uso de objetos acoplados nas cordas do piano (o tal "piano preparado"), o uso de sons do ambiente e o uso de aleatórias improvisações no meio das peças, esses são alguns dos "happenings" conceituais idealizados por Cage, procedimentos até então inimagináveis. O registro acima, captado em 1958 no Town Hall, começa com a peça "Six Short Inventions for Seven Instruments" (1934), que é inspirada nas séries dodecafônicas de Schoenberg e faz parte de uma ciclo de peças cromáticas que Cage escreveu no início dos anos de 1930: a peça traz o desafio de se manter uma distância extrema entre as repetições dos vinte e cinco tons em um intervalo de duas oitavas, onde cada um dos instrumentos atua dentro do mesmo alcance, mas nenhum introduz uma repetição até que todos os vinte e cinco tons tenham sido tocados. Segue-se a peça "Construction in Metal" (1937), onde ele inaugura o uso de placas de metal como instrumento. Segue a inovadora Imaginary Landscape No. 1 (1939) para piano, toca-discos e pratos chineses. Depois temos a "The Wonderful Widow of Eighteen Springs" (1942) para voz e piano com a caixa de ressonância fechada, tendo uma canção com textos adaptados do livro "Finnegans Wake" de James Joyce. E, por fim, o álbum traz as relevadoras "Sonatas and Interludes" (1946-48) para piano preparado, o "Concerto For Piano And Orchestra" (1958), e outras peças. Tendo algumas dessas peças sendo revisadas ou estreadas, essa histórica performance de 1958 no Town Hall já reflete, enfim, uma fase em que John Cage alcançava considerável reconhecimento. Dos modernistas aos minimalistas, Cage influenciaria a todos com seus experimentos e ideias inovadoras —— mesmo diante de certa resistência entre os serialistas, mesmo sendo muitas vezes incompreendido e cancelado.


77                       John Cage – Sonatas And Interludes For Prepared Piano (1946-48) – (Composers Recordings Inc., 1965)

As técnicas estendidas de preparo experimental do piano, popularmente sintetizadas no termo "piano preparado", foram inventadas por John Cage e surgem inicialmente em sua peça Bacchanale (1938), uma peça criada para uma coreografia da dançarina americana Syvilla Fort. Cage também usaria piano preparado em peças para dança com as quais ele performaria ao lado do dançarino de vanguarda Merce Cunningham. Esse preparo experimental consistia em mudar as afinações e os timbres das cordas do piano acoplando nelas parafusos e outros objetos para se obter sons mais percussivos, usando também um processo de vedação da caixa de ressonância do piano, entre outros apliques e modificações. Cage logo explica que seu piano preparado era uma inspiração das técnicas estendidas do seu amigo Henry Cowell (1897–1965), pianista e compositor que já vinha dando uma tratativa experimental ao piano, dedilhando e raspando objetos diretamente nas cordas ao invés de usar as teclas. Entre 1946 e 1948, então, John Cage compõe seu ciclo chamado "Sonatas e Interlúdios para Piano Preparado", obra que ele dedicou ao pianista Maro Ajemian, que estreou as quatro primeiras sonatas no Town Hall em 1946 e também foi o responsável por dar o primeiro concerto em Nova York com o ciclo completo da obra em um célebre concerto no Carnegie Recital Hall, em 12 de janeiro de 1949. Esse concerto é considerado um marco na carreira de Cage, pois foi a partir daí que "Sonatas e Interlúdios" tornaram seu piano preparado instantaneamente reconhecido. Esta gravação acima das Sonatas e Interlúdios para Piano Preparado de John Cage foi realizada por Maro Ajemian em 1951 e foi lançada pela primeira vez no final daquele ano pela Dial Records em dois LP's. Esta reedição acima inclui, então, a performance completa com os dois LP's.


78                       John Cage & David Tudor - Music of Changes (1951) – (Hat Hut Records, 2012).

Peça composta em 1951, Music of Changes é um marco do conceito de "música indeterminada" ou "música aleatória" no espectro da música erudita moderna. Trocando figurinhas com seu amigo e também compositor Morton Feldman, John Cage elabora essa peça usando o I Ching, o mais antigo texto chinês a ensinar um sistema de adivinhação com símbolos usados para identificar a ordem em eventos aleatórios, a partir do qual o compositor elaborou símbolos e tabelas de sons, durações, dinâmicas, andamentos e densidades. Além desses "eventos aleatórios" ao longo da peça, essa nova busca pela casualidade e pelo indeterminismo deu vazão no conceito de improvisação livre e aleatoriedade na música moderna, onde o compositor permite que o intérprete improvise a partir das suas próprias abstrações em partes das peças, um conceito que chegou a ser criticado, por exemplo, por Pierre Boulez e outros serialistas mais adeptos ao formalismo europeu. A peça foi dedicada ao amigo e pianista David Tudor, o mesmo que a interpreta nesta reedição acima lançada pela Hat Hut Records. O conceito de aleatoriedade também seria um dos estopins conceituais mais usados entre os improvisadores do ramo do avant-garde jazz.

 
79                       Charles Ives, Ivan Wyschnegradsky - Josef Christof, Steffen Schleiermacher – Quarter-Tone Pieces (Hat Hut/ hat[now]ART, 2006)

Ao lado de Harry Partch (1901-1974), o compositor americano Charles Ives (1874-1954) e compositor russo Ivan Wyschnegradsky (1893-1979) foram dois dos pais da música microtonal. Ivan Wyschnegradsky, aliás, foi um dos compositores mais experimentais da música do século XX no quesito da expansão das paletas microtonais das cores harmônicas. Seguindo a premissa de sinestesia já prenunciada desde fins do século 19 por Alexander Scriabin (1872-1915), Wyschnegradsky expandiu as escalas em quartos de tons e associou cores e matizes dessas cores às notas musicais e seus semitons cromáticos, seus comas e suas subdivisões microtonais, subsequentemente..., chegando a uma escala de 72 divisões e subdivisões dentro da escala de 12 tons. Para dar vazão nessas suas pesquisa de expansão dos tons e microtons, Ivan Wyschnegradsky usou, inicialmente, os instrumentos de cordas e o piano, instrumentos esses que podem ser propositalmente afinados em subdivisões e frequências sonoras diferentes da afinação-padrão para se atingir os quartos de tons —— posteriormente, adaptações e instrumentos mais experimentais foram forjados, principalmente através dos estudos de Harry Partch. Neste álbum acima, pois, temos interpretações de peças precursoras escritas para pianos afinado no sistema de quartos de tons. As interpretações são dos pianistas Josef Christof e Steffen Schleiermacher. O álbum começa com o ciclo 24 Preludes In Quarter-Tone System (compostas entre 1934 e 1970) de Ivan Wyschnegradsky e termina com Three Quarter-Tone Pieces For Two Pianos (escritas entre 1903 e 1923) de Charles Ives. Essas peças para dois pianos elaboradas sob o sistema de quartos de tons já no início do século 20 mostra o quanto Charles Ives já estava à frente do seu tempo, ainda que não fosse reconhecido por isso.

 
80                       Ivan Wyschnegradsky – Musique A Quarts De Ton – (Edition Block, 1977-83)

Este álbum duplo é um super raríssimo compêndio do trabalho microtonal de Ivan Wyschnegradsky, tendo performances do próprio compositor em gravações históricas. O álbum traz: composições para pianos afinados em quartos de tons; uma peça para o piano construído em terços de tons pelo compositor, experimentalista e construtor de instrumentos mexicano Julian Carillo (outro dos "pais" da música microtonal); peças para dois pianos; peças para quatro pianos, e uma peça para violoncelo e piano —— todas essas peças baseadas nesses experimentos e estudos de divisões tonais e suas subdivisões microtonais. Este lançamento único é, pois, um magnum opus de Wyschnegradsky no sentido de nos trazer esse compêndio com essas peças experimentais históricas, muitas delas idealizadas nos anos 20, 30 e 40, mas totalmente incondizentes com o cenário da censura da ditadura russa —— lembrando que para ter essa liberdade de desenvolver esses seus experimentos harmônicos, Wyschnegradsky se exilou na França, onde desenvolveu sua arte musical e viveu até o fim de seus dias. O álbum foi gravado pelo próprio compositor e seus músicos experimentais convidados no Studio 105 da Radio France, em janeiro de 1977. Trata-se de uma música com coloridos tonais bem estranhos —— aparentemente ultra-desafinados —— para ouvidos não iniciados em música microtonal. Aqui mesmo no blog já tecemos um post sobre música microtonal, onde indicamos obras de Wyschnegradsky, Harry Partch, Julian Carillo e outros compositores e experimentalistas contemporâneos.

 
81                       George Antheil – Vera Beths, Reinbert de Leeuw, Netherlands Wind Ensemble – Ballet Mécanique / A Jazz Symphony / Violin Sonatas No. 1 & 2 (Philips, 1977)

A composição Ballet Mécanique do compositor, futurista, experimentalista e inventor americano George Antheil —— outro dos ases do avant-garde americano na primeira metade do século XX —— é um marco na história da música moderna! A peça, um pastiche musical-performático da mecânica moderna pós Revolução industrial, foi criada para ser trilha sonora de um filme experimental de mesmo nome que marcou o avant-garde dos anos 20 e 30, um filme de arte dadaísta pós-cubista escrito e codirigido por Fernand Léger em colaboração com o cineasta Dudley Murphy, tendo ainda a contribuição cinematográfica de Man Ray. Sendo um dos filmes precursores do cinema experimental, o Ballet Mécanique foi estreado, porém, ainda em formato de cinema mudo em 1924 na Internationale Ausstellung neuer Theatertechnik (Exposição Internacional para a Nova Técnica Teatral) em Viena, com apresentação do multiartista de vanguarda Frederick Kiesler. O fato é que antes da estreia, George Antheil e os diretores se desentenderam quanto à sincronização da peça musical com a película, e as duas obras de arte seguiram por caminhos separados. George Antheil decide, então, criar uma extensa peça para ser exibida em ambiente sinfônico. A instrumentação, contudo, beirava ao bizarro e ia de encontro com a experimental tendência —— algo que já vinha sendo exposto nas obras de Edgar Varèse, por exemplo... —— de dar mais protagonismo aos instrumentos elétricos e instrumentos de percussão, uma tendência que enriqueceria sobremaneira as possibilidades rítmicas e timbrísticas na evolução da música erudita moderna: inicialmente, por exemplo, o compositor exigiu uma bizarra instrumentação com 16 pianolas mecânicas dividas em quatro seções, 2 pianos regulares, 3 xilofones, pelo menos 7 campainhas elétricas, 3 hélices, sirenes, 4 bumbos, 1 tam-tam e aparelhos eletrônicos para produzir ruídos. Logicamente que essa configuração instrumental se mostrou incondizente com muitos dos palcos dos teatros e salas de concerto, além da dificuldade para se encontrar percussionistas, pianistas e performers, o que faz com que o próprio George Antheil faça adaptações e até invente um sistema de sincronização por ondas de rádio para controlar os saltos entre 88 frequências pré-programadas com base nas 88 teclas dos pianos e pianolas —— esse sistema de sincronização, aliás, o levaria a inventar o engenhoso sistema de "espalhamento espectral", invenção que foi amplamente utilizada nas telecomunicações e foi uma genialidade precursora do que hoje conhecemos como sinal wi-fi e seus similares. Contudo, ao longo do século 20, e agora neste início de século 21, a peça Ballet Mécanique já foi diversas vezes executadas em formatos adaptados e reduzidos com menos pianos e com menos pianolas, e já foi até adaptado para vários teclados operando simultaneamente via interface MIDI. Seguindo com suas ideias geniais baseadas em seu fascínio pela mecânica e engenharia, Antheil comporia outras peças performáticas do tipo tais como a "Airplane Sonata" e a "Mechanism", peças que, como "Ballet Mécanique", entraram para a seleta lista das obras de arte musical que geraram tumultos e até motins nas plateias do início do século 20. No álbum acima temos o maestro Reinbert de Leeuw à frente do Nederlands Blazers Ensemble, de Amsterdã, dando sua versão para a "Ballet Mécanique", para a "A Jazz Symphony" e as duas primeiras sonatas para violino e piano de George Antheil, tendo o próprio Reinbert de Leeuw ao piano ao lado da violinista Vera Beths. Essas obras atestam como que muitas das composições de George Antheil eram marcadas por influências do jazz e por aspectos mecânicos, percussivos e futuristas.

 
82                       Conlon Nancarrow – Complete Studies for Player Piano – (MDG Scene, 2005)

As peças para piano do compositor americano-mexicano Conlon Nancarrow —— um dos precursores e pioneiros da vanguarda americana da geração pós Charles Ives, além de um dos primeiros a explorar instrumentos eletrônicos —— estão entre as obras musicais mais tecnicamente difíceis e inovadoras da história da música moderna e contemporânea. Já a partir dos anos de 1930, o compositor passou a desenvolver uma técnica pessoal que ele mesmo chamou de "player piano" ou "piano mecânico", onde ele começou a se inspirar no ragtime, no boogie-oogie e no stride jazz —— estilos pianísticos do início do jazz, com rítmicas sincopadas e intrincadas —— para desenvolver estudos hiper intrincados através de sobreposições elaboradas sobre métricas hiper complexas, na maioria das vezes usando pianola, um piano que tem um sistema mecânico de autoreprodução. Outra das influências também presentes neste salseiro de métricas complexas era a música para cravo de Johann Sebastian Bach e de outros nomes da música barroca, sendo por meio dessas intrincâncias barrocas que Nancarrow criou seu próprio estilo de "cânones de prolação", produzindo obras onde os cantos, contracantos, cânones e contrapontos sobrepostos surtiam um efeito de inebriantes de ecos imitativos assíncronos. A ideia de Nancarrow era, propositalmente, criar "peças mecânicas" tão complicadas que beirassem à impossibilidade de se ter uma execução humana. Nesta compilação acima, temos os seus 49 estudos para pianola mecânica. Todos esses estudos e outras peças para pianola e piano de Conlon Nancarrow estão dispostos em 10 volumes na plataforma do Spotify. No final da sua carreira, nos anos 90, Conlon Nacarrow chegou a criar até complicadas peças para teclados controlado por computador.

