Ontem, 18 de Julho, foi a data internacional estabelecida pela ONU para homenagear a personalidade mundialmente reconhecida de Nelson Mandela (1918-2013), que foi advogado, ativista dos direitos civis sul-africanos e a mais importante liderança política a lutar contra o regime do Apartheid. Por quase cinco décadas, de 1948 até 1994, o regime do apartheid foi estabelecido e mantido pelo Partido Nacional, de extrema-direita, para cultivar os inconcebíveis ideais supremacistas —— a partir dos quais a população branca seria preferencial e superior em privilégios em todos os âmbitos sociais, econômicos, políticos e culturais —— e para sucumbir a população negra à opressão, segregação e à subserviência num sistema similar às leis segregacionistas americanas do Jim Crow. Isso porque, a África do Sul era dominada por uma elite poderosa de brancos ainda advinda do período de colonização inglesa, o que resultou numa anomalia social onde a minoria branca dominou e minorizou a maioria negra —— cerca de apenas 20% da população era branca, enquanto a maioria étnica era formada por quase 80% de negros nativos. Em consequência à opressão segregacionista, o partido Congresso Nacional Africano (CNA) começou um movimento anti-apartheid que consistia em comícios, passeatas, boicotes e tinha como foco arregimentar uma grande quantidade de negros dispostos a praticar atos rebeldes que infringiam a vigente legislação racista, dando margem para detenções em massa na expectativa de se congestionar as prisões do país, numa tentativa de comover a população e causar o colapso do regime. E a principal liderança a emergir nesse movimento foi Nelson Mandela. Abaixo, indico vários filmes, álbuns de jazz, artigos e livros que se inspiraram em Nelson Mandela e suas lutas, considerando que, assim como ocorrera com os EUA, o jazz foi uma das expressões musicais que mais incutiu o espírito anti-apartheid nos grandes centros urbanos da África do Sul.
Foi já em 1951 que Nelson Mandela foi eleito presidente da Liga da Juventude do Congresso Nacional Africano (ANCYL) e, já no ano seguinte, foi eleito presidente do CNA, emergindo como liderança principal do movimento anti-apartheid. Se inspirando no líder indiano Mahatma Gandhi e adotando estratégias similares aos movimentos dos direitos civis americanos liderados pelos atos do reverendo Martin Luther King, Mandela pregava que os protestos e atos de desobediência deveriam ser sempre pacíficos. Contudo, houveram vários atos que resultaram em massacres, com a polícia adotando táticas violentas contra os negros: como aconteceu no caso do Massacre de Sharpeville, que começou com os protestos contra as segregacionistas Leis do Livre Trânsito, organizado pelo Congresso Pan-Africano, e terminou com a polícia matando 69 pessoas e ferindo mais de 180, na tentativa de conter a multidão de manifestantes negros que avançava em direção à delegacia de Sharpeville. Diante de tais atos de violência, Mandela começou a adotar estratégias clandestinas de sabotagem e, mesmo tendo de apelar para atos de rebeldia, começou a ter apoio internacional da ONU e de outros países, que começaram a aplicar sanções à África do Sul e seu regime de extrema-direita. Impedido de sair do país, Nelson Mandela acabou sendo preso em Agosto de 1962 após viajar ilegalmente ao exterior e ser pego na liderança de protestos. Em 1964, ele foi condenado à prisão perpétua, admitindo a culpa por sabotagem, mas negando a acusação do seu suposto envolvimento com uma guerrilha para derrubar o governo. Ele passou 27 anos na prisão, e mesmo estando preso exerceu combativa e inquestionável liderança, tornando-se o maior símbolo da luta contra o apartheid. Após ser libertado da prisão em 1990, ganhou o Prêmio Nobel de Paz em 1993 e, em 1994, ganhou as Eleições Gerais —— a primeira desde 1948 ——, tornando-se o primeiro presidente negro da África do Sul e pondo um fim definitivo no apartheid. Há diversos documentários e filmes baseados na história de Nelson Mandela em seu enfrentamento ao apartheid. Um dos documentários seminais foi lançado já em 1996, poucos anos após a derrubada do regime: falo do doc "Mandela" escrito e dirigido por Jo Menell e Angus Gibson, com roteiro de Bo Widerberg, o qual foi até indicado ao Oscar de Melhor Documentário na época. A saga de Mandela logo se tornou, então, uma história cult, um emblema indissociável da história moderna, sendo tema e assunto de várias produções cinematográficas, incluindo filmes atuais produzidos para streamings como Netflix, Amazon Prime, Apple TV e outros. Uma bom entretenimento é o filme "Invictus" (2009), estrelado por Matt Damon, com Morgan Freeman fazendo o papel de Mandela, um líder que usa o baseball para unificar o seu país. O filme "Longo Caminho para a Liberdade" (2014), estrelado por Idris Elba, é ainda mais imersivo por ser uma produção baseada no livro autobiográfico escrito pelo próprio Mandela.
