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Uma das searas da música erudita que mais evoluíram do início do século 20 até este início do século 21 tem sido a da percussão. Graças aos aditivos africanos e as heranças culturais advindas das colonizações dos séculos anteriores, graças também à globalização e às trocas socio-econômicas-culturais entre países aderentes ao multilateralismo no século 20, tivemos inúmeras inserções de novos instrumentos e kits de percussão e novos estilos adentrando a música erudita moderna. Dos estilos de percussão advindo do jazz aos toques dos tambores africanos e afro-latinos, dos gongos balineses à rica percussão brasileira, dos conjuntos minimalistas de xilofones e vibrafones americanos aos efeitos timbrísticos luminosos das panelas de aço de Trinidad & Tobago, do taiko japonês às marimbas equatorianas da região de Esmeralda... Enfim...se garimparmos com um pouco de afinco, encontramos diversos compositores eruditos —— modernos e contemporâneos —— que já usaram elementos desses e doutros estilos e toques de percussão em suas peças. E aqui neste post, mostraremos justamente gravações recentes de um dos conjuntos de percussão erudita que mais tem contribuido para a ampliação do repertório contemporâneo: o Third Coast Percussion. Já falamos algumas vezes do conjunto aqui no blog, inclusive quando abordamos o álbum deles em parceria com a compositora brasileira Clarice Assad: o fantástico Archetypes (2021), lançado pela Cedille Records. Formado em 2004 pelos percussionistas Sean Connors, Robert Dillon, Peter Martin e David Skidmore, o Third Coast Percussion tem sua base em Chicago, Illinois, EUA, e pode ser considerado um dos conjuntos a levar a percussão erudita de foco pós-minimalista —— digo: com esse ecleticismo americano advindo do pós-minimalismo —— para uma maior repercussão midiática neste início de século 21, laçando gravações que contemplam tanto o repertório dos já afamados compositores minimalistas como dos emergentes compositores pós-minimalistas, e recheando o entremeio com gravações ecléticas de peças de novos compositores advindos do jazz, da música brasileira, da música eletrônica, do avant-pop, da new music e doutros gêneros. Frequentemente indicado ao Grammy, recentemente seu álbum Third Coast Percussion | Steve Reich (Cedille, 2016) ganhou um Grammy na categoria Best Chamber Music/Small Ensemble Performance, sendo essa a primeira vez que um conjunto de percussão erudita ganhava um Grammy. Também é destaque o Projeto Currents, pelo qual o conjunto segue lançando álbuns ecléticos e multiculturais com novas obras de artistas de estéticas variadas e de várias partes do mundo. Nos últimos anos, por exemplo, o TCP tem estreado obras da compositora brasileira Clarice Assad, da multiartista queniana Nyokabi Kariũki, do compositor cipriota Andys Skordis, do Duo Flutronix, da DJ de música eletrônica JLin, do DJ e multiinstrumentista americano de hip hop Machado Mijiga, entre outros. Essa ecleticidade de postura multicultural vai de encontro com o viés do pós-modernismo vigente onde o repertório erudito não mais se enclausura numa estética classicista encabrestada, mas se mistura e se abraça com elementos híbridos oriundos de variadas estéticas e estilos musicais. Soma-se a este estilisticamente eclético e esteticamente variado repertório o fato do próprio TCP ser uma fonte viva de composições originais escritas pelos próprios membros, fato que amplia ainda mais sua contribuição para a música erudita contemporânea.