 
83                       Conlon Nancarrow – Calefax Reed Quintet, Ivo Janssen – Studies For Player Piano – (MDG Scene, 2009)

As peças de Conlon Nancarrow apesentam, verdadeiramente, métricas, polirritmias, sincronias e assincronias que são muitíssimo complicadas, sendo que muitas delas foram compostas para serem tocadas apenas mecanicamente por pianolas. Mas o caráter jocoso, brincalhão e divertido das suas peças tem seduzido e encorajado alguns dos virtuoses mais astutos para enfrentar essa tecnicidade. Não à toa, até os anos de 1980, Colon Nancarrow foi um dos compositores mais subestimados e desconhecidos. Nas últimas décadas, contudo, tem sido um dos compositores modernos mais pesquisados e com maior reconhecimento póstumo. Um álbum que atesta esse reconhecimento é este acima, onde os músicos holandeses do Calefax Reed Quintet, considerado um dos maiores quintetos de instrumentos de palhetas do mundo, transcreveram alguns dos estudos de Nancarrow origicanalmente escritos para piano e pianola para esse formato de quinteto de palhetas com saxes, clarinetes, fagote e oboé. A empreitada produz um efeito duplamente estimulante. Primeiro pelo fato de poder ouvir aqueles cantos, contracantos e cânones polirrítmicos através de um novo formato camerístico. Segundo porque as próprias combinações de timbres desses instrumentos de palhetas já produzem efeitos interessantes mediante essas sincronias e assincronias em métricas complexas. Muito interessante!!!

 
84                          Harry Partch – Delusion of the Fury – A Ritual Of Dream And Delusion – Ensemble of unique instruments conducted by Danlee Mitchell  (Columbia Masterworks, 1971)

Embora o uso de uma possível "harmonia microtonal" seja ainda hoje uma teoria musical ainda um tanto inalcançável ante os instrumentos convencionais que conhecemos, o surgimento da música microtonal, propriamente dita, passou a ser uma realidade desde as primeiras teorizações e experimentações do compositor mexicano Julián Carrillo já no final do século 19, e já no início do século 20 através de compositores como Charles Ives, Alois Hába, Ivan Wyschnegradsky e Mildred Couper, os quais também começaram a empregar os microtons em suas composições. Posteriormente o uso dos microtons foi pontualmente investigado também por Olivier Messiaen e Pierre Boulez. Mas foi na música de Harry Partch (1901-1974) que o uso da música microtonal encontrou maior fonte e campo de aplicação. Teórico e inventor de instrumentos, Harry Partch partiu do sistema "just intonation" —— através das suas pesquisas usando um Ressonador de Helmholtz, que permitia mapear ondas e frequências sonoras cada vez menores —— e chegou a teorizar todo um conjunto de ideias e técnicas de composição musical através do seu livro Genesis of a Music (1947), um verdadeiro tratado da música microtonal. Sendo um diletante inventor de novos instrumentos, já na primeira metade do século 20, Partch inventou diversos instrumentos onde se era possível usar até 47 subdivisões tonais dentro da escala de 12 tons, compondo um conjunto de peças inovadoras para estes instrumentos. No álbum acima temos, então, a primeira das gravações históricas da peça "Delusion of the Fury" (1963-69), um drama teatral e performático que Harry Partch criou baseado na dança japonesa conhecida como Noh: a peça apresenta um interativo cenário com cantores, mímicos, dançarinos e músicos performando com os exóticos instrumentos microtonais de Partch, sendo que essa gravação acima foi realizada sob a supervisão do próprio compositor e sob a direção do percussionista Danlee Mitchell.


85                      Les Percussions De Strasbourg – Série Classiques 2 Disques – Varèse, Cage, Kabelac, Serocki, Xenákis, Chaves... – (Philips, 1983)

A revolução timbrística empreendida pelas principais obras modernas do século XX —— das obras de Stravinsky até as obras de Xenákis —— passa pela expansão do uso das percussões dentro das orquestras e das novas configurações de ensembles, sendo essa uma contribuição majoritariamente das matrizes africana (tambores, caixas, bongôs e etc) e oriental (sinos, gongos, instrumentos de bambú e etc). Ou seja, a percussão foi um dos naipees que mais se expandiram dentro das instrumentações e orquestrações da música moderna, a começar pelas pesquisas iniciais de John Cage, que começou a usar parafusos e objetos no piano preparado e também a criar novas percussões com placas de metal e diversos outros "instrumentos" adaptados, e a começar também pela pioneira peça Ionisation (1931) do francês Edgard Varèse, escrita para 13 percussionistas e piano. Varèse, inclusive, estabelece nessa peça um uso de componentes do drum kit já bem próximo da configuração de uma bateria de jazz. Aqui mesmo no blog, já escrevi um 👉post sobre percussão, transcorrendo o panorama da evolução das explorações modernas e contemporâneas das várias percussões, abordando desde as pesquisas de John Cage até as explorações percussivas empreendidas no jazz e na nova música contemporânea mais próxima de nossos dias. E este álbum compilativo vem muito a calhar aqui em nossa lista! Este LP acima foi lançado em 1983 para compor a série "Classiques 2 Disques" da Philips e traz algumas das precursoras e pioneiras peças que deram maior protagonismo à percussão dentro da música erudita moderna, bem como estabeleceram o formato de "ensemble de percussão" como um dos novos formatos de grupos instrumentais válidos. E o grupo de percussionistas franceses Les Percussions De Strasbourg —— já abordado algumas vezes aqui no blog —— é um dos primeiros e principais ensembles especializados somente em peças para percussão e/ou peças camerísticas e orquestrais escritas por compositores modernos e contemporâneos onde a percussão tem um papel protagonista. A compilação acima reúne peças como "First Construction in Metal" (1939) de John Cage, "Ionisation" de Edgar Varèse, "Persephassa" de Iannis Xenakis, "Études Chorégraphiques" de Maurice Ohana, "8 Inventions for Percussion" de Miloslav Kabelac, entre outras peças pioneiras. Todas as peças são interpretadas pelos percussionistas franceses do Les Percussions De Strasbourg, ensemble imprescindível para a evolução da percussão dentro da música moderna e contemporânea. Muitos compositores da segunda metade do século 20 e deste início do século 21 escreveram e seguem escrevendo peças exclusivamente para o Les Percussions De Strasbourg!


86                      Morton Feldman – Rothko Chapel & Why Patterns? for Piano – (New Albion Records, 1991)

O compositor americano Morton Feldman (1926-1987) —— um fã inveterado de Webern e um dos ases da vanguarda americana nas décadas pós 1950, ao lado de John Cage —— é um compositor conhecido pelo uso do indeterminismo e de uma abordagem conceitual desafiadora quanto ao uso de silêncios, texturas em meio a longos espaçamentos e longa duração das peças, também explorando o encontro da música atonal expressionista de abordagem reducionista em direção à um certo minimalismo disforme, oferecendo uma abordagem desafiadora tanto para os músicos que executam suas peças quanto para os ouvintes que as apreciam. Desde muito cedo, Morton Feldman foi atraído pelos conceitos do expressionismo abstrato da pintura americana e incluiu em seu ciclo de amizades pintores como Mark Rothko, Philip Guston, Jackson Pollack e Robert Rauschenberg. Foi por isso que o casal de filantropistas e colecionadores de arte John e Dominique de Menil logo encomendou a Feldman para que ele compusesse uma obra a ser tocada na inauguração da Rothko Chapel, uma espécie de "capela de arte para meditação" construída em arquitetura moderna —— em Houston, Texas —— para abrigar algumas das conceituais pinturas de Mark Rothko: a peça foi escrita para um pequeno ensemble instrumental que inclui viola, celesta, percussão e vozes, e a estrutura de cada uma das partes da peça imerge na penumbra fosca das abstrações de Rothko numa poética que exprime lentidão, texturas em meio a espaçamentos longos e certa atmosfera etérea, com caráter sempre meditativo e contemplativo. Já a peça Why patterns? para piano e ensemble foi composta em 1978 como um resultado da expansão do conceito de "música indeterminada" de Morton Feldman: com duração consideravelmente longa, com aproximadamente 55 minutos a 1 hora de execução, a peça apresenta uma uma abordagem não tradicional de notação musical que permite ao intérprete tomar decisões aleatórias sobre a duração e a ordem de certas seções, também sendo um exemplo dessa poética de Feldman que centra-se na exploração minimalista da delicadeza textural e do silêncio no espaço-tempo musical. Neste álbum acima, porém, temos uma versão compacta de Why Patterns? com 30 minutos no total, mas, ainda assim, de escuta desafiadora. A lentidão, as durações longas e os longos espaçamentos dos sons e silêncios dentro da estrutura disforme dessas peças representam um desafio considerável em termos de concentração meditativa —— tanto para os músicos executantes, quanto para os ouvintes. Por essas abordagens e outras, Morton Feldman é, enfim, figura essencial na música criativa da segunda metade do século 20. E as duas peças deste álbum acima já são um tanto suficientes para oferecer uma clara introdução ao ouvinte que ainda não conhece Morton Feldman, um compositor que levou o expressionismo abstrato de encontro a um reducionismo praticamente minimalista.


87                      Pierre Boulez – Hommage à Boulez – Daniel Baremboim & West-Eastern Divan Orchestra – (Deutsche Grammophon, 2017)

Pierre Boulez é figura importantíssima na efetiva evolução do serialismo integral, e este álbum acima atesta esse pioneirismo. Este álbum acima, Hommage à Boulez, é fruto de um projeto empreendido pelo maestro Daniel Baremboim e nos traz um compêndio que resume bem as obras maduras de Pierre Boulez. A compilação apresenta Baremboim e o próprio Boulez dando sua versão conjunta para diversas peças das mais emblemáticas do serialismo integral, incluindo a peça Le Marteau sans maître (1955) —— tendo a vocalista Hilary Summers ao lado da West-Eastern Divan Orchestra ——, e outras obras que Boulez compôs nas décadas vindouras pós anos de 1960, tais como Dialogue de l'ombre double para clarinete e eletroacústica (uma alusão às Sequenzas que Luciano Bério elaborou para clarinete solo), Anthèmes para violino e eletroacústica e Messagesquisse para violoncelo solo e seis violoncelos, entre outras. Hommage À Boulez celebra uma associação entre Daniel Barenboim e Pierre Boulez que durou mais de cinquenta anos: as peças foram gravadas no concerto de aniversário dos 85 anos de Boulez, no palco da Staatsoper Unter den Linden em 2010 e no BBC Proms em 2012, e o lançamento do álbum, em 2017, coincidiu com a inauguração da Pierre Boulez Saal, uma nova sala de música de câmara projetada pelo arquiteto Frank Gehry dentro da Barenboim-Said Akademie, em Berlim. Neste post onde inauguro a série 👉 Atonalize-se!, detalho melhor algumas das peças que constituem esse compêndio, peças importantíssimas para a evolução do serialismo integral.


88                      Karlheinz Stockhausen – Kreuzspiel, Kontra-Punkte, Zeitmasze & Adieu – London Sinfonietta – (Deutsche Grammophon, 1974)

O compositor alemão Karlheinz Stockhausen (1928-2007) foi um dos grandes visionários da música moderna da segunda metade do século 20, sendo um dos pupilos remanescentes do serialismo integral e das técnicas inovadoras disseminadas no emblemático Festival de Música Contemporânea de Darmstadt, evento que começou a acontecer em 1946 e está ativo é os dias de hoje como o principal "focal point" de inovação em termos de explorações conceituais e experimentais no âmbito da música erudita europeia. As peças dispostas no álbum acima são, inclusive, peças do início da carreira de Stockhausen, de quando ele começou a frequentar e apresentar suas obras no Festival de Darmstadt, logo se destacando enormemente entre os demais compositores participantes. A peça Kreuzspiel (1951) foi escrita para um quarteto de flauta, clarinete, oboé e piano e apresenta um estilo serial inicial, onde os parâmetros musicais são organizados de acordo com séries de notas, durações, dinâmicas, etc, sendo que o título "Kreuzspiel" significa "jogo de cruz" em alemão, referindo-se à interação entre os instrumentos e seus cruzamentos dentro da estrutura da peça. A peça Kontra-Punkte (1952-1953) foi escrita para dezesseis instrumentos e é considerada uma das mais emblemáticas do período serial inicial de Stockhausen, justamente por enfatizar um jogo dinâmico e complexo de contrapontos e contrastes abruptos e densos. O álbum acima segue com a peça Zeitmasze (1955-1956), escrita para cinco instrumentos (flauta, oboé, clarinete, fagote e trompete) e caracterizada por mudanças rítmicas rápidas e complexas, explorando a noção de tempo e pulsação em diferentes camadas. Segue-se Adiel (1966), peça escrita para quarteto de trompas, uma peça que exige complicadas habilidades técnicas e expressivas dos trompistas, bem como explora o jogo de timbres únicos desse instrumento dentro desse âmbito de interações musicais mais complexas. Essa seleção de obras efetuada pelos músicos da London Sinfonietta —— um dos maiores ensembles de música moderna e contemporânea —— é, pois, um documento sonoro interessante e importante para o ouvinte se inteirar em como Stockhausen, ao lado de Pierre Boulez e outros grandes nomes de Darmstadt, levou o serialismo integral a evoluir para conceitos e abordagens cada vez mais experimentais, complexas e dinâmicas.

