E não é que Chico Buarque —— o caçula da geração de 1960, o nosso querido cronista e malandro da intelectualidade carioca, o terror dos inconcebíveis fascistas tupiniquins —— chegou, recentemente, na fase dos 80 anos de idade? Neste post, então, usaremos esse mote para homenagear Chico e alguns dos seus contemporâneos também octogenários, figuras que foram os fouding fathers da MPB e os revolucionários da canção brasileira: falo de Tom Zé, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Milton Nascimento. E quando é que a MPB terá um novo pico de criatividade e de invenção tão superlativo e tão representativo para a brasilidade quanto o que tivemos com esses artistas que surgiram na década de 60? Já em 2022, num certo dia qualquer, acordei, levantei, tomei café da manhã e, ao abrir o notebook, me deparo com a notícia de que nosso queridíssimo Milton Nascimento (aka Bituca) estava numa turnê de despedida, rumo à aposentadoria dos palcos. Naquele momento me deu um aperto no peito e me sobreveio aquela sensação nostálgica de que os bons tempos realmente se esvaíram no âmbito cultural brasileiro: as lembranças musicais que tenho da época do pré-escola, do ensino fundamental, colegial e etc passam por canções do Milton e do Clube da Esquina...; eu cresci numa geração onde os ouvidos eram inebriados por melodias como "Canção da América" e "Coração de Estudante" —— sim nos anos 90 essas canções eram comuns em trabalhos de sala de aula, formaturas e colações de grau. Então daí me deu um estalo e percebi que eu já tinha passado dos quarenta anos de idade e que grande parte dos meus artistas preferidos já eram falecidos ou já haviam entrado na fase octogenária, alguns já declarando aposentadoria —— o tempo passa pra todos e essa é a magia da vida: envelhecer evoluindo em espírito, em caráter, em humanismo..., envelhecer com uma bagagem cheia de boa cultura e boa arte, que é o que te fará espantar, afinal, essas cóleras de ódio fascistas que se incrustam na sociedade exatamente pela própria falta de arte, falta de cultura e falta de música humanista. E a música brasileira é mundialmente reconhecida por sua riqueza cultural diversa, por seu humanismo acolhedor e pela sua identidade repleta de ritmos, melodias e harmonias envolventes que emanam do nosso povo miscigenado de negros, índios e brancos. E se amamos o Brasil e queremos ser patriotas, de fato, então precisamos valorizar, sobretudo e antes de mais nada, essa miscigenação —— de sons, de povos, de cores, de sabores, de expressões e representações regionais... —— que é o que confere riqueza à cultura brasileira como um todo!
Do choro sudestino ao chamamé gaúcho, do frevo pernambucano aos ritmos de boi-bumbá da Amazônia, do carimbó paraense às canções de viola pantaneiras, das belas canções mineiras do Clube da Esquina ao afoxé baiano, do samba dos morros cariocas à sofisticação urbana do brazilian jazz, das raízes africanas aos ecos afro-latinos, dos ecos das cantigas lusófonas aos cânticos dos repentistas nordestinos, nossas músicas e representações culturais são mais do que ricas nos âmbitos rítmico-melódico-harmônicos. O que precisamos apenas é ter artistas que tenham essa capacidade de estudar e incorporar esses elementos culturais em novas formas inovadoras e experimentais de arte musical, formas atualizadas para nosso tempo presente —— é assim que as culturas de um povo evoluem para além do folclore: através da atualização dos elementos culturais em formas artísticas inovadoras e experimentais. E Tom Zé, Gilberto Gil, Chico Buarque, Caetano Veloso e Milton Nascimento foram cinco dos maiores estudiosos e titãs da música brasileira que —— nos âmbitos do samba, da Tropicália, do Clube da Esquina, do nascimento do gênero "MPB", de uma forma geral... —— fizeram isso nessas últimas décadas e hoje, aos seus 80 anos, estão aí ainda ativos (!!!), ainda sendo os grandes representantes da nossa riqueza cultural. Aos nossos músicos e cantores atuais que compõem a chamada "Nova MPB", faltam essa missão humanista e cultural, essa visão sociocultural e esse valor estético para que, ao menos, cheguem perto da criatividade e da representatividade que esses grandes titãs da música brasileira exerceram por mais de seis décadas!!! Esse post, então, é uma homenagem para esses gênios da música e da cultura brasileira, esses sacerdotes octogenários de ARTE maior. A ideia é apresentar aqui alguns discos onde esses cantores priorizaram as abordagens experimentais e conceituais mais próximas do arranjo instrumental. Em geral, trata-se de discos que não são palatáveis aos gostos das programações televisivas e da mídia tradicional —— e nem foram gestados para esses ambientes tendenciosos. Alguns desses álbuns, inclusive, são registros de canções gestadas para balé, teatro e dança moderna e, portanto, foram comercializados apenas no antes-durante-após dos eventos das apresentações das peças e/ou apenas nos círculos mais alternativos.
