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Anthony Braxton at 80: nove facetas do filósofo, gênio da AACM e pai da composição conceitual no jazz & avant-garde


O gênio e iconoclasta Anthony Braxton fez 80 anos em 4 de junho de 2025, e a aclamada revista DownBeat acabou por incluí-lo no seu estrelado Jazz Hall of Fame e colocá-lo como capa na sua edição comemorativa de agosto. Um reconhecimento auspicioso!!! Braxton já figurou algumas vezes na capa da Downbeat, uma revista que preza mais o mainstream do jazz e só pontualmente divulga trabalhos experimentais. Mas esse reconhecimento, ainda que pontual, é importante para mostrar o quão influente a obra desse mestre se tornou. De certa forma, poderíamos dizer que, para os ouvintes recentemente ingressados no avant-garde, a obra de Braxton chama mais atenção pelo ludismo de semiótica misteriosa recorrente em suas partituras do que pela própria música resultante. Mas também podemos atestar que vários dos músicos mais jovens que, nas últimas décadas, interagiram com a obra desse compositor —— como Mary Halvorson, Nate Wooley, Tyshawn Sorey, Jessica Pavone, Taylor Ho Bynum e Steve Lehman, entre outros... ——, já a reconheceram como uma obra inovadora e a mantiveram como influência dentro da nova era do "modern creative" que se desenvolveu nestes últimos tempos. E esses fatos já demonstram o quão importante Braxton tem sido para a evolução do jazz e do avant-garde. Então aqui, em homenagem a essa figura legendária, faremos uma dedicatória listando algumas facetas que permeiam sua música e suas filosofias. Em termos de jazz e de música improvisada atrelada ao avant-garde, podemos considerar Anthony Braxton um autêntico founding father da premissa da composição conceitual pelas vias da numerologia, da filosofia da arte, da matemática, da geometria e outras vias conceituais. Se na música erudita moderna tivemos John Cage, Karlheinz Stockhausen e Iannis Xenakis e outros compositores que criaram novas filosofias, novas formas de notação gráfica e novas formas de estruturar a composição musical, no jazz e na música improvisada será Anthony Braxton a inovar nessa direção, sempre expandindo sua verve conceitual a cada fase. Como já denotado, a música de Braxton não é de fácil apreciação. Mas é justamente pelas partituras enigmáticas e cheias de simbologias e filosofias misteriosas que Braxton segue conquistando adeptos e, desde sempre, tem suscitado muita curiosidade, mesmo sua obra já tendo sido considerada a obra de mais difícil audição compreendida no range jazz-free improv... O fato é que para além dos elementos figurativos serem abstratos e ininteligíveis para os ouvintes e os críticos, as composições braxtonianas não soam vibrantes e líricas como bem pede o receituário do mainstream: em seu conjunto, há diversos momentos de conceitualismos maçantes, reflexões filosóficas que podem ser tediosas para os fã de música menos obstinados e momentos de uma harmonia escura e fosca. Mas mesmo os registros mais "tediosos" trazem ganhos artísticos e elementos inovadores faltantes em vários trabalhos de outros artistas pseudo-criativos: falo principalmente da busca por sempre transpor limites e padrões e do mistério e da ousadia estrutural das peças, seja pelas estruturas longas e estranhas de composição, seja pelos formatos enormes e/ou inusitados dos seus combos instrumentais. 



Inicialmente membro da AACM (Association for the Advancement of Creative Musicians) e integrante do cenário do free jazz a partir do final dos anos 60, o multi-instrumentista (pianista, multi-palhetista e etc) e compositor Anthony Braxton passou a ser a figura da vanguarda do jazz mais conectada com os avanços da vanguarda da música erudita do século XX —— e com o tempo passou a ter sua genialidade reconhecida por isso. De fato, Braxton se posiciona como figura chave ao lado de bandas e músicos ligados a AACM tais como Art Ensemble of Chicago, Muhal Richard Abrams, Henry Threadgill e George E. Lewis. Anthony Braxton recebeu ao longo de sua carreira diversas honrarias e distinções, incluindo o prestigiadíssimo Prêmio MacArthur Fellowship em 1994, o título de Doutor Honorário pela Wesleyan University, onde também lecionou por décadas, além de, em 2014, ter sido eleito membro da American Academy of Arts and Sciences. Em 2020, foi laureado com o NEA Jazz Masters Fellowship e sua influência, então, tem se consolidado tanto entre veteranos quanto entre jovens músicos. Suas contribuições transcendem os gêneros e o tempo, consolidando-o como um dos importantes inventores musicais do nosso tempo. Há muitos textos que tentam desvendar o universo de Braxton e mesmo todo o conjunto desses textos ainda não será suficiente para elucidar, de forma ampla e completa, todo o conceitualismo cerebral que envolve a obra do compositor. O universo conceitual e filosófico de Anthony Braxton já foi abordado em uma penca de livros e numa quantidade significativa de artigos acadêmicos e crítica especializada nos principais jornais, magazines e periódicos: para o fã e pesquisador obstinado, vale à pena adquirir os textos e os livros publicados por críticos e musicólogos bem fundamentados tais como Stuart Broomer (Time and Anthony Braxton, 2009), Timo Hoyer (Anthony Braxton: Creative Music, 2021), Ronald M. Radano (Anthony Braxton: Creative Music in Motion) e Graham Lock (Forces in Motion, 1988). O jornalista e crítico brasileiro Fabrício Vieira recentemente publicou sinopses de vários👉livros de free jazz, incluindo alguns desses que tratam da vida e obra de Braxton. Há também vários vídeos no YouTube de críticos, estudiosos e entusiastas que tentam trazer um overview mais acessível para o ouvinte interessado em saber mais sobre Braxton e sua obra. Aqui no blog, para o ouvinte e leitor mais paciente, tento trazer um panorama da obra do mestre listando ao menos 09 das suas principais facetas. E para enriquecer essa dedicatória, no final do post disponibilizo uma playlist com faixas que foram possíveis de se  encontrar no Spotify. Leiam, ouçam, apreciem sem moderação!!! 