 
89                      Eötvös conducts Stockhausen – Punkte & Gruppen – (Budapest Music Center Records, 2001)

As peças empreendidas por Stockhausen trouxeram experiências musicais megalomaníacas e, ao mesmo tempo, estabeleceram inovações conceituais sem precedentes. Seguindo com sua ousadia de criar novas interações dinâmicas dentro do contexto de música serial, Stockhausen criaria obras tão inventivas quanto desafiadoras. É o caso das duas peças abordadas neste álbum acima, gravado pelo maestro húngaro (e também compositor) Péter Eötvös à frente da WDR Sinfonieorchester Köln. Este álbum acima traz versões frescas de "Punkte" e "Gruppen", duas emblemáticas peças ainda do período inicial de Stockhausen, uma fase onde o compositor foi um dos principais enriquecedores do serialismo integral. A peça "Punkte" foi originalmente composta em 1952, mas é conhecida principalmente por sua revisão mais detalhista de 1962: a peça é escrita para uma orquestra e possui uma estrutura musical complexa, densa e pontilhista, onde os pontilhismos exploram ricos contrastes de texturas dentro de um novo contexto de esparsidade e espacialidade, ou seja, dentro de um novo contexto de espaços e pausas entre as estruturas sonoras, oferecendo uma abordagem totalmente inconvencional à forma musical no quesito de inserir esse denso pontilhismo dentro de uma disposição não linear e totalmente desprovida de senso de discurso, continuidade e sequenciamento. Já a peça "Gruppen" é ainda mais ousada na exploração desses conceitos de esparsidade e espacialidade. "Gruppen" foi composta em 1957 e é uma das obras mais inovadoras e desafiadoras de Stockhausen: a peça é escrita para três orquestras separadas, cada uma composta por diferentes grupos de instrumentos, sendo que essas orquestras são colocadas em posições espaciais distintas parar criar camadas sonoras em diferentes pontos do espaço e o público é colocado no meio das três orquestras, proporcionando uma experiência sonora imersiva e tridimensional dentro dessa relação entre som, espaço e tempo, também exigindo um alto nível de precisão, sincronização e coordenação por parte do maestro e dos músicos das três orquestras, e exigindo até uma certa quebra de paradigma quanto à relação e a disposição espacial convencional entre palco, orquestras e plateia. Há leituras e interpretações muito boas dessas peças sob as batutas de grandes medalhões da regência, tais como Claudio Abbado e Simon Rattle , —— sem deixar de considerar que a peça exige ao menos dois outros maestros assistentes ——, mas este álbum com a interpretação de Péter Eötvös, além de ser um álbum inteiramente dedicado a Stockhausen, me parece soar com uma crueza mais expressiva nessa relação tridimensional de detalhes. Em geral, as peças de Stockhausen são estruturalmente intricadas, contrapontísticas, pontilhistas e cheias de efeitos e Péter Eötvös, com seu olhar mais cirúrgico de compositor e especialista no repertório moderno e contemporâneo, nos dá uma leitura mais crua e detalhista dessas obras.


90                      Boulez & Stockhausen – Le Marteau Sans Maître / Nr. 5 Zeitmasse For Five Woodwinds – Robert Craft – (Columbia Masterworks, 1958)

Estas históricas gravações, supervisionadas pelo célebre maestro Robert Craft, reúne os primeiros registros oficiais de duas das obras emblemáticas do serialismo integral escritas pelo compositor francês Pierre Boulez e pelo compositor alemão Karlheinz Stockhausen. "Le Marteau Sans Maître" é uma obra-prima de Pierre Boulez, escrita entre 1953 e 1955, baseada nos poemas surrealistas de René Char: a peça foi escrita para um conjunto de seis instrumentos (flauta alto, xilofone, violino, viola, percussão e guitarra) e uma cantora contralto. Trata-se de uma das peças onde Boulez efetiva sua inovadora expansão das técnicas de serialismo integral, onde diferentes parâmetros musicais são altamente organizados em séries matemáticas e novas explorações harmônicas: incluindo teoria dos conjuntos musicais, multiplicação de tons, exploração de saltos intervalares e organização serial dos timbres, evidenciando uma timbrística lúdica e inovadora em conotação à poesia surrealista de René Char, um jogo de timbres que é claramente marcado pelas cores produzidas nesses saltos intervalares e pelas reverberâncias do xilofone, violão/ guitarra..., bem como por toda essa correlação de timbres de instrumentos de naipes diferentes se contracenando em saltos intervalares permutados em séries. Já a peça "Zeitmasse For Five Woodwinds" foi composta por Stockhausen em 1955 e evidencia uma inovadora associação de tempos de duração para as linhas de tons, bem como organizações altamente seriais de timbres, dinâmicas e intensidades: dentro dessas dinâmicas seriais, a peça também explora um jogo inovador de timbres com um conjunto de cinco instrumentos de sopro (flauta, oboé ou corne inglês, clarinete, fagote e trompa) se contracenando de acordo sete tipos de organizações permutativas que englobam agrupamentos, polifonias, pontilhismos, notas longas, notas rápidas, alturas e etc. A peça Zeitmasse, na verdade, faz parte de um ciclo de cinco outras peças escritas para instrumentos de sopro, ciclo no qual a peça "Adieu", abordada no álbum acima deste, também faz parte.

 
91                      Stockhausen – Klavierstücke – David Tudor – (Hat Hut, 1958-59/ 1994)

Seguindo uma poética semelhante as miniaturas do ciclo "Mikrokosmos" de Bartok, Stockhausen compõe esse ciclo de peças serialistas para piano solo que começa nos anos de 1950 e se desenrolará nas décadas seguintes. Importante ressaltar, contudo, que nem todas as peças obedecerá a essa poética de "miniaturas" ou "esboços": Stockhausen, aliás, acrescentaria vários elementos seriais e revisões em algumas delas, expandindo-as em engenhosos exemplos de peças pianísticas seriais, com algumas delas ultrapassando 7, 8, 9, 15 minutos de duração. Importante ressaltar, também, que esse ciclo se desembocará numa sequência que englobará as teclas mais contemporâneas dos sintetizadores a surgir nos anos 60 e 70: o ciclo para piano vai até a Klavierstücke XIV, sendo que o ciclo para sintetizadores começa a partir da Klavierstücke XV. A série é composta por múltiplas peças, escritas e revisadas em diferentes momentos da carreira de Stockhausen, onde cada "Klavierstücke" apresenta características seriais distintas, variando em estilo, técnicas e abordagens composicionais: pontilhismos, pontos e contrapontos, séries intervalares, o conceito de ritmos irracionais, agrupamentos harmônicos, múltiplas variações de compasso numa mesma peça, dinâmicas de altura e intensidade organizadas por séries, entre outras inúmeras técnicas conceituais relacionadas ao serialismo integral. Neste álbum acima, uma reedição do selo suíço Hat Hut, temos o célebre pianista David Tudor dando suas refinadas interpretações para a integral do ciclo dedicado ao piano solo em captações realizadas entre 1958 e 1959, sendo, portanto, as primeiras gravações históricas dessas peças. Stockhausen dedica algumas dessas peças, inclusive, a Tudor, enquanto outras foram dedicadas e estreadas por pianistas como Frederic Rzewski, Aloys Kontarsky e Marcelle Mercenier, todos pianistas que se tornaram célebres por serem especialistas do repertório moderno desenvolvido por Stockhausen e outros compositores participantes de Darmstadt. Um ciclo altamente essencial dentro do repertório pianístico moderno.


92                      Iannis Xenakis – Orchestre Philharmonique Du Luxembourg & Arturo Tamayo – Orchestral Works 5 CD's – (Timpani Records, 2009)

O compositor greco-romeno e teórico (matemático, arquiteto, engenheiro, inventor) Iánnis Xenákis (1922-2001) é um dos criadores musicais remanescentes da música serialista que melhor desenvolveu uma sonoridade de idiossincrasias, timbrísticas e reluzências próprias, tendo sido considerado por Messiaen como um gênio acima da média dos outros gênios, um gênio muito à frente do seu tempo. Inicialmente adepto ao uso de elementos cancionistas e folclóricos gregos e romenos —— sendo, inicialmente, fã de Stravinsky e Bártok ——, nos anos de 1950 Xenákis inicia seus estudos com Messiaen e adere ao serialismo integral propagado pela Escola de Darmstadt, mas logo rompe com essa escola para seguir um caminho próprio que será moldado por conceitos matemáticos, físicos e arquitetônicos. Ou seja, ainda que o serialismo matemático nunca tenha desaparecido completamente da sua obra, ele frequentemente usou vários outros recursos provenientes da teoria dos conjuntos, dos processos estocásticos, da teoria dos jogos, da matemática computacional, dos conceitos da física quântica nas relações timbrísticas, do conceito de massa sonora e dos conceitos arquitetônicos de espacialização, além de ter sido um dos criadores mais seminais no campo da eletroacústica (inclusive tendo projetado seus próprios hardwares e softwares de manipulação). E esta indicação de álbum acima é um compêndio de grande valor para compreender a obra orquestral de Xenákis. Esse compêndio, disponível no Spotify, reúne cinco volumes das peças orquestrais mais seminais de Xenákis a cargo do maestro espanhol Arturo Tamayo à frente dos músicos da Orchestre Philharmonique du Luxembourg. A coletânea engloba desde peças serialistas do início da carreira de Xenákis, tais como Metastasis (1953–54) e Pithoprakta (1956), até peças criadas no início dos anos 90, tais como Krinoïdi (1991) e Antikhthon (1971). Metastasis, aliás, é considerado um marco emblemático da obra de Xenákis: trata-se de uma peça escrita para uma orquestra de 61 músicos (12 sopros, 3 percussionistas tocando 7 instrumentos, e 46 cordas ) numa esquemática serialista que preza pelo conceito de "massa sonora" em que cada músico é responsável por completar glissandos em diferentes níveis de altura e tempos, de forma que a exigência é que, em certos pontos da peça, não pode haver intérpretes tocando a mesma parte. Posteriormente, como já citado, as peças de Xenákis abandonariam o caráter estritamente serialista para englobar, também, outras estruturas matemáticas e arquitetônicas. De certa forma, e para além do uso da matemática em suas composições, sua predileção por trabalhar com efeitos timbrísticos e massas sonoras —— com muito uso de técnicas estendidas, estridências, cintilâncias metálicas, arranhaduras e o uso de efeitos de arcos e cordas produzidos por col legno, glissandos e outras técnicas... —— o coloca como um sucessor inconteste de Edgard Varèse e um precursor da evolução da música espectral a vigorar nos anos 70.

 
93                      Iannis Xenákis – Persephassa & Pléïades – Shiniti Ueno & Phonics Refléxion – (ALM Records, 2022)

O campo da percussão também foi por onde o compositor e arquiteto grego Iannis Xenákis explorou o uso da matemática para compor música inovadora. A começar pelas emblemáticas peças "Persephassa" e "Pléïades", consideradas peças emblemáticas dentro do repertório moderno para percussão. "Persephassa", concluída em 1969, é uma peça para seis percussionistas que explora o conceito de "arquitetura musical": Xenákis, arquiteto de formação, cria nessa peça estruturas sonoras que se assemelham a um ambiente espacial com os seis percussionistas envoltos da plateia ao centro, onde a dinâmica matemática da peça proporciona uma constante ebulição de polirrítmicos golpes percussivos que se reverberam sequencialmente em efeito cascata, inspirando-se em seus glissandos que ele tanto explora com as cordas dentro do seu distinto conceito de massa sonora. Já "Pléïades", composta em 1978, é uma obra para percussão em quatro partes executada por um único intérprete que toca uma série de instrumentos de percussão: marimba, xilofone, teclas e metalofones. "Pléïades" é uma peça que exemplifica o uso de estruturas estocásticas em termos composicionais, uma abordagem matemática que utiliza elementos aleatórios controlados, permitindo que a música se desenvolva de forma imprevisível e não linear, além de também ser uma peça que faz uso da microtonalidade na afinação desses instrumentos de percussão e inclui um cenário visual no qual os instrumentos são colocados em torno de um sistema de iluminação que é acionado durante a performance, criando uma experiência audiovisual sinestésica para o público. Neste álbum acima, gravado em 2022, temos leituras e interpretações frescas e virtuosas dessas peças a cargo do percussionista japonês Shiniti Ueno e seu ensemble de percussões Phonics Refléxion.

