AJMS: Oi Vagner, em primeiro lugar queria agradecer o convite para essa conversa. Acho super importante seu trabalho e de outros e outras, dentre os poucos e poucas que se aventuram nessa seara da mediação crítica da música instrumental brasileira, abrindo espaço também para a música mais exploratória e experimental. E você está nessa há um bom tempo, que eu me lembre, resistindo às intempéries de toda a ordem e mantendo a pesquisa e escrita sobre música. Bom, agora respondendo a sua pergunta, embora a música sempre tenha estado presente na minha vida desde sempre, o estudo musical formal se deu tardiamente, já na adolescência. Eu morei boa parte da infância com meus avós maternos, minha bisavó, meu tio, minha mãe e minha irmã, todos na mesma casa. Meu avô era aficionado pelas tecnologias de registro de imagem e som também, mas principalmente imagem, e por isso, desde pequeno me habituei a assistir filmes caseiros em super-8, projeções de slide, gravações de entrevistas em K7. Ali predominava a música nordestina, Luiz Gonzaga principalmente. Me lembro da minha bisavó cantarolar enquanto lavava roupa 🎶"Mandacaru quando flora na seca…"🎶 Minha avó, gostava de dançar frevo, e cantava tudo com a entonação das lavadeiras de Recife. Minha mãe escutava bastante MPB, principalmente Chico Buarque, e música clássica também. Eu me lembro do meu tio escutar Queen na época em que eles fizeram um show no estádio do Morumbi, em São Paulo. Tenho uma lembrança de pequeno, que no quarto em que minha mãe e minha irmã dormiam, havia um piano e ela tocava e brincava com a gente nele. Eu achava o máximo aquilo. Mas logo ela teve que vendê-lo.
Anos depois, foi minha irmã que começou a estudar piano, mas como já não tínhamos um, ela simulava o teclado numa cartolina com as teclas desenhadas para treinar a leitura e digitação. Quando finalmente ela ganhou o piano, eu me lembro que adorava sentar depois dos estudos que ela fazia, para brincar, improvisando e tentando tirar de ouvido, as melodias das músicas que ela estudava e ensaiava. Eu não tinha interesse em estudar música formalmente, gostava de passear na rua percutindo os portões de metal nos caminhos que fazia. Até que um dia assisti um saxofonista tocando chorinho num programa da TV Cultura —— eu sempre assistia a esse programa de Choro na TV Cultura, mas nunca tinha visto um saxofonista tocando chorinho no meio de um regional. Fiquei encantando com o que vi e ouvi e decidi que queria tocar aquilo. Por coincidência, uns amigos tinham começado a fazer aula de música numa escola que tinha recém aberta perto de onde morávamos. O professor era um compositor e multi-instrumentista, o Ricardo Silva, amigo meu até hoje e que tinha estudado composição no mitológico Seminário Livre de Música da Bahia. Como eu não tinha o saxofone e por ele ser um apaixonado por composição orquestral, ele começou a me mostrar peças para orquestra, coisas como Dvorak, Mussorgsky e outros compositores do Leste europeu. Na infância minha mãe gostava muito de nos levar para assistir concertos de orquestras sinfônicas, mas poder escutar acompanhando a partitura, nessa época da vida das transformações e descobertas me fez pensar que eu queria de alguma forma viver aquilo, inventar música. Ele também me apresentou peças do Widmer e falava muito do Lindenberg Cardoso, ambos professores da Universidade da Bahia, o que fez com que eu apontasse a minha bússola para lá pela primeira vez.
O universo da música me engoliu, principalmente depois que eu conheci o Frederico Grassano, uma figura incrível, um violonista genial, que infelizmente foi embora muito cedo. Passamos tardes e noites, entre os anos de 1989 e 1990 escutando muita música contemporânea. Primeiro Boulez, Stockhausen, Berio, junto com muita música brasileira como Hermeto, Egberto, Naná Vasconcelos além de um tanto jazz e rock progressivo. Depois começamos a uma busca do que havia de mais recente, uma ânsia pelo novo. A gente tocava, improvisava, compunha com os nossos instrumentos e tudo o mais que tinha ao nosso redor, mas nunca demos o nome de música experimental, a gente fazia um som, isso sim.
Em 1990 eu prestei vestibular e entrei na Unicamp para estudar composição e lá tive contato com figuras incontornáveis para minha formação, o Zé Gramani, o Almeida Prado, o José Augusto Mannis e, principalmente, o Livio Tragtenberg, que realmente mudou minha cabeça, trazendo muitas referências fora da "velha música nova" europeia. A figura do Livio contrastava porque era um compositor da vida real. Um intelectual autodidata que fazia música para o Kresnik, um dos pais do Teatro-Dança na Alemanha, trabalhava com os irmãos Campos e com o Décio Pignatari (pioneiros do movimento da poesia concreta) e fazia música para cinema, teatro, dança e instalação. Livio trazia uma inquietação criativa, repertório musical, dramatúrgico e filosófico, além de muita literatura e poesia. Ele generosamente compartilhou, partituras e álbuns, que a gente corria pra gravar em K7, pois era uma época em que era caro e difícil de ter acesso a discos importados. Entre as coisas que me lembro dele nos passar, além da trinca Schoenberg, Berg e Webern, constava trabalhos como os do Phill Niblock, Alvin Lucier, John Cage, Art Ensemble of Chicago, Colon Nancarrow, Luigi Nono, Gilberto Mendes, entre outros. Isso tudo me provocou epifanias. A maior delas foi conhecer o trabalho do Smetak, através do livro Artigos Musicais. Eu gosto de ressaltar a importância dele, porque diante de cursos de composição que são verdadeiros cursos de musicologia aplicada, ter alguém que te provoque a criar de uma maneira livre mas sempre municiada de referências, isso fez toda a diferença. Dentre essas epifanias o Smetak foi a maior, fazer a música com as mãos, a partir de materiais encontrados, criar uma arte de fronteira, entre a música, entre as artes visuais e a performance, ritualística, instantânea e exploratória do som e do átomo do som..., o microtom e toda a coisa concebida dentro de uma cosmo-percepção de mundo, isso demoliu qualquer estruturalismo ou fixação tecnológica que não fosse a própria intuição. A música experimental foi uma consequência do mergulho que fiz no Smetak e tudo aquilo que seu universo propunha: A cabaça, como um elemento afro-diaspórico, a música indígena, a improvisação, a ideia do coletivo, o som e a escuta como elementos transformadores. Por isso acho que o meu experimental, está mais para os indígenas Pirahã do que para o Cage.
É importante destacar também o trabalho que o José Augusto Mannis fazia como diretor do CDMC (Centro de Documentação da Música Contemporânea) e divulgador da música contemporânea.Ali a gente tinha acesso às partituras e gravações do que saía na música europeia. Foi ali que escutei algumas peças que me marcaram dentro desse contexto, como "A História do Prazer e da Desolação", do Luc Ferrari. Nessa época eu gostava muito de escutar Scelsi, Dusapin e Bruno Maderna, é o que eu me lembro.
