
Em mais um post sobre aos sons inovadores advindos da Europa, dedico aos leitores doze indicações de álbuns, lançados entre 2024 e 2025, de grandes músicos da Escandinávia, Grã-Bretanha, República Tcheca, Alemanha e outros países. Como evidente aqui em nossas páginas, o Instrumental Verves indica várias magazines de jazz e música experimental da Europa, onde o leitor, pesquisador e ouvinte mais curioso poderá garimpar músicos e bandas que estão inovando a música instrumental e suas intersecções com o jazz, com a eletrônica, com a música erudita e outras intersecções e adjacências estético-estilísticas. É impossível acompanhar tudo o que há de criativo sendo gestado na seara da música instrumental em todo o globo terrestre, mas a ideia deste blog é, ao menos, entregar um pouco dessa percepção de como o jazz se tornou universal e de como as linguagens da música instrumental correlatas tem evoluído em alguns cenários internacionais. Eu, particularmente, vejo a Europa como um caldeirão de inovações sonoras atualmente em pé de igualdade —— senão superior —— com os EUA: essa percepção vai desde os cenários de Portugal onde a gravadora Clean Feed, por exemplo, empreende um encontro entre o jazz, a improvisação livre e traços de eletroacústica improvisada; passa pelos cenários da Inglaterra com a cena repleta de estilos tais como o grime, o broken beat, o afrobeat e o dubstep; engloba o crescente cenário da Polônia; e, logicamente, não podemos deixar de citar o sempre pulsante cenário da Escandinávia, com seus inventivos músicos suecos, noruegueses e dinamarqueses; além de vários outros cenários europeus. Abaixo, meu passeio inclui algumas estadias nos cenários nórdicos-escandinavos, vai até Praga, passa pelos Bálcãs, repousa na Alemanha e retorna à rica cena jazzística de Portugal. Há sons e estilos para todos os gostos. Apreciem sem moderação. Sigam os músicos em seus sites, no Bandcamp, Spotify e outros streamings.
★★★★ - Daniel Herskedal - Movements Of Air (Edition Records, 2025)
Daniel Herskedal realmente tem levado a tuba para novas vias de expressão através de uma sonoridade única e de composições cheias de sensibilidade melódica e de verve paisagística. Lançado em 25 de abril de 2025, Movements of Air é o quinto álbum do aclamado trio liderado por esse aclamado compositor e tubista norueguês, trio que ele forma com Eyolf Dale (piano e teclados) e Helge Andreas Norbakken (bateria e percussão). E este lançamento, gravado e editado pelo requintado selo inglês Edition Records, marca o décimo registro da carreira de Herskedal e, como já sinalizado, reafirma sua habilidade singular de expandir os limites expressivos da tuba tanto como instrumento solista-improvisador quanto como instrumento de acompanhamento. As três primeiras faixas do álbum soam como canções com o solo da tuba expressando um canto sublime, com um timbre singular em que a tuba soa como uma voz cristalina expressando falsetes surpreendentes. A partir da quarta faixa, "Mountain Of Companions", Daniel Herskedal já leva a tuba para outras vias de expressão que beiram as acentuações da música do Oriente Médio e de outras expressões próximas da world music, por vezes fazendo a tuba gemer e soar como um vocalista turco ou árabe. Em outras passagens e momentos, a tuba atua mais como um instrumento de acompanhamento na linha do baixo a enriquecer o contraponto junto à bateria e percussão de Helge Andreas Norbakken, enquanto o pianista Eyolf Dale improvisa solos criativos na superfície. A banda, por sua vez, expressa-se entre texturas atmosféricas e acentuações paisagísticas, evidenciando o talento dos músicos em explorar diferentes tapeçarias sonoras, diferentes contrapontos e estilos. Este álbum nos remete a uma trilha sonora cinematográfica onde o filme nos mostra o personagem principal e seus coadjuvantes viajando para diferentes cenários e localidades do mundo: o tubista empreende, assim, um encontro criativo entre sensibilidade melódica e esses traços e dialetos sonoros da world music, mostrando uma paleta sonora cheia de diversidade. Essa introspecção cinematográfica que se remente a canções com melodias marcantes e viagens sonoras pelo mundo tem se mostrando um continuum advindo dos seus álbuns anteriores: não é coincidência que seu primeiro álbum tenha sido intitulado Slow Eastbound Train (Edition Records, 2015), remetendo-se a uma viagem lenta de trem para além d leste da Europa. Para além dessa viagem sonora que nos teletransporta para outros lugares, este álbum acima nos mostra Herskedal explorando temáticas profundas que emotivamente se referem à esperança, humanidade e dualidades como guerra e paz, temáticas que tanto estão em voga na nossa contemporaneidade cheia de conflitos. E esse tino para compor e explorar trilhas sonoras paisagísticas é uma marca registrada do compositor: lembremos que ele elabrou um arranjo de "San Francisco (Be Sure to Wear Flowers in Your Hair)" para o filme The Last Black Man in San Francisco (2019) e que esse arranjo foi destaque, também, em uma campanha global da Coca-Cola. Fica aqui então esta super dica onde você se surpreenderá com os timbres e texturas que Daniel Herskedal explora com sua tuba de sonoridade única e com seus músicos. Ouça!