Tri-Axium Writings, Tri-Centric, Trans-Idiomatic, conceitos filosóficos afins
   

Se não faltam textos e livros que explanam sobre a vida e obra de Braxton, é ainda mais interessante, para os fãs de música cerebral com ouvidos e tato mais obstinados, ler os artigos teóricos publicados pelo próprio compositor, os quais articulam-se em torno dos seus três sistemas-conceitos filosóficos interligados: o Tri-Axium, o Tri-Centric e o princípio Trans-idiomático. O Tri-Axium System, delineado nos três volumes de livros intitulados Tri-Axium Writings, é a base primal da sua obra e estabelece uma filosofia tridimensional: isso se aplica à trindade entre o intelectual, o emocional e o espiritual; se aplica à trindade entre composição, a improvisação e a tradição; e também se aplica à trindade entre notação musical tradicional, notação gráfica expansiva e linguagens novas. A partir dessas e outras trindades conceituais, Braxton rejeita, então, dicotomias e dualismos tais como composição versus improvisação ou música erudita versus jazz. No lugar dessas dicotomias, Braxton propõe em sua obra, então, uma arquitetura de pensamento triádica e multi-estética onde as estruturas se entrelacem e coexistam através de uma nova expressão codificada por gráficos, numerologias e diagramas. Esse pensamento filosoficamente estruturado serve como base para a aplicação prática do Tri-Centric Model, uma estrutura lógica e performativa que o compositor foi desenvolvendo ao longo da carreira até ser amplamente adotada a partir dos anos 1990. Através do seu modelo Tri-Centric, Braxton opera com três "lógicas musicais" coexistentes: "stable" (elementos rigidamente expressados via notação gráfica, em pauta), "mutable" (elementos improvisados segundo sistemas e linguagens específicas, como sua Language Music) e "synthesis" (combinação das duas anteriores com aberturas para inserções de outras obras e outros materiais). Esse modelo de prática musical permite interações simultâneas entre níveis composicionais, individuais e coletivos tanto em tempo real quanto em processos de montagem previamente elaborada. Inserido nesse modelo, e por consequência do mesmo, Braxton se considera um músico e um compositor trans-idiomático e, da mesma forma, desconsidera que sua música deva necessariamente se chamar apenas jazz, ou apenas música improvisada ou apenas música erudita. Braxton rejeita essas classificações e considera que sua música é, então, trans-indiomática. Essa filosofia reflete a estética de Braxton de superar os limites dos gêneros convencionalizados e categorizáveis, criando uma arquitetura artística própria onde, por exemplo, elementos do jazz, da música erudita contemporânea, das tradições nativo-americanas, da ancestralidade afro-diaspórica, das marching bands, da música improvisada e das suas próprias linguagens inventadas coexistam em práticas que rejeitem etiquetas e afirmem a liberdade criativa como matriz operativa. Esses três conceitos interligados mais tarde se concretizarão em projetos, séries e sistemas próprios de composição tais como, por exemplo, o Ghost Trance Music (1995–2006), onde uma melodia contínua e hipnótica serve de base para rituais de improvisação coletiva inspirados na Ghost Dance indígena, funcionando como metáfora sonora para comunicação cósmica e social na contemporaneidade. Para Braxton, a música não é apenas som, mas uma ação filosófica que se projeta como um transe psico-social, onde o performer, a partitura e o contexto cultural atuam mutuamente em campos de energia múltiplos —— um modelo triádico que reconfigura radicalmente a prática musical contemporânea. Essa filosofia interliga toda a arte, toda obra e a própria existência do compositor como o artista influente que é. Não é à toa que seu centro de pesquisas, ensinos e ajuntamentos de músicos criativos se chame Tri-Centric Foundation. Ademais, é preciso lembrar, ainda, que a filosofia de Anthony Braxton está profundamente enraizada no estudo de sabedorias ancestrais, tendo inspirado outros teóricos da música a entender e fundamentar a evolução da Creative Black Music: caso do conceito "Afrological Creativity" (criatividade afrológica) fundamentado pelo trombonista George E. Lewis no artigo "Improvised Music after 1950: Afrological and Eurological Perspectives", publicado em 1996 na revista Black Music Research Journal. Porém, ao invés de Braxton se relacionar com a ancestralidade afro de forma revivalista, ele articula a ancestralidade africana, diaspórica e afro-americana de modo estrutural, filosófico e conceitual, rejeitando referências diretas a ritmos ou estilos e preferindo integrá-las em sistemas próprios de pensamento musical. Em vez de representar tradições negras de maneira literal, Braxton propõe uma cosmologia musical afro-diaspórica baseada em totalidade sistêmica onde composição, improvisação e tradição formam uma unidade num fluxo interdimensional, em uma temporalidade não linear que se inspira em oralidades e rituais africanos através de fluxos tridimensionais e de uma espiritualidade não-religiosa, onde música se torna elo entre passado, presente e futuro. A arte da improvisação, herdada do jazz e do blues, é transformada por Braxton em prática conceitual e epistemológica, isto é, uma ferramenta afrocriativa para se produzir expressão, ciência, conceito e filosofia em tempo real. Braxton também se opõe ao essencialismo racial e ao confinamento estético do "jazz negro" ou da "black music", propondo uma afro-futuridade que posiciona o músico negro dentro do rol da música-arte tal como os compositores europeus posicionaram a música erudita no século 20. Dentro dessa estética, o músico negro opera intelectualmente por meio de linguagens matemáticas, filosóficas e gráficas próprias, desafiando categorias mercadológicas de gênero. Abaixo veremos, então, como essa sua autonomia artística se manifesta na criação dos seus sistemas e filosofias, os já citados Tri-Axium Writings, o Ghost Trance Music e os diagramas do que ele chama de Language Music, entre outros conceitos. Essa linguagem musical própria e expandida pode não salientar o swing ou os rítmos africanos ou afro-americanos, mas na sua essência evoca rituais, práticas e simbologias da africanidade que trazem ecos do Adinkra e do Nsibidi sob uma nova visão estético-conceitual, reforçando o poder da invenção como herança da diáspora. Ao analisar a música e o pensamento filosófico de Braxton de forma ampla, é correto dizer, enfim, que o compositor expressa um compromisso profundo com os ancestrais, mas sem fetichizá-los, usando essa herança mais como impulso criativo para a liberdade, a inovação, a complexidade e a reinvenção conceitual. Os volumes de Tri-Axium Writings estão disponíveis nos principais marketplaces.


AACM, Composição Conceitual e Matemática: catalogação, diagramas, geometria e sistemas próprios de notação gráfica e suas instrumentações
 

No final dos anos de 1960, Anthony Braxton emergiu como uma das vozes mais visionárias da Association for the Advancement of Creative Musicians (AACM) em Chicago, ao lado de figuras como Muhal Richard Abrams, Roscoe Mitchell e Joseph Jarman. E enquanto os músicos do Art Ensemble of Chicago, principal grupo a surgir através da AACM, pregava a Creative Black Music por meio de um avant-garde que unia tradição africana, free jazz, performance teatral e improvisação coletiva num nível inédito de experimentação sonora que propunha uma ruptura das fronteiras entre música, ritual e arte cênica, Braxton propunha uma radical reformulação dos papéis e das finalidades da interação entre músicos, da partitura, da improvisação e da performance musical de uma forma mais conceitual e filosófica, baseando-se no formalismo da música erudita moderna. Se a música erudita europeia —— de Schoenberg, Boulez, Stockhausen, Messiaen, Xenakis e etc  —— rumou para uma natural evolução estética e conceitual no cerne da modernidade do século 20, no jazz e no avant-garde afro-americano será Anthony Braxton a levar a música para esse tipo de evolução conceitual. Seu pioneirismo na AACM reside numa guinada formalista, intelectual e conceitual que resultou na articulação de uma linguagem musical exponencialmente expandida, uma intersecção multidimensional de linguagens e semióticas que incorpora sistemas alternativos de notação, estruturas abertas e uma profunda integração entre lógica, composição, intuição e imaginação. Foi nessa atmosfera de acasalamento entre liberdade criativa e formalismo conceitual que Braxton começou a construir um corpus musical único, cuja arquitetura conceitual influenciou muitos músicos da sua época e, hoje, influencia muitos músicos da geração mais jovem do "modern creative" que trabalham com improvisação livre dentro de estruturas composicionais conceituais. Não seria exagero dizer, aliás, que um dos universos mais misteriosos da música avant-garde nessas últimas décadas tem sido os sistemas semióticos, diagramas lógicos, axiomas e conceitos de Anthony Braxton, principalmente na forma como ele intitula e estrutura suas composições. Ao usar uma notação gráfica própria, numerologias e diagramas matemáticos para intitular suas peças, Braxton parece querer organizar suas subjetividades, imaginações e abstrações numa simbologia lógica sobre a qual só os músicos que são convidados a adentrar seu universo podem, superficialmente, ter o privilégio de ter essa noção expandida. Desde seu álbum de estreia 3 Compositions of New Jazz (Delmark, 1968), Anthony Braxton já introduzia sua lógica numérica axiomática e abstrata e seus diagramas geométricos ao intitular suas peças, sinalizando a construção de um universo composicional próprio e sistemático que, já desde o início, se afastava completamente do padrão de nomes temáticos ou referenciais. Da mesma forma, Braxton cria seus próprios sistemas de "Opus" para catalogar suas composições em séries, sistemas, conceitos e linguagens. Um exemplo bem evidente está no álbum New York Fall 1974 (Arista), onde essa abordagem se amplia com obras como Composition 23B e 23C, com a notação  (vide imagens acima) já incluindo símbolos gráficos e instruções de performance não convencionais: esses títulos sugerem, então, que cada número e forma geométrica remete a dinâmicas e blocos específicos dentro da estrutura composicional, refletindo sua busca por estabelecer uma "lógica axiomática" e uma "geometria musical" para elementos como  instrumentação, disposição dos músicos no momento da gravação (disposição em locais diferentes do palco, por exemplo), momentos imaginativos, improvisação, material pré-escrito interpolados com improvisos, métricas e compassos, símbolos ideográficos que levam os músicos para novas ideias, entre várias outras dinâmicas interativas e direções. E Braxton seguirá cada vez mais em expansão dentro desse seu universo próprio. Em álbuns como For Trio (1978) e Four Compositions (Quartet) 1983, Braxton expande ainda mais esse seu sistema com partituras que integram figuras geométricas —— triângulos, setas, curvas e campos vetoriais —— na intenção de organizar decisões performativas dos músicos em tempo real. A partir de peças como Composition No. 76, No. 91, No. 105, No. 136, figuras como círculos, setas, triângulos, losangos, espirais, linhas em ziguezague e formas tridimensionais estilizadas (cones, blocos, etc) aparecem como vetores de energia, indicando direções de fluxo, dinâmicas, intensidade, transformação de timbres e caminhos interpretativos: por exemplo, setas curvas podem indicar transições gradativas de textura, enquanto setas retas apontam ações imediatas; círculos concêntricos representam pontos de articulação repetitiva ou de retorno; triângulos podem indicar aceleração ou dispersão harmônica. Esses símbolos, muitas vezes sobrepostos ou interconectados, são lidos de forma multidimensional, ou seja, podem representar simultaneamente parâmetros rítmicos, espaciais, dinâmicos ou interativos. Na Composition No. 136, uma das primeiras peças do ciclo Ghost Trance Music (composta nos anos 1990), Braxton consagra plenamente sua ideia de fluxo contínuo, com títulos que incorporam números, gráficos vetoriais, símbolos e geometrias, indicando zonas de transição e intersecções entre duas ou mais composições que podem ser tocadas simultaneamente. 