2 - Você escreveu um livro sobre o grande experimentalista e escultor sonoro Walter Smetak: “Walter Smetak, o Alquimista dos Sons” (Perspectiva/SESC, 2008). Como se deu o processo de pesquisa para se ter um compêndio para o livro? Sempre que pesquisamos sobre Smetak percebemos que suas ideias e experimentos suscitaram uma certa “antropofagia” que impactou não apenas o universo da música erudita e dos instrumentistas, mas também chegou a ser influência na Música Popular Brasileira. Em termos de estética, no que consiste as concepções idealizadas por este importante mestre baiano? Qual a amplitude da influência de Smetak e como ele influencia suas criações?
AJMS: Como eu falei na primeira resposta, quando li o artigo do Lívio, sobre o Smetak, foi como uma grande epifania. Embora eu fosse fascinado com tudo aquilo que escutava e estava exposto do pensamento da música de vanguarda, não me sentia dentro daquilo, não era o meu mundo. De alguma forma aquilo dizia respeito aos europeus e norte americanos e seus modos de produzir música. Nunca me senti confortável nesse ambiente, tampouco com aquilo que parecia ser o métier do compositor. Esse mundo não me pertencia e eu não pertencia a ele. Ao ler sobre um suíço que se naturalizou Baiano, que a partir da cabaça visionou um mundo em que a intuição sobrepujaria a razão, e que deveria ser desenvolvida com a improvisação em objetos que estariam entre a música e a escultura, poxa, aquilo fez com que eu imaginasse esculturas sonoras incríveis. O artigo do Lívio não tinha uma imagem sequer e isso me estimulou a imaginar os instrumentos do Smetak, seu laboratório Ovo e outras experiências como coisas fantásticas, que flertavam com o impossível e passei a desenhar e pensar 24 horas por dia no que seria uma música feita a partir de uma escultura sonora. Bom, quando vi, de fato, os instrumentos do Smetak, ao vivo, tive até uma certa decepção inicial, afinal no meu sonho faltavam voar, as Plásticas Sonoras. Depois que percebi que elas eram tão incríveis quanto e as imaginava, porque eram reais, algumas precárias, mas todas impregnadas pelo simbolismo e a própria cosmopercepção do Smetak. Percebi que ali tinha uma riqueza e importância que contrastavam com a condição de preservação da memória e do acervo dele. Isso era ainda no início dos anos 1990, mas eu só ingressei a fundo nisso no mestrado, em 1998, com a orientação do Julio Plaza.
Aos poucos fui percebendo que a obra do Smetak era um oceano! Ele simplesmente encarou as várias questões da sua época e lançou seu olhar para o futuro, como um visionário de uma multimídia unplugged. Mas como falei, essa potência contrastava com as condições de conservação do seu acervo, era como se sua memória vivesse o drama de um herói da tragédia, de um lado um desejo de se escapar do destino trágico, e do outro uma força que fazia com que a tragédia estivesse sempre para acontecer. Ainda hoje é isso, de alguma forma.Mas tentei viver a pesquisa como artista e como pesquisador. De um lado, levantei uma rede de entrevistados que conviveram com ele, fiz algumas entrevistas que me apontaram caminhos na construção da figura dele como artista, como pesquisador, poeta, escultor. Fiz um mergulho no seu acervo, levantando documentos, manuscritos, lendo o que eu conseguia, escutando o que eu podia e tentando cruzar com uma bibliografia que pudesse me ajudar como parâmetro e ferramenta de análise. De outro, mergulhei num processo pessoal de experimentar construir objetos, instrumentos, esculturas que permitissem um entendimento dele como um artesão eclético, um criador inquieto que pensa o instrumento como um instrutor de mentes. No livro prevaleceu o pesquisador, até porque, a urgência em se trazer à tona o artista Smetak, fugindo de uma certa folclorização do seu caráter, isso era mais urgente. Era urgente posicionar ele frente à arte do seu tempo.
Para além da relação que ele estabeleceu entre a Teosofia e a Música, através das Plásticas Sonoras, Smetak trabalhou com questões que hoje estamos debruçados. Como o desenvolvimento de uma organologia própria, com instrumentos cinéticos e coletivos; a ideia do compositor-performer, que desenvolve seu próprio "set"; na busca do entendimento da física nuclear, que era uma espécie de zeitgeist da época, ele mergulha no universo microtonal, mas de uma forma muito particular, porque mais do que a criação de um sistema microtonal, ele tinha o entendimento de que a questão estaria no que seria o átomo-som; o uso e estudo da improvisação como um sistema de criação com o mesmo estatuto da composição; a criação de instrumentos a partir do reaproveitamento de objetos; a ideia da plástica sonora silenciosa, que pra mim é o embrião da arte sonora, porque prescinde do som como fenômeno acústico e vai lidar com ele como signo; as relações entre luz e som na criação artística, enfim, são tantas frentes abertas e concepções idealizadas e investigadas por ele e que hoje movimentam as inquietações de pesquisa e criação, que ficaríamos numa conversa sem fim.
A pesquisa sobre o pensamento e poética do Smetak me ajudou muito na estruturação de um modo de atuação musical, criação e percepção da relação entre a sonoridade e a visualidade. Quando penso na poética do Smetak, penso em algo transdisciplinar, em que a construção do objeto a partir de fragmentos de outros objetos, já é, em si, uma criação sonoro/musical, que envolve também uma performatividade exploratória, intuitiva e gestual, que também é marcada por uma discursividade sobre a criação que imanta no objeto uma propriedade simbólica, que o nomeia e o define como um ser, isto é, lhe dá um sentido de existência. Isso me interessou desde o início, inclusive um aspecto que não é tão presente mas que se apresentou para mim como possibilidade, que é uma transitoriedade do objeto em todos os seus sentidos. Isto é, Smetak me fez pensar que as esculturas sonoras podem ser transitórias, podem ser desmontadas e transformadas em outros trabalhos, como se a existência delas pudesse ser finita também, e dos seus fragmentos constitutivos, conceituais e materiais, eu pudesse criar algo novo e igualmente transitório. Frequentemente desmonto algo que já criei, dei nome e sentido de existência, para "encantá-lo" como outra ou outras criações, com outras histórias, outros sentidos existenciais.
Sobre o álbum, o Alquimista dos Sons, eu compus na ocasião da editoração do livro. A editora Perspectiva queria que o livro fosse acompanhado de um CD. Na época da pesquisa eu havia digitalizado todo o som direto do documentário Smetak, do Luiz Carlos LaSaigne e pensei que no álbum eu poderia realizar algo que na pesquisa acadêmica e no texto não explorei muito, que foi a pesquisa artística que acompanhou todo o processo desde que conheci, pela primeira vez o trabalho desse suíço-baiano. Tentei estabelecer um diálogo entre as falas do Smetak e minhas criações, trazendo também as parcerias que fiz nesse processo e que se relacionam com uma forma de eu me aproximar e me apropriar daquilo tudo que eu estava descobrindo.