★★★★ - Geir Sundstøl - Sakte Film (Hubro, 2025)
O guitarrista e multiinstrumentista Geir Sundstøl tem sido um dos músicos de estúdio mais ativos e reconhecidos da Noruega nessas últimas décadas, tendo sido colaborador em inúmeros shows e gravações com inúmeros músicos e bandas da Escandinávia, da Europa e dos EUA. Entre 2011 e 2012, Sundstøl liderou as estatísticas do Gramo como o artista mais tocado nas rádios norueguesas, pelo tanto de gravações que ele vinha participando. Mas foi apenas em 2015 que ele focou em lançar trabalhos solo na categoria instrumental. Em 2015, ele lançou seu primeiro álbum sob seu próprio nome, Furulund, e foi indicado ao Prêmio Spellemannprisen, na Noruega. Em 2018 ele ganhou outro Spellemannprisen por seu terceiro álbum solo, Brødløs. Este álbum acima, Sakte Film, foi lançado em 23 de maio de 2025 pelo selo Hubro e é, então, o sexto álbum da sua carreira de dez anos como artista solo. Cada faixa soa como uma trilha sonora eclética a misturar elementos de jazz, folk nórdico, eletrônica, rock e arranjos de cordas com o quarteto dos músicos Erik Sollid, Sunniva Shaw, Håkon Brunborg e Mari Persen. O quarteto de cordas —— violinos, viola e cello —— adicionam, aliás, maior profundidade emocional à música, adicionam "mais coração e tristeza" segundo o próprio Sundstøl. Já a guitarra reverberante e as cordas dedilhadas do próprio Sundstøl —— um especialista em instrumentos dedilhados como marxofone, violão, guitarra elétrica, bandolim, pedalsteel, bouzouki, lapsteel, banjo e dobro —— se notabilizam em evidenciar a personalidade única do músico, que tem um estilo todo próprio em combinar os timbres e sonoridades destas cordas dedilhas em trilhas sonoras ecléticas cheias de camadas e texturas. Além da sua guitarra reverberante e das suas cordas dedilhadas, Geir Sundstøl também toca vários teclados e sintetizadores e também é proficiente em gaita, enxertando, aqui e ali, a sonoridade da sua gaita nos entremeios dos seus arranjos, camadas e texturas experimentais. Outros músicos que colaboram neste álbum enxertam uma variedade de sonoridades de instrumentos variados tais como piano e teclados (Wurlitzer, Moog e outros synths) trompete, xilofone e até serrote tocado com arco, sonoridades as quais pontualmente, aqui e ali, se hibridizam entre as texturas e camadas. A faixa "Mats", que inicia o álbum, é uma franca homenagem ao conceituado contrabaixista Mats Eilertsen —— que também participa do álbum ——, e traz uma instrumentação com duas baterias e o uso da exótica sonoridade do tradicional banjo indiano conhecido como bulbul tarang, instrumento que imita cantos de muitos rouxinóis. Outras faixas como "Broder" (originalmente composta para o podcast Usagt) e “Divan” (composta para a série "So Long, Marianne") evidenciam o histórico de Sundstøl como compositor de trilhas e vinhetas para canais de mídias, TV e rádio e mostram paletas sonoras variadas com arranjos que abrangem desde sintetizadores vintage até sons de liquidificador e sinos tubulares. O álbum ainda traz momentos de sonoridades singulares como na faixa “Nabel”, com guitarra Shankar e pedal steel, bem como na faixa “Snille spøkelse”, a única faixa com vocais. Gravado majoritariamente com técnicas de recortes e colagens em que as partes de cada faixa foram sendo gravadas separadamente com cada músico ou com poucos músicos presentes por vez para depois essas partes serem coladas numa composição coesa, o álbum Sakte Film tem um acabamento analógico, uma produção experimental e ao mesmo tempo intimista, reforçando a posição de Sundstøl como um dos músicos mais inventivos da cena norueguesa. Interessante as intersecções de folk nórdico com jazz e efeitos eletrônicos.