Um dos conceitos centrais nessa semiótica de simbologias e numerologias de Braxton é sua "Language Music", pela qual suas composições operam não com partituras tradicionais que são lidas e interpretadas de forma linear (vertical e horizontalmente), mas como códigos performativos em constante mutação, evocando sistemas interdimensionais onde som, forma e energia se interpolam e se interpenetram. Assim, Braxton cria "pontes" entre lógicas musicais diversas, sejam elas ocidentais, africanas, indígenas ou asiáticas, formando um sistema trans-estilístico que transcende categorias de gênero e estilo: que é o seu conceito trans-idiomático. Há que se destacar, também, o modo como Braxton instiga a combinação entre diferentes timbres com combinações exóticas de instrumentação e concebe suas obras como ambientes vivos, nos quais os músicos são incentivados a habitar e interagir criativamente, estabelecendo conexões não lineares entre diferentes camadas, imaginativas, simbólicas e sonoras. Seus escritos Tri-Axium evidencia, então, o lado mais espiritual e filosófico de sua obra, vinculando-a à busca por sistemas que reflitam múltiplas realidades simultâneas: uma "música-linguagem" que articula tanto a estrutura composicional quanto a improvisação como forças complementares, e que busca representar o pensamento em estado fluido. Os números nos títulos das composições não são apenas identificações sequenciais: eles codificam informações sobre séries, módulos, métricas ou operações matemáticas envolvidas. Por exemplo, Composition 82 pertence ao ciclo dos “Creative Orchestra Pieces”, enquanto Composition 136 insere-se no período do Ghost Trance Music. Muitas obras funcionam como "algoritmos performativos", com estruturas baseadas em permutações métricas, permutações recursivas, rotações simétricas e operações de conjunção (AND), disjunção (OR) e intersecção (XOR), estruturas pelas quais Braxton se inspira em lógica computacional para instigar os músicos a intercalar ideias sonoras em permutação ou interpolação. Em séries mais recentes como Falling River Music (2004– ), Braxton tem a colaboração de jovens pupilos tais como o cornetista Taylor Ho Bynum, a saxofonista Ingrid Laubrock e a guitarrista Mary Halvorson e introduz desde "partituras" com esboços de tinta, colagem, aquarela e pinceladas gestuais até elementos ideográficos e pictográficos, como desenhos de casas, pássaros, olhos, chaves, barcos, árvores ou objetos abstratos, figuras que inspiram os músicos a tomar decisões semióticas no momento da improvisação. Esses elementos não têm tradução literal, mas operam como "portais interpretativos" —— cada ícone representa um estado mental energético ou uma qualidade sonora a ser intuída pelo performer. Por exemplo, um "olho" pode significar vigilância ou escuta ativa; um "barco" pode sugerir fluxo ou deslocamento harmônico. Esses ícones ativam uma leitura semiótica que remete ao conceito braxtoniano de "imagem sonora simbólica", onde o músico deve converter um estímulo visual em uma resposta sonora criativa, não fixada. Dessa forma, a escritura de Braxton não busca apenas a notação de eventos sonoros sequenciais, lineares, verticais e horizontais, mas busca a estrutura de camadas cognitivas simultâneas. Os músicos devem interpretar símbolos com base em um vocabulário acordado, frequentemente aprendido por contato direto com Braxton ou por meio de seus manuais, como os Tri-Axium Writings ou os textos explicativos muita das vezes dispostos nas próprias partituras. Essa abordagem é descrita por Graham Lock (Forces in Motion, 1988) como "teatro de cognição", no qual o músico opera como intérprete, improvisador, coreógrafo espacial e leitor filosófico ao mesmo tempo. A crítica especializada entusiasta de Braxton reconhece esse sistema como um dos mais ambiciosos da música do final do século 20 e início deste século 21. Stuart Broomer, um dos pesquisadores e biógrafos de Braxton, argumenta no livro Time and Anthony Braxton (2009) que essas partituras são “máquinas de criação” e não prescrições como as partituras clássicas, pois elas evidenciam sistemas dinâmicos e portais que abrem espaço para improvisação e transformação contínua em vários níveis e conceitos. É possível codificar a abstração? Anthony Braxton prova que sim!!!


