Após ler uma publicação no
👉blog do Discogs que indica discos clássicos do jazz japonês, senti-me inspirado a escrever este post, mas aqui focando na contemporaneidade das últimas décadas e trazendo uma prateleira de estéticas mais diversificada quanto às sonoridades do Japão, do jazz ao japanoise mais extremo, passando pela música erudita contemporânea, pela eletrônica e por outras vertentes experimentais. Sempre tive a impressão de que o Japão talvez seja o segundo país com mais fanáticos por jazz em todo o mundo, reflexo natural do processo de hard power e soft power que os EUA exerceram —— e ainda exercem —— sobre os japoneses a partir do pós-guerra. Antes de elencar os discos que quero vos indicar, aproveito para traçar uma breve genealogia da história da música moderna no Japão a partir de como eles absorveram a música erudita moderna e o jazz —— as duas principais gêneses da modernidade musical no século 20, pois dessas duas linguagens originou-se uma infinidade de ossaturas estéticas que sustentarão o surgimento de uma infinidade de estilos musicais, do pop ao avant-garde e além. Até meados da década de 1940, a música moderna no Japão era limitada por um regime imperial de linhagem milenar que prezava pela preservação de suas tradições e via a música ocidental com certa ambivalência. Houve, porém, um período em que, acompanhando as ondas de modernização global —— especialmente após a década de 1920, com a disseminação do cinema e do rádio ——, o Japão permitiu que a influência ocidental se fizesse presente, sem grandes obstruções. Isso também se deve ao fato de que a
Era Meiji (1868-1912) já havia derrubado o sistema feudal e aberto caminhos para a modernidade pós-Revolução Industrial. O jazz, por exemplo, entrou no país já nos anos 1920 por meio de gravações americanas, partituras importadas e apresentações em cabarés, navios e casas de teatro, especialmente próximo a portos como Yokohama, Kobe e Osaka. Uma das primeiras bandas japonesas a se tornar precursora do jazz no Japão foi a
Hatano Jazz Band, que começou a tocar foxtrots, ragtimes e os primeiros estilos do gênero a bordo do navio transpacífico Chiyo Maru em escalas entre Yokohama e São Francisco e também tocava para fazer trilhas sonoras para filmes mudos. Outras bandas japonesas surgiram logo em seguida, abrindo a transição entre o jazz tradicional e o dançante estilo do swing jazz nos centros mais movimentados do país.

Contudo, com os desdobramentos da Segunda Guerra Mundial, o imperador Hirohito adotou uma política ultranacionalista com características fascistas, autoritárias e totalitárias, submetendo o país a um rígido controle baseado em censura e instrumentalização ideológica dos meios culturais. A partir da década de 1930, com o fortalecimento do nacionalismo militar, as bandas de swing jazz foram frequentemente rechaçadas ou forçadas a adotar disfarces estéticos —— muitas vezes retornando a estilos como o foxtrot, a valsa ou a versões instrumentais de canções japonesas —— para escapar da censura. Não raramente, utilizavam termos mais neutros, como “música de ritmo moderno” (modān ongaku), para se referir ao swing jazz nos grandes centros urbanos. Paralelamente ao surgimento do jazz, compositores eruditos tais como Kōsaku Yamada, Saburō Moroi e Kunihiko Hashimoto integravam técnicas das escolas composicionais europeias —— como o romantismo tardio, o impressionismo e até reminiscências do expressionismo —— a elementos melódicos e culturais da tradição japonesa. Formados na Alemanha, França e outros centros musicais da Europa, esses compositores traziam influências de Wagner, Brahms, Mahler, Debussy, Bartók, Schoenberg, Hindemith e de outros compositores europeus em suas bagagens. Apesar das tensões internas, foi a partir dessas iniciativas que iniciou-se a base da música moderna no Japão. A abertura definitiva viria apenas com a rendição japonesa na Segunda Guerra em 1945, após os bombardeios nucleares de Hiroshima e Nagasaki, quando as modernidades ocidentais passaram a influenciar o país de forma intensa e irreversível. No pós-guerra, a história da música moderna no Japão passaria por contínuas transformações e experimentações, incluindo o surgimento dos chamados jazz kissas —— bares e cafés especializados na audição de discos de vinil —— entre o fim da década de 1940 e o início dos anos 1950. A partir daí, consolidou-se uma genealogia que percorreu o bebop, o jazz fusion, o avant-garde, as fusões de free jazz com punk hardcore... e culminou nas formas radicais do japanoise. Esse percurso, o qual aqui vamos explorar, sempre envolveu tensões e contrastes entre tradição e inovação, Ocidente e Oriente, silêncio e ruído —— lembrando que, na cultura japonesa, o silêncio tem função praticamente religiosa, especialmente pela influência da meditação budista. Em paralelo ao desenvolvimento do jazz, a evolução da música erudita moderna também ajudou a lançar as bases que sustentariam o avant-garde e as artes performáticas japonesas, que foram fortemente influenciadas pelos happenings do Movimento Fluxus, pelo dadaísmo, pelo surrealismo e por outros movimentos artísticos modernos ocidentais. Soma-se a isso o desenvolvimento da nova música eletrônica, do j-pop, do punk hardcore e de outras estéticas experimentais de rock, todos esses estilos a surgirem na década de 1970, e teremos um conjunto de linguagens, conceitos e estéticas que se misturaram para formar o pós-modernismo musical japonês. A eletrônica, aliás, se tornaria um dos caminhos mais frutíferos, apoiada pelo avanço tecnológico que o Japão desenvolveu entre as décadas de 1970 e 1990. Abaixo, traço essa genealogia com os devidos paralelos, para que o leitor e ouvinte compreenda como essas estéticas se misturaram ao longo das últimas décadas.
O desenvolvimento da música moderna no Japão pós-1945: do bebop ao jazz-fusion, passando pela música erudita moderna e pela nova eletrônica

Um livro interessante para quem deseja investigar o desenvolvimento do jazz no Japão é Blue Nippon: Authenticating Jazz in Japan, escrito pelo historiador americano E. Taylor Atkins (vide imagem acima). Após a rendição do Japão em 1945, durante a ocupação americana, soldados e rádios militares disseminaram gravações de jazz em solo japonês, plantando a semente do jazz moderno nesses citados bares e cafés com pontos de escuta que ficaram conhecidos como "jazz kissa", o que pavimentou o surgimento de um novo público ávido por jazz na Terra do Sol Nascente. Nessa época, emergiram figuras como a pianista e bandleader Toshiko Akiyoshi e o baterista e também bandleader Hideo Shiraki, fundindo elementos do swing, do bebop e do hard bop com elementos tradicionais japoneses e, posteriormente, inserindo instrumentos tradicionais como o koto, o tsuzumi e o shakuhachi no jazz: vide álbuns tais como Kogun (lançado por Akiyoshi em 1974) e Sakura Sakura (lançado por Shiraki em 1965). Paralelamente ao jazz, compositores eruditos tais como Yoshiro Irino (1921-1980), Minao Shibata (1916-1996) e Tōru Takemitsu (1930-1996) já traziam uma música erudita moderna e experimental cujas experiências remodulavam reminiscências das estéticas concretistas, dodecafônicas e serialistas através de peças com novas técnicas e experimentações em fita magnética e técnicas de musique concrète, posteriormente fazendo um cruzamento de conceitos de compositores como Schoenberg, Webern, Messiaen, Cage, Stravinsky, Boulez e Stockhausen com a estética japonesa do Ma (間) (o silêncio como força expressiva) e com instrumentos e elementos tradicionais japoneses. Sendo, talvez o maior precursor e pioneiro da música erudita moderna no Japão, Tōru Takemitsu, autodidata cofundador do coletivo de avant-garde Jikken Kōbō em 1951, influenciou uma série de compositores japoneses contemporâneos que viriam a dar corpo, nas últimas décadas do século 20 e agora nessas primeiras décadas do século 21, para esse gênero de música no país e no exterior: vide figuras como Toshio Hosokawa, Akio Yashiro, Akira Nishimura e Somei Satoh (esse muito influenciado pelo zen-budismo). Em paralelo, em 1958 foi fundado o Sōgetsu Art Center (SAC), que forneceu um inédito local para experimentalistas de toda a sorte de arte e foi preponderante na disseminação das ideias do Movimento Fluxus, convidando vários grandes artistas e músicos experimentais precursores tais como John Cage, David Tudor e Robert Rauschenberg e dando espaços para artistas japoneses pioneiros do avant-garde tais como o compositor Toshi Ichiyanagi (1933-2022) e a multi-artista e performer Yoko Ono. Voltando ao jazz, na década de 1960 os músicos japoneses continuariam a se desenvolver através dos recém-nascidos gêneros do free-jazz e do jazz-fusion. O importante trompetista Terumasa Hino, que começara no hard bop, foi um dos músicos precursores dessas estéticas no Japão, tendo evoluído para diretrizes cada vez mais livres e repletas de novas fusões: seu álbum Hi-Nology (1969), com Motohiko Hino (bateria) e Masabumi Kikuchi (teclados), é emblemático nessa transição. Essa transição inovadora entre o jazz acústico e o jazz elétrico continuaria, por exemplo, com o saxofonista Kohsuke Mine e o pianista e tecladista Masabumi Kikuchi: seus álbuns First (1970) e Poo-Sun (1970), dentre outros, são citados entre os álbuns de transição que começam a introduzir o piano elétrico no jazz, ainda partindo de resquícios do post-bop e modal jazz. Outros álbuns dessa época já são até mais salientes nas fusões efetivas de funk, rock e jazz tais como o Head Rock (1970) do saxofonista Jiro Inagaki e seu grupo Soul Media e o Sounds Of Sound L.T.D. (1970) do baterista Takeshi Inomata e seu grupo Sound Limited. Seguindo adiante, o guitarrista Ryo Kawasaki seria outra figura emblemática da eletrificação do jazz no Japão: em colaboração com empresas de instrumento eletrônicos como Roland e Korg ele ajudou a desenvolver protótipos de sintetizadores para guitarras e lançou emblemáticos discos de fusion e jazz-rock, tais como Prism (East Wind, 1976) e Juice (RCA, 1976). Com a tecnologia japonesa em franca ascensão, os instrumentos eletrônicos se tornavam, aliás, parte fundamental da inovação musical no país: foi por essa via que jovens como Ryuichi Sakamoto, Haruomi Hosono e Yukihiro Takahashi fundariam a Yellow Magic Orchestra (YMO) em 1978, sendo mundialmente reconhecido como os principais fundadores das estéticas da eletrônica pop e experimental —— influenciando no surgimento do j-pop, inclusive... —— ao usar uma instrumentação formada apenas de sintetizadores e os primeiros recursos digitais, sequenciadores, samplers, baterias eletrônicas, processadores e computador controlados por Hideki Matsutake, engenheiro e programador que se tornou o "quarto membro" da YMO e fundador do igualmente inovador projeto Logic System. Junto a todos esses avanços, o free jazz, como já citado, foi um outro paralelo que também já vinha abrindo as portas das experimentações extremas, dando espaço para um novo gênero avant-garde nos circuitos outsiders dos grandes centros e nos seus bairros mais cults pelas vias da música improvisada, fenômeno underground que tento destrinchar abaixo.