 
94                      Iannis Xenakis – Stéphanos Thomopoulos – L'Œuvre Pour Piano – The Piano Works – (Timpani Records, 2015)

Neste álbum acima, o pianista grego Stéphanos Thomopoulos, especialista na música para piano de Xenakis, vasculhou os arquivos raros do início da carreira do compositor para desenterrar algumas das suas primeiras peças pianísticas concluídas enquanto ele ainda estudava composição, isso entre anos de 1949 e 1952. As peças Six Chansons pour piano e Trois pièces inédites são, por exemplo, de uma fase bem inicial de Xenákis, quando ele ainda estava fascinado pelo ciclo de miniaturas, danças e canções de Bela Bartok: as peças mostram, claramente, um apego de Xenákis aos elementos das canções e do folclore que permearam sua origem grega-romena. Elevando o nível de modernidade do repertório, Thomopoulos também adiciona uma outra peça desse período inicial de Xenákis que é chamada Zyia e foi escrita para voz soprano, flauta e piano, a qual já traz cores dissonantes mais elevadas: a peça traça uma conexão entre atonalidade com certa influência do lied e elementos folclóricos modais, uma mistura belamente estranha de melodias modais, clusters graves e dissonantes, e padrões de ostinato baseados na sequência matemática de Fibonacci. A proposta de Thomopoulos, pois, é apresentar uma conexão dessas peças de início da carreira com as peças mais pontilhistas e contemporâneas do período mais maduro de Xenákis tais como as peças Herma, Evryali, Mists e A r.,"Hommage a Ravel". E no contexto geral do álbum, podemos considerar que Thomopoulos consegue realmente ser bem sucedido em sua intenção de nos mostrar que o ciclo de peças para piano de Xenákis oferece uma escondida conexão entre suas origens e suas explorações mais vanguardistas representadas pelos pontilhismos matemáticos, intervalares e reverberantes das décadas posteriores. O pianismo de Xenákis me soou um tanto revelador, aliás!

 
95                      Mauricio Kagel – Exotica – (Deutsche Grammophon, 1972)

Mauricio Kagel (1931-2008) foi um compositor, diretor e músico experimental argentino de origem judaica-russa que se destacou por suas contribuições precursoras nas interfaces entre música e teatro do absurdo, performances e multimídia, além das suas precursoras peças radiofônicas, eletroacústicas e etc. Nascido em Buenos Aires, Argentina, Kagel é de uma família de origem judaica russa que teve de se mudar da Rússia para a Argentina, fugindo das consequências da Revolução de Outubro, uma vez que seus pais eram adeptos a ideologias anarquistas em relação ao regime. Após ter estudado na Universidade de Buenos Aires, Kagel e sua família instalaram-se na Alemanha Ocidental, onde o compositor desenvolveu-se em um ambiente culturalmente diversificado, o que influenciou seu estilo musical eclético e experimental. Sua arte musical foi marcada sobretudo pela ironia, pela crítica, pelas citações (pastiches advindos do klezmer, tango, jazz e outras tradições), pelo humor circense, pelo cômico, pelo mistério, inspirações literárias na obra de Jorge Luís Borges e inspirações iniciais em elementos sul-americanos, além das suas incursões em música eletroacústica, improvisações livres, no Movimento Fluxus, no conceito do teatro do absurdo e outras idiossincrasias próprias. Toda essa bagagem de inspirações lhe permitiu mostrar algumas das mais originais peças da sua época, chegando a influenciar até mesmo compositores contemporâneos mais renomados como Karlheinz Stockhausen, Ligeti e Bruno Maderna e, posteriormente, John Zorn. Um exemplo desse seu molho de inspirações é este álbum acima, que registra sua peça Exotica, gravada em 1971. Composta para cerca de 200 "instrumentos não europeus", incluindo vocais, a peça foi encomendada para os Jogos Olímpicos de 1972 em Munique e teve suas apresentações sob a direção do próprio Kagel à frente de figuras renomadas da música de vanguarda da época tais como Vinko Globokar, Siegfried Palm, Christoph Caskel e Michel Portal, algumas dessas figuras associadas ao free jazz e à livre improvisação europeia. Cerca de 200 instrumentos —— incluindo sopros, cordas e percussão, objetos e outros apetrechos —— provenientes de várias partes do mundo, sendo alguns ainda desconhecidos na Europa, foram utilizados pelos seis participantes, expressando a intenção de Kagel de questionar a "dominância dos padrões da música europeia" e buscando novas formas de enfatizar a criação musical mais primordial e primitiva através de instrumentos não europeus e objetos simples do cotidiano. Essa peça é, portanto, uma das obras do espectro mais iconoclasta da música erudita moderna que já desafiava os conceitos de concepções e percepção da música europeia e do público europeu, e já prenunciava que a música erudita caminhava para direções totalmente multiculturais e pós-modernas.

 
96                       Mauricio Kagel Edition – Ensemble Modern - Vatieté – (Montaigne, 1992)

"Varieté" é uma das obras mais intrigantes e emblemáticas de Mauricio Kagel. Composta em 1976, a peça é frequentemente considerada um exemplo emblemático em como o compositor conseguiu misturar conceitos e elementos teatrais, visuais e musicais para criar uma experiência sonora e visual experimental na relação entre músicos, figurinistas, dançarinos, acrobatas e público, bem como na relação entre elementos multimídia, arte cênica, elementos teatrais e composição musical. A obra é inspirada pelos conceito do "théâtre trouvé" e do teatro de variedades, também conhecido como teatro de vaudeville nos EUA, onde as técnicas de interface entre música e teatro deram origem aos chamados "musicais". Só que nesta peça, Varieté, Kagel explora essa inspiração de uma forma amplamente experimental. Uma das características da peça é a sua estrutura não convencional marcada por uma série de cenas curtas e fragmentos, bem como o uso de uma variedade de técnicas e conceitos musicais, sequenciando e entrelaçando desde trechos melódicos tradicionais até sons experimentais e efeitos sonoros estendidos. Neste álbum de 1992, lançado pela Montaigne, temos o aclamado Ensemble Modern, de Frankfurt, Alemanha, dando sua versão musical para a peça. Chamada também de "Concerto-Espetáculo para Acrobatas e Músicos", Varieté foi estreada em 1977 em Metz, com apresentações cênicas que se seguiram-se em 1979 no Holland Festival, em Amsterdã, e no State Opera de Hamburgo, bem como em 1981 no Scala em Milão, aos poucos se tornando uma peça-chave do compositor. Já a gravação acima foi gestada por intermédio do 60º aniversário do próprio Kagel no Hebbel-Theater, ocasião onde o Ensemble Modern foi convocado para dar vida às encenações de "Variété" com direção teatral do dramaturgo e cineasta Werner Herzog, produção que foi um sucesso e posteriormente saiu em turnê com apresentações em Genebra, Essen, Paris e Estrasburgo. As encenações reúnem acrobatas profissionais, artistas de corda bamba e malabaristas, bem como números de mágica e sombras. No YouTube temos demonstrações dessa peça. Este álbum é apenas um dos álbuns da série Mauricio Kagel Edition que o Ensemble Modern dedicou ao compositor.

 
97                      Mauricio Kagel – Schönberg Ensemble & Reinbert de Leeuw – Die Stücke Der Windrose – (Winter & Winter, 2004)

A peça "Die Stücke der Windrose für Salonorchester" ("The Pieces of the Compass Rose for Salon Orchestra") é uma obra emblemática de Mauricio Kagel composta por uma série de oito peças independentes, cada uma delas representando um dos pontos cardeais: norte, nordeste, leste, sudeste, sul, sudoeste, oeste e noroeste. Cada movimento é uma miniatura musical que combina elementos de paródia, pastiche e sons experimentais, tendo como instrumento uma espécie de "salon orchestra", um tipo de formação musical que remete aos grupos musicais que tocavam em eventos sociais e salões na Europa do século XIX. Nesta peça Kagel inflexiona e retrabalha elementos de vários estilos musicais, incluindo valsas, polcas, marchas e outros gêneros populares da música de salão europeia, frequentemente subvertendo essas convenções através de reviravoltas experimentais e combinações inusuais. Como em várias peças de Kagel, o pastiche inflexionado pela ironia e pelo humor desempenha um papel importante nesta obra. Ademais espécie de experimento musical que reflete o caráter e a atmosfera associados à direção correspondente dos pontos cardeais em cada um dos movimentos da peça, explorando não apenas diferentes estilos e técnicas musicais, mas também evocando diretrizes geográficas e estilísticas em relação a cada um desses pontos cardeais. A peça "Südwesten", por exemplo, inspira-se em uma linha musical que vai do México à Nova Zelândia; "Norden" já é uma peça que explora que explora elementos da Sibéria e das tradições xamânicas; e "Westen" é focada na "africanização da América do Norte", onde houve o nascimento do blues e do jazz. A gravação e edição acima, lançada pela interessante etiqueta Winter & Winter, traz uma interpretação de Reinbert de Leeuw à frente do Schönberg Ensemble, de Amsterdam.


98                      Matthias Geuting – Musik für Orgel – Kagel, Otte, Schlothfeldt, Janson & Herchet – (Querstand, 2016)

Neste álbum, o organista Matthias Geuting sentou-se diante do grande òrgão da Igreja St. Peter, de Colônia, Alemanha, para dar sua interpretação para cinco peças de compositores modernos e contemporâneos as quais ele mesmo já vinha apresentando ao público em concertos nos anos de 2010 e 2011: a seleção inclui a peça Touches de Hans Otte, Couleurs Célestes de Erik Janson, Komposition 1 für orgel IV de Jorg Herchet, Bitter Crop de Matthias Schlothfeldt e Improvisation Ajoutée de Mauricio Kagel. Esse chamado Peter-Orgel da Igreja St. Peter, de Colônia, é um dos órgãos preferidos dos compositores contemporâneos na Alemanha por apresentar uma rica gama de recursos, timbres e ruídos que favorecem uma exploração mais expressionista, mais vanguardista, dentro dos termos de peças modernas para órgão. Cheguei a este álbum ao pesquisar mais sobre a peça Improvisation Ajoutée, de Kagel, a qual é sempre citada por John Zorn por ser a primeira das peças que lhe despertou para a música de vanguarda, ainda na adolescência, no início dos anos de 1970: e nesta interpretação que consta neste CD acima, o organista segue exatamente as anotações feitas por Kagel na partitura original de 1962, notações as quais orientam que se use gritos, tosses, palmas e assobios e outros ruídos em interações com o órgão. O CD acima foi lançado em 2015 pelo selo Querstand e oferece um interessante panorama de como o órgão tem sido abordado nas últimas décadas dentro do âmbito da corrente que os alemães chamam de Neue Musik. O CD vem um encarte que fornece informações resumidas sobre os profissionais envolvidos na gravação, informações sobre a Igreja de St. Peter e o histórico órgão ali instalado, além de notas resumidas escritas pelo próprio organista Matthias Geutin sobre os contextos e as particularidades de cada peça abordada.


99                      Cornelius Cardew – Treatise – QUaX Ensemble & Petr Kotik Live Prague 1967 – (Mode Records, 2009)

Tendo sido figura radical tanto artística quanto politicamente, tornando-se um ativista incansável em prol do pensamento marxista-leninista, o compositor inglês Cornelius Cardew (1936-1981) foi um dos principais experimentalistas a ditar os novos rumos da musica de vanguarda na Inglaterra, e na Europa como um todo, a partir dos anos de 1960. Suas influências iniciais centram-se na música serial de Darmstadt, na eletroacústica —— tendo sido assistente de estúdio de Stockhausen, inclusive... —— e nas idéias do aleatorismo e indeterminismo de John Cage e Morton Feldman, o que acabou levando-o a também explorar conceitos do free jazz e da livre improvisação europeia. Ainda anos de 1960 Cardew abandona as matemáticas técnicas de composição serial para centrar-se mesmo em explorar uma música experimental voltada totalmente ao acaso e aos conceitos de improvisação livre: nao é à toa, aliás, que em 1966 ele ingressa no AMM, um grupo londrino de improvisação livre composto por Keith Rowe na guitarra, Lou Gare no saxofone e Eddie Prévost na bateria. A peça registrada no álbum acima é um dos registros a documentar essa diretriz. "Treatise" está entre as peças mais importantes desse período experimental de Cornelius Cardew: a peça consiste numa partitura gráfica de 193 páginas em que a notação tradicional é substituída por uma série de desenhos, símbolos e sinais ideográficos, os quais desafiam os músicos a criar uma interpretação amplamente subjetiva e improvisativa através da relação entre imagens/simbolos e som/ruídos. Essa diretriz levaria Cardew a fundar sua experimental Scratch Orchestra, uma espécie de orquestra de ruídos e arranhões que ele fundou em 1969 junto com compositores e músicos como Michael Parsons e Howard Skempton, entre outros. No álbum duplo acima temos um registro histórico, então, com essa sua peça "Treatise" sendo interpretada em 1967 pelo QUaX Ensemble, de Praga, sendo, portanto, uma das primeiras gravações ao vivo dessa peça, senão a primeira. A instrumentação inclui voz, flauta, trombone, saxofone, piano e percussão. Ademais, é preciso frisar que o apego de CArdew às filosofias do socialismo o levaria questionar até mesmo as técnicas de composição serial de Darmstadt, as quais ele abandonou por considera-las muito elitistas e inacessíveis para o público mais amplo —— ele chegou até mesmo a escrever artigos criticando os seus próprios colegas que o tinham ajudado no início da carreira, video seu artigo "Stockhausen Serves Imperialism", entre outros... —— , algo que o levou a criar seus próprios modus operandis experimentais através das técnicas de música aleatória, improvisação livre, notação gráfica própria e a participação de pessoas leigas em suas performances.