Currents Creative Partnership: comissões e estreias de obras de emergentes criadores de estéticas e estilos variados
É através do programa Currents Creative Partnership que o TCP estreia obras de emergentes compositores de gêneros variados, contribuindo para a atual expansão do que se convenciona chamar de "música erudita". A ideia é transcrever, estudar e interpretar obras de compositores emergentes independentes de gênero, mas contando que essas obras emanem contemporaneidade e elementos técnicos e conceituais suficientes para levar a arte da música e a própria percussão para novas direções —— é o que nos EUA chama-se de "new music". Para este projeto e programa anual, aliás, o TCP costuma chamar tais compositores de "criadores musicais" ao invés do usar o termo tradicional "compositores", uma vez que a ideia não é apenas estrear obras de compositores advindos da escola erudita —— compositores que escrevem música do jeito convencional, em pauta e partitura ——, mas também de criadores de música tais como músicos de jazz, percussionistas, DJs, vocalistas e artistas que produzem música por meio do canto, da improvisação, da manipulação de samples, de amostragens e de gravações experimentais. Anualmente, então, o TCP abre inscrições para que esses criadores lhes apresentem novas peças para quarteto de percussão com duração não superior a 15 minutos e com o critério da obra nunca não ter sido apresentada anteriormente. Contando com o comissionamento de Elizabeth e Justus Schlichting e com apoio de fundações tais como a National Endowment for the Arts, a DEW Foundation e a Sargent Family Foundation, o Third Coast Percussion consegue, então, efetuar a estreia mundial da obra em Chicago e consegue os recursos necessários para concertos e gravações, bem como para o próprio comissionamento do autor da obra, que recebe um honorário em torno US$ 2.500 pela peça criada, bem como recebe reembolsos dos custos de viagem e acomodação de até US$ 1.000 para viagens dentro dos Estados Unidos ou até US$ 1.500 para viagens internacionais na intenção, logicamente, de acompanhar os ensaios e os concertos nos quais a sua nova obra é apresentada. Em troca, o criador musical em questão deverá divulgar a nova gravação resultante dessa parceria, conjuntamente divulgando, então, sua própria obra e o trabalho do TCP. É um programa-projeto interessante de grande sucesso para o TCP e para os artistas envolvidos, além de colocar a percussão e os próprios limites do que se convenciona chamar de "música erudita" na direção de uma expansão praticamente ilimitada através de variadas formas de criação musical. Para documentar o programa, o TCP já gravou três volumes de álbuns com peças de criadores musicais em ascensão tais como o compositor americano de eletroacústica George Hurd, a vocalista e compositora brasileira Clarice Assad, a percussionista americana Alexis C. Lamb, o percussionista e baterista americano Glenn Kotche (membro da banda de rock Wilco), a multiartista queniana Nyokabi Kariũki, o compositor cipriota Andys Skordis, o multi-instrumentista e produtor americano de lo-fi e hip hop Machado Mijiga e o percussionista mexicano Ivan Trevino, dentre outros.
Recentemente, em 14 e 16 de abril de 2025, o Third Coast Percussion passou pelo Brasil e se apresentou no Teatro Cultura Artística, São Paulo, inebriando a plateia brasileira com obras dos compositores Devonté Hynes, Jlin, Steve Reich, David Skidmore (membro do conjunto) e com a já célebre peça Aguas da Amazonia de Philip Glass. E estes dois álbuns acima evidenciam que os membros do Third Coast Percussion tem mesmo certa afetividade com nossa brasilidade. A começar pelo álbum Archetypes (2021) lançado em parceria com a cantora e multi-instrumentista brasileira Clarice Assad e seu pai Sergio Assad —— violonista do célebre Duo Assad. Trata-se de um projeto que consiste numa peça extensa de 12 partes chamadas de Archetypes, referentes aos "12 arquétipos humanos" estudados na psicologia, os quais transcendem as crenças e ignoram as distâncias e são inerentes a todos nós, independentes de nacionalidade: sendo eles o Amante, o Bobo, o Criador, o Cuidador, o Explorador, o Rebelde, o Governante, o Herói, o Inocente, o Mago, a Pessoa Comum e o Sábio. As 12 partes foram escritas para piano, voz, violão e ensemble de percussão e foram estruturadas em formas eruditas, mas com aberturas para vários moods, elementos e direções advindas da música brasileira, da world music, do jazz, da música minimalista e além... Depois temos mais uma recente gravação da obra Aguas da Amazonia, escrita pelo legendário compositor minimalista Philip Glass a partir de inspirações das águas e dos