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 MÚSICO/ BANDA/ ENSEMBLE/ ALBUM DA SEMANA (02) 

 ★★★★¹/2 - Gabriel Prokofiev - Dark Lights (Nonclassical, 2025).
Dark Lights, o novo álbum do compositor russo-inglês Gabriel Prokofiev —— neto do aclamadíssimo ícone russo Serguei Prokofiev e um dos importantes criadores para o futuro da música erudita ——, é uma surpreendente simbiose eletrônica-orquestral, na qual efeitos de bassline em subwoofer, beats extraídos de um Roland TR-808, linhas melódicas futuristas geradas por sintetizadores modulares, glitches e efeitos, contrastes entre tons dissonantes e tons brilhantes e texturas electroacústicas afins se entrelaçam e se diluem com os sons sinfônicos de sopros e cordas da orquestra juvenil FAMES European Youth Orchestra e com piano marcante de Viviana-Zarah Baudis, todos sob a direção do maestro suíço Etienne Abelin. Interessante lembrar, aliás, que nestas suas incursões mais híbridas, Prokofiev costuma contar mais com orquestras interdisciplinares, uma vez que as orquestras sinfônicas tradicionais não incluem esse tipo de peça contemporânea em seus escopos. Neste álbum, Prokofiev reúne, então, onze peças originais, incluindo as três últimas faixas com remixes assinados pelos DJs e produtores proeminentes da cena clubber londrina: NWAKKE, Adhelm e Nicholas Thayer. O interessante na escrita de Prokofiev é a valorização do caráter idiomático, sustentado por sobreposições inteligentes que diluem o eletrônico dentro do orgânico, por motivos e frases de considerável riqueza rítmico-melódica, por um conceito harmônico avançado e colorido no qual tons de atonalidade se entrelaçam com tons mais brilhantes, por passagens de linguagem erudita super elaborada e por efeitos timbrísticos e arranjos que se interconectam e valorizam todos os elementos eletrônicos e orgânicos como puzzles que se encaixam minuciosamente dentro de uma estrutura —— diferentemente de alguns compositores contemporâneos que tem explorado apenas texturas a pairar no espaço-tempo, sem forma, sem ritmo, sem frases e sem o discurso idiomático. Dessa forma, Prokofiev dá vida a uma atualização do espectro que remonta às primeiras décadas da música moderna, na primeira metade do século XX, quando os compositores pioneiros da música concreta e da eletroacústica já estabeleciam uma incursão entre o ruído eletrônico e a tradição sinfônica. Mas Prokofiev faz isso agora com uma verve avançadamente pós-moderna, atualizada, estabelecendo não apenas um mero encontro ou diálogo, mas uma verdadeira simbiose em que o sintético e o orgânico, a tradição e o futuro —— passando, logicamente, pelo presente —— se fundem a ponto de constituírem um único organismo híbrido, sem impedir que percebamos o brilhantismo das aplicações de cada um dos elementos que ele usa dentro de suas peças. Assim, elementos variados da eletrônica contemporânea —— de drum’n’bass, IDM, trap, hip hop, glitch, grime e etc —— tornam-se simbiontes dentro da escrita sinfônica e camerística de Prokofiev. Em seu site, o compositor registra que estas peças abordam o ponto de encontro entre a máquina e o ser humano numa justaposição da energia robótica da música eletrônica sequenciada à liberdade dos músicos de uma orquestra, uma metáfora sonora que reflete a forma como vivemos hoje no século 21: constantemente conectados à tecnologia, mas ainda profundamente humanos. Grande ideia!!!