A evolução do avant-garde japonês via arte da performance, free jazz e o surgimento da cena hardcore; os sons extremos do gênero japanoise, etc
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O caminho da experimentação via improvisação começou a se desenvolver no Japão a partir da década de 1960, com o surgimento de coletivos de avant-garde como o emblemático Group Ongaku, formado por figuras como o violinista Takehisa Kosugi e o artista multidisciplinar Yasunao Tone, que empregavam objetos cotidianos, gravações manipuladas, distorções e ruído como matéria sonora, dialogando com os happenings do Sogetsu Art Center e com práticas semelhantes às de John Cage e do Movimento Fluxus. O free jazz, propriamente dito, começaria a surgir no Japão primeiramente influenciado pelos shows de músicos americanos no país. É o caso, por exemplo, de John Coltrane e sua banda —— na época formada por Pharoah Sanders (saxes, clarone), Alice Coltrane (piano), Jimmy Garrison (contrabaixo) e Rashied Ali (bateria) ——, que realizaram, em 1966, 14 apresentações nas principais cidades japonesas em apenas 17 dias: duas dessas apresentações ficaram registradas, inclusive, no álbum Live in Japan, lançado pela Impulse em 1973. É o caso também das apresentações de Ornette Coleman e seu quarteto em solo japonês em outubro de 1967. Esses acontecimentos plantaram as sementes para que, no fim da década de 1960, o free jazz emergisse com mais força no Japão, a partir de figuras como o saxofonista Kaoru Abe, o guitarrista Masayuki Takayanagi, o percussionista Sabu Toyozumi e o pianista Masahiko Sato, que levaram a estética do gênero à sua expressão mais visceral nos anos 1970, ecoando a contracultura e as convulsões políticas e sociais do Japão pós ano de 1968 —— ano amplamente reconhecido como marco do surgimento de uma juventude caracterizada por rupturas profundas, protestos estudantis, novas pautas sociais e contracultura. Nessa fase também emergiu o saxofonista Akira Sakata, que criou e mantém até hoje uma abordagem de improvisação livre com humor e energia performática. O escritor e crítico Soejima Teruto, no livro Free Jazz in Japan, descreve que o free jazz e o avant-garde, pelas vias da música improvisada, consolidaram-se no país com pioneiros como o baterista Masahiko Togashi, o guitarrista Masayuki Takayanagi, o saxofonista Mototeru Takagi, o pianista e arranjador Masahiko Satoh, o pianista Yosuke Yamashita, o saxofonista Kaoru Abe e o percussionista Sabu Toyozumi, e que registros emblemáticos dessa fase incluem We Now Create – Music for Strings, Winds and Percussion (1969), Masayuki Takayanagi & New Direction Unit – Independence: Tread on Sure Ground (1970) e Yosuke Yamashita Trio – Mina's Second Theme (1971), obras que marcaram a virada estética da cena freejazzística no Japão e pavimentaram um terreno fértil para sonoridades extremas. As performances —— muitas vezes realizadas em espaços como o Pit Inn (um dos mais emblemáticos clubes de jazz de Tóquio) ou em casas mais alternativas —— mesclavam ruído, silêncio e improvisação extrema, já com traços estéticos próprios, e Soejima destaca o impacto ruidoso e a intensidade das improvisações como parte essencial da estética japonesa, algo que prenunciava a subcultura do noisecore. Talvez, como antítese à contemplação e ao silêncio valorizados pela religião e cultura budista, muitos improvisadores e artistas experimentais passaram a desenvolver uma arte sonora extremamente ruidosa para expressar o extremo oposto ao status quo japonês. Entre o fim da década de 1970 e a primeira metade dos anos 1980, essa radicalidade evoluiu para formas mais fragmentadas de improvisação, incorporando fusões cada vez mais ecléticas, destacando-se músicos como Masami Akita (eletrônicos, synths), Motoharu Yoshizawa (contrabaixo), Kazutoki Umezu (saxofones) —— com bandas de klezmer e orquestras de free jazz cômico, como a Doctor Umezu Band e a Seikatsu Kōjō Iinkai Orchestra, entre outras ——, Hiroaki Katayama (sopros), Munehiro Narita (guitarra), Asahito Nanjo (voz, contrabaixo), Toshinori Kondo (trompete) e Keiji Haino (guitarra e voz), além de fusões com formas mais experimentais de rock, abrindo um novo território efervescente na cena underground japonesa. A partir de meados dos anos 1980 até o início da década de 1990, a cena radicalizou-se ainda mais em direção aos sons extremos influenciada pelo punk hardcore japonês, com bandas como Zouo, G.I.S.M., The Stalin e Gauze, corrente ruidosa que impactou diretamente o espectro sonoro do free jazz e outras vertentes do underground japonês ao adotar energia bruta, atitude antiestética e ruptura anárquica, ethos que desembocaria na estética que passaria a ser chamada de japanoise, talvez a expressão mais extrema da experimentação sonora japonesa, caracterizada por ruído em saturação máxima, eletrificações e distorções intensas, pedais de efeito, colagens, samplers e sintetizadores ruidosos. Tanto o free jazz japonês quanto o japanoise trazem reminiscências de correntes experimentais do avant-garde ocidental como o dadaísmo, surrealismo e o Movimento Fluxus, assim como ambos também trazem reminiscências das artes performáticas japonesas de vanguarda como o angura e o butoh, de modo que as performances corporais intensas dos músicos também se tornaram um elemento artístico fundamental. Entre meados dos anos 1980 e 1990, o japanoise explodiu com projetos, bandas e artistas como Keiji Haino (guitarra elétrica, voz, eletrônicos), Merzbow (eletrônicos), Hijokaidan (coletivo de ruído), Incapacitants, Masonna, Ground Zero e o guitarrista e turntablista Otomo Yoshihide, figura central na ponte entre improvisação livre e a noise music japonesa. Nos Estados Unidos, o saxofonista e produtor John Zorn —— que já havia tido estadias no Japão, inclusive... —— tornou-se um dos principais divulgadores do japanoise, produzindo, gravando e lançando discos do gênero através da sua gravadora Tzadik, que entre as décadas de 1990 e 2000 publicou a emblemática série New Japan, reunindo um acervo de mais de 70 álbuns de improvisadores e experimentalistas japoneses em solo americano —— alguns dos quais cito neste post. Ademais, o circuito underground japonês desenvolveu vertentes de improvisadores minimalistas e artistas experimentais com abordagens conceituais voltadas ao silêncio e às linhas de improvisos mais melódicos, como o movimento Onkyokei (音響系), representado por músicos como o guitarrista Taku Sugimoto, o manipulador de eletrônicos Toshimaru Nakamura, o daxofonista Kazuhisa Uchihashi, a musicista Sachiko M e o contrabaixista Tetsu Saitoh, todos focados em explorar improvisos e dissonâncias espaçados no silêncio. Eis aí, então, um rico espectro para ser explorado tão instigante quanto os espectros do free jazz americano e da free improv europeia.