É preciso frisar que, por mais que tenham foco na música cantada, esses cantores sempre foram gênios com avançada musicalidade voltada para a riqueza instrumental de ritmos, sonoridades e harmonias sofisticadas do nosso Brasil, mesmo em seus álbuns de música predominantemente vocal e de representação cultural predominantemente popular e comercial —— não é como hoje nos álbuns do pop atual, de "artistas" midiáticos como Anitta e Luísa Sonza, onde os cantores usam uma banda de instrumentistas apenas para acompanhamentos pobres, onde os cantores não sabem nem o que é uma progressão de acordes (algo que fuja daquela chatice pentatônica ou daquele uso chinfrim de três acordes) e importa-se mais as atitudes débeis de libertinagem, as letras sexistas, os padrões melódicos e rítmicos repetitivos, e as coreografias pornográficas; não é como esse pop atual onde a riqueza orgânica dos nossos ritmos, das nossas sonoridades, das nossas melodias e dos sons do Brasil profundo praticamente inexistem ou são sufocados por empobrecidas repetições de batidas eletrônicas e procedimentos artificiais de sons sintéticos. Estamos falando de ARTISTAS, com letra maiúscula e musicalidade muito acima da média. Estamos falando de Tom Zé, Gilberto Gil, Chico Buarque, Caetano Veloso e Milton Nascimento!!! São poetas-cantores-músicos que modernizaram a brasilidade, exploraram caminhos múltiplos e extrapolaram os limites intergêneros da criatividade no âmbito popular!!! Os álbuns que vos indicarei abaixo mostram que, em determinados momentos, a sina pela transcendência e pela transposição de limites fez com que esses gênios transbordassem suas expressões em discos mais instrumentais, mais experimentais e conceituais. As poéticas desses músicos foram tão ricas em termos de ARTE e CULTURA, que suas obras adentraram as vanguardas, extrapolaram os limites da musica e congregaram múltiplas e superlativas explorações também nas áreas da dança, da arte performática, do teatro, da poesia, da literatura e do cinema. A obra de Chico Buarque, por exemplo, é repleta de canções que se expandiram em peças de teatro ou canções tiradas de musicais teatrais que se popularizaram, é repleta de livros que inspiraram canções e canções que inspiraram livros, é repleta de trilhas musicais que foram usadas no cinema e é repleta de peças com rebuscados arranjos instrumentais —— sem mencionar seu ativismo contra a Ditadura Militar, ativismo caríssimo à democracia brasileira. Tom Zé, por sua vez, é um artista concretista —— muito influenciado pelo avant-garde e pelas expressões dadaístas... —— que, para além de ter sido um dos ases do tropicalismo, compôs diversas peças e canções experimentais para as artes cênicas e levou a discussão dos limites estéticos e conceituais da arte da canção para um plano não apenas inédito, mas ainda hoje revolucionário!!!