100                     David Bedford & Cornelius Cardew – Two Poems for Chorus & The Great Learning – Echo 20/21 Series (Deutsche Grammophon, 2006)

Este álbum acima, da série "Echo 20/21" da Deutsche Grammophon, nos introduz em outra das obras conceituais importantes de Cornelius Cardew, que é o ciclo de peças experimentais que ele compôs para cada um dos sete parágrafos de The Great Learning de Confúcio, traduzido para o inglês por Ezra Pound. Cada peça é para uma instrumentação diferente: incluindo vocais, instrumentais e percussões e a participação de pessoas não treinadas em música, que é um outro aspecto da música experimental de Cardew: incluir a participação de pessoas não-musicais em suas peças. Composta entre 1968 e 1971, a peça é uma exploração profunda das intersecções entre os conceitos músicais próprios de Cardew, a ética e filosofia antiga do confucionismo e seus interesses em sociologia marxista e maoísta. Variando bastante em termos de formas e execução e permitindo diferentes níveis interacionais, as partes A e B da obra são para coro e solo, enquanto as partes C e D incluem instruções específicas para performances de grupo. Como já citado, uma outra característica distintiva de "The Great Learning" é a ênfase na participação coletiva e no engajamento dos músicos com o público: Cardew estava interessado em democratizar a música, tornando-a mais acessível e envolvente para um público mais amplo, incluindo músicos amadores e até pessoas leigas não-musicais. Essa abordagem se alinha com as visões políticas e sociais de Cardew, que acreditava que a música deveria ser uma ferramenta social para a conscientização. Além desses conceitos, a obra também inclui elementos de improvisação, permitindo que os músicos explorem variações dentro de parâmetros estabelecidos, criando um espaço para expressão individual, improvisação livre e experimentação coletiva, e refletindo novamente a abordagem democrática e participativa que Cardew procurou evidenciar sob influência das suas crenças marxistas. O álbum acima traz, então, a Scratch Orchestra de Cardew interpretando duas dessas suas peças relacionadas a dois dos parágrafos de The Great Learning, de Confúcio: o parágrafo 2 e o parágrafo 7 —— e ja é o suficiente para introduzir o ouvinte mais interessado na obra, considerando que o ciclo completo, com os sete parágrafos, está disposto numa partitura de sete páginas e duraria, ao todo, nove horas de execução. O álbum acima também traz Two Poems for Chorus (1967), peça que o compositor David Bedford, colega mais jovem de Cardew durante o período da Scratch Orchestra, compôs baseado em poemas de Kenneth Patchen: essas duas peças de Bedfor são interpretadas pela Northern German Radio Choir, de Hamburgo, e refletem as caracteristicas das obras vocais compostas no período pós-serialista por compositores como Luciano Berio, Ligeti e Xenakis.


101                    Free Improvisation – New Fonic Art 1973, Iskra 1903, Wired – (Deutsche Grammophon, 1974)

Na segunda metade dos anos de 1960 vários músicos europeus basearam-se no free jazz americano para criarem seus próprios conceitos de liberdade baseados na improvisação. Esse movimento deu luz ao fenômeno e ao gênero da "livre improvisação europeia", que já desenvolvia-se freneticamente sob seus próprios termos conceituais, muito deles embasados nas artes de vanguarda, nas performances dadaístas, nos happenings do Movimento Fluxus, no aleatorismo, na música indeterminista e etc. De certa forma, então, a livre improvisação começava a abraçar uma outra parcela de espectadores antenados nas artes de vanguarda, mas que não entendiam e/ou não se interessavam pelas complicadas composições seriais de Darmstadt: e não é à toa, como vimos nas resenhas acima, que até mesmo compositores acadêmicos como Iannis Xenákis e Cornelius Cardew abandonariam as técnicas seriais em prol de trabalhar experimentos e conceitos de vanguarda com mais liberdade, sob seus próprios termos. Cornelius Cardew, aliás, se revoltaria com o fato de que as técnicas seriais de composição, por mais legitimamente e matematicamente validadas que fossem, estariam levando a música para um certo elitismo em termos de academicismo e formação de público, sistematicamente afastando a musica do público mais leigo. Outros compositores eruditos experimentais, remanescentes do serialismo, compactuavam da mesma cisma e tomariam o mesmo rumo: casos de Vinko Globokar, Mauricio Kagel, Carlos Roqué Alsina, Jean-Pierre Drouet, entre outros. Essa movimentação foi logo percebida pela gravadora Deutsche Grammophon, que não tardou em registrar esse fenômeno do interesse crescente pela arte da livre improvisação. E o registro histórico é este acima. Trata-se de um disco triplo com três grupos e performances de improvisação livre captadas pela DG no início dos anos de 1970: a performance New Phonic Art teve um grupo francês com Vinko Globokar (trombone, alphorn), Carlos Roqué Alsina (piano), Jean-Pierre Drouet (percussão) e Michel Portal (clarinetes, saxofones, bandoneon) e foi captada no Polydor Studio em Paris, entre 25 e 26 de março de 1973; a performance Iskra 1903 apresenta um trio inglês que já vinha se apresentando sob os termos do Spontaneous Music Ensemble (vide as primeira gravações dos selos Incus e Emanem), tendo Derek Bailey (guitarras), Barry Guy (baixo) e Paul Rutherford (trombone) e tendo sido captada na Berlin Akademie der Künste, entre 21 a 24 de junho de 1973; e a terceira performance, intitulada Wired e fatiada em duas partes, traz um grupo alemão com Michael Ranta (discipúlo de Harry Partch) (na percussão, vocais e instrumentos artesanais de cordas dedilhadas), Karl-Heinz Böttner (flexatone, cítara, baixo elétrico, ocarina, idiofone, órgão Hammond, guitarras e etc) e Mike Lewis (vocais, órgão Hammond e percussão), tendo sido captada em 28 de abril de 1970 no Rhenus Studio, em Godorf, e entre 5 e 8 de março de 1973 em Hannover-Langenhagen. As duas fatias de Wired foram, inclusive, mixadas pelo célebre produtor e engenheiro de som Conny Plank, responsável por histórias gravações de bandas do krautrock e da cena underground alemã tais como Kraftwerk, Neu!, Cluster, Ash Ra Tempel, Can, Deutsch Amerikanische Freundschaft, dentre outras. Álbum essencial que registra essa conexão de conceitos eruditos com a livre improvisação advinda do free jazz.


102                     Vinko Globokar – Einsenberg, Airs de voyages vers l'intérieur, Labour – (Col Legno, 1998)

O compositor e trombonista Vinko Globokar é um renomado compositor, trombonista, maestro, improvisador e artista sonoro nascido em 7 de julho de 1934, em Anderny, França. De origem eslovena, ele é conhecido por ter sido um dos ases da improvisação livre europeia e por sua abordagem inovadora na música contemporânea das décadas de 70, 80 e 90, frequentemente desafiando as fronteiras tradicionais da composição e da performance musical através de novas experimentações sonoras, processos interacionais únicos, o uso de improvisações livres com predileção por técnicas estendidas, o uso expandido dos timbres e a exploração de temas sociais e políticos. Neste álbum cima temos três peças escritas e elaboradas por Globokar. "Eisenberg" para 16 músicos, composta por Globokar em 1990, é interpretada aqui pelo University of Illinois New Music Ensemble: nessa peça, grande parte da música é criada pelos próprios intérpretes —— incluindo tons, ritmos, ruídos, textos cantados, melodias entoadas, etc... ——, de forma que o compositor apenas prescreve uma estrutura formal a ser "preenchida" com sons pelos músicos de acordo com algumas regras sugeridas. Já a peça Labour for symphony orchestra (1992) explora a temática do "arado", do trabalho: o compositor sugere aqui uma abordagem mais subjetiva com "o desdobramento de um vasto caos dentro do qual objetos ou paisagens reconhecíveis podem ser vislumbrados como se iluminados por relâmpagos". Segue-se a peça Airs de voyages vers l'intérieur (para oito vocalistas, clarinete and trombone, de 1972, com o próprio Globokar no trombone e Michel Portal no clarinete), uma peça claramente influenciada pelo período do auge da livre improvisação onde os intérpretes são levados aos seus respectivos limites e obrigados a reagir uns aos outros. Ademais, vale lembrar que Vinko Globokar tem não apenas um obra composicional instigante, mas também goza de admirável competência como improvisador e instrumentista: considerado um dos desbravadores do trombone, ele estreou várias peças inéditas compostas exclusivamente para ele por compositores como Luciano Berio , Mauricio Kagel, René Leibowitz, Karlheinz Stockhausen e Toru Takemitsu, entre outros.


103                                     Frank Zappa & Abnuceals Emuukha Electric Symphony Orchestra & Chorus - Lumpy Gravy (Capitol/ Verve,1968).
Até que se prove o contrário Lumpy Gravy foi o primeiro registro —— ao lado da peça "Sinfonia" de Berio —— a mostrar o uso da colagem de samples de forma experimental e extensiva —— algo que John Zorn, por exemplo, também faria duas décadas mais tarde no álbum The Big Gundown (Nonesuch, 1986) ao criar uma estupenda peça de colagem usando recortes das trilhas sonoras de Ennio Morricone. O fato é que Lumpy Gravy é um álbum imprescindível para entender não apenas a curiosa predileção de Zappa, um roqueiro, pela música erudita, mas é um álbum também imprescindível para entender o uso da colagem na música, sendo um dos álbuns precursores da ecleticidade pósmoderna que viria a seguir. Lumpy Gravy é, também, o primeiro disco solo de Zappa, que na época era guitarrista e líder da banda de rock The Mothers of Inventions. O material é composto por peças experimentais que intercalam passagens orquestrais com diálogos surreais gravados dentro da caixa de ressonância do piano e efeitos radiofônicos com colagens através de uma grande variedade de recortes. Sendo um álbum de essência orquestral, há influências e recortes com quase tudo o que se podia imaginar até à época: jazz, rock, músicas tradicionais, improvisações livres, efeitos eletroacústicos, música erudita moderna, blues, música africana e etc. Como naturalmente não encontraria nenhum comissionamento e nenhum apoio no meio sinfônico para um tipo de peça tão experimental, Zappa decide ele mesmo se encarregar, de forma independente e sob seus próprios termos, de compor, produzir e formar uma orquestra interdisciplinar. Para a empreitada, Zappa reuniu em Los Angeles uma grande variedades de músicos eruditos, músicos do jazz e personalidades do rock, nomeando o conjunto de Abnuceals Emuukha Electric Symphony Orchestra. Particularmente, considero este álbum um dos emblema imprescindíveis  a fundar a música dita pós-moderna! Um registro muito à frente do seu tempo! 


104                     Luciano Berio, The Swingle Singers & New York Philharmonic – Sinfonia (Columbia Masterworks, 1969).

"Sinfonia" é um marco da contracultura no meio sinfônico por exprimir o espírito dos ideários, das lutas e revoluções dos anos de 1960. A obra constituí-se de cinco movimentos organizados numa estrutura totalmente herege em relação aos padrões da sinfonia clássica, os quais reunem um conjunto de material que é nada menos do que uma síntese das muitas expressões artísticas e filosóficas evidenciadas até então, englobando partes recitadas em línguas como francês, italiano, inglês e alemão. O primeiro movimento traz um coral solene com uma melodia que nos remente à uma antiga missa religiosa salpicada por palavras faladas e pequenos fragmentos do livro "O Cru e o Cozido" (Le Cru et le cuit ), estudo que o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss escreveu baseado nos índios brasileiros. O segundo movimento, "O King", é dedicado totalmente à memória de Martin Luther King, morto em abril daquele ano de 1968: esse movimento consiste em um coral solene que repete sempre as mesmas notas ao fundo (em intervalos de terça e quarta), enquanto o piano acrescenta ecos de notas destacadas na superfície. O terceiro movimento é mais uma composição "montada" do que escrita, é o emblemático ponto que representa a técnica da "colagem" a partir de diversas citações de excertos de obras de compositores como Debussy, Ravel, Stravinsky, Schoenberg, Webern, Brahms, Pousseur, Hindemith e até Boulez e Stockausen, com maior destaque para as citações da Sinfonia Nº 2 de Mahler, enquanto as palavras e fragmentos literários foram recortados de romance "O Inominável" de Samuel Beckett, incluindo referências a James Joyce, frases faladas pelos graduandos de Harvard, slogans escritos pelos estudantes nas paredes da Sorbonne durante a Revolução de Maio de 1968 em Paris e palavras do próprio compositor. Os outros dois movimentos, o quarto e o quinto, são como “coda” e “finale”, respectivamente. "Sinfonia" é, enfim, o resultado expressivo de todas as influências —— literárias, sociais, filosóficas, linguísticas, estéticas e etc —— pelas quais Luciano Berio foi imerso em sua fase de mudança de Paris para Nova Iorque, incluindo seu fascínio pelo jazz, que na época já estava numa fase mais vanguardista. Considero esta peça —— junto a Lumpy Gravy de Zappa, entre outras... ——  como uma obra emblemática a inaugurar a pósmodernidade na música!


105                    Krzysztof Penderecki - Orchestral Works - Threnody (1961), Anaklasis (1959), De Natura Sonoris No. 1 & 2 (1966/ 71), Symphony No. 1 (1973), Capricio for Violin (1967),  Cello Concerto No. 1 (1972) e etc – (EMI/ Warner, 2007).