Essa simbiose entre tradição e futuro, entre a sonoridade sinfônica e a eletrônica contemporânea, já vinha ficando clara em peças que Gabriel Prokofiev compôs no final dos anos 2000, como seu Concerto for Turntables and Orchestra (lançado em 2009), e também nos registros de remixes e reimaginações eletrônicas que o compositor vinha aplicando sobre as sinfonias de Beethoven, em projetos como Beethoven Reimagined (com a BBC National Orchestra of Wales), BEETHOVEN9 Symphonic Remix (com a Orchestre National des Pays de la Loire) e no mais recente Pastoral Reflections - Beethoven Pastorale 21 (lançado em 2024, com o UNLTD Collective). Esses remixes, reimaginações e procedimentos funcionam, então, como antecedentes estéticos e como estudos que pavimentam o caminho para que Gabriel Prokofiev crie as simbioses eletrônico-sinfônicas que ouvimos neste surpreendente álbum de 2025. Assim como quando ele inflexiona o rico desenvolvimento temático e o complexo idioma presente nas sinfonias de Beethoven por meio de loops, grooves e reagrupamentos com novos beats e efeitos eletrônicos, Prokofiev agora segue ainda mais em evolução, nestas suas peças autorais, ao criar sua própria assinatura sonora, sua própria escrita idiomática, suas próprias combinações e ao estabelecer, por meio de fusões e diluições de uma eletrônica futurista dentro de arranjos sinfônicos, um universo próprio repleto de ingredientes contemporâneos. Fundador do selo Nonclassical —— que segue dando vazão a uma linha mais independente em que a música erudita contemporânea se vê permeada por ingredientes eletrônicos da cena clubber ——, Gabriel Prokofiev é compositor, produtor, DJ e figura central da cena londrina e, com álbuns de peças tão bem desenvolvidas quanto estas, reafirma seu lugar como um dos compositores futuristas mais instigantes do nosso tempo. Dark Lights se revela como o registro em que ele finalmente encontra a simbiose perfeita ao unir, dentro do seu espectro sinfônico singular, os vários elementos que ele vem estudando e colecionando desde os tempos em que sua escuta e seu trabalho como DJ foram moldados, passando por sua formação em composição e música eletroacústica nas universidades de York e Birmingham, até suas investigações e explorações mais recentes, que englobam tanto conexões com a cena clubber de Londres quanto suas obras sinfônicas, peças de música de câmara, ópera, dança, cinema e projetos híbridos. Dark Lights foi lançado digitalmente em 3 de outubro de 2025, já está disponível no Spotify e no Bandcamp e contará com uma edição em disco físico prevista para ser vendida a partir de janeiro de 2026. E, nessa mesma linha de evolução futurista, também é imperdível o seu Synthesizer Concerto, encomendado pela Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música e pela Filarmonica Arturo Toscanini, obra que dá continuidade à sua investigação com concertos para instrumentos inexplorados dentro da tradição sinfônica (eletrônicos, turntables, bumbo sinfônico, saxofone, entre outros). E essas peças e concertos inovadores só atestam como Gabriel Prokofiev ja é um dos grandes compositores do nosso tempo!!!

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RADIO DIASPORA e arte da (de)composição: uma poética de vanguarda que esmiúça signos, vozes e sons diaspóricos


 Radio Diaspora - Boemia (Independente, 2024)
Escrevi parte deste texto em 2024, assim que apreciei o lançamento do álbum Boemia do duo experimental Radio Diaspora, mas como dei uma pausa sabática nas atividades e aqui no blog, não o postei de imediato. E agora a publicação vem a calhar com o lançamento de mais um álbum do duo: o álbum Granulações (2025), que une as (de)composições da dupla de instrumentistas com os versos e as vocalidades do poeta mineiro Ricardo Aleixo, um dos nomes centrais da poesia de vanguarda brasileira a trabalhar com as semânticas afros dentro de uma amplitude que abrange o encontro dessa arte de letras, sílabas e palavras com outras artes, entre elas instalações conceituais, performances e o audiovisual integrado a multimídias —— Aleixo que é, também, curador, músico e produtor, portanto um artista de abrangente amplitude. E o que falar do Radio Diaspora, um dos mais criativos projetos de música experimental brasileira? Tem sido muito interessante como os músicos experimentalistas do duo Radio Diaspora —— o trompetista e explorador de sopros Romulo Alexis e o baterista e manipulador de eletrônicos Wagner Ramos —— estão a levar seu conceito de "(de)composição" para as esferas mais identitárias da diáspora afro a partir do uso de signos, elementos e adereços entrelaçados —— vide este post👉aqui no blog onde resenhamos algumas gravações da dupla, que já tem quase uma década de existência. Os experimentos dessa dupla super criativa conectam, de fato, a ancestralidade que desde sempre permeia o ideário e o imaginário do indivíduo negro com a vivência urbana desse indivíduo, ou seja, com o lugar marginalizado desse indivíduo neste universo de concreto, caos urbano, violência policial, mídias cibernéticas, preconceitos paradoxais, monóxido de carbono e outros óxidos nocivos. Neste álbum acima, com uma capa que usa uma foto tirada diante o Aqueduto da Carioca no emblemático Bairro da Lapa, a dupla centra-se na ancestralidade do samba e na temática da boemia que alimentava a cena central do Rio de Janeiro nos anos de 1970 para coletar signos e adereços que façam essa conexão entre o ancestral e o urbano. E mais uma vez o duo não alivia e nem suaviza nas sonoridades das suas colagens de samples, improvisos e manipulações cruas. As amostragens e experimentações não foram compostas —— ou melhor: (de)compostas —— para servirem ao alento ou ao entretenimento de quem busca fazer vista grossa ou de quem busca tratar a realidade suburbana apenas como uma polêmica discussão de momento numa conversa de boteco: as questões das diásporas afros são basilares e estão na alma da existência da dupla, e aqui mesmo 👉no blog, na entrevista que Romulo Alexis gentilmente nos concedeu, já foi explicitado que a intenção do duo nunca foi "entreter" ou soar como um "acalanto", e nem mesmo soar como uma tentativa de "conscientização barata", mas sim fazer com que as pessoas internalizem as questões da diáspora afro por meio da sua experimentação musical e, em seguida, joguem para fora todo o tipo de preconceito —— alguns preconceitos, inclusive, ainda advindos de heranças colonialistas! E nenhuma temática seria melhor do que o samba e a boemia carioca para fazer uma ponte entre a ancestralidade afro-brasileira e nossa realidade. 