3 – Em seus discos e registros, percebemos que o processo da luthieria experimental, onde você mesmo constrói instrumentos-esculturas ou modifica instrumentos convencionais, é uma das principais vias criativas. Você sempre integra a descoberta desses sons de instrumentos construídos (e/ou descobertos/ modificados) com formas posteriores de composição e manipulação a fim de registrá-los numa obra? Ou tem alguns processos de construções em que você idealiza os sons apenas para mostras e instalações? Em que momento você decide que esses sons devem tomar formas composicionais mais elaboradas ou devem rumar para uma via de peças improvisadas?
AJMS: É importante dizer que não sou um luthier, isto é, não tenho a técnica ou a formação e conhecimento de um luthier tradicional. Minha habilidade nesse campo está em resolver os perrengues poéticos que eu mesmo crio. Aliás, resolver os meus perrengues poéticos talvez seja minha maior especialidade. Eu penso que o estar à escuta é meu modo de estar no mundo e é o que me define como músico. Gosto de perceber a sonoridade das coisas, nos seus detalhes visuais também, o que me instiga a juntar coisas diferentes como a ideia de uma composição. Eu já tive muita crise com o sentido dado a ser compositor, mas hoje acho que compositor é alguém que possibilita escutas, outras escutas. E, no meu caso, quando junto esses fragmentos de coisas para criar uma escultura sonora, estou criando uma possível escuta, não só desse objeto em si, mas também a escuta dele em relação ao espaço em que ele se encontra e reverbera. Poder pensar nessa condição de criar e proporcionar escutas e formas de escutar, me fez pensar sobre o que me move nisso tudo e, por isso tenho tentado esboçar um pensamento, que é uma alternativa à ideia da poética aristotélica e que tem a ver transformar o ordinário em extraordinário. Na junção das palavras em yorubá Ìbí Eré Alárà, forma-se uma expressão, segundo o meu Oluwo, que dá o sentido de nascimento de uma criação sobrenatural, mas que eu penso que seria algo como fazer nascer, criar, botar e confrontar com o mundo, a partir do jogo, seja ele tomado como uma brincadeira espontânea ou de estratégia, algo que transforma o ordinário em extraordinário. Dito isso, quando eu crio um instrumento, eu penso que estou compondo uma música ou um sistema de se fazer música, a partir de objetos simples, do cotidiano, que tem lá suas funções dentro dos seus contextos próprios, mas que deslocados dessa função e juntados com outros objetos criam a possibilidade visual e sonora de se transformar em algo extraordinário, quer dizer, fora do uso comum. E isso possibilita a escuta desse extraordinário.
Com algumas exceções, o que construo tem um aspecto de emblema, um aglutinado de formas de objetos que se juntam. E brinco também de criar uma narrativa existencial para eles. Dar nome e uma relação com algo que esteja dentro do meu imaginário, ou da minha cosmopercepção.
Esse aglutinado simbólico e sonoro formam esses objetos e é o que me interessa trazer à tona para explorar musicalmente. Acho que eles possibilitam uma experiência de escuta que envolve não só a sonoridade deles, mas a visualidade e a fisicallidade também. Para mim passam a ter a qualidade de um Igba, que pode ser traduzido como cabaça, mas nesse caso, penso como se fossem assentamentos, que nas culturas religiosas afrodiaspóricas são os objetos que transformam a energia material numa energia imaterial. Transformam a oferenda ou o Ebó, em alimento sutil para os Orixás. No caso desses instrumentos que faço, a fisicalidade, a materialidade dos objetos que compõem esses emblemas, permitem que, na performance, elas se convertam em energia acústica, energia sônica, som, música. E essa transformação pode se dar tanto na improvisação e interação entre mim e os Igbas, quanto nos processamentos eletroacústicos. Porque no fim, tudo ainda gira em torno da ideia do Ìbí Eré Alárà, isto é, criar algo sobrenatural e para mim a música, como experiência de escuta tem algo de sobrenatural, de extraordinário.
Na série dos Orixás Sonoros eu tenho gravado esses Igbas e a partir do processamentos desses áudios crio peças sonoras, como no caso dos álbuns Mojubá Exú e Ògún Lákáayé, ambos lançados pela Sirr-ecords, de Portugal. Nesses dois trabalhos, tento acessar o que percebo como a energia desses Orixás e faço isso utilizando a sonoridade dessas esculturas para que o processamento quase desmaterialize a fisicalidade delas e transforme tudo em energia sônica. Nesses casos, gosto de expor esses trabalhos, com a audição dessas peças feitas a partir deles.
Pensando na sua pergunta, acho que a decisão sobre como lidar com esses sons descobertos depende sempre da estratégia para se criar uma situação de escuta. Seja numa album, ou numa instalação num lugar específico. Lembro aqui de um trabalho em que criei uma situação de escuta das cigarras. Em alguns períodos do ano elas cantam sem parar e criar uma situação em que as pessoas parem suas ações cotidianas para escutá-las já é, em si, uma criação musical.
Em outros trabalhos como no Habitar as Coisas, lançado pelo selo Brava, ou mesmo nas performances ao vivo, eu preferi e prefiro a relação direta com os instrumentos, sem interfaces, ou processamentos. Gosto da vulnerabilidade e risco de improvisar com esses instrumentos de forma acústica.
PROJETO MATABIO - MARCO SCARASSATTI & LIVIO TRAGTENBERG |
4 - Você também tem uma faceta muito interessante que é atrelar a plástica sonora com o visual em instalações e exposições. Conte-nos como acontece esse intercâmbio entre as estéticas sonoras e as estéticas visuais. Com quais artistas plásticos já colaborou?