Uma percepção que considero quase um padrão irrefutável para se analisar as mentes mais criativas da música, independente de gênero estético-estilístico, se dá em torno do fato da maioria dessas mentes musicais mais geniais do século 20 e 21 valorizar a música primordialmente em torno da sofisticação dos arranjos instrumentais, valorizar a química orgânica dos sons em âmbitos rítmico-melódico-harmônicos em primeiro lugar. De Stravinsky à Paul McCartney, de Miles Davis à Milton Nascimento, de Björk à Hermeto Pascoal, essa percepção é uma constante. Hermeto Pascoal —— mago da música, multi-instrumentista que foi de grande influência para esses cantores da MPB —— é o caso mais emblemático: ele pensa a música já em torno de qualquer som que ele ouça; ele valoriza os sons antes mesmo desses sons se tornarem música composicionalmente ordenada; ele já imagina como que os sons das coisas do nosso dia-a-dia e da natureza podem ser encaixados dentro do arranjo de uma peça musical sem mesmo ter algum motivo temático em torno de alguma significância ou alguma sintaxe verbática —— a vida, o universo, o cosmo, o estar vivo aqui e agora, esses já são os motivos para estar conectado à riqueza da música, da mesma forma que a música dá riqueza e sentido às coisas e à própria vida. E mesmo na música cantada, na música pop, os cantores mais geniais costumam valorizar essa relação mística e espiritual com os sons, colocando o arranjo instrumental em primeiro plano para criar aquela aquela química acalentadora de sons orgânicos que confiram tessitura e ossatura coerente e pujante em torno da temática, da oralidade textual e verbática das suas letras. O mundialmente reconhecido Milton Nascimento é outro exemplo seminal: para além da poética dos versos e letras das suas canções humanistas serem hiper sofisticadas, os elementos imediatos da sua música que encantam as pessoas no mundo todo são a musicalidade acalentadora das suas melodias, a alquimia das suas harmonias modais, o seu vocalise repleto de magia e todos os sons e arranjos instrumentais que dão corpo para sua música. Se as letras, as oralidades, as temáticas, as semióticas e sintaxes podem variar linguisticamente de um país para o outro e seja inteligível mais à um determinado povo do que para outro, por outro lado os sons, as organicidades das melodias, das harmonias e dos ritmos já são signos e códigos artísticos que podem encantar imediatamente qualquer pessoa de qualquer lugar do mundo. A oralidade da língua brasileira e nossos trejeitos culturais regionais, por exemplo, não são inteligíveis a todos os povos, mas os nossos sons, nossos ritmos, nossas harmonias, esses sim, são elementos da nossa identidade que têm o poder de encantar qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo. E os álbuns abaixo trazem, então, Tom Zé, Gil, Chico, Caetano e Milton explorando essa magia da instrumentalização dos sons da nossa brasilidade cada um ao seu modo e com suas concepções.
Gilberto Gil - Z: 300 Anos de Zumbi: da Bahia para o mundo, do Movimento Tropicalista ao pioneirismo na valorização das heranças afrodiaspóricas na música brasileira
Laureado como Imortal na Academia Brasileira de Letras, tendo um assento vitalício em meio aos quarenta acadêmicos mais prestigiados da língua portuguesa no Brasil, Gilberto Gil tem uma importância para a cultura e a música brasileira que é praticamente incomensurável: foi dele que saiu as primeiras fagulhas do Movimento Tropicalista na segunda metade dos anos de 1960; foi dele que saiu as primeiras fusões diaspóricas de elementos afro-brasileiros (tais como os ritmos afro-nordestinos, o afoxé baiano, o movimento black Rio, e etc) com elementos de estilos internacionais tais como o afrobeat nigeriano, o reaggae jamaicano e o pop e a disco music americana através dos álbuns da sua "Trilogia Re" (Realce, Refavela e Refazenda..., sem contar o Refestança), lançados entre os anos 70 e os anos 80; e foi ele que, nos anos 90 e 2000, decidiu adentrar o mundo político para abrir mais espaços para a cultura brasileira, chegando a ser Ministro da Cultura do Governo Lula entre 2003 e 2008. Muito embora o arranjo instrumental e as orquestrações não sejam o foco exclusivo da sua produção musical —— sendo que os aspectos e elementos populares dos ritmos afro-nordestinos e das diásporas afros são os grandes protagonistas em sua obra ——, há vários discos de Gilberto Gil onde o time de grandes instrumentistas é não menos que superlativo: caso do álbum Refavela (Warner Music, 1977), por exemplo, onde Gil tem a colaboração de uma banda repleta de músicos do mais alto calibre tais como Djalma Corrêa (percussão), J. T. Meirelles (flautas), Mauro Senise (saxofones), Márcio Montarroyos (trompete), Jessé Sadoc (trombone), Nivaldo Ornelas (sax tenor), Robertinho Silva (percussão), dentre outros. E neste este álbum acima, Gil lança mais uma das suas obras de arte que representa um ponto fora da curva em relação à sua produção musical mais popular. Encomendada pela Companhia de Balé da Cidade de São Paulo para comemorar os 300 anos de Zumbi dos Palmares, o escravo libertário que ajudou outros negros do período colonial a se libertar da escravidão e fundou o Quilombo de Palmares Serra da Barriga —— na então Capitania de Pernambuco, região hoje pertencente ao município de União dos Palmares ——, a peça "Z: 300 Anos de Zumbi" tem como chama criativa central a colaboração entre Gilberto Gil e o grande percussionista baiano Carlinhos Brown, contando, também, com arranjos do contrabaixista Rodolfo Stroeter, que foi o diretor musical do projeto. Embora a bagagem de Gil e Brown já tivessem canções e batuques de sobra que pudessem inspirar a composição da obra, conta-se que o fato da peça ter sido encomendada em cima do prazo para a celebração de Zumbi fez com as peças fossem criadas de forma espontânea, em tempo real no estúdio. Muitos dos cânticos de Gil, por exemplo, foram improvisações espontâneas, cabendo ao maestro Stroeter o papel de encaixar todos os elementos num todo coeso. Aqui temos um excelente case, portanto, onde as influências africanas e afro-nordestinas se encaixam em arranjos instrumentais contemporâneos e requintados. O time é formado por Gil (vocais, violão); Carlinhos Brown (vocais, percussão); Marlui Miranda (vocais); Lucas Santana (flauta); Lelo Nazário (teclados); Rodolfo Stroeter (contrabaixos acústico e elétrico); Paulinho Campos e Gustavo Di Dalva (percussões). Um time superlativo de músicos!!!
Caetano Veloso - Araçá Azul e outras incursões instrumentais: a originalidade de um tropicalista genial calcado na estética da poesia concreta, do experimental ao popular
Caetano Veloso, por sua vez, é um dos gênios da MPB que, a partir do Tropicalismo, escolheu por esculpir uma obra de caráter mais caricaturista em torno dos seus trejeitos pessoais —— seu singular tom vocal anasalado, a forma fonético-onomatopeica idiossincrática como ele trabalha, pronuncia e distribui as palavras dentro de uma canção... ——, e uma obra mais iconoclasta, fragmentária e repleta de procedimentos experimentais: suas interseções entre formas irregulares de canção com os versos experimentais da poesia concreta são tão inovadoras que chegam a transcenderem-se para além dos limites musicais, propriamente... —— Caetano é matéria de estudo poético-literário sobre o concretismo no Brasil! Consequentemente, e tendo que se adaptar aos apelos do popular e até do popularesco, Caetano teve logo que flexibilizar e diluir esses seus trejeitos e experimentos em canções e manifestações rítmicas mais palatáveis, o que o fez, por outro lado, alcançar uma completude de misturas estilísticas que soa com uma contemporaneidade difícil de ser igualada. Caetano é, talvez, a figura mais completa da MPB!!! Mesmos nos álbuns de apelos mais populares de Caetano é possível de se encontrar traços de genialidade iconoclasta. Quando se analisa as instrumentações dos discos de Caetano, porém, orquestrações e arranjos instrumentais com densidade mais elaborada nunca foram tão primordiais como nas obras de Milton e Chico, por exemplo. Mas..., ainda assim, o requinte melódico-harmônico da obra de Caê é tão gigante quanto sua genialidade poética dentro das suas inflexões singulares. No tropicalista Araçá Azul (1972), quinto álbum da sua carreira, temos um exemplo seminal de registro experimental onde Caetano é profundamente influenciado pela poética de invenção do movimento da poesia concreta, criando uma obra altamente fragmentária —— praticamente uma peça avant-garde mesmo ——, onde ele faz colagens com fragmentos de adereços populares de fitas pré gravadas com elementos concretistas, experimentos ilógicos, pedaços de letras e canções —— inclusive com citações a Hermeto Pascoal, Walter Smetak, Walter Franco e João Gilberto ——, arranjos caóticos de Rogério Duprat e participações fragmentadas de figuras como Milton Nascimento, Ronaldo Bastos, Tuti Moreno, Lanny Gordin, Moacyr Albuquerque e outros músicos. Por soar tão fragmentado, Araçá Azul não chega a ser essencialmente um álbum de música instrumental, mas a forma experimental como Caetano instrumentaliza a poética concretista com todos esses fragmentos sonoros através de colagens é não menos que emblemática e traz similaridades com as colagens experimentais que Frank Zappa iniciou a partir de Lumpy Gravy (1967).