A pósmodernidade radical do Japão - Um caldeirão de tradições, misturas e estéticas coexistentes: do jazz ao avant-garde, do noise ao minimalismo
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Na contemporaneidade, o Japão é praticamente um caldeirão de sonoridades e estéticas múltiplas, talvez sendo o segundo maior reduto mundial da pós-modernidade radical depois dos EUA. E o que é mais interessante é que o Japão consegue ser tudo isso sem deixar de lado o profundo respeito por suas tradições milenares. As cenas do underground japonês ainda se mantêm efervescentes, com muitos projetos e lançamentos tão criativos quanto extremos em termos de saturação sonora, mas agora, nessa altura do século 21, os elementos daqueles experimentalismos mais radicais já se diluíram em meio a outras diferentes estéticas, resultando em misturas e ressignificações das mais híbridas e inclassificáveis. Se já entre os anos de 1970 e 1980 havia uma multiplicidade de novas estéticas que se desenvolviam em ebulição —— avant-garde, free jazz, música eletrônica, punk hardcore, noise, j-pop, minimalismo etc. ——, atualmente essas linguagens se sedimentaram e se contracenam em ampla coexistência, muitas vezes se diluindo em fusões características dessa confusa e gritante pós-modernidade em que vivemos —— e, em termos de liberdade, não há dúvidas de que o pós-modernismo é a era mais livre, eclética e híbrida da história das artes na humanidade. Ademais, assim como ocorreu nos EUA, a cena do jazz no Japão neste início de século 21 foi fortemente marcada por uma juventude de músicos que passaram a explorar um revival reinventado das formas acústicas do jazz, principalmente pelas vias do post-bop mais orgânico. Seja pelas vias do underground e da cena experimental ou pelas vias do mainstream, o fato é que o Japão tornou-se uma das grandes potências de música criativa no mundo. Muitos músicos e artistas japoneses ganharam renome internacional e se estabeleceram na Europa e nos EUA ou vivem em constantes turnês pelo mundo, sem deixar de salientar que suas trajetórias iniciais em solo japonês e suas temáticas patrióticas nipônicas estabeleceram marcas que enriquecem tanto suas próprias carreiras quanto a própria história da arte e cultura do Japão na contemporaneidade. É o caso de artistas como o pianista e compositor Makoto Ozone, a pianista e compositora Satoko Fujii, a pianista virtuose Hiromi Uehara, o veterano saxofonista Akira Sakata e o duo Kyoto Jazz Massive (liderado por Shuya Okino, DJ e produtor). Além desses, destacam-se, nas últimas décadas, álbuns e projetos de artistas como o violinista Kita Naoki, o guitarrista Seiichi Yamamoto, a improvisadora vocal e manipuladora de eletrônicos Haco, o tocador de shamisen Sato Michihiro e a multi-instrumentista Kyoko Kuroda, entre outros, artistas que revelam essa rica multiplicidade de diálogos entre tradição e vanguarda. Esse ecossistema musical de experimentação e misturas levou o avant-garde e o jazz contemporâneo japonês para remodulações profundamente híbridas e amplamente reconhecidas por seus muitos quilates de criatividade. Satoko Fujii, pianista e compositora de formação clássica e com forte inserção no avant-garde, é um exemplo desse hibridismo: além de ter lançado discos ancorados no japanoise, desenvolveu uma carreira cheia de albuns com big bands caóticas, improvisação livre e peças com ecos de música erudita moderna, criando um mosaico de álbuns tanto em piano solo quanto com diversos ensembles e variadas formações instrumentais. Hiromi Uehara, por sua vez, remodulou o virtuosismo pianístico e a linguagem do jazz fusion com influências que vão do stride piano de Art Tatum, passando pelo bebop virtuosístico de Oscar Peterson até o jazz fusion de Chick Corea, mesclando ainda reminiscências do pianismo clássico europeu e influências da música para animes e videogames. O coletivo Kyoto Jazz Massive, liderado pelos irmãos Shuya e Yoshihiro Okino, conecta a tradição do jazz-funk ao eletrônico e à club culture, criando pontes com estéticas como jazztronica, hip hop e broken beat inglês. Outras figuras como a harpista e improvisadora Michiyo Yagi (koto experimental), Phew (voz e eletrônica), o recentemente falecido Ryuichi Sakamoto (piano e eletrônica), Toshio Hosokawa e Somei Satoh (compositores eruditos influenciados tanto por Takemitsu quanto pelo zen-budismo), entre outros, mostram como o Japão construiu uma linha evolutiva em que a música flui de forma eclética e em que o silêncio, a experimentação sonora, a escuta contemplativa, a expressão mais pura do ruído e a sofisticação conceitual coexistem em contínua reinvenção. No campo da eletrônica, o multi-instrumentista Ryuichi Sakamoto figura como um dos expoentes do minimalismo pós-moderno no Japão, enquanto o sound artist Ryoji Ikeda tornou-se o maior ícone do minimalismo extremo focado em micro-sounds. A seguir, apresentamos uma lista de 25 álbuns de artistas japoneses que moldaram a música erudita contemporânea, o free jazz, o noise, o minimalismo e, de forma geral, o avant-garde japonês nas últimas décadas. Também deixo uma imersiva playlist com faixas desses artistas para o dileante fã e ouvinte de música criativa!!!
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Aki Takase Japanic - Thema Prima (BMC, 2018). A fluência instrumental e a inventividade da pianista japonesa Aki Takase, aqui aos 71 anos de idade, é algo a se admirar —— aliás, em toda a sua discografia há sinais de criatividade e inventividade máximas. Nos anos 70, a pianista recém-formada em piano erudito tomou conhecimento das músicas de John Coltrane, Thelonious Monk, Charles Mingus e Eric Dolphy e começou, então, a rumar sua carreira para os caminhos do improviso jazzístico, sendo uma das pioneiras do jazz em seu país —— em sua discografia há, inclusive, diversos álbuns dedicados aos mestres do jazz, com suas dedicatórias indo de Duke Ellington a Eric Dolphy. Ela passou, então, a tocar com a elite do jazz no Japão e com os jazzistas americanos e europeus que anualmente visitavam o país, incluindo figuras legendárias como os saxofonistas americanos Joe Henderson e Dave Liebman e o pianista pioneiro da free improvisation europeia e futuro marido Alexander von Schlippenbach, com quem se mudou para Berlim em 1987. Cinco décadas depois, a pianista ainda mostra enorme capacidade inventiva através deste registro imerso em uma ecleticidade pós-moderna que beira o inclassificável. Este álbum, Thema Prima, foi gravado em Budapeste para as comemorações do seu 70º aniversário em 2018 e vem com a pianista cercada do seu grupo Japanic, um quarteto de músicos alemães e noruegueses de geração mais jovem, incluindo seu filho Vincent von Schlippenbach (AKA DJ Illvibe). Como uma amante da tradição do jazz, mas ao mesmo tempo sendo uma libertária japonesa que fez uso da improvisação livre para exprimir sua criatividade, Aki Takase faz aqui uma mistura irônica e jocosa de passado, presente e futuro, de sons tradicionais com sons urbanos, da eletrônica sintética com a timbrística orgânica, misturando, em vários momentos, linhas de swing jazz, bebop e post-bop com improvisações livres, world music e eletrônica. As peças fazem uso de temas descontraídos como motivos e pretextos para sobreposições inusitadas, improvisações livres, enxertos de fraseados característicos do jazz americano, intervenções eletrônicas e efeitos eletrônicos diversos. A participação de DJ Illvibe nos toca-discos e aparatos eletrônicos é emblemática: ele não apenas aplica efeitos eletrônicos que enriquecem a timbrística pós-moderna das peças, mas interage também de forma improvisativa com o piano de Aki Takase, o saxofone de Daniel Erdmann, o contrabaixo de Johannes Fink e a bateria de Dag Magnus Narvesen. Um registro verdadeiramente idiossincrático. Registro editado pela Budapest Music Center. Em 2024, aos 76 anos, Aki Takase lançou o segundo álbum dessa sua banda-projeto chamada Japanic, mostrando a mesma energia e vivacidade de sempre.

