Acaba de ser lançado um novo documentário, Eno (2024), sobre o legendário multi-artista inglês Brian Eno, considerado um dos pais da estética "ambient music" e um dos teóricos mais importantes da música contemporânea. Brian Eno transitou com versatilidade entre as estéticas do rock —— rock progressivo, glam rock, art rock e etc ——, foi um dos artífices da música pop de vertente mais criativa, explorou diversas aplicações de música experimental e, a partir de meados dos anos de 1970, adotou o minimalismo como sua principal trilha exploratória, criando diversos experimentos de captação, gravação e manipulação sonora com loops em fitas magnéticas, sintetizadores e processadores de efeitos que resultaram nos novos conceitos das estéticas "ambient music" e "fourth world music", uma mistura do conceito "ambient" com sons da "world music" que ele explorou com o trompetista americano Jon Hassell. Para quem achega-se agora e tem interesse em submergir os ouvidos nesse território sonoro, o ideal é ter algumas escutas atentas a partir do álbum Discreet Music (1975), dos álbuns da série que começa em Ambient 1: Music for Airport de 1978 e vai até Ambient 4: On Land de 1981 e do interessantíssimo álbum Fourth World, Vol. 1: Possible Musics (1980), discos nos quais ele explorou criações lentas e arrítmicas de loops etéreos, texturas eletrônicas ímpares e uma diversidade de atmosferas captadas e/ou inspiradas em aeroportos, florestas, praias e diversos outros ambientes. A ideia experimental e inovadora de Brian Eno consistiu primordialmente em criar loops de texturas, atmosferas e paisagens sonoras que evocassem calma e contemplação num molde praticamente imperceptível entre a atmosfera sonora do ambiente e a percepção do espaço-tempo, onde um anulasse o outro e criasse alguma espécie de textura híbrida e contemplativa. Uma abordagem que inovou sobremaneira o universo da música minimalista pelas novas vias da eletrônica setentista.
Interessante lembrar, aliás, que este conceito experimental de "ambient music" idealizado por Brian Eno foi, enfim, uma antítese criativa em relação aos conceitos comerciais de "música de fundo" ou "música de elevador" —— estilos de músicas tocados em elevadores, supermercados, restaurantes e outros ambientes —— e inspira-se e amplia-se a partir das ideias inovadoras de outros experimentalistas pioneiros da história da música moderna tais como Erik Satie, John Cage, Moondog e La Monte Young, os quais trabalharam, cada um ao seu modo, desde com diversos tipos de composição inspiradas em ambientes, passando pelo uso de sons pré-gravados captados em ambientes diversos, uso de sons contínuos e etéreos sem ritmo, e indo até com peças de aplicações irregulares de longas durações de silêncio. No demais, sendo esse um novo tipo de música minimalista que necessitava mais essencialmente de ideias inovadoras de conceito sonoro que anulassem os efeitos do espaço-tempo no ouvinte do que propriamente de uma música que necessitasse de habilidade instrumental, essas experiências da "ambient music" logo fizeram Brian Eno a seguir uma trilha exploratória onde o essencial era que ele abandonasse todo o modus operandis clássico-catedrático-conservatorial no exercício da composição e da execução musical, algo que ele fez se autoconsiderando uma espécie de músico e compositor "non-musician". A arte conceitual de Brian Eno, então, logo encorpou-se em conceitos e aplicações e logo passou a ser disseminada para além dos teatros, salas de concerto e palcos de rock, adentrando as searas do design sonoro e das instalações em ambientes diversos e adentrando os museus de arte contemporânea, inaugurando um novo gênero de música minimalista que ganharia ramificações nas décadas posteriores. E agora este novo documentário vem enriquecer ainda mais o repertório do ouvinte e telespectador que se interessa por esse tipo de arte musical.