Nos anos 2000, Caetano também se juntaria à trupe dos grandes mestres modernos da velha guarda da MPB que foram comissionados pelo Grupo Corpo, seminal companhia de dança moderna mineira criada pela Família Pederneiras. Em 2005, numa comemoração dos 30 anos do Grupo Corpo, foi lançado, então, a peça Onqotô, escrita por Caetano em parceria com José Miguel Wisnik. A temática surge num encontro onde Wisnik conta uma piada à Caetano: "Se tudo começou no Big Bang só tinha que acabar no Big Mac". E dessa piada surge uma discussão sobre a existência humana que é a faísca para a ideia da peça, que conecta inúmeros adereços folclóricos e inspirações literárias —— desde inspirações nos contos poéticos Os Lusíadas, no poeta do barroco mineiro Gregório de Matos, passando por Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, adereços afro-indígenas, sudestinos, baianos, nordestinos e etc —— com essa faceta do pertencimento brasileiro num ponto minúsculo desse cosmo. Nessa peça, Caetano não soa tão experimental como em Araçá Azul, mas muito das suas idiossincrasias fonético-cancionistas é usado como elemento criativo, o que se soma-se a arranjos contemporâneos de eletrônica, percussões e instrumentações variadas —— Wisnik, como sempre, mostra grande expertise em criar arranjos mais contemporâneos, já com o frescor do novo século 21. A instrumentação de Onqotô inclui as vozes de Caetano, Wisnik e Greice Carvalho, o piano e as teclas de Wisnik, os percussionistas do Candea, o Grupo Hip Hop Roots, as flautas e pífanos de Carlos Malta, as guitarras de Jr. Tostoi, os violões de Luiz Caldas, Alê Siqueira e Camilo Carrara, os clarinetes de Luca Raele, o acordeom de Marcelo Jeneci, o vibrafone de André Juarez, os teclados de Alê Siqueira, o contrabaixo de Célio Barros, as percussões e objetos de Carlinhos Brown, os scratches do DJ Cia, as vozes do Banda de Boca, mais pianos, os violinos, os improvisos vocais e outros arranjos instrumentais. Já um outro exemplo onde Caetano cai nas graças do arranjo mais puramente instrumental é no álbum Caetano Veloso & Ivan Sacerdote (2020), onde ele se junta ao citado clarinetista baiano e imerge-se com suas canções numa bossanovista e enxuta instrumentação com voz, banquinho, violão e clarineta, dando novas versões para títulos como Trilhos rbanos (1979), Minha voz, minha vida (1982), O ciúme (1987), Desde que o samba é samba (1993), Rio é mais baiano (1994), Peter Gast (1983), Manhatã (1997) e Aquele frevo axé (1998). Taí duas facetas distintas de um dos músicos mais iconoclastas da MPB!!!
Tom Zé - Parabelo & Danç-Êh-Sá: das influências nordestinas ao tropicalismo, da poesia concreta ao dadaísmo, do cânone da canção para o genial conceito de pós-canção
Tom Zé, já abordado algumas vezes aqui no blog, é considerado pela crítica o "último tropicalista", o artista fundador do Tropicalismo que mais manteve suas idiossincrasias conectadas com a experimentação antropofágica e a desconstrução estilística na intenção de uma nova construção estética, o artista que mais continuou a explorar e inovar dentro dos princípios do tropicalismo, mesmo após o fim do movimento no início dos anos de 1970. Para quem se interessar, uma boa ideia é adquirir o livro biográfico "O Último Tropicalista", escrito por Pietro Scaramuzzo, onde reforça-se essa posição solitária de Tom Zé como o último guardião dos valores estéticos do tropicalismo. E para além de uma mistura de crítica social, experimentalismo musical e valorização das raízes culturais brasileiras, Tom Zé passou a desenvolver uma crítica às próprias estéticas da forma-canção e dos seus estilos padronizados, que é seu inovador conceito de "pós-canção": ou seja, para ele —— assim como já aconteceu nas artes plásticas, na música erudita e nas evoluções do jazz, por exemplo... ——, a canção não é uma forma estática que deve permanecer canonizada sob as mesmas vitrines e moldes do arcadismo poético e da beleza, mas é uma forma de arte que pode ser inflexionada, deformada e manipulada tanto quanto qualquer outra forma de arte moderna. E esse conceito é particularmente interessante em Tom Zé porque trata-se de um artista que traz, ao mesmo tempo, tanto os traços rústicos e primitivos do sujeito do sertão nordestino quanto a genialidade revolucionária do cidadão urbano que se interessou pelo avant-garde e pela arte dadaísta, juntando-se, neste sincretismo contrastante, a forte influência do movimento da poesia concreta. E no caso estritamente específico de Tom Zé, já temos um artista que, ao invés de se flexibilizar com os apelos que a pop music traria nas décadas de 80 e 90, ele manterá insistentemente seus conceitos e posições revolucionárias.