O compositor polonês Krzysztof Penderecki é um verdadeiro emblema da música moderna do pós-Guerra, tendo exacerbado as influencias deixadas por Webern, Mahler e Shostakovich e tendo variado bastante sua obra com vocais de teor religioso, tons sombrios de horror e técnicas experimentais e inovadoras. Suas peças da segunda metade dos anos 50 até início dos anos 70 evocaria, em muitos momentos, a visão de territórios devastados e do clima sombrio que a Segunda Guerra Mundial deixou na Europa e no restante do mundo. Nessa fase, sua música, pois, captura esse terror soando sombria, dissonante, muitas vezes atonal, com um uso muito inteligente de timbres, texturas, sobreposições, politonalidades, efeitos e técnicas estendidas com enormes orquestras de cordas. É o caso da peça "Threnody to the Victims of Hiroshima" 52 instrumentos de cordas (1961), que traz uma carga emocional sombria e ao mesmo tempo consternadora dedicada às vítimas da bomba nuclear que os EUA jogou sobre a cidade de Hiroshima, no Japão. Já sua peça Anaklasis, foi combosta estruturalmente a partir do uso de uma métrica empregada pelos poetas gregos e é uma peça precursora desse uso das técnicas estendidas com orquestra de cordas: a peça trabalha texturas e sobreposições de clusters atonais em quartos de tom atraves de inteligentes apliques de harmônicos, glissandos, ponticellos, abafamento na saída de som, vibratos irregulares, entre outras técnicas inusuais. O álbum acima também nos traz as duas partes "De Natura Sonoris", inspirada pela obra "De rerum natura" do poeta grego Lucrécio: para além dos sombreamentos dissonantes, das dinâmicas experimentais, do tom sombrio e das passagens cheias de efeitos produzidos pelos arcos sobre as cordas, Penderecki usa até barras de ferros, serrotes e martelos para criar efeitos contrastantes —— não à toa, essas peças seriam usadas até no filme de terror "O Iluminado", de Stanley Kubrick. Ademais este álbum compilativo acima segue com outras peças precursoras e inovadoras dessa fase hiper criativa de Penderecki: Capricio for Violin (1967), Cello Concerto No. 1 (1972), Symphony No. 1 (1973), a obra para coral Canticum Canticorum Salomonis (1973), The Dream of Jacob (1974) para grande orquestra, Fonogrammi para flauta e orquestra de câmera (1961), Partita para harpsichord, guitarra elétrica, guitarra baixo, harpa, contrabaixo e orchestra (1971/ 1991), e Emanations (1959) para duas orquestras de cordas afinadas com um semiton de diferença.


106                    Krzysztof Penderecki - Antoni Wit & Warsaw National Philharmonic & Choir - Te Deum (1979), Polymorphia (1961), Hymne an den heiligen Daniel (1997), Chaconne (2005) – (Naxos, 2007).

Os álbuns lançados pelo maestro polonês Antoni Wit, diretor artístico da Orquestra Sinfônica da Rádio Nacional Polonesa e da Orquestra Filarmônica Nacional de Varsóvia entre 2002 e 2013, são documentos sonoros imprescindíveis quando se trata das composições de Penderecki. Isso porque nos anos de 1960 Antoni Wit estudou e nutriu amizade com o próprio Penderecki (antes de ir estudar com Nadia Boulanger), captando muitas das intenções estéticas do mestre. Neste álbum acima, Wit dá sua leitura para a emblemática peça Polymorphia para 48 instrumentos de cordas (1961), uma peça que representa uma extensão das formas e experimentações politonais que Penderecki usou em "Threnody to the Victims of Hiroshima". Ao buscar criar novas texturas, sonoridades sombrias, sombreamentos a partir de sobreposições de clusters de tons sobre cordas, usos incomuns das articulações de arco, sobreposições de naipes com afinações conflitantes, entre outros experimentos, Penderecki acaba por criar uma notação gráfica totalmente inusual e pessoal em suas partituras, expandindo, também, as formas estruturantes de composição: daí o nome Polymorphia (poli = muitas/ morphia = formas). Como contraste, Antoni Wit também nos traz as peças para coro de vozes "Te Deum" (1979), que Penderecki escreveu inspirado pela unção de Karol Wojtyla como o primeiro papa polonês em 1978 (o Papa João Paulo II), e "Hymne an den heiligen Daniel" (1997), peças que já trazem um tom mais majestoso e esperançoso e se distanciam, portanto, daquele dissonante tom sombrio de outrora. O álbum fecha com a inédita e expressiva Chaconne (2005), peça neobarroca dedicada ao então falecimento do Papa João Paulo II.


107                    Krzysztof Penderecki - Antoni Wit & Polish National Radio Symphony Orchestra – (Naxos, 2003).

A Paixão Segundo São Lucas (1965) é uma das suas obras mais importantes e reconhecidas de Penderecki, uma das peças para vozes e coral mais executadas em todo o mundo. Isso porque o poderoso organismo da peça cheio de técnicas e conceitos variados, o tom religioso imagético e meditativo e o caráter subversivo das suas harmonias são características que precederam a reputação dessa peça quando a Rússia ainda impunha seu "Ateísmo de Estado" para a organização clerical na então República Popular da Polônia, um regime que censurava não apenas a liberdade de culto religioso, mas também censurava a liberdade de execução de peças musicais de cunho religioso. Penderecki, contudo, escolheria justamente suas peças de cunho religioso para ser subversivo e confrontar o regime soviético que cerceava a liberdade em seu país! A peça reúne séries dodecafônicas, canto gregoriano, partes narradas, polifonias medievais e barrocas, politonalidades (varios tons sobre tons diferentes), micropolifonia (técnica para sobrepor, contrapor e contrastar texturas vocais), variações a partir de cantus firmus, solos vocais (com soprano, barítono e baixo), o uso do criptograma de B-A-C-H —— que corresponde à sequência de notas B (B♭ ) – A – C – H (B♮), em referência ao compositor barroco Johann Sebastian Bach —— e o uso de muitas técnicas estendidas, incluindo gritar, falar, rir e assobiar. Qualquer entusiasta de música moderna e contemporânea, gostando de abordagens vocais ou não, precisa passar obrigatoriamente por esta peça de Penderecki!


108                    Krzysztof Penderecki - Violin Concertos No.1 & 2 - Konstanty Kulka & Chee-Yun w/ Antoni Wit & Polish National Radio Symphony Orchestra – (Naxos, 2003).

Os concertos para violino de Penderecki são importantes para compreender como que o compositor sai, gradativamente, daquele atonalismo sombrio para uma fase mais neoromântica. E o faz sem nenhum demérito ao seu histórico modernismo anterior, uma vez que nessa transição ele até amplia suas expressividades e passa a ser um exemplo seminal em como criar contrates entre cores tonais e sombreamentos dissonantes. O Concerto de Violino No. 1, foi escrito em entre 1976 e 77 (e revisado em 1987) para ser dedicado ao violinista americano Isaac Stern, e já evidencia um Penderecki equilibrando ecos do romantismo tardio com este seu tão característico atonalismo sombrio, trabalhando como poucos as potencialidades expressivas do violino, das cordas e da orquestra como um todo. Já o segundo concerto —— escrito quase duas décadas depois, em 1994, sendo dedicado à célebre violinista alemã Anne-Sophie Mutter —— é uma peça onde Penderecki continua com seu tom neorromântico misterioso, só que de uma forma mais sensível e introspectiva em termos orquestrais, sem os espasmos assustadores do primeiro concerto. O primeiro concerto é interpretado pelo violinista polonês Konstanty Kulka. O segundo concerto é interpretado pela violinista sul-coreana Chee-Yun. Este álbum, pois, é interessante porque as interpretações são admiraveis e porque Antoni Wit reúne os dois concertos num só álbum, nos permitindo ter um melhor panorama.


109                    Pierre-Laurent Aimard – György Ligeti Edition 3: Works for Piano – Etudes - Musica Ricercata – (Sony Classical, 1996-98).

György Ligeti foi um dos compositores modernos mais versáteis, um dos compositores que mais transitaram por variadas vias de expressão, sistematicamente adotando uma guinada evolutiva gradual e progressiva: das danças e canções húngaras e romenas para peças atonais e abstratas embebecidas pela influência dodecafônica, da música para piano simples às polifonias mais complexas, das peças mais didáticas até suas peças mais complexas e experimentações que extrapolam a mecanicidade das polirritmias (como em Poème Symphonique For 100 Metronomes, de 1962), e assim por diante. E um dos ciclos de obras modernas mais importantes para piano são os ciclos de peças e estudos de Ligeti. Dentro da evolução da música erudita moderna, podemos até supor que Ligeti pode ser considerado o compositor húngaro que transcendeu absurdamente as influências e os conceitos deixados por seus antecessores: o romântico Franz Liszt e o moderno Bela Bartok. A música para piano de Ligeti inicia, pois, baseando-se muito nos ciclos nacionalistas de Bartok. O emblemático ciclo de peças que Ligeti chamou de Musica Ricercata (1953) é uma clara extensão do ciclo Mikrokosmos de Bartok e adota uma progressividade gradual que vai da simplicidade para a complexidade: composto por onze peças ao todo, essa obra inicia-se utilizando exclusivamente uma nota Lá em múltiplas oitavas e uma nota Ré no final da peça, evoluindo para uma segunda peça usando três notas (E♯, F♯ e G), uma terceira peça com quatro notas, e assim por diante, de modo que na peça final usa-se todas as doze notas da escala cromática. Ainda nos anos de 1950, Ligeti também explorará extensivamente o cromatismo, o uso de clusters e caminhará gradualmente em direção da poliritmia, vide peças como "Música para Dois Pianos" (1950-1951) e "Automne à Varsovie" (1950). Nas próximas décadas, em paralelo aos seus experimentos com eletroacústica e o uso de massas orquestrais densas, Ligeti continuará a explorar o piano, indo em direção ao seu emblemático "Estudos para Piano": esse ciclo de peças, escritas entre 1985 e 2001, explora uma ampla gama de técnicas pianísticas inovadoras, com cada estudo se concentrando em um conjunto específico de desafios técnicos e expressivos tais como estudos intervalares, sincopes complexas, polirritmias, glissandos, acordes de alta velocidade, polifonias e etc. Parte dessas peças pianístiacas pode, pois, ser ouvida no terceiro volume deste conjunto compilativo chamado György Ligeti Edition, lançado em sete volumes pela Sony Classical entre 1996 e 1998. Essa coletânea da Sony ainda aborda outras formações e abordagens instrumentais: o volume primeiro aborda quartetos de cordas e duetos, o segundo volume aborda obras para canto coral acappela, o quarto volume aborda outras obras para voz, o quinto volume inclui sua emblemática peça Poème Symphonique For 100 Metronomes (1962) e aborda suas experimentações mais complexas com a mecanicidade das poliritmias, o sexto volume explora um panorama geral das peças para teclado incluindo peças da sua fase mais nacionalista e suas altamente dramáticas peças para órgão, e o sétimo volume explora suas peças para conjuntos de câmera em formações instrumentais variadas.


110                     György Ligeti  Berliner Philharmoniker, Jonathan Nott – The Ligeti Project II: Lontano / Atmosphères / Apparitions / San Francisco Polyphony / Concert Românesc – (Teldec, 2002).

Ligeti foi um inovador inconteste da música erudita moderna e ficou amplamente popular pelo uso de partes das suas peças como trilhas sonoras de filmes. Depois de uma fase em que esteve sob os olhares e julgamentos comunistas e nacionalistas húngaros, Ligeti imigrou-se para a Áustria e gradualmente estudou as series harmônicas dodecafônicas e começou a explorar a atonalidade em sua música, chegando a ser uma figura chave em Darmstadt. Mas Ligeti, ao invés de ter aderido totalmente à sistemática rigidez do serialismo integral, explorou a atonalidade de uma forma muito pessoal e especial. Essa faceta se reflete melhormente em sua música orquestral. As peças orquestrais de Ligeti são conhecidas por terem inovado enormemente os campos da polifonia moderna e das massas texturais densas, com muitas dessas texturas orquestrais sendo dotadas de certo imagetismo futurista e sendo usadas, portanto, em trilhas sonoras de filmes de terror e ficção científica: o caso mais emblemático, por exemplo, é o uso da sua música no filme "2001: Uma Odisseia no Espaço" (1968), do cineata Stanley Kubrick. E este box compilativo lançado com 5 CD's pela Teldec já enfatizará, então, todo um conjunto de inovadoras peças orquestrais de Ligeti que exploram essas novas direções. A coletânea inicia com o Chamber Concerto (For Thirteen Instrumentalists) de 1970: uma obra onde Ligeti faz uso da técnica da "micropolifonia", na qual várias vozes individuais dentro dos naipes atuam em texturas e linhas melódicas independentes, criando uma sensação de constante transformação e multi-fluxo na música. Segue-se a emblemática peça Atmosphères, composta em 1961 e usada no filme "2001: Uma Odisséia no Espaço" de Stanley Kubrick, onde Ligeti faz uso de agrupamentos absurdamente cromáticos nas sobreposições dos naipes da orquestra, criando uma massa sonora densa, dissonante e dramaticamente imagética. Depois segue-se Ramifications (1968–69): uma peça para um conjunto de cordas com doze integrantes —— sete violinos, duas violas, dois violoncelos e um contrabaixo ——, sendo que esses dozes músicos são divididos em dois grupos numericamente iguais com cada grupo tendo seus instrumentos sendo afinados um quarto de tom mais alto em relação ao outro grupo, criando um inovador efeito timbrístico e espectral. Ademais, este box também englobará um conjunto de peças concertantes, incluindo seu Concerto para Violoncelo (1966), o seu Concerto para Violino (1989-93) e seu Concerto para Piano (1980-88), peças também encontradas no álbum abaixo. Importante frisar que nessas peças concertantes, Ligeti muda completamente os parâmetros dantes estabelecidos para o solista e para a orquestra que o acompanha. O Concerto para Cello, por exemplo, é considerado um "anti-concerto" por tirar a finalidade dos solos virtuosísticos do violoncelista para colocá-lo dentro de um contexto mais textural: alguns excertos dessa peça concertante foram, inclusive, usados em vários filmes por vários cineastas como Michael Mann, Gordon Clark e Sophie Fiennes. Enquanto seus concertos para violino e piano já representam sua fase tardia, onde o compositor dissocia-se das peças ambientadas no avant-garde para voltar-se às suas origens húngaras e romenas, passando a ressignificar vários fragmentos e misturar vários dos elementos da sua bagagem musical, adotando uma postura mais ecleticamente pós-moderna. No caso do seu Violino Concerto, essa peça usa variações adaptadas da terceira de suas Seis Bagatelas para Quinteto de Sopros e insere o violino dentre uma gama de misturas de recortes e elementos que vão desde elementos do avant-garde até formas melódicas tradicionais, passando por microtonalidade, inovadoras texturas sobrepostas, melodias e danças folclóricas (húngaras, búlgaros, romenas), música medieval e renascentista, sistemas alternativos de afinação, entre outras idiossincrasias. Já em seu Piano Concerto, Ligeti adota uma diretriz rítmica ainda mais iconoclasta, partindo do uso da técnica polimérica usada no primeiro estudo Désordre do seu ciclo de Estudos para Piano, usando rítmicas aksak (geralmente uma rítmica em 16/4), usando duas fórmulas de compasso sobrepostas (4/4 e 12/8), inspirando-se em imagens de fractais geradas por computador no quarto movimento, e usando três compassos em métricas diferentes simultaneamente sobrepostos no quinto movimento.