sons da nossa Amazônia —— peça que, como já citado, o Third Coast Percussion a apresentou em Abril no Cultura Artística. Escrita originalmente para piano em 1993 sob o nome "Sete ou oito peças para um balé", esta peça foi gestada por Philip Glass para o emblemático Grupo Corpo, companhia de balé e dança contemporânea sediada em Belo Horizonte. E, daí, outra figura seminal de Minas Gerais, Marco Antônio Guimarães, o diretor artístico do grupo brasileiro de percussão e luthieria experimental Uakti, tratou logo de dar uma versão ainda mais abrasileirada para essa peça minimalista através de sintetizadores e dos seus kits de percussão brasileira e dos seus instrumentos fabricados com madeira, metais e tubos de PVC. A versão do Grupo Uakti impressionou o próprio Philip Glass, que descreveu o resultado como sendo "um verdadeiro hibridismo da sua música, da sua originalidade, com a sensibilidade e originalidade brasilianista do grupo". A versão do Uakti, lançada em álbum em 1999, também impressionou bastante os membros do Third Coast Percussion, que logo tratou de arranjar e dar suas próprias interpretações para essa obra de Glass a partir de instrumentos tais como almglocken (sinos de vaca afinados), glockenspiel, marimbas de vidro e madeira, escaleta, vibrafone e sintetizadores e outros. Foi então que, em 2023, o TCP foi abordado pela coreógrafa, dançarina e escritora americana Twyla Tharp com a ideia de rearranjar a obra novamente para um novo projeto de dança, utilizando um conjunto incomun de instrumentos de percussão personalizados para dar uma versão com a própria identidade sonora do conjunto. Acima lhes trago, então, o álbum que resultou desse novo arranjo. O projeto todo —— que teve apoio do Modlin Center for the Arts, da Universidade de Richmond, e das fundações Zell Family, Stuart Frankel e Julian Family —— deu vida ao espetáculo da dança Diamond Jubilee de Twyla Tharp e ao álbum referido. Lançado agora em 2025, este álbum traz a peça numa instrumentação que inclui marimba de vidro, marimba de tábuas de carvalho vermelho, um conjunto de tubos de PVC afinados cromaticamente, um tambor solar (tambor de língua afinável), sintetizadores e um djembê. Contribui, também, a flautista Connie Volk, que também foi responsável pelo design gráfico do álbum.
Álbuns autorais - Peças dos próprios membros do TCP: Sean Connors, Robert Dillon, Peter Martin e David Skidmore
Além de gravar obras de artistas de estéticas variadas e dos principais compositores contemporâneos dos últimos tempos e da atualidade, o Third Coast Percussion tem um arsenal de peças que foram elaboradas e escritas pelas mãos dos seus próprios membros. E tem-se, então, as peças que foram elaboradas e escritas individualmente por Sean Connors, Robert Dillon, Peter Martin e David Skidmore, bem como as peças que eles elaboraram e compuseram conjuntamente. Dois dos álbuns totalmente dedicados para este repertório autoral são: Heaven We Need (The Den/ BMG, 2023) e Cinematic Marimba (Neogarde/ BMG, 2024). A peça-título "Heaven We Need", por exemplo, foi composta por Robert Dillon e é descrita como uma peça meditativa para relaxamento com instrumentação flexível onde há o uso de marimba, vibrafone, crótalos e sons atmosfericos que os intérpretes podem incrementar, podendo ser desde sons de pele de tambor atritada e sons do vento até sons pré gravados tais como o cantarolar de grilos, alguma melodia sendo cantarolada bem baixinho, dentre outros sons meditativos. Já a peça "Trying" de David Skidmore é um conjunto de três movimentos que exploram a sobreposição de múltiplos ciclos com diferentes métricas rítmicas interpoladas através o uso de marimbas, vibrafones, cilindros, pratos e bumbo, uma peça que foi inspirada na música da banda sueca de heavy metal Meshuggah e na escrita caleidoscópica para percussão evidenciada na obra do compositor argentino-inglês Alejandro Viñao. Segue-se as peças que estão no álbum Cinematic Marimba onde os timbres e a magia dos sons reverberantes das marimbas são apresentados em diferentes contextos e combinados com diferentes outros sons: desde combinações com sons de sintetizadores até com efeitos eletroacústicos inexplicáveis, passando pelas combinações com timbres de outros instrumentos de percussão como claves de madeira, sinos, bumbos e pratos. E há diversas outras peças dos TCP que são apresentadas em concertos, por eles mesmos ou por outros intérpretes e conjuntos, que ainda não foram gravadas, mas que já contribuem para com o enriquecimento e com o aumento de repertório dentro deste fantástico universo da percussão contemporânea. Nosso desejo é que venham outros álbuns com outras dessas peças autorais!!!