Improvisos ao sax solo: For Alto (1969), Séries F e outros álbuns pioneiros
   
Anthony Braxton é amplamente reconhecido como o músico que inaugurou as gravações de sax solo na história do jazz —— após John Coltrane ter dado foco o duo de sax e bateria, só faltava mesmo gravações de sax solo, e foi Braxton quem inaugurou isso. Essa faceta de Braxton é interessante porque suas gravações de sax solo não apenas levam o instrumento para um novo plano, como amplia os limites técnicos do instrumento nesse novo plano de improvisações solo. Isso começa com o álbum For Alto, lançado por Braxton 1969 pela gravadora Delmark. For Alto é reconhecido, então, como o primeiro álbum duplo inteiramente dedicado a improvisações solo de saxofone na história do jazz e seu impacto foi imediato, estabelecendo uma nova gramática para a performance solista fora dos padrões harmônicos convencionais. O álbum duplo apresenta 8 peças dedicadas para pessoas (compositores, artistas, autores, amigos e etc) que Braxton admira, cada uma das peças funcionando como estudo de elementos técnicos tais como técnicas estendidas, frases, timbre, tons, silêncio, ataque, microtonalidade, harmônicos, registros extremos e etc, assim atingindo um vocabulário radicalmente expandido. Braxton vai muito além dos paradigmas da linguagem bebop pós-Coltrane para construir seus próprio modos de frasear e improvisar, onde cada improvisação opera como um microcosmo repleto de técnicas a aplicações. No entanto, como Braxton sempre evidenciou admiração por saxofonistas tais como Charlie Parker, Warne Marsh, Paul Desmond e Eric Dolphy, ele não deixa de evidenciar ecos dessas inspirações em seus timbres próprios e em seu fraseado anacrônico que alguns críticos chamaram na época de free-bop, uma abordagem de fraseado pela qual Braxton ressignifica, ao seu modo, elementos da linguagem bop tais como articulação, fraseado e velocidade rítmica, mas sempre num contexto livre que já distanciava esses fraseios das convencionais progressões harmônicas. Podemos dizer, aliás, que Braxton se projeta como um sucessor natural de Eric Dolphy, que já vinha apresentando um fraseado anacrônico e aplicando técnicas estendidas no sax alto e no clarinete baixo (clarone). Dessa forma, For Alto se projeta como um álbum tanto de ruptura quanto de evolução, tendo inspirado gerações de saxofonistas contemporâneos como Evan Parker, Roscoe Mitchell e John Zorn. Posteriormente Braxton ampliaria ainda mais suas abordagens solistas através do álbum Saxophone Improvisations Series F (1972, Arista/Freedom), aprofundando ainda mais sua pesquisa sobre sons multifônicos, articulações microtonais, formas de frasear e técnicas estendidas afins. As peças de Saxophone Improvisations Series F, por sua vez, já são compostas e improvisadas com base nos sistemas de diagramas numéricos para representar estruturas e já se aproximam da linguagem "trans-idiomática" que Braxton vinha construindo. Esses álbuns inauguraram uma abordagem em que o saxofone se torna não apenas veículo melódico, mas um instrumento capaz de atingir sozinho um sistema completo de aplicações técnicas e arquitetura sonora, algo que o compositor erudito italiano Luciano Berio também já vinha investigando com as Sequenze, sua série de peças para instrumentos no formato solo iniciada em 1958 e só finalizada em 2002. For Alto (1969) e Saxophone Improvisations Series F (1972) foram os primeiros, mas Braxton gravaria vários álbuns solistas nessa direção tais como Solo: Live at Moers Festival (Ring, 1976), 19 (Solo) Compositions 1988 (New Albion), Wesleyan (12 Altosolos) 1992, Solo (Victoriaville) 2017 (Le Disque Victo) e outros. São álbuns que abrangem amplas demonstrações técnicas a solo.


Quartetos Legendários: Circle (com Chick Corea) e os subconsequentes quartetos com George Lewis, Kenny Wheeler, Marilyn Crispell e outros
 

Se não podemos dizer que Anthony Braxton conquistou o mainstream do jazz ou esteve nos top charts da Billboard, ao menos podemos dizer que ele se fez notar nos círculos midiáticos que cobriam as cenas do jazz por estar sempre acompanhado de grandes músicos, principalmente através do formato de quarteto. Mesmo com um fazer musical tão particular e estranho, Braxton não ficou escanteado, à margem: podemos dizer, aliás, que Braxton conseguiu arregimentar grandes músicos a colaborarem para que sua arte não passasse despercebida. Essa faceta começa com o quarteto que ele formou numa parceria com o legendário pianista Chick Corea, e evolui para vários outros grandes quartetos que se seguiram nos anos de 1970 até os anos 90. Podemos dizer que Braxton enxergou no formato de quarteto uma via auspiciosa para expressar sua amplitude de ideias trans-idiomáticas e, assim, conquistar tanto os fãs de jazz, como os fãs de música erudita, bem como os fãs do avang-garde mais experimental. Os quartetos de Braxton não apenas chamaram a atenção pela amplitude técnica dos músicos como redefiniram os limites estéticos do jazz ao articularem entrelaces de novas linguagens e elementos advindos free jazz, do post-bop, da música erudita contemporânea e do novo conceito de improvisação estruturada. A começar pelo Circle, que perdurou de 1969 até 1971 e lançou o ótimo álbum "Paris Concert" (ECM, 1972): trata-se  de um quarteto com o pianista Chick Corea que incluía o próprio Braxton (saxofones e clarinetes) como co-líder, Dave Holland (contrabaixo baixo) e Barry Altschul (bateria). Considerado um dos quartetos visionários do jazz dessa era pós-Coltrane, o Circle misturava então as novas ideias de Braxton, onde a livre improvisação coletiva coexistia com elementos composicionais inspirados na música erudita moderna, com ecos de um post-bop seiscentista que ainda insistia existir. Chick Corea, inclusive já vinha chamando a atenção dentro do gênero do post-bop, como pode ser atestado em seu ótimo álbum de piano-trio Now He Sings, Now He Sobs, gravado pela Blue Note em 1968. Essa conexão da veia mais experimental de Braxton com o jazz "mais convencional" pelas vias do post-bop foi um caminho inicial a se explorar em paralelo aos seus trabalhos mais conceituais e experimental e o influenciaria a manter novos quartetos a seguir. O quartetos subsequentes, aliás, rumariam cada vez mais para um avant-garde jazz mais centrado em suas próprias ideias. Quando Chick Corea saiu da banda para explorar o jazz fusion, Braxton manteve Dave Holland e Barry Altschul e, ao invés de convidar outro pianista, convidou o trompetista Kenny Wheeler e, mais tarde, o trombonista George Lewis, mantendo esse formato de quarteto com sopros por muitos anos na década de 70. Álbuns como Five Pieces 1975, Quartet: Live at Moers Festival e Dortmund (Quartet) (HatHut, 1976) são documentos dessa fase de exploração das texturas e timbres dos sopros imersos numa nova densidade e formalismo composicional: o próprio Braxton, aliás, explorou uma maior variedade de clarinetes, flautas e saxofones nessa fase, incluindo instrumentos enormes e inusuais como o saxofone contrabaixo. No início dos anos 80, Braxton mais uma vez volta a explorar um quarteto com piano convidando a jovem pianista Marilyn Crispell para formar uma banda com o contrabaixista Mark Dresser e o baterista Gerry Hemingway, outros dois jovens em ascensão na época. Braxton conheceu Marilyn Crispell na Creative Music Foundation de Karl Berger, em Woodstock, e a pianista contou em entrevistas que, ao conhecer o trabalho de Braxton, ficou profundamente impactada com sua abordagem rigorosa, intelectual e emocional da sua música. Da mesma forma, Braxtou ficou um tanto entusiasmado com o brilhantismo técnico de Marylin Crispell, que trazia em suas teclas uma combinação das inspirações em Cecil Taylor e em elementos eruditos com seus próprios traços e dedilhados repletos de frescor harmônico. Esse quarteto trouxe um novo brilhantismo para a música de Braxton e vigorou do início dos anos 80 até meados dos anos 90, tal como podemos atestar em álbuns como "Six Compositions (Quartet)" (Black Saint, 1984) e Quartet (Santa Cruz) (1993). Para o ouvinte menos interessado em conceitualismos, começar a ouvir os quartetos de Braxton é uma boa direção.