Satoko Fujii & Tatsuya Yoshida - Toh-Kichi = 藤吉 (Les Disques Victo, 2002). O duo da virtuosa pianista Satoko Fujii com o baterista Tatsuya Yoshida é um dos combos compactos mais explosivos do free jazz contemporâneo. Conhecida por seu piano cheio de acordes densos, explosivos e muitas das vezes tão ou mais percussivos que as históricas explorações pianísticas de Cecil Taylor —— (ainda que Cecil soe muito diferente: mais atonal, pontilhista, e com uma chuva com notas sortidas em marttelatos, ao invés de acordes cheios) ——, a pianista Satoko Fujii parece encontrar neste duo um formato pelo qual extravasar em suas predileções pela free music mais ruidosa e densa —— lembrando que a pianista é proficiente em várias direções exploratórias, dos combos mais compactos à grandes coletivos e orquestras. Gravado ao vivo em 18 de Maio de 2020, no Festival International de Musique Actuelle de Victoriaville, Canadá, o duo aplica uma combinação freejazzística de células rítmicas explosivamente percussivas —— onde a bateria o piano vão ao cúmulo dos decibéis acústicos —— com irregularidades de compasso, espasmos ao estilo de uma espécie de boogie-oogie diabólico seguidos de interrupções inexplicáveis, efeitos eletrônicos e livres improvisos vocais que só acentuam a estranheza nos ouvidos ainda não calejados do ouvinte de primeira viagem. Neste álbum, elementos do free jazz americano e da livre improvisação europeia se contracenam com o noisecore japonês, aqui transvestidos em piano acústico e bateria levados à exaustão. O álbum termina com uma hilária interpretação —— livremente improvisada, aliás —— do standard brasileiro “The Girl From Ipanema”. A bateria de Tatsuya Yoshida, que já vinha tocando com Keiji Haino e muitas bandas de japanoise, é uma das mais insanas que se tem notícia! Interessante, aliás, como que em determinados momentos a bateria de Tatsuya consegue acompanhar o piano de Fujii com os mesmos fraseios dos temas em batidas únissonas, para depois descontruir tudo em meio à livres improvisações contrapontísticas. Em 2003, John Zorn apreciando de imediato as explosões do duo, não tarda em chama-los para gravar um álbum pelo seu selo Tzadik, vide o álbum Erans (Tzadik, 2003)

Hiromi Uehara & The Piano Quintet - Silver Lining Suite (Telarc, 2021). A super pianista Hiromi Uehara é uma das figuras mais impressionantes do jazz contemporâneo: ela é uma virtuose e improvisadora que surpreende por sua assustadora agilidade, energia, alegria e proficiência em explorar e misturar técnicas do piano jazz que vão do stride, passa pelo bebop, engloba o jazz contemporâneo e embarca até nas explorações de pianos elétricos, sintetizadores e outras teclas, somando-se a tudo isso sua técnica erudita. A rigor, ela não faz uso de elementos japoneses tradicionais de forma saliente em suas composições, mas a influência nipônica está sempre implícita —— ela, inclusive, tem sido muito requisitada para compor trilhas para animes e filmes japoneses. Este álbum acima é um dos exemplos de inspiração patriótica num momento crucial da sua vida. Por decorrência da pandemia, Hiromi se isolou em sua residência no Japão e sentiu-se inspirada a compor a suite Silver Lining Suite, lançando o álbum em outubro de 2021 pela Telarc/Concord Jazz. Trata-se de uma jornada musical profundamente emotiva marcada por uma suíte de quatro movimentos —— "Isolation", "The Unknown", "Drifters" e "Fortitude" —— escrita para piano e quarteto de cordas, com cinco faixas adicionais que expande seu repertório jazzístico pessoal. A suíte foi gravada com um quarteto de cordas liderado por Tatsuo Nishie, concert-master da New Japan Philharmonic, juntamente com músicos japoneses Wataru Mukai (violoncelo), Meguna Naka (viola) e Sohei Birmann (violino), e reflete a inspiração de Hiromi em seu retiro e suas origens japonesas. Na suíte, cada movimento retrata imageticamente fases da experiência pandêmica, desde o desassossego introspectivo do isolamento até a resiliência necessária para lidar com aquele momento adverso, com as cordas desempenhando papel bem mais ativodo que o mero acompanhamento, dialogando com o piano de forma mais estrutural do que meramente decorativa. Fundindo o erudito com o jazz num todo híbrido, as interpretações se alternam entre tensão dramática e lirismo, destacando especialmente o solo introspectivo na faixa "Uncertainty" como um desses momentos de intensa de beleza. Nas demais faixas, como em "Someday", "Jumpstart", "11:49PM" (uma readequação da faixa que está no seu álbum Move) e o tango "Ribera del Duero", Hiromi exibe uma versatilidade fora de série em transitar e fundir estilos e estéticas variadas de forma coesa e sem arestas.

Otomo Yoshihide & The New Jazz Ensemble - Dreams (Tzadik, 2002). No final dos anos de 1990, o guitarrista e manipulador de eletrônicos e turntablist Otomo Yoshihide, após uma jornada com seu emblemático projeto-coletivo de japanoise Ground Zero —— fundado, inicialmente, para tocar a game-piece COBRA de John Zorn ——, teve a interessante ideia de explorar releituras iconoclastas que remodulavam elementos convencionais do jazz com enxertos de noise music e manipulações sonoras experimentais. Para tanto ele funda o seu New Jazz Quintet, que, além das suas composições autorais, inspirou-se em aplicar versões bizarras para standards e temas clássicos de grandes mestres do jazz tais como Eric Dolphy, Ornette Coleman, Wayne Shorter, Charles Mingus e outros. Este álbum acima, Dreams, foi gravado em 2001 e lançado em março de 2002 pelo selo Tzadik, de John Zorn, e reúne Otomo Yoshihide com um ensemble que é um formato expandido desse seu anterior New Jazz Quintet: a banda expande-se, então, para um ensemble de nove músicos, incluindo o próprio Otomo na guitarra e toca-discos, Hiroaki Mizutani no contrabaixo acústico, Yasuhiro Yoshigaki na bateria, percussão e trompete, Kenta Tsugami e Naruyoshi Kikuchi nos saxofones, Sachiko M. nos eletrônicos e ondas senoidais, Tatsuki Masuko nos sintetizadores e efeitos, e as vozes singulares de Phew e Jun Togawa. Dessa forma, o New Jazz Ensemble ruma para uma expansão que une livre improvisação e elementos do jazz post-bop salpicados por efeitos experimentais e as ruidosidades do japanoise. Curiosamente, este disco adiciona uma incomum mistura dessa liga instrumental com o canto popular, adicionando elementos de formas de jazz sing e canções, incluindo o canto tradicional japonês. A presença do canto feminino, central no disco, tende a conferir, então, um viés de singeleza que contrasta diretamente com os efeitos rarefeitos experimentais e com os ecos da densidade da instrumentação advindas do japanoise que os músicos desse ensemble vinham explorando em projetos anteriores: vide as faixas "Yume", "Preach" e "Hahen Fukei". Concebido dentro da série "New Japan" do selo Tzadik, Dreams é um álbum que nos traz, então, um equilíbrio que reelabora, de forma mais elegante e contida, um estranho e ao mesmo tempo singelo hibridismo entre ecos da brutalidade, dos ruídos, das distorções e dos impulsos desconstrutivos do japanoise com um lirismo melódico que é praticamente onírico na forma como Otomo Yoshihide e esse seu ensemble experimental reinventam elementos do jazz e das pop songs. Híbrido!

Ryuichi Sakamoto - async (Commmons/ Milan, 2017). O álbum async, lançado em 2017, foi o primeiro trabalho solo de estúdio de Ryuichi Sakamoto após um longo hiato, no qual o compositor foi profundamente marcado por seu tratamento contra o câncer de garganta. Infelizmente falecido em 28 de março de 2023, Sakamoto foi um dos compositores mais criativos da história do Japão e da história da música mundial. E, neste álbum async, Sakamoto nos apresenta uma fina meditação sonora que é, ao mesmo tempo, densa e fragmentada, experimental e minimalista: as faixas variam entre melodias de piano minimalistas envoltas em reverberações finas, ruídos eletrônicos sutis que surgem como ecos e sons pré-gravados em registros de campo (field recordings), tais como vozes, passos sobre folhas e sons tirados de um filme de Andrei Tarkovsky, cineasta que é uma das inspirações seminais neste disco, além de trechos captados de um piano danificado por um tsunami. Sakamoto constrói uma paisagem sonora que flerta simultaneamente com o vazio e a textura, como se fosse a trilha sonora imaginária de um filme, onde ondas atmosféricas de ruído branco se contracenam com as teclas cristalinas de piano e drones eletrônicos sofisticados. Sakamoto, em sua concepção de minimalismo contemporâneo, foi um mestre em criar trilhas eletronicamente sofisticadas com teor poético e humanista. E, aqui, como alento para essa triste fase de sua vida, ele ressalta o uso dramático da voz através de partes recitadas por Paul Bowles, autor do romance The Sheltering Sky, na faixa "Fullmoon", e por David Sylvian (recitando um poema de Arseny Tarkovsky, pai de Andrei Tarkovsky) na faixa "Life, Life", enfatizando elementos que reforçam a valorização da vida mesmo diante da presença da mortalidade, e valorizando a memória e o legado artístico num momento em que sua vida vinha sendo ameaçada diariamente pela doença do câncer. Esse alento foi um dos principais elementos na fase final da produção de Sakamoto, após ele descobrir a doença. Tido como um álbum de minimalismo conceitual, vários artistas homenagearam Sakamoto com remixes baseados nas faixas deste async de 2017, remixes que foram compilados no álbum Async – Remodels, incluindo reinterpretações notáveis de artistas e projetos de música eletrônica, tais como Oneohtrix Point Never e Electric Youth para a peça “Andata”, Alva Noto para a peça “Disintegration”, Arca para a peça “Async”, Fennesz e Jóhann Jóhannsson para a peça “Solari”, Yves Tumor e Cornelius para a peça “Zure”, Motion Graphics e S U R V I V E para a peça “Fullmoon” e Andy Stott para a peça “Life, Life”.