★★★★¹/2 - AuB Quartet - Folk Devils (Whirlwind Records, 2024)
Na história do jazz tivemos vários combos, mais especificamente quintetos, com dois saxtenoristas protagonizando as chamadas "batalhas de saxofones" e reeditando as batalhas de solos das jam sessions no ambiente do palco. Os saxofonistas Johnny Griffin e Eddie "Lockjaw" Davis, por exemplo, formaram nas décadas de 1960 e 70 uma duradoura e colossal dupla de tenores e praticamente se tornaram um emblema desse tipo de combo. Em nosso tempo presente, por sua vez, os saxtenoristas britânicos Alex Hitchcock e Tom Barford estão reeditando essa formação com dois saxofones através do seu já reconhecido AuB Quartet, que aqui, neste álbum acima, conta com o contrabaixista dinamarquês Jasper Høiby e o baterista francês Marc Michel. Neste álbum acima, Folk Devils, os saxofones de Alex Hitchcock e Tom Barford não entram em batalhas efusivas como acontece nos discos históricos de Johnny Griffin e Eddie "Lockjaw" Davis, mas as conversações em sequência, os uníssonos, os contrapontos e os solos sobrepostos da dupla oferecem uma reedição criativa desse formato histórico com dois saxes. Tendo lançado seu homônimo álbum de estreia pela Edition Records em 2020, o quarteto inglês lança agora, quatro anos e alguns meses depois, este seu segundo registro, editado pela igualmente super producente Whirlwind Recordings. As faixas foram gravadas entre 7 e 11 de fevereiro de 2022 no Giant Wafer Studios, em Llanbadarn Fynydd, País de Gales, com o álbum só sendo lançado em 29 de novembro de 2024. O álbum conta com participações pontuais de músicos de eletrônica tais como Morgan Guerin, que adiciona sintetizadores nas faixas 1 e 2, e Maria Chiara Argirò, que contribui com novas texturas nas faixas 4 e 6. Essas texturas eletronicas, contudo, ampliam o encontro entre tradição e modernidade sem subtrair o caráter de um quarteto acústico e sem ofuscar a fluência jazzística da dupla, que exploram intrincados fraseios e improvisos no melhor estilo do neo-bop/ post-bop contemporâneo. Interessante, aliás, é como a dupla modula seus fraseios e improvisos engendrados na linguagem bop e, ao mesmo tempo, conduzem-se por grooves intrincados marcados por compassos ímpares. Dessa forma, as composições transitam entre o groove angular e o lirismo introspectivo, passando por pontos de curiosas conotações bluesy, como na faixa "Dotts Blues", que finaliza o álbum. A terceira faixa "One for Elis" (Barford) é um lindo tributo à icônica cantora brasileira Elis Regina. Já a faixa título "Folk Devils" traz uma melodia folclórica onde o contrabaixo começa ditando o bassline antes dos dois saxofones exporem o tema num uníssono e, em seguida, ambos atuam com variações e improvisos sobrepostos sobre um groove intrincado, enquanto uma textura eletrônica atua quase como uma penumbra imperceptível para dar um tom sombrio por detrás dos solos. No demais, podemos dizer que em Folk Devils a dupla Hitchcock e Barford realmente conseguem lançar um álbum onde a set list realmente nos leva a apreciar uma variedade de moods, humores e inflexões. A sonoridade do contrabaixo de Jasper Høiby é esparsa e marcante e atua em grooves e contrapontos não menos que intrincados e singulares junto à bateria de Marc Michel, que se destaca por sua amplitude técnica e por sua proficiência em trabalhar com polirritmias. Ainda assim, de acordo Hitchcock "tudo é escrito com a intenção de ser cantável": é notável como a sensibilidade melódica foi bem trabalhada para que os temas soem claros e marcantes mesmo nos momentos de maior complexidade.
★★★★ - Nikolov-Ivanovic Undectet - Dystopia (2024)
E dos Bálcãs encontrei este tesouro de álbum gravado no final de 2023 e lançado no Bandcamp em 2024. A "big band" contemporânea Nikolov - Ivanovic Undectet é uma banda de 11 integrantes liderada pelo arranjador, pianista e guitarrista Vladimir Nikolov e pelo baterista Srdjan Ivanovic, com alguns dos melhores músicos da região dos Bálcãs —— região formada por partes de Albânia, Bósnia e Herzegovina, Bulgária, Grécia, Kosovo, Montenegro, Macedônia do Norte, Turquia e partes da Itália, Croácia, Hungria, Moldávia e Sérvia ——, com músicos também da França, incluindo o flautista francês Magic Malik como convidado especial. Junto aos improvisos arranjos jazzísticos hipercriativos de texturas contemporâneas ouve-se tempeiros regionais de acordeões, tuba e brass band que trazem conotações sonoras dos ciganos e dos traços culturais desses povos balcânicos do sudoeste e leste da Europa. No Bandcamp, diz que as composições deste álbum foram gestadas durante os dias de confinamento da covid-19, sendo que duas faixas foram compostas justamente como música de conscientização: "Dystopia" e "Scream". Ambas as faixas de intervenção, "Dystopia" e "Scream", enfatizam sinestesias com nossas necessidades básicas de liberdade e a dificuldade de lidar com situações extremas. Após o surgimento dessas faixas, outros novos temas se revelaram e a dupla de compositores, Nikolov e Ivanovic, se sentiram inspirados para compor novas paisagens sonoras, novos temas de protestos e novas melodias contra a distopia e a ganância global, formando neste álbum uma única e verdadeira declaração musical de crivo humanista. São declarações como estas que ainda nos fazem ter fé na humanidade mesmo diante das mais recentes barbáries e guerras que estamos presenciando —— principalmente na Palestina e na Ucrânia. Lindo álbum.