AJMS: Acho que a escultura sonora me fez pensar, primeiro nessa tridimensionalidade agregada por uma quarta dimensão, que seria o som, para depois me fazer pensar no espaço e as formas de agir sobre ele com o som. Na verdade, não foram tantas colaborações com artistas visuais, foram trabalhos pontuais. O primeiro foi o desenho sonoro para uma exposição de fotografias, da Alessandra Meleiro, com os artistas do hospital psiquiátrico Cândido Ferreira e seus trabalhos, isso em 1999, no Museu da Cidade, em Campinas. Depois disso, colaborei com o artista Ronaldo Macedo, na sua exposição Nonada, fiz o desenho sonoro da exposição, em 2004 no Sesc Paulista. Mais tarde, ainda quando morava em Campinas, fiz também a música para a instalação I-Ching, do André Brandão, no MAC Campinas. Já em Belo Horizonte, quando estava desenvolvendo meu projeto dos Rios Enclausurados, convidei o artista Fernando Ancil e pensamos juntos uma instalação sonora numa das principais avenidas de BH. Ali criamos um rio aéreo, através de uma estrutura de som utilizada pela radio-feira, e difundimos pela extensão de 300 metros, os sons dos rios canalizados que eu tinha gravado e mixado. Foi um trabalho de proporção ambiental que interferiu na escuta da cidade. Foram três meses em que essa inundação acústica tocava por 12 horas por dia, durante a exposição Escavar o Futuro, em 2013, com curadoria da Renata Marques e Filipe Scovino, no Palácio das Artes de Belo Horizonte. Depois disso, fiz uma intervenção num dos corredores da Faculdade de Educação que dei o nome de Memorial dos Cantos Indígenas. Era um corredor vazado dos dois lados com cobogós e dispus as caixas de sons de modo a parecer que o vento trazia o canto de alguns dos povos indígenas brasileiros. Acho que isso foi em 2014. Em 2016 veio o convite do Chico Dub para participar do Festival Tonlagen, em Dresden, na Alemanha e ali fiz a instalação Oyá dança entre Ogun e Xangô, no lado externo do Teatro Hellerau, que foi também a primeira vez que expus a série Orixás Sonoros. Em, 2018 a Lilian Zaremba organizou uma mostra na Galeria Milan, com trabalhos dela, do Julio de Paula, da Renata Roman e meu. Mais uma vez apresentei os Orixás sonoros, dessa vez com o Èṣù e outra versão da Oya. Nesse mesmo ano, fui convidado pela Alana Silveira para fazer uma instalação sonora no Coati, da Lina Bo Bardi, em Salvador, ali criei uma Iyabá, representando as orixás femininas, um trabalho bem instigante. Depois veio a pandemia e durante ela eu colaborei com uma versão instalativa de uma peça que o Livio Tragtenberg fez do Guilherme Vaz, projetei uns braços messiânicos que tocaram os maracás da Sinfonia dos Ares. Em 2022 veio o convite do Festival Cultureescapes na Suíça que encomendou uma série de trabalhos para mim e para o Livio e criamos juntos a MataBio, uma mata-orquestra, feita de árvores derrubadas e queimadas, convertidas em esculturas sonoras. Esse trabalho foi exposto no Museu Tinguely e é importante destacar a colaboração técnica do artista Gilberto Macruz. Com o artista Fernando Ancil eu voltei a colaborar em 2023, junto com o Thelmo Cristovam, numa instalação com o nome de Tempestade. Nesse momento eu estou com trabalhos em São Paulo, na exposição Virada Sônica, com curadoria do Chico Dub e no Rio de Janeiro na exposição Arte Sonora Ano 15, com curadoria do Franz Manata e do Saulo Laudares. Acho que é importante destacar a parceria que tenho feito com o cineasta Luiz Pretti, com ele fizemos o Anestesia, um filme-partitura, o duo câmera e improvisação, além do filme Vira a volta e faz o nó, junto com outros dois queridos parceiros o cineasta Ewerton Belico e o poeta Ricardo Aleixo.
5 – Lembro de ter ouvido um registro seu chamado Crônicas Sonoras de Cabo Verde (2019), onde você capta alguns sons na Costa Africana, em Cabo Verde, e os sequencia meio que numa “peça-trajeto”. Fale-nos desse projeto! Como se deu esse seu fascínio pelos sons da natureza e as gravações de campo? Penso que no Brasil há regiões ricas nesse sentido, onde os próprios sons das coisas, das pessoas, das florestas, dos animais, das movimentações (rurais ou urbanas) já soam musicais por si e em si só (como bem salienta Hermeto Pascoal, por exemplo...). Você tem registros lançados com gravações de campo em viagens pelo Brasil? Conte-nos sobre algumas delas!
AJMS: Essa viagem me marcou demais e abriu um campo de possibilidade que ainda quero investir e explorar mais. A viagem em si e as gravações foram feitas em 2015, dentro do âmbito do projeto de mobilidade internacional e de cooperação acadêmica da CAPES com países falantes da língua Portuguesa. Dentro do projeto que envolvia várias professoras e professores da Faculdade de Educação da UFMG, o meu objetivo inicial era produzir uma cartografia sonora das ilhas, considerando os sons da natureza, dos seres humanos e também mecânicos. Mas a dinâmica dos acontecimentos nas ilhas, os contatos, os encontros, as histórias, me fizeram pensar que a ideia de cartografia não dava a dimensão de uma observação mais poética do vivido nas ilhas. Havia algo mais fluido e interessante na escuta das histórias, na escuta da língua cabo verdiana, nas músicas e suas personagens, nos sons do trabalho, nos lugares e também na própria escuta daquele mar arrebatador. Eu ainda estava em Cabo Verde e já tinha renomeado o trabalho para uma crônica poética, ou melhor, de crônica sonora; espécie de memória auditiva das situações de viagem.
Eu fiz essa viagem com a colega de departamento e amiga, a poeta Miria Gomes e visitamos quatro das ilhas do arquipélago. Santiago, São Vicente, São Antão e a Ilha do Fogo, chegamos no meio do carnaval de Mindelo, mas eu acabei adoecendo e isso me tirou alguns dias, pois fiquei com febre e sem muita disposição. Ainda assim, foi incrível viver um pouco do carnaval dos Mandingas e a noite boêmia da cidade. Eu gravei em todas a ilhas que visitei, mas acabei fazendo um recorte nessas crônicas, utilizando as experiências vividas entre São Vicente e Santo Antão, as travessias de Ferry Boat e as as memórias desse trânsito entre ilhas. Ainda ficaram de fora gravações do funaná da Ilha do Fogo e o Batuco de Santiago. No álbum Diário de Gravação fiz uma faixa com os sons da Ilha do Fogo e suas pedras vulcânicas, mas esse trabalho que chama de peça-trajeto, fiz entre essas duas ilhas incríveis. A edição do album foi feita pelo selo Lapetite Chambre de BH que propôs fazer em K7 e editar junto com a Autogenesis Magazine, de Berlim. que convidou escritores portugueses e cabo-verdianos, como o Pedro Matos a escreverem ensaios a partir da escuta das Crônicas sonoras. Os textos ficaram incríveis, uma pena ter circulado tão pouco.
Bom, esse trabalho fez com que eu propusesse ao ensemble CEMLA do Chile a realização do Cuatro Crónicas Acerca de la ciudad y la ancestralidad, que contou com o financiamento do Ibermúsicas e foi editado pela Buh Records, sediado no Perú. Esse trabalho partiu de uma gravação que fiz no Aglomerado da Serra, em BH, em que escutei um som que eu não conseguia identificar qual era. Numa conversa com a Iyalorixá e Iyalode Nílsia, ela me falou do som do Egungun, que parecia dois ossos batendo. Na hora lembrei da gravação e do som não identificado e escrevi para os integrantes do CEMLA com a proposta de gravar os ancestrais entre Belo Horizonte, São Pedro do Atacama e Valparaíso e utilizar essas gravações como audiopartituras. Foi mágico todo o processo. Eu tenho muita vontade de fazer isso pelo Brasil e pela América do Sul.