Message From Anew Dawn - Kyoto Jazz Massive (Extra Freedom, 2022). Este álbum marca o retorno do projeto idealizado pela dupla de irmãos Shuya e Yoshihiro Okino, influentes DJs, multi-instrumentistas, fanáticos por jazz e remixadores de Kyoto, Japão. Embora este álbum acima seja o terceiro álbum de estúdio da dupla —— descontando os inúmeros singles sortidos, EPs e aparições de suas amostragens em compilações ——, o Kyoto Jazz Massive ostenta uma carreira de mais de 30 anos e é amplamente conhecido entre os fãs de acid jazz, tendo sido popularizado, por exemplo, pelo DJ e radialista Gilles Peterson, um dos pais e difusores do acid jazz e gêneros correlatos. Tendo sido DJs apegados aos rompantes do hip hop e da eletrônica entre finais dos anos 80 e início dos anos 90, Shuya e Yoshihiro logo passaram a considerar o jazz como um elemento basilar indissociável das suas amostragens. Eles transitam por uma gama de estilos que vão da techno e house music ao acid jazz, do broken beat inglês ao fusion, da soul music ao afrobeat, sempre mantendo o jazz como principal sedimento. Este álbum, Message from a New Dawn, praticamente marca o renascimento das misturas marcantes do Kyoto Jazz Massive, vinte anos após seu último álbum, Spirit of the Sun, lançado em 2002. Para celebrar esse retorno, a dupla convida, na faixa “Get Up”, uma de suas principais influências de sempre: a lenda viva Roy Ayers, vibrafonista, cantor, arranjador e bandleader, uma figura central do jazz-funk dos anos 1970. Áqui temos, pois, um registro nostálgico com alto frescor contemporâneo!!!
Keiji Haino & Yoshida Tatsuya - New Rap (Tzadik, 2006). O álbum New Rap, lançado em 21 de março de 2006 pelo selo Tzadik, dento da série New Japan, apresenta uma obra explosiva e visceral que redefine os limites entre jazz, improvisação livre, noise rock e o absurdo performático. Gravado em dezembro de 2005, é essencialmente um duelo sonoro de 48 minutos entre a guitarra e os vocais de Keiji Haino e a bateria multi-explosiva de Yoshida Tatsuya, que já vinha encabeçando um semlhante projeto em duo chamado Ruins, onde ele contracena com um contrabaixista. Ambos, Haino e Tatsuya, são figuras centrais da música experimental japonesa e este disco, portanto, configura-se como um material imperdível para os fãs de free jazz, hardcore, música experimental e japanoise. O repertório, composto por nove faixas com títulos urbanos como "Houston Street", "West Broadway", "Tompkins Square" e "Canal Street", é inspirado diretamente pela cena urbana de Nova York, transmutando essas referências urbanas em ataques sonoros violentos, fragmentados e caóticos e mostrando o impacto que essa cosmopolita cidade americana, encontro de artistas inovadores e experimentais do mundo todo, teve sobre os dois músicos.
As faixas são, na verdade, uma sequência de curtas tomadas de temas autorais e improvisos livres que, coletivamente, constroem uma atmosfera de saturação ruidosa entre o free jazz, o hardcore americano da cena no wave e o japanoise com plucks de guitarra ferozes, explosões de ruidos em pedais de efeitos, vocais guturais, chiados distorcidos, eletrificações saturadas e arranjos ruidosos afins em meio a silêncios abruptos. A bateria de Yoshida é sempre destacada como metronômica e ao mesmo tempo convulsiva, explosiva e bulímica, enquanto o canto de Haino —— ora sussurrado, ora gritado —— atua como catalisador de tensão extrema e estranheza performática. Importante ressaltar que, apesar do título sugestivo, o álbum não tem relação com rap convencional da linguagem hip hop, mas sim uma espécie surreal de "rap" que foi idealizado pelos dois músicos de forma abstrata e desconstrutiva dentro de uma exploração furiosa de ruído e performance, sendo fruto das suas estadias em Nova York.

Proton Pump - Akira Sakata & Chikamorachi with Masahiko Satoh (Family Vineyard, 2018). Aqui temos um autêntico álbum de free jazz gravado ao vivo em 2015 no lendário Pit Inn de Tóquio e lançado em 2018 pelo selo Family Vineyard. Este registro reúne os legendários e veteranos saxofonista e clarinetista Akira Sakata e o pianista Masahiko Satoh —— duas figuras seminais do free jazz japonês —— e o poderoso duo Chikamorachi, formado pelos mais jovens Chris Corsano (bateria) e Darin Gray (contrabaixo), todos juntos em uma sessão de improvisação livre de alta voltagem. Preechido por quatro extensas peças —— "Proton Pump", "Bullet Apoptosis", "Chemiosmotic Coupling of Acorn" e "Voyage of Eukaryote" —— o disco atravessa territórios de desconcertantes melodismos harmolódicos, lirismo cacofônico, explosões de cluster e intricados fraseios autenticamente freejazzísticos. Enquanto os solos quase xamânicos e melódicos do sax alto de Sakata trazem uma hibridização de ecos de Ornette Coleman, Eric Dolphy e Albert Ayler —— logicamente inflexionado de forma ímpar ao seu próprio estilo, sempre com bom humor ——, as frases e explosões do piano de Masahiko Satoh trazem um léxico percussivo e harmônico que mistura belas dissonâncias com o dedilhado intenso da escola de Cecil Taylor. A dupla Chikamorachi, por sua vez, sustenta a base rítmica com admirável explosão e energia frenética em quase todos os momentos, quando não se ausenta para deixar o duo sax-piano assumir a direção e quando não assume pontuais passagens mais rítmicas e atmosféricas. Interessante, por fim, como na última faixa "Voyage of Eucaryote", o quarteto finaliza a sessão com uma clara conexão aos acordes mais sugestivos do jazz mais convencional, o que mostra como esses veteranos são tão inspirados pelas frases livres como pelos elementos da tradição do jazz. Este é um daqueles álbuns onde o free jazz acústico surge com renovado e explosivo frescor.
Michihiro Sato & John Zorn - Ganryu Island (Yukon/ Tzadik, 1985/ 1998). Gravado em 23 de novembro de 1984, no Radio City Studio, Nova York, e lançado inicialmente pela Yukon entre 1984 e 85, com reedição em CD pela Tzadik em 1998, Ganryu Island é o resultado do encontro entre tocador de tsugaru-shamisen Michihiro Sato e o saxofonista e compositor americano John Zorn. Para quem já curte punk hardcore e free jazz, sabe que John Zorn, nascido em 1953, é figura central da vanguarda experimental e da cena no wave nova-iorquina a partir dos anos de 1980, e é muito notório por sua fusão de música erudita moderna, klezmer, jazz, grindcore, colagens e noise music, sendo que ele se envolveu profundamente com a cena e a cultura musical japonesa nessa fase, tendo mantido meses de estadias nos bairros da cena mais underground de Tóquio. E o virtuoso japonês do tsugaru-shamisen, Michihiro Sato, nascido em 1957, chegou a ser premiado em competições de música tradicional no Japão e posteriormente migrou-se para a improvisação livre e colaborações com improvisadores e músicos internacionais oriundos de outros estilos. Este álbum, pois, nos traz uma série de duos improvisados nos quais o shamisen de Sato apresenta motivos folclóricos e pulsos rítmicos-melódicos ancestrais, enquanto Zorn contrapõe com sopros (alto/soprano sax, clarinetes, boquilhas, "game calls") cheios de técnicas estendidas, solos gritantes, explosões cortantes e texturas crispadas, capturando com crueza a tensão dialógica entre tradição e vanguarda. O título Ganryu Island faz referência à ilha japonesa Ganryujima, célebre pelo lendário duelo samurai de 1612 entre Miyamoto Musashi e Sasaki Kojiro, evento que se tornou conto e símbolo cultural do confronto entre estilos e filosofias das artes marciais japonesas, carga simbólica que se reflete na proposta do álbum, em que os músicos engajam um verdadeiro "duelo" sonoro, transpondo para o plano da improvisação livre a ideia desse embate simbólico, uma metáfora do choque entre passado e presente, tradição e experimentação, folclore e livre improviso.
Seiichi Yamamoto – Nu Frequency (Tzadik, 2003). Lançado em 17 de julho de 2003 pelo selo Tzadik como parte da série New Japan, Nu Frequency é o quarto álbum solo do guitarrista japonês Seiichi Yamamoto, nascido em 16 de julho de 1958 em Amagasaki, província de Hyōgo, figura central na música experimental japonesa e reconhecido por sua versatilidade como membro da influente banda de noise rock Boredoms e líder de projetos como Omoide Hatoba, Rashinban e Akabushi, além de integrar o grupo de rock psicodélico Rovo, participar de iniciativas como Novo Tono e Most, e manter desde 1987 o clube Bears, em Osaka, um ponto de encontro essencial para improvisadores e músicos de vanguarda. Gravado entre 2001 e 2002 no Copper Studio, em Osaka, o álbum traz Yamamoto a solo como compositor, produtor e multi-instrumentista —— tocando guitarra, baixo, sintetizadores e bateria —— com a colaboração da percussionista China, que também adiciona sintetizadores em determinadas faixas. A obra combina elementos de free jazz, rock experimental, ambient music e noise e free-funk tanto em paisagens sonoras densas mais sutis como também em passagens mais intrincadas e quebradiças, equilibrando ruidos complexos e landscapes com notável sutileza, mas aqui conceitualmente um tanto distantes das saturações extremas de contemporâneos como John Zorn e Otomo Yoshihide. Ou seja, Yamamoto mostra que aqui sua intenção centra-se em criar transições fluidas entre ruídos atmosféricos, landscapes minimalistas e intrincâncias caóticas: faixas como "Acceleration" e "Glorious Farm" apresentam interações rítmicas complexas e camadas intrincadas de guitarra, bateria e sintetizadores, enquanto a faixa "Seed" contrapõe melodia suave com contrapontos de percussão imprevisível. Já a faixa "Yarn" se distingue por uma ambientação introspectiva e minimalista, quase uma drone music pairando no ambiente. O álbum termina, enfim, com a faixa "Movin' " que começa com uma chamada de trilha de vide-game seguida por um jazz-fusion meio free-funk com contrabaixo, guitarra e bateria entrelaçados numa espécie de funk-groove frenético e quebradiço. Com essas características, Nu Frequency se afirma como um dos trabalhos mais maduros e bem equilibrados da série New Japan e consolida Yamamoto como um criador versátil e capaz de expandir as fronteiras da música experimental sem abrir mão do ritmo, da fluidez e da coesão estética. Não sendo propriamente um registro de japanoise extremo, esse álbum traz frequências sonoras totalmente divertidas e acessíveis à qualquer nível de ouvinte aventureiro.