Nesse sentido, a intenção da dupla Radio Diaspora evolui mais para um processo experimental ritualístico que "internaliza" para depois, e ao mesmo tempo, "exorcizar" signos do preconceito e da discriminação que ainda assolam as diásporas afros no Brasil e no mundo. Por detrás da escolha dessa temática carioca da boemia, por exemplo, centra-se a curiosa ironia da celebração midiática da boemia bossanovista de Copacabana, Leblon e Ipanema como um produto-exportação em detrimento de uma quase marginalização dos sambas do subúrbios e seus tambores, repiques, ritos, vozes e festejos que só transparecem nos terreiros e morros e na semana do carnaval, um dos poucos momentos nos quais a mídia dá atenção para essa cultura ancestral enquanto herança cultural brasileira. A Radio Diaspora não deixa essa queixa explícita, mas quem se compenetrar em meio às colagens e os improvisos venosos deste álbum logo perceberá que o viés não é outro senão fazer com que esses sons do negro suburbano —— e a Lapa sempre foi o ponto de encontro dos sambistas que se alimentam culturamente nos terreiros, morros e subúrbios —— emerjam como espectros, como sons-fantasmas que lutam em meio à massa venosa de sons experimentais para se libertar da marginalização e do esquecimento nesse caos de nichos, interesses comerciais e sensacionalismos. Somado a esta impressão, a dupla também não deixa de enfatizar que sempre houve experimentação nos processos criativos do samba suburbano —— aliás, do tribal e primitivo ao hip hop, passando pelo samba, pelo jazz e outras formas de arte negra, o improviso, a ritualística e a experimentação sempre foram basilares nas variadas expressões do sujeito negro. Para tanto, a bateria e manipulações eletrônicas de Wagner Ramos e Rômulo Alexis trazem-nos, aqui, samples e adereços que se remetem tanto aos sambistas do subúrbio carioca como aos grupos e artistas legendários que levaram o samba para uma exposição midiática maior: João Nogueira, Beth Carvalho, Roberto Ribeiro, Wilson das Neves, Mestre Marçal, Martinho da Vila, Fundo de Quintal e outros, principalmente nomes de sambistas que se remetem à cena carioca da Lapa dos anos de 1970. Tendo como conceitos-bases o livre improviso e a "(de)composição" na manipulação entrelaçada de elementos orgânicos afros com elementos eletrônicos, a dupla Radio Diáspora não deixa explícitos as rítmicas, as vozes e os adereços do samba tal como se deveria soar na vitrola do ouvinte e fã de samba mais saudosista, mas os fazem soar como signos aprisionados, espectros e sons-fantasmas que lutam para se libertar. Romulo Alexis empunha trompete, boquilhas, shenai, gaita marroquina, pedais de efeito, agogô, caxixi e eletrônicos. Wagner Ramos empunha bateria, Sampler Roland SP-404 SX, Wavedrum Korg, SPD-One Wavepad, Minimoog Model D Synthesizer e percussões.