Eu tenho muita vontade de refazer o percurso que meu bisavô conta numa conversa dele com o meu avô, gravado em 1971, em que ele conta que era almocreve e viajava pelo sertão pernambucano, atrás de uma caixa de fita de cetim. Eu já fiz vários experimentos com essa gravação, mas meu desejo era poder refazer os passos dele, nessa aventura em que ele dizia ter passado pelos revoltosos e pelo bando do Lampião. É uma tremenda história.
De gravações de campo que eu lancei, tem os Rios Enclausurados, que saiu pela Seminal Records, e o Diário de Gravação, também pela Seminal. Tenho algumas gravações, como no Lago Macurani, no Amazonas e algumas outras que ainda não foram editadas para lançamento. Mas certamente, viajar pelo Brasil fazendo essas crônicas é uma grande ideia.
6 - Como a ancestralidade cultural afro-brasileira impacta em sua obra e em suas preferências?
AJMS: Obrigado por essa pergunta, acho que a relação com a ancestralidade é intrínseca à nossa condição de existência. De um lado ela está impressa nas nossas características físicas e também espirituais e nesse ponto, ela nos é inescapável, por outro ela precisa ser cultivada, cultuada, acessada. Nossos ancestrais, isto é, aqueles que completaram um ciclo de existência no Ayé deixando um legado hereditário, são nossos orientadores e protetores, como os Orixás, mas precisamos acessá-los e cultuá-los. Essa é um pouco a concepção do povo yorubá. E por isso, minha percepção do que é a ancestralidade se deu na medida em que aprofundei minha relação com o Candomblé. Depois de iniciado no Ifá isso tomou uma outra dimensão na minha vida e em tudo o que faço, porque, de alguma forma, os Odù falam daqueles que vieram antes de nós e viveram aventuras e experiências que nos ensinam. Fui criado com meus avôs maternos e tanto minha avó, quanto minha bisavó e mesmo meu avô contava muitas histórias de suas vidas, seus parentes e seus desafios vividos. A oralidade, isto é, tudo aquilo que me era contado, de certa forma me conectava com muitas pessoas que vieram antes de mim, meus parentes e que não conheci. Com meu pai, que era filho de italianos, tive pouco contato com ele na vida, sei muito pouco das origens e das histórias.
Dessas histórias da minha avó e bisavó materna, muitas são tristes, minha mãe é negra, com o sangue e a pele marcadas pelas miscigenações violentas, características desse Brasil, mas do ponto de vista religioso, não tínhamos acesso a religiões de matriz africana, diretamente. O interessante é que minha avó e minha bisavó, que era preta retinta, eram ligadas a um culto religioso japonês, que por coincidência reverenciava os antepassados. As duas eram muito dedicadas a isso, cultuar os antepassados e cuidar das pessoas. Já meu avô era totalmente avesso às religiões, tinha lá suas crenças, mas era muito cético pelas relações de poder, principalmente no cristianismo. Minha mãe, na minha infância, era espírita e, de alguma forma, essa mistura me influenciou. À medida que fui crescendo, as religiões de matriz africana foram me atraindo. E a aproximação ao candomblé, foi o que me trouxe também a conscientização política das questões raciais que envolviam a minha família. Isso deu à relação com a ancestralidade um contorno político também. E, nesse ponto, tudo se tornou incontornável quando minha filha mais velha me questionou do porque eu não me autodeclarava negro. Isso me fez questionar toda a minha educação e a maneira como nos relacionamos com esse assunto em casa. Ao mesmo tempo, me fez relembrar muitas das histórias que passamos, como família e as histórias que me foram contadas na infância.
Eu passei a viver o candomblé em 2004 e, apesar, de ter feito meus assentamentos na casa em que eu frequentava, eu só me decidi pela iniciação, quando conheci mais a fundo o Ifá, banhei meu Orí nos segredos de Orunmilá e desde então tenho estudado os Odù e feitio os rituais necessários dentro do meu caminho como Awo, que sou por destino. Isso mudou profundamente minha percepção das coisas, do que faço e como faço, ao ponto de no ano passado assumir meu nome artístico com meu nome de iniciado, Ajítẹnà. Acho que esse processo de transição artística tem sido feito desde 2014 quando fiz a primeira Iansã/Oya. Depois, em 2016, isso se afirmou como um caminho, quando eu fiz a série dos Orixás Sonoros, em Dresden, na Alemanha. Hoje tenho a relação com a minha ancestralidade que torna cada vez mais urgente indissociar aquilo que faço com aquilo que sou, no sentido do meu caminho espiritual e artístico.
7 – Suas criações e peças são muito atreladas às gravações de campo, ao primitivismo do sons crus descobertos em luthieria experimental dentro da seara de "esculturas sonoras" e às peças abertas ao livre improviso. Você é adepto em amalgamar esses sons orgânicos com sons elétricos e eletrônicos? Como você incorpora a influência da eletroacústica em suas concepções?
AJMS: Volto aqui a pensar na minha condição ou no meu modo de estar no mundo, que é pela escuta. E também na ideia de que a composição musical é criar uma situação de escuta, de transformar algo que vem da experiência do comum e possibilitar uma experiência de criação e escuta, que não seja comum. Às vezes a situação e as condições de gravação podem não ser as melhores, mas se há algo nessa experiência de escuta primeira, a identificação de algo que valha a pena transformar e compartilhar, isso me interessa gravar. Dito isso, conto um pouco desse meu contato com a música eletroacústica. Em 1994 fui bolsista do Festival de Inverno de Campos de Jordão, ali tive aula com o Flo Menezes e o Silvio Ferraz e foi meu primeiro contato com a música eletroacústica no sentido da feitura, da criação e também da dimensão socioeconômica desses dispositivos. Vendi meu saxofone e comprei um PC 386 e uma placa de som, era o que eu conseguia comprar e logo vi que era insuficiente perto do que faziam os grandes estúdios de gravação. Nesse ponto, acho que descobrir a artesania da construção de instrumentos visitando ferros-velhos e depósitos de ferragens, me permitiu explorar a sonoridade desses objetos, da mesma forma como alguém mexe nos parâmetros de um áudio. Mas isso não significa que não fiz peças eletroacústicas, fiz com o que tinha à mão. Dessa época, fiz o Transmutação e o Violão Imaginário que estão presentes no álbum o Alquimista dos Sons. Mas depois começou a me interessar a sonoridade acústica dos instrumentos, o uso da energia humana e não elétrica na ativação sonora dos objetos musicais e o uso dos diferentes tipos de microfone para captar esses sons me pareceu revelar um microuniverso dentro de cada coisa sonora. Só que mais uma vez eu tinha uma limitação financeira. Fui pai muito cedo e comprar equipamento nunca foi uma prioridade pra mim. Na época do Stracs de Harampálaga, que era um grupo de intervenção em espaço público, gravávamos nossos ensaios, nossas conversas e nossas intervenções, tanto em MD, quanto em vídeo e mesmo em super 8. O Marcelo Bomfim, que junto com o Eduardo Nespoli, formava o grupo, era quem tinha um gravador, em mini disc e essas gravações eram sempre instigantes pelo espaço sonoro criado e que interagia e intervia no espaço geográfico. Esse grupo existiu de 1998 a 2001. Depois disso eu e o Marcelo começamos trabalhar dentro da minha casa, como uma casa acústica, nome que mais à frente dei para um dos meus álbuns. Mas ali, naquele momento surgia o Sonax e a ideia era gravar cada um dos instrumentos que eu inventava de uma maneira a explorar mais as micro-sonoridades de cada um deles. Nesse momento, o espaço geográfico se converteu em espaço miniaturizado, em cada escultura criada, era nosso interesse gravar os detalhes da sonoridade dos instrumentos. Foi nessa época que convidamos o Nelson Pinton. Em princípio só pra gravar a gente no estúdio dele, mas depois ele começou a improvisar com a gente, usando o piano e manipulando os sons em tempo real.