Michiyo Yagi & Dai Fujikura - Bibi (Jazzland, 2023). Lançado em 2023 pelo selo Jazzland, Bibi é uma colaboração entre a virtuose do koto Michiyo Yagi e o compositor e músico eletrônico Dai Fujikura. O álbum nos traz uma amálgama perfeita entre o tradicional e o contemporâneo e, assim, combina técnicas tradicionais japonesas com sons eletrônicos contemporâneos contemplativos. O título do álbum, "Bibi", foi concebido e traduzido pela própria Michiyo Yagi como "sutilmente belo" ou "ligeiramente belo", refletindo a estética delicada e introspectiva da obra. A gravação ocorreu entre outubro de 2020 e maio de 2021, com Fujikura em Londres e Yagi em Tóquio, utilizando troca de arquivos de áudio para compor e desenvolver as faixas, uma prática de gravação e edição à distância que foi comum no período do lockdown pandêmico. O álbum apresenta 13 faixas instrumentais que exploram diferentes aspectos da sonoridade do koto e da eletrônica. Yagi, formada sob a orientação de Tadao Sawai e Kazue Sawai, é reconhecida por suas interpretações inovadoras do koto, tendo estreado composições contemporâneas de vários compositores, incluindo John Cage. Fujikura, baseado em Londres, é conhecido por suas composições que fundem elementos da música clássica contemporânea com técnicas eletrônicas. Como já citado Bibi é um álbum admirável justamente pela originalidade e profundidade emocional na junção de ambas as experiências desses dois músicos, destacando a combinação da tradicional e autêntica sonoridade do koto japonês com os timbres eletrônicos contemporâneos, resultando em uma experiência auditiva híbrida que transcende as fronteiras entre a música tradicional e a música experimental. Ouça!
Phew - Phew (Pass Records, 1981). Lançado originalmente em 1981, este clássico álbum homônimo marca a estreia solo da cantora e improvisadora japonesa Hiromi Moritani, conhecida apenas como Phew, uma figura seminal da cena pós-punk e experimental do Japão, que, inclusive, tem sido uma colaboradora frequente de artistas do jazz experimental e do noise japonês. Dirigido pelo produtor Yoshitaka Goto e gravado no estúdio Conny Plank, em Colônia, Alemanha, a artista teve a colaboração de Holger Czukay e Jaki Liebezeit, dois músicos membros do Can, banda seminal para o krautrock alemão. Sendo um divisor de águas para a carreira de Phew, este álbum traz uma mistura híbrida de elementos advindos do cenário underground japonês do início dos anos 1980, do pop de caráter pós-punk e reflete influências que vai da eletrônica experimental oitentista às texturas minimalistas, englobando o uso de colagens e vocais inusitados. É hoje considerado um álbum cult, tendo recebido frequentes reedições e relançamentos. Phew, com sua originalidade única e enigmática, mescla ao mesmo tempo sensibilidade nonsense e frieza experimental, criando uma aura de mistério ao explorar temas existenciais permeados por arranjos minimalistas, uso de vocais estranhos e um mix de instrumentais estranhos marcados por uma simbiose experimental de guitarras, bateria acústica e beats eletrônicos, percussões, uso pontual de instrumentos de sopros, contrabaixo elétrico e sintetizadores analógicos, entre outros sons pontuais. E quando eu aqui menciono "uso de vocais" estou me referindo a partes faladas ou cantadas que subvertem completamente o senso mainstream de canção ou de "música cantada". No demais, muito dos arranjos e das letras foi improvisado no momento da gravação, o que traz ares de espontaneidade e frieza experimental para o conjunto dessa obra cult. Ou seja, neste álbum todas as combinações sonham estranhamente criativas. Quatro décadas e meia depois, este álbum ainda faz sombra para o espectro criativo do estilo único que Phew estabeleceu em sua carreira, um estilo que, inclusive, a coloca como uma artista experimental de áurea atemporal. Um álbum ao mesmo tempo criativo, belo e estranho!
Haco - HACO (MIDI Creative, 1995). Aqui estamos diante de outro álbum cult de uma multi-artista de singular criatividade. Lançado originalmente em 1995, o álbum homônimo Haco marcou a estreia solo da artista japonesa conhecida como Haco, multifacetada cantora, compositora, multi-instrumentista e sound-artist nascida em Kobe, com formação em acústica, música eletrônica e tecnologia de gravação, já reconhecida por seu papel como líder da influente banda avant-pop After Dinner (1981–1991). Gravado no estúdio Xebec, em Kobe, e no estúdio The Magic Shop, no SoHo, Nova York, o disco apresenta uma fusão singular de eletrônica experimental, música concreta, avant-pop e dream pop, mesclando arranjos instrumentais orgânicos e eletrônicos com atmosferas etéreas, introspectivas e minimalistas que se tornariam marcas registradas de seu estilo. A produção foi dividida entre Haco e Yoshihiro Kawasaki, com a artista também assumindo voz, sampler, sintetizador, mandolim elétrico e percussão, acompanhada por músicos de destaque como Tsuneo Imahori (guitarra), Hiroshi Nakagawa (flauta bansuri e tabla), Nobuhisa Shimoda (baixo e percussão), Samm Bennett (percussão e samples), Peter Hollinger (percussão eletrônica), Tom Cora (cello), dentre outros. Composto por 11 faixas, este álbum nos oferece uma rica sobreposição de texturas sonoras e vocais com letras em japonês e inglês. A versão física do álbum remasterizado foi relançada em anos mais recentes e vem acompanhada por um encarte de 16 páginas, tornando a experiência auditiva mais imersiva. A obra foi lançada no Japão (MIDI Creative), Reino Unido (ReR Megacorp) e EUA (Detector), recebendo ampla aclamação crítica por sua originalidade, profundidade emocional e pela habilidade em fundir tradição e inovação dentro do espectro da música experimental japonesa. Como já dito, em 2024, o álbum ganhou uma remasterização por Chihei Hatakeyama —— renomado artista japonês de música ambiente e experimental —— que aprimorou a clareza e qualidade da gravação sem comprometer sua essência, sendo relançado no Bandcamp oficial de Haco. Este trabalho é considerado ainda hoje uma referência cult por sua abordagem pioneira, atemporalidade e influência sobre gerações posteriores de músicos experimentais, consolidando Haco como uma das figuras mais relevantes da música criativa a nível global, além de servir de ponto de partida para outras colaborações internacionais e projetos tais como Hoahio, Happiness Proof, a exposição de sound art View Masters e a criação de trilhas sonoras para performances, curadorias e instalações premiadas as quais Haco produziria a partir dos anos 2000. Não foi à toa que ela venceu o Prix Ars Electronica na edição de 2005.
Naoki Kita & Kyōko Kuroda. Os encontros musicais entre o violinista Naoki Kita —— cujas experiências transitam entre o tango, o jazz e a improvisação livre —— e a pianista Kyōko Kuroda —— voltada para a improvisação livre e a performance experimental —— resultaram em quatro álbuns que documentam, com profundidade e coerência, a trajetória artística do duo. O primeiro deles, "A Heart Drawn Up into the Sky" (2008), nasceu de improvisações que os dois vinham realizando desde 2002 e representa o marco inaugural da parceria, apresentando um diálogo límpido entre o violino e o piano que equilibra lirismo e tensão, dando origem a uma conjunta e refinada poética entre ambos. A partir dessa experiência em estúdio, o duo expandiu sua proposta e levou-a ao palco com o espetáculo “Kishimu Oto” (2010-2011), no qual a música se entrelaçava a elementos teatrais japoneses, leituras e instalações sonoras, configurando uma performance de caráter conceitual e sensorial. Já em "Hymne à l’amour" (2014), Kita e Kuroda reafirmaram a simbiose de sua sintonia em interpretações de standards populares e tangos, revisitando essa abordagem mais tradicional de maneira intimista e minimalista. O ciclo encontra sua maturidade no continuum "Nothing except The Sky" (2019), álbum que apresenta composições originais e arranjos próprios, incluindo um réquiem para aqueles que se perderam na devastação da guerra, um alento para as perdas na Segunda Guerra Mundial, trazendo aqui uma densidade emocional mais latente na sintonia e nas texturas do duo. Dessa forma, entre 2008 e 2019, o duo percorreu um uma guinada criativo que vai do frescor inventivo de suas primeiras improvisações ao refinamento dramático de sua fase madura, mostrando um refinado duo de piano e violino com influências que abrangem da música erudita à canção japonesa, do jazz ao tango, do melodismo poético à improvisação, ainda tendo desdobramentos performativos com o espetáculo "Kishimu Oto". Coisa Fina!