★★★★¹/2 - Petter Eldh, Otis Sandsjö, Dan Nicholls Y-OTIS TRE (2024)
Este álbum acima, gravado pelo selo finalndês We Jazz, é um dos registros mais criativo destes tempos. Aliás, indico aos ouvintes e leitores aqui presentes todos os álbuns nos quais o contrabaixista e produtor sueco Petter Eldh esteja envolvido. Assim como o baterista americano Mark Guiliana, Petter Eldh está na vanguarda desse jazz contemporâneo do século 21 que mistura improvisação com manipulação eletrônica. Desta vez Eldh está acompanhado do saxofonista sueco Otis Sandsjö e do tecladista inglês Dan Nicholls. Y-Otis é o nome do projeto e o título "Y-Otis Tre" refere-se ao número "três" em sueco, referindo-se à co-liderança onde os três músicos contribui para as composições das faixas. Esses músicos são marcados pelas influências nórdicas, pelo avant-garde, pelo jazz contemporâneo e pelas influências da eletrônica e, agora nesta altura do século 21, juntam muito dos ingredientes dessas vertentes em peças idiossincráticas e hipercriativas. Influências do jazz contemporâneo, da livre improvisação, dos ruídos eletrônicos ao estilo do glitch, do dub, do drum'n'bass e dos beats frenéticos da IDM (Intelligent Dance Music) se misturam com sons pré-gravados, samples, texturas reverberantes de sintetizadores e com sopros de saxofones e clarinetes distorcidos por técnicas estendidas e processadores, enquanto o bassline e o background são marcados por grooves irregulares de contrabaixo e synth bass se contrapondo aos beats secos de bateria eletrônica em rítmicas ímpares. Essas combinações surtem efeitos cheios de camadas quebradiças e, ao mesmo tempo, fluídas. O álbum foi gestado em 2023 nas longas jam sessions que Eldh e Sandsjö empreenderam com manipulações eletrônicas e foi lançado em 2024, sendo um continuum em relação aos trabalhos anteriores da dupla, que aqui convida o tecladista Dan Nicholls para contribuir com seus efeitos, enxertos e manipulações de sintetizadores. O trombonista norueguês Henrik Munkeby Nørstebø também é convidado ao experimento na oitava faixa. Para nós outsiders, este é com certeza um dos álbuns mais criativos lançados em 2024!!!
★★★¹/2 - Goran Kajfeš Tropiques - Tell Us (We Jazz, 2024)
O trompetista, compositor e produtor sueco Goran Kajfeš é figura reconhecida da cena musical nórdica, tendo sido membro de grupos como Oddjob, Nacka Forum, Fire! Orchestra, Angles 9, Pan-Scan Ensemble, Magic Spirit Quartet e sendo fundador da gravadora Headspin Recordings. Reconhecido por seus projetos diferenciados, já foi agraciado com o Nordic Music Prize e diversos prêmios suecos, também consolidando sua reputação em outros cantos da Escandinávia. Este álbum acima, "Tell Us", foi lançado em 3 de maio de 2024 pelo selo finlandês We Jazz, tendo Goran Kajfeš liderando seu já conhecido quarteto Tropiques em três faixas expansivas. Formado por Goran Kajfeš (trompete, sintetizador), Alexander Zethson (piano, órgão, sintetizador), Johan Berthling (contrabaixo acústico) e Johan Holmegard (bateria), o grupo é reforçado neste disco por arranjos de cordas com Josefin Runsteen (violino) e Leo Svensson Sander (violoncelo). O álbum "Tell Us" é composto por três longas faixas que exploram abordagens próximas aos conceitos do spiritual jazz e "slow music", resultando em um jazz meditativo e cheios de camadas apoiado pela repetição longa de acordes e improvisos hipnóticos. As composições misturam diversos efeitos e elementos repaginados em texturas e atmosferas contemporâneas, remetendo-se a inspirações e influências como Alice Coltrane, Miles Davis, John Coltrane, Terry Riley, Steve Reich, Pharoah Sanders, Laraaji, música minimalista nórdica, world-fusion, eletrônica, kosmische musik alemão, música psicodélica sueca e outros elementos do jazz, resultando numa espécie de mistura de spiritual jazz com minimalismo hipnótico, uma miríade contemporânea atualmente chamada de "hypno-jazz" entre os músicos escandinavos. Embora a base seja um quarteto de jazz acompanhado por cordas, os músicos se desdobram para rechear bem as atmosferas de sons, texturas e harmonias cintilantes, de forma que todos os espaços do tecido temporal das peças sejam preenchidos de forma etérea. O quarteto Tropiques foi idealizado por Kajfeš quando ele foi convidado a compor para a companhia de dança sueca Vindhäxor em 2011, tendo amadurecido e alcançado essa imersiva alquimia ao logo dos anos.