111                    Boulez Conducts Ligeti  Jean-Guihen Queyras  Saschko Gawriloff  Pierre-Laurent Aimard  Ensemble InterContemporain – Concertos For Cello · Violin · Piano – (Deutsche Grammophon, 1994).

O foco neste álbum acima é a première do Concerto para Violino de Ligeti. As outras duas peças —— o Concerto para Piano e Orquestra (1985-88) e o Concerto para Violoncelo e Orchestra (1966) —— podem ser encontradas na compilação György Ligeti Edition (Sony). Nesse seu Violin Concerto, Ligeti nos apresenta uma espécie de mosaico com vários "recortes" e "colagens" de elementos da modernidade do século XX e dos adereços que perfazem sua identidade: tonalidades, atonalidades, desafinações microtonais, música pontilista, polirritmias, justaposições inusitadas, adereços do folclore húngaro, melodias búlgaras, pastiches, passagens em referência à música medieval e renascentista, referências a outras das suas próprias peças e passagens de violino solo que vai do lento e suave ao rápido e cacofônico, com espaçamentos conceituais de espasmos e silêncios, além de um conjunto de instrumento de percussão verdadeiramente rico. Na época em que Ligeti compôs seu Concerto para Violino, no início dos anos 90, ele estava interessado em explorar efeitos de harmônicos e formas alternativas de afinação microtonal: tanto que aqui ele pede que os violinos e as violas da orquestra se desafinem em relação às afinações padrão, e afinem suas cordas na harmonia natural do contrabaixo. O segundo movimento traz referências da terceira de suas Seis Bagatelles para Quinteto de Madeiras, mas aqui com duas oitavas abaixo e com variações reformuladas orquestralmente. A peça —— revista e reformulada algumas vezes até alcançar sua forma definitiva —— foi dedicada ao violinista Saschko Gawriloff, que aqui apresenta a premiére histórica, em 1993, ao lado do Ensemble InterContemporain conduzido por Pierre Boulez. Eu apresento aqui este registro por sua relevância histórica, mas o ouvinte mais curioso poderá ter acesso a outras versões ainda melhores, como no terceiro volume do box compilativo The Ligeti Project (Teldec), onde este concerto é interpretado por Frank Peter Zimmerman ao lado do ASKO Ensemble regido pelo maestro Reinbert de Leeuw. Importante notar que, tanto na versão Gawriloff com o Ensemble InterContemporain como na versão de Zimmerman com o ASKO Ensemble, estamos falando de ensembles especializados estritamente em música moderna. Uma outra curiosidade é o fato de Ligeti ter usado excertos dos movimentos inacabados para compor a cadência final do quinto e último movimento —— as primeiras escrituras do concerto haviam sido elaboradas para finalizar a obra em oito movimentos, os quais alguns ficaram inacabados e o compositor acabou por finalizar a peça com cinco movimentos. Contudo, como a cadência é um espaço que o compositor deixa em aberto para a inserção de improvisos e criações terceiras, outros compositores tais como Thomas Adès e John Zorn compuseram cadências para este concerto. Interessante!


112                    Luigi Nono  Staatsoper Stuttgart & Bernhard Kontarsky – Intolleranza 1960  (Warner/ Teldec, 1995).

Figura seminal de Darmstadt e do movimento comunista, o italiano Luigi Nono foi o compositor da vanguarda erudita que mais associou o modernismo musical com a temática da crítica social em grande nível de profundidade, aliando temáticas de conscientização com um aprofundamento musical repleto de sentimento —— e isso foi notável, pois Nono pegou esse viés logo enquanto seus colegas, Boulez e Stockhausen e outros, levavam o dodecafonismo para a frieza das técnicas do serialismo integral onde já inexistiam elementos morais e sentimentais. Fascinado pelo canto, suas primeiras obras tenderam, então, a aliar sua profunda crítica social com o atonalismo serial em expressões dramáticas de teatro musical: ele achava a concepção dominante do gênero "ópera" como uma concepção burguesa-elitista e preferia os termos "teatro" ou "aziona scenica" (acão de palco). E essa obra "Intolleranza 1960" pode ser visto como o ápice dessa estética inicial do compositor. Composta num formato totalmente disforme em relação a ópera clássica, a trama aborda a situação de um emigrante imerso em diversos cenários relevantes para a sociedade capitalista moderna: exploração da classe trabalhadora, manifestações de rua, prisão política e tortura, internamento em campo de concentração, refúgio e abandono. Descrito, então, como uma "aziona scenica" (acão de palco) —— Nono proibiu, como já mencionado, que a peça recebesse o título de "ópera" ——, a peça utiliza uma variedade de recursos conjurados, desde uma grande orquestra, coro, fita e alto-falantes até a técnica da "lanterna mágica" inspirada nas práticas teatrais de Meyerhold e Mayakovsky dos anos 1920 para formar um rico drama expressionista. O libreto de Angelo Ripellino consiste em slogans políticos, poemas e citações de Paul Eluard, Henri Alleg (nacionalista argelino), Mayaskovsky, Brecht e Sartre, entre outros, elementos de oralidade os quais se juntam com a música expressionista e lamuriosa de Nono para, assim, alardear o fulminante protesto anti-capitalista que o compositor pretendia comunicar. Não foi à toa que a estreia em Veneza tenha sido marcada por tumulto entre contentes e descontentes e facções políticas de esquerda e direita na plateia. Neonazistas tentaram interromper o evento com bombas de mau cheiro, mas não conseguiram impedir o triunfo da apresentação da peça, que entrou para a história como mais uma das obras de arte a causar escândalo. A obra é dedicada a Schoenberg e foi estreada no 24º Festival Internacional de Música Contemporânea no Teatro La Fenice, em Veneza, em 13 de abril de 1961, regida por Bruno Maderna. A première foi um escândalo, mas trata-se de uma das obras mais importantes do pós-Segunda Guerra Mundial, sendo considerado por críticos como um "protesto flamejante contra a intolerância e a opressão". Pensei em resenhar a emblemática gravação da Il canto sospeso (1956) com Claudio Abbado —— obra que inaugura esse estilo de "avant-garde comunista" de Nono, e que menciono aqui como uma indicação importante ao leitor ——, mas achei esta obra acima, registrada pelo Coro da Ópera de Stuttgart e a Orquestra Estadual de Stuttgart sob direção de Bernhard Kontarsky, mais madura e luminosa. Este álbum foi reeditado pela Warner como parte de sua Coleção de Ópera do selo Teldec.


113                    Luigi Nono  Maurizio Pollini, Slavka Taskova, Nino Antonellini, Claudio Abbado – Como Una Ola De Fuerza Y Luz / . . . Sofferte Onde Serene . . . / Contrappunto Dialettico Alla Mente – (Deutsche Grammophon, 1988).

Achei interessante indicar este álbum, facilmente acessível no Spotify, pelo caráter cada vez mais profundo e meditativo que as obras de Luigi Nono foram alcançado com o passar dos anos, mesmo em peças preponderantemente atonais e eletroacústicas. Este álbum é uma compilação de três obras compostas por Nono nos anos de 1970. Trata-se de remasterizações compactadas no então novo formado do CD, uma produção do selo alemão Deutsche Grammophon lançada em 1988. Sendo um dos pioneiros das aplicações eletroacústicas, Luigi Nono está à frente da produção sonora de todas as três peças, cujas gravações das fitas magnéticas foram feitas por ele mesmo no Studio de phonologie da R.A.I de Milão.A primeira obra, "Como una ola de fuerza y luz", composta de setembro de 1971 a fevereiro de 1972, é uma peça para soprano solo, piano, orquestra e fita magnética, com duração de 30 minutos: a obra foi dedicada ao pianista Maurizio Polini, seu amigo de longas conversas comunistas, e idealizada em dedicação ao ativista de esquerda chileno Luciano Cruz, um dos jovens líderes do Movimento da Esquerda Revolucionária. A peça foi originalmente gravada em 1974 pela DG com Claudio Abbado, amigo fiel do compositor, conduzindo a ótima Orquestra Sinfônica da Rádio Bavária ao lado da Slavka Taskova, soprano (cantora favorita do compositor), e Maurizio Polini ao piano. Já a segunda obra, "…… sofferte onde serene…" (1976), para piano e fita magnética foi escrita por Nono para o pianista Maurizio Pollini e foi dedicada à sua esposa, aqui num registro de 1979. E, por fim, a terceira obra, "Contrappunto dialettico alla mente" (1968), é uma peça dos seus tempos de pesquisas eletroacústicas escrita para fita magnética e voz, com Liliana Poli como solista principal e as vozes adicionais de Cadigia Bove, Marisa Mazzoni, Elena Vicini e Umberto Troni, bem como com o Coro da Camera Della RAI dirigido por Nino Antonellini, aqui num registro de 1970. Essas três peças oferecem um panorama diversificado da obra de Luigi Nono, variando de uma obra para soprano, piano e orquestra, a uma peça solo para piano com fita magnética, e uma obra para fita magnética e vozes. Cada uma apresenta características únicas do estilo de Luigi Nono, desde texturas densas e atmosféricas até momentos de intensidade dramática, sem nos deixar esquecer da sua profundidade meditativa.


114                    Tōru Takemitsu  Seiji Ozawa & Toronto Symphony – Asterism / Requiem / Green / The Dorian Horizon – (RCA, 1969).

O prolífico compositor japonês Tōru Takemitsu (1930-1996) foi uma das grandes mentes do gênero erudito, além de grande compositor de trilhas sonoras incidentais para o cinema. Inicialmente, sua obra se destaca por usar elementos da música clássica e tradicional japonesa em aplicações de música moderna serialista, com uma habilidade inconteste em criar efeitos, combinar timbres e trabalhar com aplicações conceituais do silêncio através de conceitos e filosofias do Zen-Budismo. Mas Takemitsu, em muitos momentos, será um vanguardista a trabalhar com uma infinidade de formas e inspirações e seguirá na contramão da vanguarda de Darmstadt para justamente resgatar o que ele via como "sensualidade perdida" dentro da música de vanguarda. Numa entrevista de 1988 para o New York Times, Takemitsu explica a dubiedade da sua obra da seguinte forma: "As a composer, I have my own tastes and my own feelings. I think, for instance, that in the 1950's and 1960's, Western music grew too intellectual. Composers like Stockhausen, Berio and Nono made some interesting experiments, and they did many good things. But at the same time, composers began thinking about sound only in terms of its function, and in the process music lost its sensuality". Pois este álbum acima captura um pouco desses contrastes a partir de algumas das suas obras mais seminais. O álbum começa com a peça "Asterism" para piano e orquestra (1969), uma peça serialista onde se inspira nas estrelas e cria vários efeitos cacofônicos cintilantes e incidentais para evoar as constelações no espaço. Depois segue-se com o seu famoso Requiem (1957) para orquestra de cordas, peça com a qual Takemitsu, aos 27 anos, chamou a atenção da comunidade internacional no final dos anos de 1950: a peça foi dedicada à memória de seu amigo, o compositor de trilhas sonoras Fumio Hoyasaka e logo lhe rendeu seguidas encomendas de várias orquestras européias e americanas, sendo que muito desse sucesso pode ser creditado aos elogios feitos por Stravinsky, que ouviu a peça durante sua turnê no Japão em 1959 e logo ficou surpreendido pela combinação de densidade sonora, profundidade e a tal da "sensualidade" que o pequeno Takemitsu conseguia maravilhosamente evocar. O álbum segue com a peça "Green For Orchestra - November Steps II" (1967), que é uma obra onde Takemitsu cria um encontro da inspiração que os jardins japoneses lhe provocava com tons e ecos timbrísticos do impressionismo de Debussy: essa peça é interessante porque nela compositor consegue criar contrastes entre consonância e dissonância, fazendo um uso maleável de glissandos microtonais através das cordas e usando, lado a lado e por detrás da maleável massa sonora das cordas, uma diversidade de timbres cintilantes (de sinos, pratos crotales, glockenspiel, marimba, flautas, harpas, oboé e metais). O álbum termina com a peça atonal "Dorian Horizon" (1966) para orquestra de 17 cordas, peça comissionada pela Fundação Koussevitsky, na época dirigida por Aaron Copland: a sugestão teria vindo de Stravinsky a Copland, que encomendou a peça ao pequeno jovem Takemitsu e a estreou em 1966 à frente da San Francisco Symphony. Este álbum acima é emblemático, então, por trazer esse conjunto contrastante de quatro peças escritas por Tōru Takemitsu nos anos de 1950 e 1960, evidenciando sua rica paleta sonora repleta de beleza e contrastes. Trata-se de um registro histórico, com gravações efetuadas em 1969 pelo maestro Seiji Ozawa à frente da Orquestra Sinfônica de Toronto, Canadá.