Takemitsu, Hosokawa, Nishimura - Lotus String Quartet - Ladscapes (Teldec, 2000/ Warner, 2008). O álbum Landscapes (Teldec, 2000; reedição Warner Classics, 2008) nos traz o Lotus String Quartet —— formado por Maki Mogitate e Sachiko Kobayashi nos violinos, Tomoko Yamasaki na viola e Chihiro Saito no violoncelo —— em uma gravação realizada em outubro de 1998 no Teldec Studio, em Berlim, com duração aproximada de 59 minutos distribuídos em nove faixas. O repertório reúne significativas peças para quarteto de cordas escritas sobre a égide da vanguarda erudita japonesa. Temos o Quatuor à Cordes (1955) de Akio Yashiro, discípulo de Nadia Boulanger e Olivier Messiaen, que recebeu o Mainichi Music Prize e foi decisivo na modernização da música japonesa. Segue-se o String Quartet No. 2 "Pulse(s) of Light" (1992) de Akira Nishimura, que combina espiritualidade e tradições musicais asiáticas com recursos composicionais contemporâneos. Segue ainda a Landscape I (1992) de Toshio Hosokawa, obra que reflete sua busca por fusão entre o minimalismo, o espectralismo e a estética do zen-budismo. A set list continua com Landscape (1961) de Toru Takemitsu, pioneiro no diálogo entre música serialista, texturas experimentais e tradição japonesa, umas das figuras mais notáveis no quesito de abrir caminhos para o avant-garde no Japão. E, por fim, este álbum nos traz o String Quartet No. 3 “Constellation in Black” (1992) de Akira Miyoshi, cuja escrita une rigor estrutural e sensibilidade lírica, sendo reconhecido como ponte entre herança clássica e modernidade. Segundo a própria sinopse disposta pela Warner Classics, o disco evidencia a força de uma geração extraordinária de compositores japoneses que adentraram o circuito ocidental da música erudita moderna, especialmente pelas vias da Segunda Escola de Viena, ao mesmo tempo em que eles afirmam identidade própria embebecida de influencias nipônicas. Um álbum para audição compenetrada.
Toshio Hosokawa - Orchestral Works (Naxos, Vol. 1 ao Vol. 4). O compositor Toshio Hosokawa, nascido em Hiroshima em 1955, é dono de uma uma das obras mais apreciadas dentro do repertório erudito contemporâneo. Após estudar composição com Isang Yun, Brian Ferneyhough e Klaus Huber na Alemanha, Hosokawa desenvolveu uma linguagem musical única que integra influências do minimalismo japonês, da filosofia zen-budismo e das técnicas recorrentes da Segunda Escola de Viena.
Sua carreira está intimamente ligada a importantes ensembles e instituições do cenário musical contemporâneo. A Orquestra Filarmônica de Berlim, por exemplo, tem sido uma das principais intérpretes de suas obras, incluindo estreias de peças como Moment of Blossoming (2011). Além disso, Hosokawa foi compositor residente em festivais renomados como a Bienal de Veneza, o Festival de Lucerna e o Festival de Outono de Varsóvia. No Japão, Hosokawa mantém uma conexão estreita com o movimento avant-garde, colaborando e tendo parceria, por exemplo, com o ensemble Next Mushroom Promotion, fundado pela compositora Tomoko Fukui. De Hosokawa aqui indico, então, a série Orchestral Works, lançada pelo selo Naxos em quatro volumes. Esse compêndio oferece uma visão abrangente das facetas e da evolução estética e sonora do compositor japonês no âmbito de peças orquestrais, destacando sua busca por uma musicalidade que transcende fronteiras culturais e temporais. O Volume 1 (2014) introduz o ouvinte em peças como Moment of Blossoming (2010), um concerto para trompa que evoca a imagem de uma flor de lótus desabrochando, e The Raven (2013), uma obra para 12 músicos que explora texturas lapidadas e detalhistas. Essas composições exemplificam sua habilidade em criar atmosferas densas e meditativas. O Volume 2 (2015) apresenta obras como Ocean (2013), Dreams (2014) e Ferne Landschaft II (1996), que exploram temáticas da natureza e evoca uma introspecção contemplativa. Essas peças revelam um continuum dentro do estilo de Hosokawa, caracterizado por uma escrita orquestral que busca evocar paisagens sonoras e estados emocionais profundos. O Volume 3 (2018) destaca obras como Woven Dreams (2009–2010), Blossoming II (2011) e Meditation – to the Victims of Tsunami 3.11 (2012), que refletem a resposta emocional de Hosokawa ao desastre climático de Fukushima. Essas composições demonstram seu compromisso com um fazer musical que se preocupa tanto com a expressão emocional como com a reflexão humanista. O Volume 4 (2024) inclui peças como Sakura (2021), Im Nebel (2013) e Genesis (2020), que exploram temas de nascimento, transformação e a busca por equilíbrio e harmonia, valores nobres na filosofia do zen-budismo. Vê-se, aliás, que essas obras foram compostas entre as décadas de 1990, 2000, 2010 e 2020, portanto refletindo a maturidade artística de Hosokawa e sua capacidade de integrar influências culturais japonesas com uma linguagem musical contemporânea refinada. Um compêndio imperdível para o fã de música erudita no âmbito dos grandes compositores contemporâneos.

NaniNani I & NaniNani II - John Zorn & Yamantaka Eye (Tzadik, 2002/ 2004). O álbum NaniNani II, lançado em 2004 pelo selo Tzadik, é uma colaboração entre o vocalista experimental e manipulador de eletrônicos japonês Yamantaka Eye e o personagem de pseudônimo Dekoboko Hajime comicamente vivido pelo saxofonista e compositor americano John Zorn, figura central do avant-garde, free jazz, no wave, grindcore e estéticas correlatas na Downtown Scene. Yamantaka Eye, conhecido por seu trabalho com influentes bandas de japanoise tais como Boredoms e Hanatarash, traz muito das suas abordagens vocais e eletrônicas viscerais, experimentais, cômicas e multifacetadas marcadas por grunhidos, gargarejos, gritos e chiados, enquanto o sax alto de Zorn salpica com suas técnicas estendidas e seus gritantes solos livremente improvisados. A gravação ocorreu em setembro de 2003 no estúdio Frank Booth, no Brooklyn, Nova York, resultando em um percurso de 10 faixas que mesclam improvisação livre, ruídos, drones claustrofóbicos, texturas surreais e elementos nipônicos hibridizados com ingredientes adicionais tais como karaokê, surf music, hardcore, samples dadaístas e satíricos, colagens tiradas de filmografias eróticas indianas, trilhas de filmes de terror, industrial music, e além. É preciso frisar que Eye e Zorn já tinham gravado o volume um, NaniNani I, lançado em 2002 também pelo selo Tzadik, marcando o início da parceria através de um trabalho ainda mais bruto, com maior ênfase no ruído extremo e na improvisação caótica repleta de técnicas estendidas. Enquanto NaniNani I é considerado um mergulho nas texturas mais extremas do ruído e da dissonância, NaniNani II demonstra uma evolução para misturas mais variadas, ampliando ainda mais a essência do experimentalismo e da fusão multi-estética entre os dois artistas. Eis aí, então, mais dois registros que são ótimos espécimes da série New Japan, do selo Tzadik, série que escancarou o japanoise na cena americana. Interessante lembrar que o título "NaniNani" é uma interjeição linguística ligada ao cômico, ao satírico, ao irônico, ao indefinido, ao nonsense de caráter experimental, um termo frequentemente usado no angura, no butoh e no avant-garde japonês.

Merzbow, Mats Gustafsson, Balazs Pandi - Cuts Open (RareNoise Records, 2020). Lançado em 25 de setembro de 2020 pelo selo RareNoise, este álbum Cuts Open é um exemplo muito criativo em como arranjos e improvisos instrumentais mais orgânicos podem ser hibridizados com elementos de eletrônica e noise music de saturada eletrificação de forma a apresentar um todo coeso. Cuts Open reúne o legendário Masami Akita (Merzbow), figura seminal da cena noise japonesa desde o final dos anos 1970, autor de centenas de gravações que trafegam livremente por correntes que vão do dadaísmo ao free jazz, o saxofonista sueco Mats Gustafsson, referência incontornável da improvisação livre em formações como The Thing e Fire! Orchestra, e o baterista húngaro Balázs Pándi, colaborador de Merzbow desde 2009 e requisitado colaborador de vários artistas de noise, grindcore, free jazz e música experimental. Gravado ao vivo no Studio GOK, em Tóquio, em junho de 2018, o álbum se expande para além dos limites sonoros de encontros anteriores entre Merzbow e outros músicos europeus e americanos —— como, por exemplo, o devastador Cuts (2013) e suas sequências com Thurston Moore —— para explorar paisagens mais arejadas e texturais, mantendo elementos da estética noise de forma mais latente e sustentada por um léxico eletroacústico equilibrado que alterna densidade espectral e rarefação calculada. Ou seja, é um álbum que combina elementos do japanoise com elementos do free jazz de forma mais elaborada, mais sinérgica, como num arranjo que tenta equilibrar improvisos instrumentais orgânicos e os ruídos e chiados eletrônicos mais saturados e rarefeitos. Com quatro improvisações longas cujos títulos provêm de romances da escritora sueca Karin Smirnoff, a narrativa sonora se desenvolve como um percurso rico em dinâmicas entre tensão e libertação onde os improvisos da flauta e do sax barítono de Mats Gustafsson, se hibridizam com os singulares pulsos freejazzísticos e polirritmicos da bateria e percussões de Balazs Pandi e com o ruídos e texturas saturadas de Merzbow numa amálgama praticamente poética e, ainda assim, visceral e desconcertante! Um dos interessantes álbuns de free music lançados nesta década.