Os últimos anos foram realmente frutíferos para o Third Coast Percussion. Se analisarmos apenas os três ou quatro últimos anos do quarteto, constataremos que a discografia do TCP contribuiu sobremaneira para o enriquecimento do repertório da percussão e, por consequência, para o repertório da música erudita contemporânea —— sempre mantendo, como já citado, essa abertura para novas peças que tragam elementos inovadores advindos de outros gêneros. Lançado em 2022 nós temos, por exemplo, o excelente álbum Perspectives, que traz obras para percussão compostas por Danny Elfman (nome maior do pop new wave nos anos 80, famoso compositor de trilhas sonoras e excelente compositor erudito entusiasta do jazz e do minimalismo), Philip Glass (um arranjo para "Metamorphosis I", escrita originalmente para piano), além de uma peça composta eletronicamente pela produtora e DJ Jlin e uma peça elaborada pelo Duo Flutronix ("Rubix"), inovadora dupla de flautas que usa eletrônica em suas criações. Este álbum evidencia fortemente que o viés do TCP não é outro senão trabalhar entre vias paralelas da música erudita contemporânea com outras vias que ofereçam abordagens inusitadas e desafiadoras para a percussão tais como a eletrônica, o avant-pop e o jazz. Além de gravar obras de compositores consagrados num range que vai de John Cage à Steve Reich, há o forte intuito do quarteto de contribuir com o repertório contemporâneo através de encomendas feitas à compositores que recentemente, neste início de século, entraram evidência tais como o australiano Anthony Pateras, os americanos Missy Mazzoli, Glenn Kotche, Timo Andres e Tyondai Braxton (filho de Anthony Braxton, iconoclasta figura do avant-jazz ), o irlandês Donnacha Dennehy e a neozelandesa Gemma Peacocke, dentre outros. É nesse sentido que o TCP lançou um continuum do álbum Perspectives, dando luz ao álbum Between Breaths (Cedille, 2023), mais outro registro com obras encomendadas e escritas exclusivamente para o conjunto. O Between Breath traz, então, peças de Missy Mazzoli, Tyondai Braxton, Gemma Peacocke e Ayanna Woods, além de uma obra composta pelo próprio quarteto. Neste álbum, temos paletas e combinações ainda mais variadas: a peça Millennium Canticles, de Missy Mazzoli traz uma interessante intersecção de vozes com percussão; a peça "Sunny X", de Tyondai Braxton, traz uma intersecção visceral de percussão com efeitos de eletroacústica; e a peça "Triple Point" de Ayanna Woods apresenta uma inebriante fluidez de combinações de timbres e efeitos puramente percussivos, os quais, de tão bem interpretados, parecem ter sido gerados ou manipulados eletronicamente. Dois álbuns altamente recomendáveis!!!
★★★★ - Third Coast Percussion - Standard Stoppages (Cedille, 2025)
Ademais, no Spotify, constam ao menos quatro álbuns lançados entre 2024 e 2025. Um deles é este interessante Standard Stoppages, lançado pela Cedille Records. Este álbum ratifica a faceta multicultural do Third Coast Percussion de apresentar obras de compositores e músicos ambientados em diferentes estéticas, diferentes países e diferentes estilos de música. Apresentando obras da DJ de música eletrônica footwork Jlin, do pianista de jazz armênio Tigran Hamasyan (um dos grandes pianistas de jazz da atualidade), do tocador de tabla indiano Zakir Hussain e do tocador e mbira e marimba Musekiwa Chingodza, do Zimbábue —— todos grandes músicos e compositores radicados nos EUA, ou com passagens recorrentes pelo solo americano ——, este álbum tanto mostra que a percussão é universal como também evidencia que músicos de diferentes estéticas, advindos de diferentes ambientes e com diferentes técnicas e estilos também podem compor peças desafiadoras que contribuam para esta abertura pós-moderna que hibridifica o erudito com o pop, o tribal africano com a eletrônica, o orgânico com o sintético e por aí vai... Em paralelo a esta faceta multicultural, o álbum Standard Stoppages também apresenta peças da compositora ganhadora do Grammy Jessie Montgomery, que tem sido apontada como uma das principais compositoras eruditas da atualidade. Estes últimos álbuns evidenciam, enfim, que os quatros intérpretes do Third Coast Percussion tem conseguido manter um excelente hibridismo de inspirações —— técnicas, estéticas, estilísticas e etc —— através de encomendas de peças exclusivamente compostas para eles, bem como tem conseguido estabelecer vias paralelas por meio de um ecleticismo que coloca o conjunto como um dos ases dessa música erudita contemporânea de arraigado pós-modernismo. Ouçam!!!
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