115                    Tōru Takemitsu – Nobuko Imai, Saito Kinen Orchestra, Seiji Ozawa – Viola Concerto «A String Around Autumn» / «November Steps» / Eclipse For Shakuhachi And Biwa – (Decca, 1991).

Em mais uma parceria com o compatriota Seiji Ozawa, dessa vez Tōru Takemitsu registra peças onde ele começa a inserir instrumentos tradicionais japoneses no âmbito da música erudita moderna, sem deixar de apresentar sua busca em contrastar sensualidade melódica com as experimentais tonalidades dissonantes advindas da influência serialista a La Boulez. O álbum começa com a emblemática e aclamadíssima peça "November Steps" para shakuhachi, biwa e orquestra ocidental, obra encomendada pela Filarmônica de Nova York por ocasião do seu 125º aniversário, e estreada em novembro de 1967 pela orquestra sob a direção de Seiji Ozawa: sendo uma peça muito elogiada por vários dos maestros e compositores contemporâneos dos anos 60 e 70 (tais como Leonard Bernstein, Krzysztof Penderecki e Aaron Copland), Takemitsu conta que, para ter a inspiração necessária para escrever a peça, teve de se retirar para o alto das montanhas numa vila japonesa levando consigo as partituras de "Prelude to the Afternoon of a Faun" (1894) e "Jeux" (1912) de Debussy, e ele também conta que o título foi dado baseado no fato de que a peça foi escrita em um mês de novembro e ela representa um novo passo em sua obra, um novo passo onde, agora, ele voltaria-se cada vez mais para os estudos da tradição do seu país e seus instrumentos tradicionais. O álbum segue, então, com "Eclipse" (1966) para duo de shakuhachi e biwa: escrita em notações específicas e em grafia japonesa, trata-se da primeira peça erudita escrita para esses instrumentos tradicionais, sendo precursora da aclamada "November Steps". Conta-se que quando Seiji Ozawa tocou para Leonard Bernstein uma fita de "Eclipse", Bernstein logo sugeriu que o compositor combinasse esses instrumentos em uma composição com a orquestra ocidental. Foi a partir desta recomendação, então, que Takemitsu acabou por compor a futuramente aclamada "November Steps". Na verdade, o próprio Takemitsu conta que ele relutou em escrever peças usando esses instrumentos em contextos sinfônicos: tanto porque esses instrumentos lhes traziam árduas lembranças da Segunda Guerra (época na qual os japoneses foram feridos por duas bombas atômicas e a ditadura os impediam de ouvir musica ocidental, sendo expostos apenas aos sons desses seus instrumentos tradicionais), bem como também pelo conflito estético de inicialmente não enxergar conexão entre a estilística da música tradicional japonesa e os sons desses instrumentos com as formas da música erudita ocidental. É sabido que Takemitsu começara a usar esses instrumentos em trilhas de filmes como "Harakiri" de Masaki Kobayashi (1962) e "Assassination" (1964) de Masahiro Shinoda. Mas são as obras registradas no álbum acima que inauguram, de fato, a aplicação desses instrumentos tradicionais japoneses no âmbito da música erudita moderna. O álbum acima finaliza com a estreia da gravação do aclamado "Concerto para Viola - A String Around Autumn" (1989) interpretado pela violista Nobuko Imai junto à Orquestra Saito Kinen dirigida por Seiji Ozawa: destoando-se da concepção concertante clássica e tida por Takemitsu como mais uma "paisagem imaginária", essa peça soa mais um desenvolvimento melodioso onde Takemitsu evoca, ao seu modo e em movimento único, o som da voz humana por meio da viola, inspirando-se na imagem de uma pessoa observando as paisagens do Outono japonês. A gravação de "November Steps" foi realizada em setembro de 1989 na igreja Jesus-Christus-Kirche, em Berlim. E as outras duas peças foram gravadas em agosto de 1990 na Konzerthaus Berlin. Ambas as ocasiões tiveram o maestro Seiji Ozawa à frente da Saito Kinen Orchestra.


116                    Frank Zappa – The Perfect Stranger  Boulez Conducts Zappa – (Angel, 1984).

O guitarrista e compositor Frak Zappa foi um gênio iconoclasta que, sendo rejeitado no âmbito do mainstream, preferiu lançar-se como produtor e compositor de forma totalmente independente. Em suas empreitadas independentes, Zappa formou diversos conjuntos orquestrais por conta própria para lançar e remodular suas peças híbridas de rock, pop, colagens electro-eletrônicas e elementos do jazz e da música erudita de vanguarda. Mas é este álbum acima que o adentrará no universo erudito dos grandes conjuntos e orquestras européias. No início dos anos de 1980, Zappa recebeu uma encomenda de ninguém menos que Pierre Boulez, compositor e maestro francês que já era considerado um dos maiores fomentadores e ícones da música erudita moderna. Tendo fundado seu grande centro de música erudita moderna e eletroacústica em 1977, o IRCAM (Institut de Recherche et Coordination Acoustique/Musique), Pierre Boulez acabara de entrar numa fase de fomentar e comissionar peças eletroacústicas compostas pelas principais personalidades criativas da música contemporânea da época —— dentro e fora da França ——, e então solicita para que Frank Zappa componha três peças a serem estreadas pelo seu Ensemble intercontemporain. A empreitada foi registrada neste memorável álbum Boulez Conducts Zappa: The Perfect Stranger (EMI, 1984) gravado em Paris em abril de 1984, no IRCAM, e traz sete faixas intercaladas: três na execução do Ensemble InterContemporain, e quatro executadas pelo próprio Zappa usando sintetizadores Synclavier (faixas que são creditadas ao The Barking Pumpkin Digital Gratification Consort, atrelado ao seu selo independente Barking Pumpkin). Como sabemos, muitas das peças eruditas de zappa são transcrições e desenvolvimentos a partir de trechos recortados dos seus intrincados solos de guitarra e das suas sinuosas e assimétricas canções dos seus discos de rock ou jazz-fusion imersos em elementos do avant-garde a La Edgar Varèse. Aqui não é diferente. A faixa-título, por exemplo, contém referências tiradas da trilha do filme de Zappa de 1971, 200 Motels. E a peça "Outside Now Again" é uma performance usando o notável sintetizador Synclavier e é baseada em uma transcrição do solo de guitarra que Zappa registrou na música "Outside Now" do álbum Joe's Garage de 1979. Ademais, vale ressaltar o caráter sempre ácido e crítico de Zappa muito bem representado pela peça "Jonestown", que é uma referência ao Massacre de Jonestown de 1978 , onde o líder do culto Jim Jones levou seus seguidores ao suicídio coletivo. Posteriormente, Zappa venceria a rejeição que muitos produtores do mainstream tinha em relação a ele e empreender-se-ia cada vez mais no universo do erudito contemporâneo, tendo suas peças sendo estreadas por grandes orquestras e ensembles tais como a Los Angeles Philharmonic (EUA) e o Ensemble Modern (Alemanha).


117                    Moondog – Moondog – (Columbia, 1969).

Enquanto Pierre Boulez e os discípulos de Darmstadt desprezavam a música consonante, dizendo que não mais dariam atenção para a música tonal, do outro lado do mundo uma figura aparentemente insignificante criava as mais intrigantes melodias consonantes que alguém jamais ouvira, vindo a dar partida no reducionista conceito da música minimalista. Moondog foi um excêntrico artista de rua de Nova Iorque que ficou conhecido por se trajar como um viking e vender seus poemas e suas canções na 52nd Street e arredores entre o início dos anos de 1940 e finais dos anos de 1960. Além de cego desde a infância, Moondog era aficionado pela música e cultura indígena, foi um inventor de instrumentos e criou em torno de si todo um personagem com figurino excêntrico e crenças próprias calcadas em mitologias nórdicas, ganhando a atenção dos transeuntes com sua simplicidade carregada de musicalidade e carisma: do saxofonista Charlie Parker ao compositor Igor Stravinsky, do roqueiro vanguardista Frank Zappa ao lendário maestro Leonard Berstein, dos músicos de jazz aos poetas e artistas beatnicks, todos que passavam pela 52nd Street e arredores o adoravam e ele nutriu amizade e apreço mútuo com muitos desses artistas —— Charlie Parker sempre parava para conversar com ele, e conta-se que o maestro Artur Rodzinski e seu então assistente Leonard Berstein sempre permitiam que ele assistisse os ensaios da Filarmônica de Nova York, onde, inclusive, chegou a apresentar aos músicos algumas das suas partituras. No final dos anos 40 e início dos anos 50, Moondog chegou a gravar seus primeiros compactos e LP's, obtendo maior reconhecimento com seu clássico LP homônimo gravado pela Prestige em 1955: é uma fase, aliás, em que ele está imerso nas influências do jazz, mas já desenvolve uma música totalmente própria marcada por melodias simples que são, ao mesmo tempo, marcantes e mentalmente pegajosas, sempre versadas em métricas inovadoras e em formas neobarrocas como chaconnes, canons e em formas simplificadas de cantos e contracantos. Em algumas dessas gravações, Moondog também acrescentou partes pré-gravadas de sons urbanos, do movimento dos transeuntes nas ruas de N.Y, de choro de bebê e outros recortes, sendo, também, um dos precursores do uso de samples e colagens dentro da composição, vindo a influenciar o próprio Frank Zappa em seus álbuns dos anos 60. Dessa forma, pode-se dizer —— e compositores contemporâneos, como Steve Reich e Philip Glass, que o conheceram na juventude, irão afirmar isso —— que Moondog é incontestávelmente um dos precursores da colagem musical e do conceito do "minimalismo musical" a surgir nos anos de 1960, com muitos dos pesquisadores o considerando até mesmo o "pai da música minimalista" e/ou "o primeiro compositor de fato minimalista". Mesmo antes do termo "minimalismo" surgir na música, Moondog ja chamava suas canções e miniaturas musicais dos anos 40 e 50 de "minimals" ou "minisyms", fato que reforça seu pioneirismo precursor. Neste álbum acima, temos um registro que foi gestado quando o produtor James William Guercio conheceu Moondog e o convidou para gravar um álbum para a Columbia Records. Já se iam 12 anos que Moondog não entrava em um estúdio. Então, agora com um time maior de músicos bancados pela produção da Columbia, ele regrava muitos dos seus temas e canções dos anos 40 e 50 apenas os repaginando-os com arranjos mais eruditos e camerísticos, nos fornecendo uma gema inconteste das primícias da música minimalista. Aqui mesmo no blog já adentramos a história dessa figura genial. Clique na imagem do álbum acima e leiam!


118                    Moondog - In Europe – (Kopf/ Managarm, 1977).

Este registro documenta a fase europeia de Moondog, de quando ele se estabelece na Alemanha, território fértil para suas inspirações nórdicas. Menos lúdico e idílico que seus registros americanos dos anos 50 e 60, aqui Moondog já tinha aderido à uma escrita mais formal, com arranjos mais eruditos, ainda que mantendo o intrigante caráter das repetições circulares das suas melodias, bem como mantendo seus particulares contrapontos, sobreposições neobarrocas e marcações percussivas ímpares. Esse aspecto mais erudito, aliás, fica bem explicitado pela peça "Romance in G" para quarteto de cordas. Apesar de uma escrita mais formal, a temática nórdica aqui é mais constante: vide faixas como "Viking I", "Heimdall Fanfare" e as curtas peças que compõe a suíte "Lögründr", escrita para orgão e percussão, com faixas gravadas nos excelentes órgãos de tubos das históricas igrejas Christus Kirche Recklinghausen e Herz Jesu Kirche Oberhausen. Em outras peças como "In Vienna" e "Viking I", Moondog usa uma caixa rítmica casada com celesta.


119                    Moondog and the London Saxophonic - Sax Pax for a Sax – (Kopf/ Atlantic Records, 1994).

Este álbum, gravado em 1994, registra a passagem de Moondog por Londres, onde ele se juntou aos nove músicos do London Saxophonic para expressar uma ode em homenagem ao centenário de Adolphe Sax —— legendário inventor de instrumentos, inventor dos saxofones ——, escrevendo um conjunto primoroso de peças —— quase sempre peças curtas e "minimals" —— para esta orquestra de câmera formada por saxofones sopranino, soprano, alto, tenor, barítono, saxofone-contrabaixo e etc. Além de repaginar peças célebres que já haviam aparecido em registros da década de 60 —— como "Bird's Lament" ——, Moondog escreveu vários temas novos para este ensemble. Em algumas faixas Moondog toca bumbo junto com outros músicos como Danny Thompson (contrabaixo), Liam Noble no (piano) e Paul Clarvis (caixa). Aqui temos um registro curiosamente híbrido de cânones saxofônicos em formato de música de câmera com evocações jazzísticas e as características circulares das repetições melódicas minimalistas do compositor, além de partes com acompanhamento vocal a cappella —— um hibridismo estranhamente curioso. Foi um dos registros de Moondog a alcançar boas posições e boas críticas, atingindo a posição de número 22 no ranking da Billboard, um ano antes da sua morte.


Continuaremos a adicionar outros álbuns semanalmente...





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