Para quem quer conhecer e para quem já conhece e se interessa desde sempre pela arte de Brian Eno, o interessante é primeiro assistir o documentário Brian Eno - 1971-1977: The Man Who Fell To Earth, que narra os anos mais prolíficos de produção e experimentalismos musicais do roqueiro e do compositor "non-musician", mostrando desde os dias do jovem Eno na escola de arte, passando pelo período em que ele inicia sua jornada musical com a banda Roxy Music e indo até colaborações mais progressivas e experimentais com ases e legendas da música tais como Robert Fripp, Phil Manzanera, John Cale, Nico, Cluster, Portsmouth Symphonia, 801, Gavin Bryars, David Toop, Harold Budd e David Bowie, englobando, ainda, sua importante atuação como um importante produtor que ajudou a revelar diversos artistas e bandas criativas. Feito isso, a trilha está cimentada para assistir este mais novo documentário lançado em 2024. Isso porque neste mais novo documentário, o telespectador e ouvinte é imergido nos próximos conceitos, teorias e ideias cunhadas e criadas Brian Eno a partir dos anos de 1990 até a virada de século e até os dias atuais. Essa sequência de eventos documentados nos mostram, enfim, que a evolução musical de Brian Eno não parou na estética da "ambient music" criada nos anos de 1970. Nos anos 90, seguindo sua sina de criar novas manipulações sonoras, Brian Eno expandiu seus conceitos para o universo dos sistemas e algoritmos num novo conceito que ele chamou de "Música Generativa". Se no inovador "Music for Airports" (1978) ele usou fitas magnéticas e sintetizadores na criação de texturas que são sobrepostas e manipuladas através de variações constantes em loops de lentidão etérea, nos anos 90 ele idealizaria uma expansão dessa sua ideia na criação de música nova a partir de algoritmos e softwares, algo que ele fez a partir do novo software Koan da SSEYO, idealizado por ele e desenvolvido para a plataforma Windows pelos programadores Tim Cole e Pete Cole, e que mais tarde evoluiria para os softwares Noatikl e Wotja. Essa sua criação musical está documentada num disquete que ele intitulou "Generative Music 1 with SSEYO Koan Software", primeira criação musical onde esse termo "Música Generativa" aparece. Trata-se de uma idealização realizada que, mais uma vez, colocou Brian Eno na seleta lista de criadores musicais que estiveram à frente do seu tempo, considerando que as teorias e aplicações da tecnologia generativa foram nada mais do que os eventos precursores do que hoje conhecemos como "Inteligência Artificial" e já lá atrás, nos anos 90, o compositor foi um dos pioneiros a sugerir essa conexão entre a criação musical e a tecnologia generativa. Essa jornada criativa também pode ser apreciada no pocketbook A Year with Swollen Appendices, uma espécie de diário onde Eno documentou suas ideias e teorias à época e descreveu seu relacionamento com o fundador da SSEYO Koan e da Intermorphic, o programador e empresário Tim Cole. Agora, então, este documentário "Eno", lançado em 2024, vem imergir o apreciador de música conceitual e de artes nesse continuum evolutivo a que se seguiu as manipulações sonoras que Brian Eno idealizou a partir da estética da "ambient music", mostrando um apanhado detalhado e completo dessa jornada que inovou sobremaneira a música eletrônica e a estética minimalista. Abaixo, falamos mais sobre o doc.
Uma das observações mais onipresentes nos textos e opiniões que encontramos emitidos pela crítica especializada é a de que as abordagens de design, edições e exibições de vídeo usadas neste doc são não menos que inovadoras, principalmente pelo fato dos editores terem usado 52 quintilhões de iterações possíveis através de algoritmos afim de que nenhuma exibição fosse igual duas vezes em torno das 30 horas de entrevistas com Brian Eno e 500 horas de filmagens de um arquivo reunido em torno do compositor. Ou seja, o documentário foi idealizado para ter exibição diferente em cada uma das vezes que o apreciador e telespectador assisti-lo. Esse conjunto inovador de abordagens de edições e filmagens foi idealizado e dirigido pelo renomado fotógrafo e documentarista americano Gary Hustwit —— conhecido por seus trabalhos que exploram e examinam os impactos das tendências em design gráfico, tipografia, design industrial, arquitetura e planejamento urbano, vide documentários tais como "Helvetica" (2007) e "Rams" (2018) ——, e reúne uma série de aplicações de tecnologia generativa a partir de softwares e algoritmos em torno desse tipo de inteligência artificial que é especializada em criação de conteúdo novo a cada iteração, uma diretriz que oferece uma experiência única em cada exibição e é espelhada, enfim, no próprio conceito de "música generativa" desenvolvido por Eno nos anos 90. Trata-se de uma associação que, mais uma vez, coloca o nome e a obra de Brian Eno na listas de criadores e obras que estiveram à frente do seu tempo na linha do tempo da história das artes modernas. Tendo estreado no Festival de Cinema de Sundance de 2024, entre 18 a 28 de janeiro de 2024, este doc tem sido exibido principalmente em mostras de arte e cinema, salas de exibição que foca em documentários e cinema cult e em eventos especiais de arte contemporânea, podendo ser uma aposta interessante para que ao menos alguns cortes sejam exibidos na próxima edição do nosso In-Edit Brasil, festival de documentários sediado anualmente aqui em São Paulo. A produção combina entrevistas, imagens de arquivo nunca dantes vistas e até trechos com músicas inéditas compostas por Eno e nunca dantes gravada ou apresentada, explorando uma ampla gama de abordagens criativas do compositor e seus impactos e correlações nos universos da música, artes visuais e tecnologia. Para além da associação da tecnologia generativa da I.A com o conceito de "Música Generativa" idealizado por Eno, a estrutura não linear do filme também foi elaborada para refletir sistematicamente a forma como Eno trabalha e organiza suas ideias. E essa colaboração detalhista e sistemática só foi possível graças à relação prévia entre Hustwit e Eno, especialmente após a contribuição musical de Eno para o documentário "Rams" em 2018. Clique nas imagens para assistir e saber mais!
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