 
In the Tradition: focando nos mestres históricos e reinventando standards
 

Todo músico inovador de jazz prezou por mostrar uma firme fundamentação na tradição ao mesmo tempo em que mirava para o futuro. Anthony Braxton pontualmente deixou de lado esse conceitualismo experimental, esse foco em sistemas conceituais próprios e em composições abstratas à base de notações gráficas à primeira vista ininteligíveis, para desenvolver uma aproximação com a tradição. Essa é uma faceta que precisa ser reconhecida entre fãs e críticos por evidenciar que Braxton não está deslocado da evolução do jazz, mas que ele caminha numa linha evolutiva que começa com o jazz moderno de Charlie Parker, passa pelo free jazz harmolódico de Ornette Coleman e desemboca num avant-garde que lhe abriu os portais para um universo de técnicas e conceitos próprios. Há, então, alguns álbuns onde Braxton se deleita em aplicar seus próprios arranjos para standards clássicos e em homenagear, ao seu modo, os mestres históricos do jazz. A começar pelos dois volumes de In the Tradition (SteepleChase, 1974 e 1976), os quais apresentam Braxton numa formação de jazz quartet com o pianista Tete Montoliu, o super contrabaixista Niels-Henning Ørsted Pedersen e o baterista Albert “Tootie” Heath. Nesses dois volumes, Braxton empunha sax alto e clarone junto ao jazz quartet e dá versões para standards de Charlier Parker, Charles Mingus, John Coltrane, Miles Davis, Warne Marsh, Billy Strayhorn, Richard Rodgers e Johnny Burke, por vezes mantendo o swing e outros elementos tradicionais. Com ideias iconoclastas e um fraseado singular, Braxton evidencia versões não menos que idiossincráticas para esses temas e standards clássicos, mas ao mesmo tempo evidencia que sua abordagem tecnicamente admirável é tão pessoal quanto embasada na tradição. Outro exemplo é o álbum Six Monk's Compositions (Black Saint, 1987), gravado com um quarteto formado com o pianista Mal Waldron, o contrabaixista Buell Neidlinger e o baterista Billy Osborne: Braxton, aqui apenas com sax alto, mergulha no universo harmônico singular e nas distensões de Thelonious Monk com tanto respeito ao mestre quanto ousadia para aplicar novas idiossincrasias e angularidades, mantendo o swing assimétrico e as tensões características das peças e, ao mesmo tempo, ampliando-as com sua paleta expressiva e seu fraseado anguloso. Já no álbum Eight (+3) Tristano Compositions, 1989: For Warne Marsh (hatART), Braxton aparece tocando sax alto, sax sopranino e flauta com um quarteto formado com Dred Scott (piano), Cecil McBee (contrabaixo) e Andrew Cyrille (bateria) homenageando o legado cerebral da escola do histório pianista Lennie Tristano e homenageando os saxofonistas Warne Marsh e Lee Konitz, os quais foram alunos de Tristano e aos quais ele considera influências centrais dentro da sua própria abordagem ao sax alto. Essas releituras atestam, portanto, a habilidade que Braxton tem de aplicar arranjos em materiais clássicos e internalizá-los em seu próprio vocabulário. É o caso, também, do álbum Anthony Braxton’s Charlie Parker Project 1993 (hatART), onde Braxton aproveita sua passagem pela Europa —— num encontro com o pianista Misha Mengelberg e o baterista Han Bennink, diga-se de passagem... —— e reconstrói a música de Bird em angulosos arranjos elaborados para sexteto, mostrando uma ponte entre o fraseado bebop e a sua experimentação pós-free, algo que ele tipifica muito habilmente através do seu "free-bop". Além desses, Braxton gravaria outros álbuns como Standards (Quartet) 1994 e 20 Standards (Quartet) 2003, continuando sua sina em mostrar que sua experimentação também encontra ecos nos standards e nas obras dos mestres históricos do jazz, ao mesmo tempo reafirmando que seu conhecimento desse repertório e da tradição do jazz está longe do pastiche da mera releitura: trata-se, antes, de provocar uma nova e dialógica versão para essa tradição, uma nova escuta, um novo olhar que leve os ouvintes de jazz mais assíduos para o universo braxtoniano e vice-versa. É preciso frisar, no entanto, que Braxton não faz o tipo do revisionista que fica preso ao revival do passado. Para Braxton, dar novas versões para as obras dos mestres é dialogar com seus ancestrais em tempo real, reinventando o passado sem traí-lo, revelando uma postura afrológica que é, ao mesmo tempo, crítica e contemplativa na intenção com a qual se compreende a história do jazz como processo contínuo em constante transformação. Interessante, também, é notar que para esses álbuns Braxton fez questão formar bandas com músicos que equilibrassem técnica e originalidade, convidando instrumentistas singulares como os pianistas Mal Wadron e Misha Mengelberg, os contrabaixistas Niels-Henning Ørsted Pedersen e Cecil McBee e os bateristas Hann Bennink e Pheeroan akLaff, entre outros. Essa é, então, mais uma porta aberta para jazzófilos investigarem Braxton.              

Creative Music Orchestra e ensembles expandidos: a expansão orquestral do avant-garde através do inventivo sistema trans-idiomático de Braxton
 

Já conhecido por seus métodos próprios de composição —— baseados em invenções e filosofias próprias casados com elementos da música erudita moderna ——, Anthony Braxton lançou-se no formato "big band" em meados dos anos 1970 com sua Creative Orchestra. Com esta formação, lançou um de seus álbuns mais icônicos: Creative Orchestra Music 1976 (Arista), contando com um time de músicos de altíssimo nível como o saxofonista Roscoe Mitchell, os trompetistas Wadada Leo Smith, Kenny Wheeler e Jon Faddis, o trombonista George Lewis, o pianista Muhal Richard Abrams, o contrabaixista Dave Holland, o baterista Barry Altschul, e outros. Como já atestamos, desde o início da carreira em 1968, Braxton já vinha empregando um sistema inovador de diagramas e figuras tanto nos títulos quanto nas estruturas de suas peças, numa sistemática de símbolos e números que podiam expressar conteúdos introspectivos ou funcionarem como esquemas e gatilhos mentais para solos, improvisações, posições físicas dos músicos no palco e interações entre eles, entre inúmeras outras sacadas. Esse sistema gráfico e lúdico conferiu ao free jazz orquestral de Braxton uma elevação formal ainda mais cerebral e idiossincrática, onde formas de composição, uso de material terceiro, uso de material extramusical, arranjos e desarranjos, livre improvisação, cadências, contrapontos, dinâmicas de pergunta e resposta, explosões e silêncios se intercalam em uma arquitetura sonora que desafia a compreensão convencional de prática em grupo. Nas faixas três e quatro de Creative Orchestra Music 1976, por exemplo, ele introduz uma marcha ao estilo de John Philip Souza, que logo é desconstruída em free jazz caótico até que Wadada Leo Smith emerge com um solo livre e rasante, seguido de uma nova faixa com linguagem bebop que logo desestrutura-se em um free-bop. Essa fusão entre o brilho dos naipes no estilo das brass bands, o ritmo marcial das marchas, o arranjo de big band e o impulso do free-bop e outras formas de frasear e improvisar somadas as novas linguagens de interação e arranjo é uma síntese das influências tradicionais que marcaram esse conceito de Creative Orchestra investigado pelo compositor à época: outros músicos, tais como George Lewis com suas Shadowgraph Series e Muhal Richard Abrahms, também se deixarão influenciar e investigarão esse formato e conceito de "Orquestras Criativas" a seguir. Braxton seguiria mostrando, então, esse seu projeto Creative Orchestra em álbuns subsequentes tais como Anthony Braxton Creative Music Orchestra – RBN----3° K12 (registro ao vivo na França pela Ring Records, 1972) e Creative Orchestra (Köln) 1978 (hatArt, 1978). Interessante notar, aliás, que desses três registro citados, este último, gravado em Colônia, Alemanha, destaca-se pelo uso de guitarra elétrica e elementos de música eletroacústica pelas vias dos instrumentos eletrônicos do tecladista e pioneiro dos sintetizadores Richard Teitelbaum, uma outra faceta marcante da produção braxtoniana que também comento aqui neste post. A Creative Music Orchestra, no entanto, foi apenas o início dos experimentos orquestrais de Braxton. Já a partir do álbum For Four Orchestras (Arista, 1978), ele passou a expandir essa faceta ao explorar grandes formações e configurações complexas, por vezes envolvendo duas, três ou quatro orquestras simultaneamente. Esse foco em ensembles e grandes formações lhe forneceu um caminhho importante para que ele disseminasse seus conceitos e filosofias aos músicos mais jovens. A partir de meados dos anos de 1990, já como professor no Departamento de Música da Wesleyan University (cargo que ocupou de 1990 a 2013), Braxton formou uma geração de jovens músicos que se tornariam referência nas novas cenas do jazz e da improvisação livre, particularmente em Connecticut, Chicago e New York: Taylor Ho Bynum (flugelhorn, cornet, trombone, piccolo trumpet), Jessica Pavone (violino, baixo elétrico, viola), Jay Rozen (tuba), Mary Halvorson (guitarra), Carl Testa (baixo acústico e clarone), Aaron Siegel (bateria, vibrafone e percussão), James Fei (saxofones, clarinetes), Steve Lehman (saxofones), Kevin Norton (percussão), Miles Okazaki (guitarra), entre tantos outros. Com essa nova geração de formandos da Wesleyan University e de jovens improvisadores que começaram a frequentar o Tri-Centric Foundation, Braxton continuou a trabalhar com diversos grupos orquestrais e ensembles expandidos, incluindo tendo empreendido uma reatualização do seu conceito de Creative Orchestra nos anos 2000 e outros formatos expandidos, vide registros tais como Creative Music Orchestra (NYC) 2011, Two Compositions (Orchestra) 2005, Compositions No. 169 + 147 – The Ulrichsberg Tri-Centric Ensemble e o box-set de quatro discos 4 Compositions (Ulrichsberg) 2005 Phonomanie.