Não foi à toa que Tom Zé, em face aos seus arranjos experimentais dos anos de 1970, ficou praticamente inativo na década de 1980, só retomando a carreira artística após ser redescoberto por David Byrne e ser chamado para gravar um novo discos nos EUA —— aqui mesmo no blog já imergimos nessa história emblemática de Tom Zé. No Brasil, um dos projetos que marca um novo reconhecimento de Tom Zé nos meios artísticos mais intelectuais é justamente este projeto musical indicado acima, Parabelo, que ele desenvolveu com José Miguel Wisnik para um balé brasilianista do coreógrafo Rodrigo Pederneiras do Grupo Corpo. A trilha sonora desse balé foi lançada em 1997 e também conta com ideias de Arnaldo Antunes, Paulo Tatit e Alê Siqueira nos arranjos e produções. Parabelo é um álbum que chama atenção para o instrumental nordestino rústico, regional, caipira e sertanista, ao qual Tom Zé sempre foi ligado em suas inflexões dadaístas e sarcásticas em torno da canção. Outro álbum instrumental produzido por Tom Zé é o fantástico álbum independente Danç-Êh-Sá (2006), que já traz seu citado conceito de pós-canção através das suas "sete caymianas para o fim da canção": neste álbum, já temos uma verve tropicalista mais contemporânea com a exploração de sons eletrônicos, com o uso da voz como veículo das expressões onomatopeicas que tanto lembram suas associações com a poesia concreta, e com uma instrumentação rica formada por músicos como Lauro Léllis (bateria), Jarbas Mariz (cavaco, violão de 12 cordas, voz), Cristina Carneiro (teclados, voz), Sérgio Caetano (guitarra, voz), Daniel Maia (baixo, voz), Luanda (voz) e Paulo Lepetit (eletrônicos, produção e mixagem). Embora tenha um estilo experimental mais dadaísta e, portanto, não adote arranjos com os mesmos padrões de beleza e de polimentos vistos em outras estéticas da música instrumental brasileira, essas peças instrumentais de Tom Zé só reafirmam sua grande expertise musical.
Milton Nascimento & Clube da Esquina: cancioneiro humanista e inovador que formou uma amálgama de bossa, folclore mineiro, jazz, rock progressivo, música erudita e etc
Já na obra inovadora de Milton Nascimento (carinhosamente apelidado de Bituca), os arranjos instrumentais é um elemento primordial, central e sintetizante! Foi até difícil estabelecer quais álbuns eu indicaria aqui, visto que a maioria dos seus álbuns são recheados de improvisos e arranjos instrumentais rebuscados. Milton não é um intelectual boêmio como Chico, não é experimental como Caetano e nem dadaísta como Tom Zé. Mas a própria história do cancioneiro que tomou corpo em torno do Clube da Esquina já o coloca numa posição privilegiada em termos de uma expertise mais calcada em arranjos instrumentais bem polidos, visto que esse clube de artistas eram compostos não apenas de letristas e cancionistas, mas também de exímios instrumentistas com fluência tanto no jazz (como o clarinetista Paulo Moura, o saxofonista Nivaldo Ornelas, o guitarrista Toninho Horta, os percussionistas Robertinho Silva e Naná Vasconcelos, entre outros) como também na música erudita (como o pianista Wagner Tiso e o cantor Tavito). Alguns desses instrumentistas formaram, então, a banda Som Imaginário que deu bastante substância para alguns dos álbuns de Milton Nascimento entre fins dos anos de 1960 e início dos anos 70. Por conseguinte, é impossível abranger a Música Instrumental Brasileira sem abordar, também, esses e outros instrumentistas ligados ao Clube da Esquina. Já a partir dos anos 70 e mais ainda nas décadas posteriores, após crescente reconhecimento internacional, Milton também seria acompanhado de grandes músicos internacionais do jazz e do rock. É o caso do seu fantástico álbum Angeluz (1993), onde Milton tem a colaboração de músicos legendários como Pat Metheny, Jon Anderson, Wayne Shorter, Herbie Hancock, Ron Carter, James Taylor, Peter Gabriel (líder da banda Genesis), Jack DeJohnette e Naná Vasconcelos. Muitas das canções de Milton, inclusive, são canções sem muitas palavras onde seu encantatório vocalise acapella toma a forma de um instrumento à parte em meio aos arranjos instrumentais: nos álbuns Milagre dos Peixes (1973) e Milagre dos Peixes Ao Vivo (1974) Milton se junta ao Som Imaginário em canções que são entoadas praticamente sem palavras, apenas com seus vocalises somando-se aos instrumentais da banda, uma vez que as letras das canções foram censuradas pelo regime militar via Ato Institucional No.5 (AI-5). À essa voz e a esses arranjos, soma-se elementos da religiosidade mineira, do folclore afro-mineiro, do jazz modal e do jazz fusion setentista, do rock progressivo, entre outros elementos, e tem-se a amálgama inovadora que revolucionou sobremaneira a MPB! Milton Nascimento e o Clube da Esquina têm sido assuntos recorrentes aqui no blog —— acesse as tags respectivas para ler outras matérias e ouvir a playlist com o instrumental dessa galera!