O sonax mesclava o acústico e os processamentos de uma maneira interessante e isso pode ser escutado tanto no bandcamp do selo Creative Sources quanto no Seminal que relançou esse álbum de 2008.
Quando eu me mudei para BH senti necessidade de voltar a trabalhar com o processamento dos sons no computador, mas resolvi fazer isso de uma maneira mais empírica, pequenos experimentos que envolviam erros, redefinição de caminhos mas sempre tentando conjugar na mesma gravação o entorno sonoro e os instrumentos com os quais eu improvisava. Esse processo resultou no álbum Novelo Elétrico que eu também lancei pelo Creative Sources. Eu pegava cada gravação e esgarçava as possibilidades, alterando totalmente o som e a relação com o espaço. Aliás, pensava muito mais em criar um espaço que o ouvinte pudesse habitar durante a escuta do que propriamente fazer música. O Novelo Elétrico se configurou como o início de um tríptico em que a escuta, a gravação de campo e a improvisação, sempre no mesmo lugar, meu apartamento, fez resultar três trabalhos com abordagens diferentes: O Novelo Elétrico, A casa acústica (Creative Sources) e Rua Herval (Homeless Low fi). Eu relato isso no texto que escrevi para o livro comemorativo do Festival Novas frequências.
Trabalhos como Mojuba Exu, Ni yuxibū xinã rewe ou Ògún Lákáayé (todos lançados pelo sirr ecords de Portugal), são realizados a partir de processamentos de sons acústicos, mas tem características mais eletroacústicas. Acho que cada projeto se define no processo de concepção e feitura dele. Mas de fato, acho que me atrai a ideia da junção entre a gravação de campo e a interação musical a partir dela. Talvez o exemplo que mais gosto, nesse sentido, é a peça Fim de Semana que está no álbum diário de gravação, lançado pela Seminal. Ali gravei num ambiente rural, na Lapinha da Serra, em Minas. Quando estava gravando encontrei um bambu grande e queimado com algumas rachaduras. Explorei e abri um pouco mais essas fendas e gravei um take improvisando nele. Depois trabalhei no computador esses sons e "devolvi" esse objeto sonoro processado à cena original, a gravação de campo. Gosto do efeito de desnaturalizar a gravação de campo, nesse caso.
Há quem critique o Ni yuxibū xinã rewe, que fiz com o Ibã Huni Kuin, dizendo que eu deveria ter mais cuidado na gravação, ou na manipulação, no uso da granulação. Essa gravação foi feita num momento especial, mas era impossível ter uma condição de gravação ideal, eu não acho que esteja fazendo essa música eletroacústica, de laboratório. A experiência de escuta desse álbum é a tentativa de fazer uma música de miração, a experiência de escuta sob a condução da ayahuasca, a partir de uma experiência de escuta, no quintal de uma casa, não na gravação do canto huni kuin em estúdio e sim, numa situação de primeiro contato com o Ibã e seu canto ritualístico.
8 – Como a improvisação livre influencia sua criatividade? As experiências em contracenar com improvisadores europeus mudam muito de conceito em relação aos seus experimentos nacionais e suas contracenações com músicos brasileiros? Fale-nos um pouco dos seus registros editados pela gravadora portuguesa Creative Sources Recordings.
AJMS: Eu adoro improvisar e pensar na experiência da improvisação. Para mim ela dimensiona o que é viver profundamente a experiência do tempo presente e isso me mobiliza muito mais do que qualquer outra coisa na música. O Rui Eduardo Paes, me convidou uma época para escrever uma coluna mensal sobre improvisação na Jazz.pt e isso me provocou boas escritas e bons pensamentos. Uma pena que as demandas da vida acadêmica me fizeram desistir após alguns escritos, mas ainda quero retomar isso, porque realmente a improvisação me instiga a pensar e a criar. No Habitar as Coisas, que lancei pela Brava, ano passado, pensei muito no instrumento, como uma espécie companheira que se relaciona com a gente através da improvisação, um atuando sobre o outro. E habitando conjuntamente esse espaço sonoro audível criado. Você divide e habita a improvisação junto com o instrumento, enquanto interage com ele. No caso dos instrumentos inventados que não carregam o estigma de um idioma formalizado por um repertório histórico, isso me parece mais evidente, embora ache que há sempre a possibilidade de acessar o instrumento musical, qualquer ele, como espécie companheira no ato exploratório.
Na improvisação coletiva isso ocorre também, mas há, de um lado, uma negociação, há uma política que envolve as outras pessoas. Inclusive em um dos textos que escrevi para a Jazz.pt, pensei a improvisação como uma energia ondulatória gerada por quem está improvisando e que ao mesmo tempo permite ao performer "surfar" essa onda. Hoje, não que eu não acredite mais nisso, para mim isso acontece muitas vezes, mas é preciso reconhecer que há uma política da improvisação que envolve quem organiza, o espaço/lugar, o equipamento, as e os improvisadores e improvisadoras e suas posturas em relação à improvisação, a relação destes e destas com seus corpos, seus instrumentos escolhidos, as questões de gênero, as questões raciais, a própria relação com o público e a relação com o ambiente; e tudo isso atua sobre essa ondulatória, as vezes dando força a ela, as vezes a enfraquecendo. Acho que a improvisação te leva a um estado mental próprio, talvez seja por isso que o Smetak dizia que a improvisação desenvolve a intuição como uma faculdade mental.
Em relação à contracenar com improvisadores de outros países é sempre interessante, porque há um saber que se constitui na prática, no próprio improvisar. E estar em contato com pessoas que vêm de outros lugares, têm formação diferente da sua, tem abordagens diferentes, vem de culturas diferentes da sua, é sempre desafiador e instigante para mim. Eu acho que você aprende muito sobre lidar com a alteridade, lidar com o outro. Me lembro aqui da experiência do MIA, o festival de música improvisada de Atouguia da Baleia, em Portugal, que tem um formato bem interessante, com sorteios de grupos em que você improvisa muitas vezes com pessoas que você sequer conhece. Há também combinações pré-estabelecidas. Essa mescla faz com que de um lado você improvise com o Alex Dorner, ou o Carlos Zíngaro numa formação e, na mesma tarde, com músicos sem tanta experiência. Ou ainda possa experimentar formas de conduzir improvisação em grandes grupos.