Aliás, aqui também aproveito para destrinchar a evolução desse fascínio de Braxton por formações orquestrais expandidas ou por formações com dois ou mais ensembles operando em conjunto. A partir do álbum For Four Orchestras (Arista, 1978), como já mencionado, Braxton passou a explorar grandes formações e interações com múltiplos ensembles —— por vezes envolvendo duas, três ou quatro orquestras operando simultaneamente ——, cada vez mais afastando-se do formato jazzístico da big band e aproximando-se de um acasalamento das formações erudita com seus conceitos próprios, o que o colocou na mesma trilha de compositores que expandiram os formatos e inventaram novos caminhos tais como Morton Feldman, Pierre Boulez, Karlheinz Stockhausen e John Cage. Em For Four Orchestras, por exemplo, há apenas uma composição com um título em forma extensa ininteligível —— "308M-64 / 30 / C4DM(R)- Z (For Four Orchestras) [Composition 82]" —— numa faixa única que dura 114 minutos e é gravada num sistema quadrafônico, ou seja com quatro canais de gravação, um para cada uma das quatro orquestras. Com muitos pontos de silêncio entre as interações das orquestras, há momentos em que a impressão é a de que as elas tocam peças desconexas entre si, mas que de repente de alguma forma elas se interagem —— há, como já citado, muito pouco de jazz, propriamente dito, e muito mais da influência da música erudita moderna. Em 1982, Braxton concluiria e estrearia a sua lúdica Composition No​.​102 (For Orchestra & Puppet Theatre), onde a novidade era o fato da peça contar com a apresentação de um teatro de bonecos com interações musicais bem inusitadas ao fundo. Em 1989, Braxton lança pela Leo Records a peça Composition NO. 96 (1989) (For 37-piece orchestra and four slide projectors), dedicada ao mestre compositor alemão Karlheinz Stockhausen. Em 1992 Braxton lança o interessante álbum 4 (Ensemble) Compositions 1992 com uma sonoridade orquestral mais fresca —— esse diferente dos álbuns eruditos anteriores marcados pelos seus sombreamentos braxtonianos mais foscos ——, onde temos o saxofonista Marty Ehrlich, o acordeonista Ted Reichman, o clarinetista Don Byron e a organista Amina Claudine Myers, dentre outros sidemans. Já dentro do seu curioso conceito Ghost Trance Music, Braxton lançou, por exemplo, o álbum Three Orchestras (GTM) 1998, que segue documentando uma das ambiciosas empreitadas do compositor nesse caminho de explorar formatos extensos e dois ou mais ensembles operando em conjunto: a performance conta com a interação simultânea de três orquestras independentes, e o concerto ocorreu em 21 de novembro de 1998 no Tri-C Jazz Festival em Cleveland, Ohio, tendo cerca de 70 músicos distribuídos entre as três orquestras. Para o entusiasta de Braxton mais obstinado, sugiro que que garimpe nas páginas ligadas ao compositor para encontrar essas e outras gravações orquestrais com grandes e inusuais formatos, pois vale à pena escutar essas obras pelas ousadias, obstinação e ampliações de formato e conceito que elas sugerem: a Composition No. 19 (For 100 Tubas), uma peça única para 100 tubas é um dos exemplos desse tipo de obstinação de Anthony Braxton em sua amplitude trans-idiomática.


Música Erudita: peças para orquestras, quarteto de cordas e ensembles
   
Como a música de Anthony Braxton é particularmente trans‑idiomática, ao que parece nunca foi o foco principal do compositor esse caminho de adentrar o restrito circuito das prateleiras da dita “música clássica” com uma linguagem mais puramente “erudita” tal como manda o figurino estético desse meio —— e apesar de ter surgido, neste início de século 20, uma geração de jovens compositores com peças interdisciplinares que têm rompido limites, tabus e preconceitos, o universo da dita “música clássica” ainda é muito restrito e cheio de “glamour” preconceituoso. Ou seja, ainda não vemos ensembles e orquestras famosas tais como o quarteto de cordas Kronos Quartet e a London Symphony Orchestra —— que até já lançou alguns álbuns com peças compostas por músicos de jazz —— gravando peças de Anthony Braxton em selos e gravadoras de renome. Para efeito de comparação, músicos de jazz como Wynton Marsalis e John Zorn (outro iconoclasta e experimentalista) conseguiram emplacar várias das suas peças mais eruditas nas prateleiras desse universo com grande aclamação de público e crítica. Os sistemas estranhos e o caráter trans‑idiomático da música de Anthony Braxton, contudo, parecem não oferecer um campo de exploração confortável aos padrões interpretativos dos músicos desses quartetos, ensembles e orquestras eruditos, ainda que a música desse compositor se alimente muito das fontes da música erudita moderna do século 20. Mas, por isso mesmo, Braxton desde sempre se habituou a criar seus próprios ensembles interdisciplinares, muitos deles em formatos inusuais e expandidos —— muitos deles, aliás, em formatos inusuais até mesmo se comparado aos formatos experimentais de Xenakis e Stockhausen, por exemplo... Entretanto, essa verve de Braxton mais próxima ao universo erudito existe e essa faceta começa, por exemplo, no já citado álbum For Four Orchestras (Arista, 1978), onde Braxton convida músicos formandos do Mills College, da Wesleyan University (onde mais tarde se tornaria professor) e outros colaboradores para formar quatro orquestras e explorar uma composição monumental que se baseia um tanto na peça Gruppen de Karlheinz Stockhausen, escrita para três orquestras regidas simultaneamente. Outro exemplo é o álbum Anthony Braxton/ Robert Schumann String Quartet (Sound Aspects, 1979, lançado em 1986), em que um tradicional quarteto de cordas europeu interpreta peças como Composition 17, 26 e 77, em leituras submetidas ao rigor formal da música de câmara europeia. Já no monumental Composition No. 96, gravado em 1981 no Cornish Institute for the Arts em Seattle, WA, Braxton rege uma orquestra com 37 músicos da sua Composers and Improvisers Orchestra —— incluindo cordas, metais, percussão e eletrônicos —— em uma peça dedicada explicitamente a Karlheinz Stockhausen, na qual a estrutura é inteiramente pré-elaborada para ser executada em camadas espectrais sobrepostas e células assimétricas e com o uso simultâneo de quatro projetores de slides com símbolos astrológicos e diagramas místicos. E, por fim, no álbum 2 Compositions (Ensemble) 1989/1991 (HatART, 1992), Braxton se junta ao prestigiado Ensemble Modern de Frankfurt —— reconhecido por interpretar obras de Frank Zappa, György Ligeti, Steve Reich e Helmut Lachenmann e muitos outros grandes compositores modernos —— para dar forma à sua engenhosa Composition No. 147, sob regência do maestro Diego Masson, além da Composition No. 151 com outro grupo formado por músicos independentes e acadêmicos. É importante explicar aqui que muitos das formações presentes nesses álbuns mais eruditos de Braxton que trazem orquestras e ensembles com o termo “Creative” (como Creative Orchestra, Creative Music Orchestra, Creative Ensemble, entre outros) não são formações institucionalizadas como se vê no universo da música erudita tradicional, mas sim grupos interdisciplinares idealizados por Braxton e formados por músicos convidados, improvisadores e alunos ou ex-alunos das universidades e institutos com os quais ele colaborava —— especialmente da Wesleyan University, da Mills College e do Cornish Institute of the Arts. Essas formações, contudo, funcionaram como laboratórios sonoros híbridos onde Braxton deu vida a engenhosas peças que cruzaram improvisação, leitura de partituras gráficas e estruturas composicionais formais de forma ambiciosa e inédita. Esses grupos foram fundamentais para viabilizar a dimensão monumental e pedagógica de suas obras mais ambiciosas e formalmente eruditas, além de revelar músicos inventivos.