 Ricardo Aleixo & Radio Diaspora - Granulações (Independente, 2025)
Já aqui neste álbum, lançado agora em 2025, a voz do poeta Ricardo Aleixo se une às (de)composições do duo para criar uma trilha que vai da abstração à poesia imersa em cósmicas sonoridades improvisadas, com direito a inflexões silábicas que se remetem as raizes que a grande Mãe África exportou ao nosso querido Brasil. O álbum, na verdade, foi gravado em 2023 na tarde de 11 de Maio, quando os músicos se encontraram no Estudio Ori em São Paulo para uma sessão do que eles chamaram de "música preta improvisada brasileira do mundo". Nesse sentido, entra em campo musical elementos do que se chama de etnopoesia, que na área de atuação de Aleixo é a recuperação das poéticas afros tradicionais numa ponte entre a ancestralidade e os multi-meios, as multi-artes e as multi-mídias da nossa contemporaneidade —— a etnopoesia, aliás, é um conceito que eclodiu em seguida ao movimento beatnik através de poetas e pesquisadores americanos tais como Gary Snyder e Jerome Rothenberg já nos aos de 1960, e aqui 👉neste link encontramos uma entrevista concedida por Aleixo à Radio USP que explica esse e outros conceitos da poesia e suas relações com outras artes. E neste álbum, definitivamente, vem muito a calhar o pioneirismo de Ricardo Aleixo em fazer interpolações das raízes diaspóricas —— silábicas, onomatopeicas, linguísticas, poéticas, e etc —— com um certo conceito avançado de multi-arte que vai de um certo neoconcretismo que se descontrói e beira a abstração e acaba por definir, daí, um encontro praticamente híbrido com as improvisações sonóricas do duo Radio Diaspora, que ora são livremente abstratas, outrora são melódicas e outrora fazem uso de atmosféricas tessituras eletrônicas —— e às vezes tudo isso junto numa mesma peça (!) —— para, enfim, devolver um tecido sonoro incidental e propício aos versos do poeta. O álbum Granulações começa com uma peça muito interessante, uma livre improvisação que entrelaça as abstratas vocalizações de Ricardo Aleixo com os sons e timbres do trompete Rômulo Alexis e da eletrônica de Wagner Ramos: e de repente essas abstrações caminham para um determinado excerto melódico com elementos silábicos africanizados, mas que, de alguma forma implícita, se remete a uma certa ancestralidade afro-brasileira. Segue-se peças em que as vocalizações de Aleixo permearão desde as propriedades dadaístas e concretistas do som vocal —— o uso de resmungos, grunhidos, o som nasal, a fonética, as (des)construções onomatopeicas e etc —— até o uso linguístico-semântico da palavra e de versos declamados que são interpolados aos sons dos instrumentistas. 

Há também uma profusão mais elaborada, aqui, de sequenciamentos e combinações de diferentes sons e timbres, o que evidencia o quanto o duo evoluiu em aumento de repertório e influências em quase uma década de existência do projeto. Tendo começado com influências advindas do free jazz —— tendo o Art Ensemble of Chicago entre as principais inspirações ——, assim iniciando com livres improvisos combinados com colagens e samples eletrônicos crus, pouco a pouco Rômulo Alexis e Wagner Ramos acrescentaram ao caldeirão do duo diversos outros elementos diaspóricos e espectros sonoros que vai dos procedimentos instrumentais do hip hop, passa pelo samba, flerta com sons variados da negritude do Brasil e com a percussão afro-indígena do mestre Naná Vasconcelos e usa até elementos do afrofuturismo e da cosmic music saturnina de Sun Ra. Nas faixas que se seguem, aqui em Granulações, sentimos todas essas e outras influências interpoladas, sequenciadas e combinadas e, de certa forma, enriquecidas pelas palavras, vocalizações e pelos poemas de Ricardo Aleixo (foto ao lado), também nos fazendo remeter, um tanto, à relação que o poeta e ativista americano Amiri Baraka tinha com o jazz. E assim a dupla de instrumentistas e o poeta, que soam verdadeiramente como um trio, criam uma trilha experimental que, em certos momentos, soará mais como uma trilha incidental mesmo —— praticamente cinematográfica —— a levar o ouvinte para imaginações, atmosferas e lugares nesse cosmo de sons, espaço, tempo e o sujeito humano a lidar com o caos nesse cosmo. Não trata-se, enfim, de uma trilha que seja como um contar de uma história —— ou estórias —— numa lógica quadrada ou cíclica com começo, meio e fim. Mas o conjunto de sonoridades instrumentais e vocais vem unir poesia e música numa só miríade onde há muito o que se investigar em termos dos signos da negritude, bem como suas significâncias, semióticas, semânticas, oralidades, sintaxes e afins. Após esses últimos anos acompanhado os álbuns do Radio Diaspora, considero este tento uma evolução natural do duo que, cada vez mais, vai dos signos até as significâncias que permeiam a negritude e o sujeito negro na sociedade contemporânea, sem deixar de lado a ancestralidade. Para mim, Granulações já é um dos grandes álbuns de 2025!!!