★★★★¹/2 - Tembryo - Drutěva (Ma Records, 2024)
E de Praga, República Tcheca, deparo-me com este espécime trio de jazz experimental chamado Tembryo. A banda surgiu em 2009 como um projeto de estúdio e, gradativamente, tornou-se presença constante na cena alternativa de Praga, tendo explorado uma vasta gama de linguagens que vão do free jazz ao noise, passando por projetos ainda mais específicos, como se pode ouvir no álbum Party for Non-Swimmers (2012), gravado numa piscina abandonada. Neste álbum chamado Drutěva, o quinto e último álbum da banda, o trio se distancia um tanto da improvisação livre absoluta —— marca registrada de seus trabalhos anteriores —— para apresentar composições com linhas de solos e estruturas mais definidas, sem abrir mão da espontaneidade e da ousadia sonora iconoclasta que caracterizam o grupo. O resultado é uma obra que funde free jazz, jazz-rock psicodélico, beats eletrônicos, manipulação de samples e colagens, criando um universo sonoro denso, pulsante e com certa ambiência industrial. Essa ambiência se dá pelo fato do álbum ter sido gravado nos ambientes singulares de uma antiga fábrica chamada Drutěva Praha, o que faz com que as as conotações visuais e sensoriais provocadas por esse espaço industrial tenham influenciado na estética do álbum. Os elementos acústicos e as ressonâncias naturais da construção industrial são incorporados à textura da música, transformando o disco em uma experiência única: uma experiência industrial, mas orgânica; uma experiência eletrônica, mas intensamente humana. O trio é formado por Jan Faix (teclados e eletrônica), Jan Kyncl (saxofones) e o falecido Filip Černý (guitarras e manipulação de eletrônicos), que faleceu logo em seguida às gravações. Como já insinuado, este não é o primeiro trabalho onde os músicos do trio fazem uso de ambientes específicos. Em 2020, eles também lançaram Hájek (2020), que foi gravado em um mosteiro e foi aclamado pela crítica local por sua sonoridade contemplativa e uso inovador do espaço. Em Drutěva, nota-se uma maturidade estética inquestionável e um conjunto de técnicas acumuladas, frutos de mais de uma década de pesquisa sonora em que os três músicos se contracenaram. A perda de Černý, porém, encerra o projeto da banda como um trio que explorou radicais experimentações e impõe ao álbum um caráter inevitável de despedida. Os dois músicos restantes, o pianista e tecladista Jan Faix e o saxofonista Jan Kyncl, continuam juntos num novo projeto chamado FaKyn!, mas Drutěva permanece como o testamento final de um grupo que buscou, ao longo de sua existência, ampliar as fronteiras da música experimental.
★★★★ - Moses Yoofee Trio - MYT (LEITER, 2025)
Lançado em 7 de fevereiro de 2025 pelo selo berlinense LEITER, MYT é o primeiro álbum completo do Moses Yoofee Trio, uma das bandas emergentes da nova cena jazzística europeia. Formado na capital alemã em 2020, o trio conquistou reconhecimento internacional ao vencer o German Jazz Prize 2024 na categoria Live Act of the Year. Antes disso, o EP Ocean (2023) —— um mini-álbum introdutório —— já havia sinalizado o frescor e a versatilidade do grupo. O trio é liderado pelo pianista e produtor Moses Yoofee Vester, que é acompanhado pelo multi-instrumentista Roman Klobe (baixo e guitarra) e pelo baterista Noah Fürbringer. Juntos, exploram um jazz contemporâneo de vibe europeia altamente influenciado por eletrônica, breakbeats, vibes de neo-soul, jazz-fusion, pop e hip hop. A gênese do álbum foi uma demo chamada "WHIP.wav", gravada já em 2021, mas o álbum MYT só foi gravado ao longo de dez dias de abril de 2024 no Glaswald Studios, localizado na zona rural nos arredores de Stuttgart, sendo finalizado no lendário Funkhaus Berlin. O objetivo declarado do grupo é trazer aos seus ouvintes um jazz contemporâneo repleto de "emoções, momentos e bangers", sendo que o termo "banger" é uma gíria do universo da música (especialmente no pop, hip hop, R&B e música eletrônica) para se referir a uma faixa musical cativante, com impacto imediato, cheio de boa energia. O álbum começa com "INTO YOU", uma faixa que usa um sample atmosférico de fundo enquanto uma batida de hip hop ao estilo "boom bap" e um bassline de frescor contemporâneo fornecem