Essa aproximação de Anthony Braxton com o restrito universo da música erudita contemporânea ganhou um novo episódio em 2023, quando ele foi homenageado nos Cursos Internacionais de Verão de Darmstadt, na Alemanha —— o mais prestigiado fórum europeu de música nova —— por meio da primeira conferência internacional dedicada exclusivamente à sua obra. Intitulada Anthony Braxton: 50 + Years of Creative Music, essa conferência ocorreu nos dias 8 e 9 de agosto de 2023 e teve como desdobramento um livro especial publicado pela Schott Music, volume inserido dentro da respeitada série Darmstädter Beiträge zur Neuen Musik. Para a ocasião foi solicitado para que o músico Kobe Van Cauwenberghe e o crítico Timo Hoyer, dois dos estudiosos da obra de Braxton, reunisse análises aprofundadas das peças do compositor. O compêndio reúne ainda discussões interdisciplinares e uma esclarecedora entrevista com Braxton conduzida por George E. Lewis, revelando facetas da sua ampla atuação como compositor, multi-instrumentista, teórico musical, professor, mentor e visionário que moldou significativamente a música contemporânea por mais de meio século. Como complemento, foi lançado também um CD com gravações ao vivo de dois eventos realizados durante os Cursos de Verão de Darmstadt: a estreia mundial de Thunder Music em 7 de agosto de 2023 e a apresentação do Creative Orchestra Workshop conduzido por Braxton em 15 de agosto. Ademais, eu particularmente gostaria muito de ver a música de Anthony Braxton sendo tocada em outros grandes locais de música erudita, em outras grandes salas de concerto e interpretada por outros renomados ensembles e orquestras, assim conquistando mais espaços nas prateleiras desse circuito nichado —— até porque, atualmente, são esses compositores mais cerebrais advindos do jazz tais como Wynton Marsalis, John Zorn, George E. Lewis, Vijay Iyer e Tyshawn Sorey que estão ajudando o universo da música erudita a se livrar de seus tabus e se expandir rumo a novas abordagens e linguagens. A música de Braxton amplamente inserida nesse meio, então, quebraria vários paradigmas, ajudando a expandir sobremaneira esse universo secular tão importante. E, à luz das evidências recentes —— com a recente homenagem em Darmstadt, o livro publicado pela Schott Music, o reconhecimento no Internationales Musikinstitut e outros indícios —— é plenamente justificável afirmar que a obra de Braxton já está trilhando um caminho promissor rumo a uma maior exploração e consolidação dentro da seara da música erudita contemporânea internacional. Acompanhemos e fiquemos à espera, então, de novos registros nessa direção.


Braxton com R. Teitelbaum, David Rosenboom, Bob Ostetag & Wolf Eyes: seu pioneirismo na inserção de ruídos eletrônicos na música improvisada
 

Na imensa discografia de Anthony Braxton, existe esta outra faceta que nem sempre foi evidenciada como uma das mais interessantes explorações braxtonianas: os registros onde ele adiciona sonoridades eletroacústicas e eletrônicas no meio do seu molho freejazzístico, que sempre evidenciou as mais variadas explorações com os mais variados tipos de clarinetes, flautas e saxes através de técnicas estendidas e abordagens inéditas. Para tanto, em meados dos anos 70 Anthony Braxton inicia sua parceria com o tecladista Richard Teitelbaum, um dos mais importantes pioneiros do uso dos sintetizadores, da música eletroacústica e da improvisação livre eletrônica —— abordagens estas que já podem ser ouvidas nos registros Trio and Duet (Sackville, 1974), New York, Fall 1974 (Arista) e no registro orquestral Creative Orchestra Music 1976 (Arista). Já numa segunda versão da sua criativa orquestra, registrada na Alemanha no álbum Creative Orchestra (Köln) 1978, Braxton convida um outro pioneiro da improvisação eletroacústica: Bob Ostertag —— que gravou apenas este registro com Braxton antes de ir para El Salvador como ativista político, e voltar ao cenário da Downtown da vanguarda nova-iorquina anos depois. Mas a parceria de Braxton com Richard Teitelbaum não deixa de ser considerada pioneira no quesito da música eletrônica inserida no contexto da livre improvisação. Esta parceria pode ser melhor apreciada nos álbuns onde a dupla registra o formato de duo de piano, teclados e eletrônica com sopros (clarinetes e saxes) de forma mais compacta, direta e expansiva. Em 1976, Teitelbaum registra a parceria ao vivo em duas peças extensas —— uma gravada no Creative Music Festival, em Mount Tremper (NY), em 10 de junho, e a outra gravada no Bearsville Sound em Woodstock (NY), em 16 de setembro —— e lança estas peças em seu álbum autoral Time Zones (Freedom, 1978), onde ele explora o sintetizador modular Moog e o compacto Micromoog. Em 1982, em uma passagem pela Europa, é a vez de Braxton convocar Teitelbaum para gravar um dueto de sopros e eletrônica em estúdio, dando luz ao álbum Open Aspects '82 (pela gravadora suíça hat ART), um registro de improvisações livres mais curtas (em relação às suas comuns peças de grande extensão), com o pianista/tecladista explorando não apenas o sintetizador Moog, mas também um microcomputador para processar sons eletrônicos e sons orgânicos previamente gravados, o que faz deste registro um dos primeiros no campo da improvisação livre a usar processadores de computador. Ademais, um terceiro registro que mostra as interações de Anthony Braxton com sons modulados por aparelhos eletrônicos e computadorizados é o álbum Two Lines (Lovely, 1996), em parceria com David Rosenboom e com faixas gravadas no California Institute of the Arts e no Computer Music Studios, de Santa Clarita, na Califórnia: tendo inspirações na ecologia e na natureza orgânica, Rosenboom criou um programa de computação musical, chamado HFG (Hierarchical Form Generator), usando o conhecido software de música HMSL (Hierarchical Music Specification Language) para criar uma linha repetitiva de acordes e clusters ao estilo "drone music" que se contrasta com a linha instrumental improvisativa de Braxton. Ademais, um outro registro experimental que envolve os livres improvisos de Braxton com ruídos eletrônicos é o Black Vomit (Les Disques Victo, 2005), álbum que o saxofonista gravou com o Wolf Eyes, aclamado trio de noisecore e música experimental de Michigan. O encontro, aliás, aconteceu de forma inesperada na edição de 2005 do Festival International de Musique Actuelle de Victoriaville (FIMAV), em Quebec, Canadá —— alguns meses antes, Braxton assistira a uma apresentação do trio e ficou embasbacado com sua performance. Braxton estava programado para tocar em duo com Fred Frith na sexta-feira e num show com seu sexteto no domingo, ficando livre de apresentações no sábado. O sábado teve a curadoria de Thurston Moore, que havia programado, para este dia, bandas experimentais mais radicais e sonoricamente mais pesadas baseadas nas estéticas noisecore, música industrial e eletroacústica tais como Nine for Victor, No-Neck Blues Band, Hair Police e o trio Wolf Eyes (formado por Nathan Young, John Olson e Mike Connelly, na ocasião). Pois bem: Thurston Moore e o trio, sabendo que Braxton estava por perto e era um fã confesso do noisecore do grupo, não hesitaram em chamá-lo para uma participação especial de 30 minutos, que foi lançada em álbum pelo selo Les Disques Victo, do próprio festival.