Mesmo com essas experiências que vivi, quero evitar generalizar, porque eu me movimentei por alguns circuitos e penso que, ainda assim, não foi tão abrangente a ponto de ter um panorama geral. Do que percebi, há talvez, uma diferença de abordagem da improvisação entre nós brasileiros e os músicos europeus, e ainda que isso varie de artista para artista, em geral lá fora há um predomínio do uso do instrumento tradicional com uma propensão maior a uma abordagem não idiomática. Talvez a postura de escuta, durante a improvisação, também seja um pouco diferente, já que boa parte das improvisações que eu participei foram gravadas para posterior publicação, o que me parece fazer com que eles tenham uma contenção-concentrativa maior no lidar interativo com o material musical. Isso não significa que eu não me deparei com músicos que pareciam falar sozinhos, eloquentes demais, só queriam a onda para as suas manobras, querendo ser vozes paralelas, com pouca escuta do todo. Enfim, acho difícil generalizar. É como se cada grupo que se forma para improvisar redefina o que é o fazer musical no instante em que performa.
Ainda falando de uma possível diferença, acho que no Brasil e, mesmo em experiências na América do Sul, acho que há uma diversidade instrumental maior, as formações são mais diversas, com uma maior presença de uma luthieria experimental (eletrônica, digital ou acústica), presença maior de instrumentos étnicos e um uso mais despojado do instrumento musical tradicional -- me lembro aqui de uma impro no Chile em que um músico levou um violão sem cordas, foi genial. Eu tenho detestado essas distinções mas acho que a improvisação aqui se vincula a ações mais da música chamada experimental e lá o vínculo é maior às vanguardas eruditas e do jazz europeu, ainda que cada vez mais aberto ao experimentalismo.
Na verdade, mais do que uma diferença entre improvisadores europeus e brasileiros, percebo uma diferença de postura entre aqueles que pensam e se comportam numa sessão de improvisação como se fosse um concerto (acho que esses são os que tem uma abordagem mais acadêmica e esquecem que o corpo improvisa junto) e aqueles que vivem a improvisação como um encontro festivo e cúmplice, uma partilha. Nestes mais festivos percebo que o corpo improvisa junto e são com quem mais me identifico. Quando um encontro desses acontece, parece que somos todos transportados para um outro lugar. Ainda sobre isso, há um compositor e teórico nigeriano, o Meki Nzewi, que fala de composição em performance como um ritual, como um conceito africano de composição espontânea de experiência participativa, e eu fico pensando que, de alguma forma, esse talvez seja um modo de se estar numa improvisação, você se soma ao outro de uma forma festiva, no sentido do encontro e de forma a fazer prevalecer a construção coletiva. Fico pensando que isso tem a ver com algumas formas de improvisar.
Outra diferença reside mesmo em como a cena se estrutura, numa economia e numa política dos arredores da improvisação. Quando acontece um festival, há uma produção de textos críticos em blogs e mesmo nas midias locais. Quando eles publicam seus álbuns, há também uma mediação crítica maior. Eu sou um dos que acham que a mediação crítica é sempre importante, isso alimenta uma cadeia criativa, aproxima e forma público, ajuda a pensar o nosso tempo e esse aspecto da música como uma produção local. Eu tenho como ideal a postura crítica e política do ensaísta Amiri Baraka, que em seu exercício literário e de escuta crítica identificou numa cena local, algo seminal, se tornando um cronista do seu tempo. Percebo que há mais interesse em saber do que acontece fora do que nas experiências que se multiplicam no Brasil, seja em festivais, álbuns ou nos projetos de improvisação semanais.
Mas voltando aos álbuns lançados com músicos internacionais, depois do álbum do Sonax, meu trio com o Marcelo Bomfim e Nelson Pinton que ganhou críticas muito positivas no ano que saiu, eu tenho mais dois registros gravados de improvisação coletiva pela Creative Sources, uma delas é o Rumor, que foi uma sessão maravilhosa com o Abdul Moimême na guitarra preparada, a Gloria Damijan no piano de brinquedo e o Eduardo Chagas no trombone. Para mim é um álbum muito especial que tenho muito prazer em re-escutar de tempos em tempos. Outra sessão genial foi com o Ernesto Rodrigues, que é o diretor do selo e tem um legado musical incontestável, com álbuns primorosos nessa sua forma de improvisar, perto do silêncio. Esse álbum que além da presença do Ernesto com sua viola, tem também o Guilherme Rodrigues no violoncelo e pocket trompete e o Nuno Torres no sax alto. Primoroso esse álbum que dei o nome de Amoa Hi, que é a árvore dos cantos sagrados do povo yanomami. Todos concordaram e acho que tem muito a ver com o resultado dessa improvisação. Mais recentemente eu lancei com o Abdul o Zero Out, era um sonho compartilhado fazermos esse duo, o Abdul é muito querido e um músico excepcional com quem gosto demais de improvisar. E vale destacar também o álbum Psychogeography, an Improvisational Derive com o Otomo Yoshihide, o Panda Gianfratti e o Paulo Hartmann, esse álbum saiu pela polonesa Nottwo e considero como dos melhores álbuns que participei de música improvisada, foi um encontro incrível durante o Improfest.
9 – Como você vê a Música Experimental no Brasil atualmente? É uma via ainda fadada aos circuitos mais marginais, ao underground? O ambiente acadêmico ainda proporciona um ambiente propício para amplas pesquisas e experimentações sonoras como nos tempos em que a Universidade Federal da Bahia, por exemplo, foi um dos núcleos mais avançados de música experimental e de música de vanguarda do Brasil, quando Walter Smetak e vários compositores contemporâneos legendários faziam parte do corpo docente?
AJMS: Acho que a música experimental brasileira vai bem, muitas iniciativas acontecendo de forma mais descentralizada, muitos selos, programações semanais e festivais. Acho que é um panorama interessante, comparado com o que era há dez anos atrás. Há um trânsito maior de artistas entre os circuitos marginais e festivais mais estabelecidos que se internacionalizaram. Ainda acho que é importante que haja mais isonomia de tratamento e cache entre os que vêm de fora e os artistas brasileiros, assim como a atenção maior da crítica ao que fazemos aqui. Acho que esse circuito está menos branco, mais periférico e menos excessivamente masculino. Ainda há muitos desafios nesse sentido, raciais, de gênero e financeiros. Até porque não há uma economia para a música de invenção, mais exploratória e experimental, o que só privilegia quem não precisa disso para viver.