uma tapeçaria confortável para as teclas. A segunda faixa “RIDGEWALK” emerge de uma jam construída sobre uma linha rítmica hipnótica e um riff de guitarra marcante. Já "SHOW ME HOW" oferece um solo de guitarra sobre um funk frenético com pulsações repetitivas com interlúdios atmosféricos, seguido um solo breve e expressivo de synth. A terceira faixa “GREEN LIGHT” caminha entre influencias do hip hop e o neo-soul e tem participação da rapper londrina ENNY, utilizando também batidas rítmicas inspiradas no legendário baterista de afrobeat Tony Allen. Em contraste, a quarta faixa "BOND" mostra o trio em sua formação clássica —— piano acústico, contrabaixo e bateria —— em uma balada lírica pairando por cima de uma bateria que emula acusticamente traços do drum’n’bass eletrônico. A sonoridade do grupo se expande ainda mais em "GEMINI", que alterna entre a vibe intimista de um piano-trio acústico e a grandiosidade sintética de uma guitarra psicodélica. A quinta faixa "TILL TOMORROW" é inspirada no espírito do hip hop alternativo ao estilo "93 ’Til Infinity" —— estilo surgido na Costa Oeste dos EUA —— e no jazz-fusion do legendário baterista Billy Cobham, carregando tons nostálgicos e encerrando com sugestivos beats e improvisos de bateria. E assim cheio de atmosferas, vibes e breakbeats o trio lança uma set list cheia de frescor e faixas cativantes. No demais, outras participações contribuem para a diversidade e o frescor do projeto. O saxofonista Wanja Slavin, um dos músicos reconhecidos da cena berlinesa, brilha em "DEEP", onde saxofones, flauta e sintetizadores se contracenam em arranjos e improvisos criativos. E a cantora e produtora Evîn Kücükali, também radicada em Berlim, oferece texturas e vocais distorcidos em "THIS COULD BE THE END", faixa que termina com solos distorcidos de guitarra emergindo sobre breakbeats.
★★★★ - Silk Jazz Trio - Into the Unknown (Dreyer Gaido, 2025)
O pianista alemão Florian Weber é um dos nomes mais respeitados da cena jazzística europeia. Ex-aluno da Berklee e premiado com o Echo Jazz e o WDR Jazz Prize, já colaborou com grandes figuras como Michael Brecker, Pat Metheny e Lee Konitz. Junto a ele achega-se seu parceiro de longa data na NDR Big Band, o também alemão Ingolf Burkhardt, que traz um trompete de lirismo melódico e atmosférico. Junto aos dois, achega-se ainda o virtuose chinês Wu Wei, que pratica o canto difônico é proficiente em instrumentos tradicionais chineses e é conhecido por ser um mestre do sheng, instrumento de sopro ancestral com mais de 3 mil anos de história e que insere uma sonoridade inusitada, difônica e ressonante ao trio. Essa liga de piano, trompete e sheng —— sem bateria e contrabaixo —— nos oferece, então, uma oportunidade de apreciar uma incomum combinação de variadas sonoridades intercontinentais. Juntos, os três músicos formam o Silk Jazz Trio, e eles acabam de anunciar o álbum Into the Unknown, lançado em 7 de março de 2025 pelo selo alemão Dreyer Gaido. Com 12 faixas compiladas, o disco é o resultado de sessões intensas de estúdio em que o trio registrou mais de 90 improvisações, as quais foram cuidadosamente editadas e organizadas para compor essa viagem totalmente direcionada via livres improvisações, sem partituras —— música composta em tempo real, gestada espontaneamente apenas através da escuta atenta e sensível entre os músicos. Interessante, aliás, como os músicos vão construindo a composição através de improvisos em tempo real numa diretriz em que cada faixa soa realmente como uma viagem de ideias sequenciais, diferindo um tanto daquele tipo de livre improviso de abstrações totalmente indeterministas e aleatórias: há passagens meditativas que desembocam em espasmos livremente improvisados; da mesma forma que há passagens melódicas que surtem em improvisos mais abstratos; e assim, vice-versa, o trio apresenta essas ideias musicais improvisadas numa sequência que, no todo, transformam-se em peças coesas. Mesclando diferentes sonoridades e sequenciais ideias musicais, o trio hibridifica elementos do jazz, da música erudita de câmera e da música tradicional chinesa, surtindo em peças contemporâneas de inquestionável caráter atemporal, imergindo-nos numa viagem rumo ao desconhecido.