Chico Buarque e seu Teatro Musical: a arte de musicar a realidade do malandro carioca, do cidadão brasileiro e da luta contra a Ditadura em canções e cenas brechtianas
Tendo iniciado antenado aos círculos do samba e da bossa nova, Chico Buarque já é o tipo de cancionista que adotará, de um lado, a postura de um exímio observador e cronista da realidade do cidadão comum brasileiro e do malandro carioca, e, por outro lado, começará a adotar uma postura de crítica contra o regime da Ditadura Militar. Embora seja tradicionalista mais leal à brasilidade incutida nos círculos da boemia carioca —— assim como Tom Jobim, Elis Regina e toda a galera da bossa nova... ——, não sendo afeito às experimentações concretistas e antropofágicas da Tropicália, Chico não resistirá em ser minimamente influenciado pelo tropicalismo e elevará suas habilidades musicais e sua habilidade literária como cronista a patamares não menos que ousados no início dos anos de 1970. Já avançando para além dos limites saudosistas do samba e da bossa nova, sendo minimamente influenciado pelos ecos restantes do finado movimento tropicalista, Chico lança, então, seu emblemático álbum Construção, obra que ele gestou em seu exílio na Itália, em 1970. Nesse álbum, Construção (1971), Chico já adota uma engenhosa produção onde eleva seu requinte poético aos rumos da crítica metafórica à Ditadura Militar e eleva os arranjos instrumentais das suas canções ao adotar uma maior variedade de instrumentos e ao convocar o maestro Rogério Duprat para dar aquela apimentada às orquestrações. A partir daí, será corriqueiro o ato de Chico lançar álbuns de canções com elaboradas ossaturas instrumentais. Mas há outra categoria na qual Chico eleva sua música a patamares ainda mais ousados: que é a categoria da dramaturgia, do teatro musical. A primeira grande peça de Chico nessa categoria é a épica Roda Viva (1967): o espetáculo foi dirigido por Zé Celso e as cenas continham uma trilha majoritariamente constituída de canções anti-ditadura, sendo prontamente censurada via Ato Institucional No.5 (AI-5). Segue-se Calabar: o Elogio da Traição: essa peça genial, baseada na história do senhor de engenho do período colonial Domingos Fernandes Calabar —— que preferiu se unir aos invasores holandeses na Capitania de Pernambuco, sendo considerado um traidor para Portugal... ——, foi uma produção teatral que custou muito caro e também acabou sendo censurada pelo regime da Ditadura Militar antes mesmo de estrear, deixando grande prejuízo para Chico, para os produtores, os atores envolvidos e a companhia de teatro. Por apresentar uma metáfora da rebeldia de Calabar naquele período colonial com os anseios pela liberdade e a luta contra a ditadura vigente, o regime militar logo entendeu que a peça não deveria nem estrear tal como fora concebida e os censores logo a cancelaram às vésperas da estreia. Precisaram ser feitas várias edições e mudanças em alguns títulos da peça, na divulgação dos cartazes, em alguns verbetes e termos das letras das músicas e outros elementos para que a Polícia Federal a julgasse apta a estrear nos palcos brasileiros. A peça foi gestada numa parceria frutífera de Chico com o poeta e dramaturgo moçambicano e luso-brasileiro Ruy Guerra e traz arranjos instrumentais e orquestrações do também genial Edu Lobo —— ambos, Edu Lobo e Ruy Guerra, seriam seus diligentes parceiros em outras produções. A trilha musical da peça foi lançada no álbum Chico Canta —— lembrando que a faixa-título, "Chico canta Calabar", também fora editada, pois as iniciais "CCC" lembravam o Comando de Caça aos Comunistas —— e traz arranjos ricos em adereços e elementos que vão dos ecos do fado português às cantigas e ritmos nordestinos, passando por formas inflexionadas de marchinha, samba-canção e arranjos incidentais, mostrando Chico imerso numa brasilidade mais arraigada e abrangente, já um tanto distante da sua origem no cânone bossanovista.