Assim como ocorreu no processo de derrubada das leis de Jim Crow nos EUA, o jazz foi uma manifestação artística e cultural seminal durante a luta contra o apartheid. Já é desde início dos anos 60 que músicos americanos tais como o baterista Max Roach e o pianista Randy Weston começam a gravar peças de protesto contra as desumanidades desse regime —— aqui mesmo no blog, em nosso podcast, mencionei essa faceta. Um exemplo supremo é o álbum We Insist! de Max Roach e Abbey Lincoln: o registro foi um hiper criativo grito de consciência, repúdio e consternação pelas consequências da segregação americana e do apartheid sul-africano, sendo que a quinta e última faixa do álbum, "Tears for Johannesburg", foi uma resposta direta ao já mencionado Massacre de Sharpeville, acontecido em decorrência aos protestos de Sharpeville, em 1960. Já Randy Weston, lançaria uma sequência ininterrupta de álbuns de autoafirmação da ancestralidade e com conotações contrárias ao apartheid e aos regimes ditatoriais que assolavam outras nações africanas, a começar com Uhuru Afrika (1960), que trazia os arranjos da trombonista Melba Liston em um mix de poesia de protesto e contemplação de ritmos africanos em homenagem às nações da África que haviam conquistado sua independência à época. Esse álbum de Randy Weston, inclusive, foi prontamente proibido de ser vendido e tocado na África do Sul durante o regime do apartheid.
Já no seio da conturbada realidade sócio-político-cultural da Africa do Sul, propriamente, as canções de Miriam Makeba e os temas de jazz do trompetista Hugh Masekela, tais como "Soweto Blues" e "Bring Him Back Home", se tornavam verdadeiros hinos populares anti-apartheid embalados por ritmos e estilos tradicionais como xhosa, mbaqanga, zulu, kwela, marabi, e etc. Hugh Masekela e seu trompete se tornaram uma figura emblemática não apenas para o jazz, mas ele tornou-se uma figura emblemática para a cultura popular geral sul-africana, sendo um dos representantes maiores da luta contra o supremacismo. Miriam Makeba, por sua vez, já havia participado, em 1959, do documentário "Come Back, Africa" de Lionel Rogosin, considerado um marco do cinema de protesto anti-apartheid (foto ao lado), e logo ela se tornaria a voz mais representativa da África, sendo apelidada carinhosamente de "Mama Africa" e, posteriormente, sendo uma importante ativista pelos direitos das mulheres, além de ser nomeada Embaixadora da Boa Vontade da ONU. Enquanto isso, na Cidade do Cabo, o pianista Abdullah Ibrahim emergiria como um dos principais inovadores do jazz sul-africano. Já o pianista Chris McGregor e o sax-altoísta Dudu Pukwana, os quais nos anos 60 formavam a pioneira banda de free jazz The Blue Notes em Johannesburgo (um sexteto com o trompetista Mongezi Feza, o sax-tenorista Nikele Moyake, o contrabaixista Johnny Dyani e o baterista Louis Moholo), foram obrigados a fugir com seus companheiros para a Inglaterra, deixando para traz a opressão e seguindo com suas carreiras exploratórias. Abaixo, em homenagem à Mandela, deixo uma playlist com gravações históricas desses músicos legendários, mais gravações de músicos sul-africanos contemporâneos como o trombonista Malcolm Jiyane Tree-O, o saxofonista McCoy Mrubata e o pianista Nduduzo Makhathini —— que inclusive, tem dado seu fiel testemunho em artigos e entrevistas por aí, vide👉este artigo escrito para a Duke University.
Nas últimos tempos, para além do jazz, a história e o legado de Nelson Mandela, então, estiveram em pauta em diversos filmes, livros, esculturas, mostras e exposições de arte. O jazz sul-africano, inclusive, tem passado por momentos de rejuvenescimento através de uma nova geração de músicos que, agora, puderam experimentar a liberdade de uma nova África do Sul, agora renascida igualmente para brancos e negros como um só povo. Em 2018 houve inúmeros festivais e👉exposições globais dedicados exclusivamente à celebrar o centenário de Nelson Mandela: aqui no Brasil, a mostra foi trazida pelo Instituto Brasil África em parceria com a Nelson Mandela Foundation e passou pelo CCSP, em São Paulo, foi exposta em Salvador, Recife... e passou por várias outras cidades. Nos EUA, o trompetista Wynton Marsalis, que tempos atrás produziu uma reportagem onde👉entrevista Hugh Masekela para a emissora CBS, também foi um dos diretores artísticos a celebrar o Centenário de Nelson Mandela e tem cedido frequente espaço para músicos sul-africanos e celebrações do legado de Mandela nos palcos do Jazz at Lincoln Center. Ademais, indico acima três exemplos de livros escritos nos últimos tempos que abordam essa corelação sul-africana entre luta social anti-segregação e a força cultural do jazz. O livro Marabi Nights (2012) de Christopher Ballantine oferece uma visão imersiva da tradição marabi-jazz da África do Sul nos anos iniciais do apartheid. Já o livro "Africa Speaks, America Answers - Modern Jazz in Revolutionary Times" (2012) de Robin D. G. Kelley traz um panorama que ajuda a entender, a partir dos exemplos das fusões inovadoras efetuadas por músidos de jazz modernistas como o pianista Randy Weston e o contrabaixista Ahmed Abdul-Malik, como o jazz respondeu às influências e transformações da África moderna em sua busca por independência, e entender como a influência do jazz moderno americano ajudou a moldar as identidades culturais dos emergentes países africanos. E, por fim, indico a autobiografia do trompetista Hugh Masekela que ele próprio escreveu juntamente com D. Michael Cheers (editor da Ebony Magazine), nos oferecendo declarações detalhadas da sua relação com sua esposa Mirian Makeba, sua carreira, suas turnês e viagens, suas amizades e parcerias com os maiores músicos internacionais, sua vivência sul-africana sob a opressão do apartheid e sua luta pessoal por liberdade. Ouça a playlist abaixo! Viva o legado de Nelson Mandela!!!
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