Novos Ciclos e Sistemas de Composição: Ghost Trance Music (GTM), Diamond Curtain Wall, Trillium, Echo Echo Mirror House Music (EEMHM)...
   
Com a premiação da MacArthur Fellowship, Anthony Braxton fundou em 1994 a Tri-Centric Foundation, que lhe permitiu continuar desenvolvendo seus sistemas composicionais e novas ideias, cada vez mais rodeado de pupilos e colaboradores advindos tanto das suas aulas na Wesleyan University quanto das suas masterclass em New York. A partir dessa fase, Braxton desenvolve ainda mais sua Language Music e desenvolve  novos ciclos, programas e sistemas como o Ghost Trance Music (GTM), seu ciclo de óperas Trillium, entre outros. Após fundar a Tri-Centric, Braxton criou também seu próprio estúdio e selo, o Braxton House Records —— que, inclusive, se situa nas dependências do próprio Tri-Centric em New York ——, pelo qual começa a lançar diversas gravações domésticas experimentando essas novas direções e novos sistemas. O sistema do Ghost Trance Music, por exemplo, é baseado na mística e no ritual das danças indígenas do século 19 chamadas de Ghost Dance, onde os indígenas ficavam horas ou até dias invocando seus antepassados (mortos em batalhas por território com o povo branco, aliás) através de um ritual onde cada membro ia convidando o outro a entrar na dança. Entendendo de uma forma bem simplificada, o sistema do GTM de Braxton começa com uma melodia primária (tocada por todos os músicos ao mesmo tempo) que aos poucos vai se dinamizando e se ritualizando através do sistema tri-cêntrico braxtoniano que faz uso de figuras geométricas no lugar das claves para nortear as abordagens e performances: o círculo pede uma performance abstrata (improvisativa); o losango pede uma performance concreta; o triângulo pede uma performance intuitiva. Dentro desta sistemática há, ainda, uma diagramação próprio de dinâmicas e notação musical que indicam pontos específicos onde o músico é convidado a acelerar, diminuir o som, desacelerar ou sair fora da partitura e usar materiais secundários ou terciários (uma colagem, um trecho de uma outra partitura, etc), ou se envolver em improvisação livre. As dinâmicas são representadas por uma notação rebuscadamente geométrica e a vez de cada músico tocar, bem como sua posição física dentro da banda, é representada por diagramas e figuras ou por um número, ou seja, cada músico aciona manualmente e aleatoriamente o número do seu parceiro para convidá-lo a entrar na pauta da partitura ou numa improvisação livre. Este sistema —— usado tanto em composições com grupos menores como para orquestras —— pode ser conferido em álbuns como Four Compositions (Quartet) 1995 e o expansivo Three Orchestras (GTM) (1998), onde temos sobreposições simultâneas de materiais composicionais e improvisações controladas. Braxton nomeia esse processo como "multi-hierarchical navigation", conceito central no GTM, onde cada músico pode operar em camadas distintas de material —— compostas, improvisadas, interpoladas —— ao mesmo tempo em que responde aos sinais e desenvolvimentos ao seu redor, como também ocorre em Four Compositions (GTM) (2000, Delmark). Já o ciclo de gravações Trillium aborda conjuntos de vozes —— corais ou cantores de ópera —— inseridos dentro das dinâmicas camerísticas e orquestrais braxtonianas. São exemplos desta abordagem as peças do álbum Composition No. 175 / Composition No. 126: Trillium Dialogues M (com a The Creative Jazz Orchestra) e o álbum Trillium R (1999), que traz uma ópera —— a Composition No. 162 - An Opera in Four Acts —— onde o compositor usa nove vocais junto à sua Tri-Centric Orchestra/Ensemble para aplicar uma extensão do seu trabalho que até então era focado mais no instrumental e agora passa a ter o drama e o canto como uma diretriz para expressar suas filosofias e crenças: nessa seara, aliás, o conceito de drama vocal de Braxton nunca é guiado por um desfecho linear como na ópera clássica, mas sim pela tridimensionalidade que permeia sua filosofia musical. Diz Braxton: "The name Trillium is an extension from my philosophical Tri-Axium and represents the third partial of my life’s work —— that being music (sound logic) systems, thought (philosophical) system, and ritual and ceremonial systems (belief)". A partir dos anos 2000, Braxton também desenvolve o sistema Diamond Curtain Wall Music, que integra eletrônica interativa em tempo real com suas notações gráficas e improvisação estruturada, sistema que o compositor registra, por exemplo, em Trillium J: The Non-Unconfessionables No. 380 (2011/14). Segue-se o ciclo Echo Echo Mirror House Music (EEMHM), sistema marcado por performances simultâneas e em camadas múltiplas, com os instrumentistas tocando suas partes ao vivo enquanto executam gravações prévias de Braxton em vários iPods sincronizados por fones de ouvido, como registrado no álbum triplo 3 Compositions (EEMHM) 2011 (lançado em 2016). Já mais recentemente, agora na década de 2020, Braxton introduz um novo sistema chamado Lorraine, que explora fluxos de respiração e articulação sonora, emprega notação tradicional e símbolos coloridos indicando tipos de som ou técnicas específicas e integra eletrônica interativa em tempo real baseada em algoritmos e linguagem de programação conhecida como SuperCollider, abordagem que estreou na peça Composition No. 429, interpretada com James Fei no álbum Duet (Other Minds) 2021. O projeto expandiu-se em 2022 com o álbum 10 Comp (Lorraine) 2022, com performances em trio e quarteto gravadas na Europa e nos EUA, nas quais a eletrônica programada via SuperCollider interage com improvisações ao vivo dos músicos. A consolidação dessa nova linguagem surge no box set Sax Qt (Lorraine) 2022, álbum ao vivo em quatro CDs com gravações em Vilnius, Bolonha, Antuérpia e Roma, tendo o Saxophone Quartet e eletrônica interativa. Com o sistema Lorraine somado aos preexistentes GTM, Diamond Curtain Wall Music, EEMHM e Trillium, Braxton concebeu e continua a conceber, enfim, modos inéditos de composição, estruturação da improvisação e interação interdisciplinar, realizações essas que sugerem que sua obra trans-idiomática segue evoluindo forma após forma com uma fundamentação conceitualmente robusta. No Bandcamp há um compêndio completo dessa evolução através dos álbuns lançados pela Braxton House.