Após os perrengues com Calabar: O Elogio da Traição e Roda Viva, outras peças de teatro musical de Chico ganharão notoriedade nos anos 70 e 80. Mas Chico, por vezes, adotaria uma postura mais prudente para não sofrer censura, também priorizando, por vezes, produções menos custosas e com menos arranjos exclusivamente instrumentais. É dessa fase, por exemplo, a peça Gota d'Água (1975), uma tragédia urbana baseada nos elementos da realidade do povo, das favelas, dos botequins, das mães lavadeiras e etc. Também é dessa fase a emblemática Ópera do Malandro (1978), que até recebeu os arranjos musicais do maestro John Neschling, mas também centrou-se mais na canção popular —— com foco mais para o folclore urbano do samba e do malandro carioca ——, tendo as canções, o libreto e as declamações claramente influenciados pelo estilo do teatro moderno de Bertolt Brecht: essa peça foi baseada na Ópera dos Mendigos, de John Gay, e na Ópera dos Três Vinténs, de Bertolt Brecht e Kurt Weill, com produção do seu já recorrente parceiro Ruy Guerra, e foi um sucesso extraordinário dessa faceta mais teatral de Chico, tendo sido várias vezes reproduzida por várias companhias de teatro no Brasil e no exterior. As parcerias das composições de Chico com as orquestrações de Edu Lobo só entrarão em cena novamente alguns anos depois em musicais de peças como O Grande Circo Místico (1982), Dança da Meia-Lua (1988) —— onde o poeta Ferreira Gullar também colabora —— e Cambaio (2001), peça teatral de João e Adriana Falcão que teve trilha também contando com participações de Gal Costa, Lenine e Zizi Possi e teve o respectivo registro ganhando o Grammy Latino de melhor Álbum de MPB em 2002. Desses exemplos todos, os álbuns com arranjos instrumentais mais rebuscados, onde Chico e Edu Lobo transcendem em expertise e criatividade instrumental com suas canções e seus arranjos abrangendo uma boa gama de elementos brasilianistas —— indo dos elementos nordestinos aos elementos sudestinos, indo da marchinha e do samba aos arranjos progressivos, indo do canto popular aos arranjo erudito ——, é Calabar (1973), Grande Circo Místico (1982), Dança da Meia-Lua (1988) e Cambaio (2001). O Grande Circo Místico, outro sucesso comercial estupendo de Chico, é particularmente interessante por trazer essa faceta do teatro musical para a poética circense, misturando arranjos instrumentais —— eruditos e populares —— com elementos do jazz, do balé, da ópera, do teatro, da poesia e da humorística música de circo, tendo a participação de vários cancionistas e instrumentistas tais como Milton Nascimento, Jane Duboc, Gal Costa, Marcio Montarroyos (trompetista), Simone, Tim Maia, Gilberto Gil, Zizi Possi e Tom Jobim. Para quem se interessa por óperas modernas e estuda teatro e artes cênicas no Brasil, é imprescindível estudar os libretos, as sinopses e os desfechos criativos em torno dessas peças de Chico Buarque, pois são obras-primas do gênero do teatro musical brasileiro. Em termos de valor artístico e pioneirismo, a genialidade do teatro musical de Chico Buarque segue na mesma estirpe e linha evolutiva instituída pelo precursor teatro musical moderno da dupla alemã Kurt Weill & Bertold Brechet e o musical americano West Side Story do maestro e compositor Leonard Berstein. —— sem mencionar a proficiência literária de Chico enquanto escritor.