★★★★ - Chrome Hill - En Route (Clean Feed, 2025)
E pela conceituada gravadora portuguesa Clean Feed acaba de sair do forno este excelente álbum do quarteto norueguês Chrome Hill. Liderado pelo compositor norueguês Asbjørn Lerheim (Fender Bass VI, guitarra elétrica, eletrônicos), o quarteto é formado com os compatriotas Atle Nymo (sax tenor, clarinete baixo), Roger Arntzen (contrabaixo, eletrônicos) e Torstein Lofthus (bateria). Gravado nos dias 9 e 10 de maio de 2024 no Amper Tone Studio, em Oslo, e lançado agora em 2025, o disco é uma jornada musical profundamente influenciada pelas dores e revelações vividas por Asbjørn Lerheim ao lidar com o diagnóstico de epilepsia severa de sua filha. Já na primeira faixa há uma peça que é improvisada bem ao estilo de uma meditativa drone music onde guitarra, sax tenor e contrabaixo com arco sobrepõe-se em camadas etéreas que mistura timbres lisérgicos e eletrificados com timbres atmosféricos. A segunda faixa evoca certa linha melódica folclórica com um groove dançante e certa pegada rocker: o timbre eletrificado da guitarra é sempre lisérgico e reverberante, o saxofone mescla-se entre a melodia e improvisos com timbresa ao estilo Albert Ayler, enquanto o contrabaixo mantém o groove junto ao baterista Torstein Lofthus, que aqui brilha mesclando timbres percussivos em seu drum set. Interessante notar que o contrabaixo de Roger Arntzen mescla-se em partes onde ele dita o groove junto com a bateria e partes onde ele contribui com o arco em texturas e camadas atmosféricas, além do fato de que seus eletrônicos assumem um papel mais textural. A terceira faixa é uma melodia onde a guitarra reverberante de Asbjørn Lerheim nos leva a viajar para algum dos filmes western com trilha sonoras de Ennio Morricone. E assim o álbum vai seguindo com peças que nos trazem camadas etéreas, elementos da drone music, elementos do free jazz e fazem referencia a mestres que foram gênios em misturar diversas ambiências de timbres como Ennio Morricone, Paul Motian, Bill Frisell e Sonny Sharrock, nos inserindo numa set list de vertente jazzística que vai daquele "western sound" ao post-rock introspectivo. Já na faixa-título “En Route”, a guitarra explode com um timbre mais visceral e eletrificado —— emulando quase um Sonny Sharrock, diga-se de passagem... —— e, daí, um clímax catártico se insere numa combinação de rock com free jazz. Este é o sétimo álbum da carreira do quarteto (os dois primeiros foram gravados quando eles ainda se apresentavam sob o nome Damp) e vale muito a pena, então, que os amantes dessas combinações compre e/ou baixem este álbum e garimpem para achar e ouvir os outros álbuns da banda!
★★★★ - Peter Danemo: Resonansium & Glätan (2025).
E de Estocolmo, Suécia, temos estes dois excelentes álbuns lançados pelo baterista, compositor e maestro Peter Danemo. Em Gläntan e Resonansium, Danemo nos oferece dois retratos complementares de sua paleta artística: um voltado à estética da música de câmera —— um chamber jazz —— e o outro à composição orquestral, ambos hibridificando jazz, música erudita moderna e traços nórdicos. Lançados quase simultaneamente em 2025, ambos os trabalhos revelam um criador de admirável amplitude, um compositor que trafega com naturalidade entre linguagens, formatos, camadas e densidades sonoras. Gravado ao vivo em 2016 no tradicional Jazz Club Fasching, em Estocolmo, Resonansium reúne Danemo à frente da robusta Norrbotten Big Band, sendo que só agora em 2025 o material foi finalmente editado em álbum. Danemo atua não apenas como o compositor, mas também como arranjador, maestro e como músico em meio aos sidemans da big band, participando diretamente em certos momentos das quatro peças da set list, como na expansiva peça "Ember", onde adiciona efeitos de eletrônica e efeitos processados à bateria, criando uma amálgama que se remete à uma junção de elementos do jazz fusion, da música erudita moderna, da livre improvisação e da eletrônica. Em ideias sequenciadas ou sobrepostas, Danemo manipula o corpo orquestral com singeleza e une camadas nórdicas com elementos das big bands americanas, improvisos livres com arranjos previamente elaborados, passagens densas com o uso expressivo do silêncio e, assim, consegue nos evidenciar um estilo muito próprio de combinar e fundir timbres em uníssonos, de criar sobreposições inteligentes e contrastes de tonalidades. Ao ouvir Resonansium, podemos dizer que Peter Danemo é, atualmente, um dos grandes nomes do jazz a explorar o formato orquestral na Escandinávia, oferecendo-nos peças com admirável amplitude de ideias e com admirável diferenciação através do um estilo muito próprio de compor, arranjar e orquestrar. Para quem se interessar em conhecer mais a evolução de Peter Danemo dentro do formato orquestral, indico dois álbuns anteriores: Baraban (1996) e Hedvigsnäs: Composer in Residence (2017). Depois temos acima o excelente álbum Gläntan. Com um conjunto de câmara que mistura músicos do jazz e da música erudita contemporânea sueca, Danemo propõe em Gläntan uma escrita singela, minimalista e cuidadosa, feita de atmosferas nórdicas e timbres que se fundem como camadas aquosas. A instrumentação inclui flautas, clarinetes, violino, violoncelo, piano (com destaque para a sensível pianista Britta Virves), além de contrabaixo acústico, bateria e kits de percussão, e os arranjos privilegiam a singeleza, os detalhes, os silêncios, a escuta mútua e essa combinação atmosférica que se remete ao minimalismo nórdico. O que impressiona em Gläntan é o equilíbrio entre estrutura, silêncio e leveza: mesmo com escrita claramente composta e com estruturas bem elaboradas, a música flui com leveza e ambiência, e as texturas harmônicas se remetem ao jazz nórdico da ECM combinadas com traços da escrita moderna de compositores escandinavos contemporâneos. Em vez de exposição e desenvolvimento tradicionais, as peças seguem uma lógica quase topográfica: sons emergem como paisagens, acumulam tensão e se dissolvem, evocando clareiras ("gläntan", em sueco) onde som e espaço se encontram. Ouçam!!!