Uma situação interessante também é que, boa parte das pessoas que atuam estão, de alguma forma, ligados ao meio acadêmico, isso ajuda num pensamento crítico em relação a como se estrutura esse tipo produção musical. Entretanto, quando leio os trabalhos percebo que a conceituação do que é experimental não dá conta da experiência brasileira, é como se a epistemologia da área ainda replicasse em conjunto de autores e autoras que abordam a música experimental a partir das discussões entre vanguarda e o experimental na música de concerto, ou centradas na cena estadunidense. Ou muito centradas no uso de um tipo de tecnologia de manipulação sonora via eletrônica e eletroacústica e isso deixa de lado experiências como as que aconteceram na Bahia, nos 1960, com o próprio Smetak ou o Djalma Correia, ambos abordaram os desafios da música do seu tempo, e hoje, esses desafios são algumas das práticas que para mim definem um experimentalismo brasileiro.
É interessante... eu mesmo, até pouco tempo não me definia como músico experimental, sem um desconforto. Eu não sou "cageano", sou mais "smetakiano", bricoleur no sentido do Lévi-Strauss mas fui aderindo ao termo por uma necessidade de colocação do meu trabalho nos projetos que estavam acontecendo na época. Eu via o experimental, como via também a arte sonora, como termos mais inclusivos, que incluíam a própria música. Atualmente prefiro ser experimental no sentido da etnia Pirahã, em que tudo parte de experimentos e que os erros permitem outros caminhos e outras criações.
A arte, a música, como já disse o Guilherme Vaz, é uma filosofia encarnada. Ela é um saber em si e um modo de pensar o mundo, a existência. Eu acho que há um saber que se constitui na prática, na criação, musical ou artística e, nesse sentido, o artista é, por si só, um mestre de um saber. Negociar esse lugar na universidade nunca foi fácil. A experiência da Bahia foi incrível e teve força enquanto as coisas não eram tão institucionalizadas. O Smetak mesmo (foto ao lado) sofreu muito no processo de institucionalização da universidade e da estruturação da pesquisa científica, isso fica claro nos documentos dele que encontrei durante a pesquisa e na própria postura que a universidade tem hoje em relação ao acervo que ele produziu dentro dessa mesma universidade. Arrisco a dizer que Bahia dos anos 1970 foi a capital cultural do mundo e a universidade da Bahia viveu uma Idade do Ouro, entre 1960 e 1970, Isso espalhou sementes que até hoje florescem na arte brasileira como um todo. Só que o que prevaleceu foi a estruturação de um modelo acadêmico que bota em cheque a atividade principal do artista e o avalia segundo critérios externos ao campo no qual ele atua.Eu brinco que a relação do artista com a universidade é de um pacto mefistofélico, você ganha condição de vida, de pesquisa, de sustento, mas só lhe é pedido uma coisa em troca, a alma. Brincadeiras à parte, a universidade pública caminhava para uma melhora substancial na relação com a arte e com os e as artistas, até a ascensão da direita nos anos após o golpe de 2016. Hoje a universidade, como um todo, tenta se recuperar desse baque. Não está fácil!
Eu ainda fantasio com uma universidade que valorize os saberes artísticos como um conhecimento em si e os artistas como mestres desse saber.
10 – Fale- nos dos seus projetos mais recentes e o sobre os próximos projetos que já estão no forno. O que devemos esperar da sua produção?
AJMS: A Orquestra do Teatro Municipal de São Paulo me encomendou uma peça e vai estreá-la no final de agosto, dias 30 e 31. A ela dei o nome de Àtùpà, que é uma lamparina sagrada que deve permanecer acesa durante o ritual de iniciação no Ifá.
Estou com Orixás Sonoros nas duas exposições de arte sonora que estão ocorrendo em São Paulo e no Rio. Em São Paulo, na Virada Sônica, estou com o Èṣù e no Rio, na Arte Sonora ano 15, estou com o Ògún Lákáaye. E também estou trabalhando na criação de mais um Orixá Sonoro que espero terminar até o final do ano.
Espero também ainda esse ano lançar em vinil, o disco objeto, Isto dando Samba. Esse trabalho, que é uma homenagem ao clássico disco do Tom Zé, é um projeto que iniciei ainda durante a pandemia, enviei áudio-partituras para diversos artistas e sugeri que interagissem com a audiopartitura que enviei, utilizando a voz ou instrumentos musicais ligados ao samba. A regra era manter a duração da audiopartitura enviada. A ideia era ninguém escutar o que o outro havia feito. Quando isso ocorreu, utilizava a contribuição em outra faixa. Juntei as colaborações enviadas e a partir delas fui criando peças musicais em que o samba é aludido por vezes. É um trabalho bem especial que conta com a colaboração da Juçara Marçal, do Negro Leo, do Paulinho Bicolor, Marcos Campello, Flavia Goa, Felipe José, entre outros e outras figuras sensacionais.
Estou também envolvido em uma proposta de curso de criação musical junto com a compositora Michelle Agnez e com o compositor Marcos Balter com a ideia estimular a investigação de aspectos identitários na prática criativa. E forma um pouco mais devagar, mas já em andamento, estou reunindo e reescrevendo textos jea publicados para formatar um livro sobre criação e composição musical.
Enquete Rápida:
Três músicos/ compositores experimentais nacionais e/ou internacionais que mais te impactaram e seus álbuns:
Walter Smetak, Interregno
Henrique Iwao, Coleções Digitais
Thelmo Cristovam, Vale do Catimbau
Três músicos contemporâneos de livre improvisação que mais te impactaram e seus álbuns:
Ornette Coleman, Twins
Art Ensemble of Chicago, Nice Guys
Cecil Taylor, solo
Três músicos/ cantores/ bandas de música popular brasileira que mais te impactaram e seus álbuns:
Gal Costa - Cantar
Gilberto Gil - Refazenda
Itamar Assumpção - Petrobras III (póstumo)
Três músicos/ bandas de outros gêneros (pop, rock, hip hop e etc) que mais te impactaram e seus álbuns:
Björk - Biophilia
Tom Waits - Alice
Hermeto Paschoal e Grupo - Só não toca quem não quer
Três indicações de livros, seus autores e seus assuntos:
Elogio da Sombra, do Junichiro Tanizaki: é um ensaio sobre a diferença entre o ocidente e o oriente a partir da relação com a luz.
Uma aprendizagem, Ou o Livro dos Prazeres, da Clarisse Lispector: já não sei como descrever o assunto do livro só sei que no final, comecei a ler devagar porque não queria que o livro acabasse, foi um mergulho profundo junto ao mergulho da personagem Lóri. Talvez o principal assunto desse livro seja o amor como desafio pessoal frente ao outro.
O Triste Fim de Policarpo Quaresma, Lima Barreto. Acho fantástico e ainda atual esse livro, meio quixotesco e implacável com a elite brasileira
Três indicações de filmes/ documentários que envolvam música ou artes:
O Silêncio, Makmalbaf
Steps Across the border, Nicolas Humbert, Werner Penzel
Dream Work, Peter Tscherkassky
Três artistas plásticos que você admira e/ou que te inspiram:
Leonílson
Mestre Didi
Romuald Razoume