★★★★ - Carreiro, Gato, Oswald, Valinho - Talagbusao (Robalo, 2024)
E aqui desembarco na rica cena lisboeta. Lançado em 2024 pela gravadora portuguesa Robalo Music, Talagbusao é o primeiro registro do quarteto homônimo formado por João Carreiro (guitarra), João Gato (sax alto), Margaux Oswald (piano) e João Valinho (bateria). O nome do quarteto remete-se a uma divindade da mitologia filipina ligada à guerra e torna-se, então, uma referência imagética para a música que aqui se cria em tempo real, conjugando-se em um free jazz de diálogos conflitantes e fricções ruidosas entre os músicos com notáveis contrastes entre ruído e silêncio. Gravado em julho de 2023 nos Timbuktu Studios, o álbum só foi oficialmente lançado em CD e em formato digital no final de 2024. Trata-se, então, de escutas imersivas e expansivas. Se a primeira faixa "The stutterer trip and fell" traz um colorido emaranhado de improvisos conflitantes, a segunda faixa, "Hangman", já traz essa dinâmica de fazer o som ecoar no espaço-tempo com uma certa espacialização onde o ruído é usado como veículo para o mistério. A forma como o quarteto trabalha com o ruído é, aliás, muito artística e intuitiva: em algumas passagens, os músicos combinam então toda a massa de ruídos eletrificados da guitarra com as técnicas estendidas dos outros instrumentos para criar inexplicáveis mantras de noise music. O versátil guitarrista João Carreiro, com formação em jazz e guitarra clássica, sabe muito bem oferecer camadas de ruídos que possam inspirar seus colegas —— um outro disco em que os ouvintes poderão escutá-lo em um projeto solo é Pequenos Desastres (2022), também editado pela Robalo. João Gato, saxofonista da nova geração lisboeta (formado pelo Hot Clube e pela ESML), mostra-se bem articulado entre as fricções e a venosa massa sonora, indo além de frases freejazzísticas e levando seu sopro a produzir novas sonoridades via técnicas estendidas —— criador do grupo Apophenia, vide o disco Prötzeler, Gato já vinha explorando essas fricções e fissuras sonoras antes. Margaux Oswald, pianista franco-filipina —— radicada em Copenhague, Dinamarca, mas mantendo conexões regulares com músicos portugueses —— oferece momentos de improvisos livres mais caóticos e conflitantes com suas teclas e usa bastante técnicas estendidas ao explorar diretamente as cordas do seu piano, sempre com um colorido que ecoca uma harmonia mística dentro do grupo —— dela indico ao leitor e ouvinte mais curioso seu álbum solo Dysphotic Zone (Clean Feed, 2022), que chegou a ser destaque nas críticas internacionais. Já o baterista João Valinho, figura destacada na cena de música livre portuguesa —— conhecido por colaborar com figuras como Ernesto Rodrigues, Rodrigo Amado e José Lencastre ——, aqui atua com uma amplitude que vai dos sons mais fraturados até a expertise de levar seu drum set para regiões atmosféricass e texturais mais misteriosas. Juntos os quatro músicos criam uma música de crueza abstrata e ao mesmo tempo contemplativa, onde a fricção é atenuada pelas texturas mais timbrísticas, onde os livres improvisos de entrelaces mais ruidosos entre os músicos é mesclado com momentos de escuta afiada e com momentos dotados de intuitivas espacialidades.
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