Hijokaidan, Yoko Hatanaka & Special Guests - Hatanaka Kaidan (Reveil, 2016). Aqui estamos diante de um atestado inconteste do pós-modernismo contemporâneo japonês, onde várias estéticas das últimas décadas e suas marginais estilísticas se cruzam e se misturam num hibridismo eclético e inclassificável. Lançado em 2016 pelo selo Réveil como parte da série "Alchemy Records Special Edition", este álbum Hatanaka Kaidan reúne o legendário grupo de japanoise Hijokaidan —— formado por JoJo Hiroshige (guitarra), Toshiji Mikawa (eletrônicos), Junko (voz), Futoshi Okano (percussão) e outros colaboradores regulares —— com a sexy simbol e cantora pop dos anos 1980 Yoko Hatanaka, criando um inusitado e imprevisto encontro entre estéticas como o pop idol de estilo kayōkyoku (reconhecidamente a base do J-pop contemporâneo), a eletrônica de estilo synth-pop e o subgênero do harsh noise rock característico desse grupo, além de elementos do free jazz que também são salpicados ao molho desse projeto. O álbum conta com 11 faixas gravadas em estúdio, as quais intercalam versões deformadas de temas, pastiches e canções do repertório pop (tais como "Hachigatsu no Nureta Suna" e "Cherry Bomb") com peças instrumentais como "Noise Daddy", "Noise Acoustic" e "Noise Jazz", incluindo um reprise final do tema que inicia o álbum. A curadoria e as liner notes do álbum são assinadas pelo próprio JoJo Hiroshige, líder do Hijokaidan, e a arte da capa foi idealizada pela própria Yoko Hatanaka, consolidando o projeto como uma hibridização em que os vocais delicados e melódicos da cantora convive com espectros bizarros de chiados, ruídos, drones surreais, improvisos saxofônicos cortantes e gritos estridentes. Além da cantora Yoko Hatanaka, o projeto deste álbum reforça a tradição do Hijokaidan em sempre contar com colaborações lendárias ao convidar figuras especiais do free jazz, noise music e música experimental japonesa tais como Otomo Yoshihide, Akira Sakata e Jun Togawa, consolidando-se como um dos mais híbridos e ecléticos encontros de estilos, estéticas e gêneros dentro do rico espectro da música criativa japonesa. Do synth-pop ao free jazz, do J-pop ao noise, do canto aos instrumentais experimentais e extremos, este álbum realmente atesta como o Japão se tornou um verdadeiro caldeirão de multiplicidades, de pós-modernismo urbano e distópico.

Orchestral Music of Somei Satoh - Janáček Philharmonic w/ Petr Kotik (Mode, 2004). Somei Satoh, nascido em 19 de janeiro de 1947 em Sendai, é um compositor autodidata cujo estilo, profundamente influenciado pelo xintoísmo, pelo zen-budismo e pelo conceito "Ma" de contemplação do silêncio, funde esses aspectos filosóficos e musicalidades tradicionais do Japão com a música erudita europeia, resultando em obras minimalistas, contemplativas, hipnóticas e atemporais. O álbum From the Depth of Silence: Orchestral Works traz um overview da sua obra orquestral com quatro peças e foi lançado em 2004 sob a batuta do maestro tcheco Petr Kotik à frente da Janáček Philharmonic e do barítono Thomas Buckner, sendo que essa gravação chegou a ser supervisionada pelo próprio compositor. O programa reúne as peças "From the Depth of Silence" (de 2000, revisada em 2001), "Burning Meditation" (de 1993, para barítono e orquestra de cordas, com poema de Kazuko Shiraishi), "Kyokoku" (de 1991, para barítono e orquestra de cordas) e "Kisetsu" (peça de 1999, encomendada pela Filarmônica de Nova York para a série "Mensagens para o Milênio"). Na peça-título, Satoh explora um universo sonoro suspenso, quase sem impulso, enfatizando sutilezas e nuances com sinos tubulares e harpa funcionando como pontuações colorísticas em meio aos sons lentos e prolongados da orquestra. Já a peça "Kyokoku" integra a voz como parte da textura sonora, não como destaque, e a percussão remete ao cerimonialismo de herança japonesa. "Burning Meditation", gestada originalmente para quarteto de cordas e barítono, resplandece aqui na versão orquestral com a voz robusta de Buckner, trazendo uma meditação poética de grande profundidade emocional. Por fim, "Kisetsu" reafirma o refinamento orquestral do compositor japonês numa atmosfera meditativa que, resguardadas as devidas influências nipônicas, pode ser comparada às peças de profundidade minimalistas de compositores como Arvo Pärt e Górecki.
Em resumo, esse álbum orquesral From the Depth of Silence capta com precisão o universo estético de Satoh —— flutuação, repetição de sons alongados no espaço-tempo, uso contemplativo do silêncio e eternização do instante ——, oferecendo uma experiência sonora profunda, com um conceito de orquestração que dialoga com espiritualidade e intemporalidade. Para quem curte esse minimalismo de sons alongados, esse é um daqueles álbuns para se ouvir de olhos fechados.

Makoto Ozone - My Witch's Blue (Verve, 2012). O virtuoso Makoto Ozone, nascido em 25 de março de 1961 em Kōbe, é um pianista de jazz japonês cuja técnica impressionante, sensibilidade improvisatória e versatilidade estilística o colocam entre os grandes nomes do jazz contemporâneo, combinando uma fluência fora de série no léxico do neo-bop/ post-bop com influências advindas do piano erudito, além de suas próprias influências nipônicas. Neste álbum de 2012, My Witch’s Blue, gravado entre 19 e 21 de maio no Avatar Studios, em Nova York, Makoto Ozone lidera um piano-trio com os contrabaixista Christian McBride e o baterista Jeff “Tain” Watts, dois dos principais e mais impressionantes instrumentistas do jazz contemporâneo das últimas décadas. Com esse piano-trio, Makoto Ozone reedita, ao seu modo, os ágeis e intrincados fraseios do range neo-bop/ post-bop com dois dos instrumentistas que foram figuras principais da geração dos young lions que rejunesceram o jazz acústico nos anos 80 e 90. O repertório apresenta dez faixas que equilibram composições originais e standards, evidenciando um trio em sintonia absoluta. A faixa "Bouncing in My New Shoes", tema autoral, abre o álbum com diálogos e swing pulsante entre piano, baixo e bateria. Já a faixa-título "My Witch’s Blue", outro tema autoral, traz um lirismo sombrio e sofisticado, explorando harmonias densas e uma amplitude maior de dinâmicas. Segue-se o também autoral "Gotta Get It!!", que aposta em um groove acelerado e energia quase percussiva no piano em contrapontos. Enquanto "Longing for the Past" revela a faceta contemplativa de Ozone, com linhas melódicas expansivas e atmosfera intimista. Entre as releituras de standards, Makoto Ozone dá versões para "Satin Doll", tema polido no melhor estilo straigh-ahead, e "Tequila", que aparece reimaginada com energia vibrante e senso de humor interpretativo. Esses exemplos já dá uma noção da variedade de moods e dinâmicas que o pianista quis conferir no total das dez faixas. Makoto Ozone recria aqui, enfim, um robusto trio ambientado na estética de post-bop, com McBride oferecendo linhas de baixo firmes e robustas, enquanto Jeff "Tain" Watts imprime um cavernoso vocabulário que vai do swing à polirritmia em seu drum set.

Ryoji Ikeda - Dataplex (Damatics Series) (Raster-Noton, 2005). O sound artist, manipulador de eletrônicos e artista visual Ryoji Ikeda, nascido em Gifu, Japão, fixou seu trabalho e sua vida entre Paris, retornando pontualmente para sua residência em Kyoto. Nas últimas décadas, Ikeda se transformou num artista visual e sonoro de grande renome do minimalismo expandido dentro do campo dos tons senoidais, ruído puro e micropadrões que desafiam os limites da audição humana. Para explorar padrões em microsounds, Ikeda também utiliza princípios matemáticos, programas e recursos digitais e algoritmos em laptop, assim criando peças imersivas que exploram percepção auditiva e materialidade do som refletido na imagem. Com essa poética, as instalações de audiovisual de Ikeda tem tido grandes destaques nos principais museus e galerias de arte moderna em todo o mundo. Acima temos um exemplo dessa conceitual amostragem de minimalismo. Lançado em dezembro de 2005, Dataplex é o sétimo álbum solo da carreira de Ikeda e foi publicado pela Raster-Noton, prestigiada gravadora alemã de música eletrônica. Sendo o primeiro registro da ambiciosa série Datamatics, o álbum transforma "dados brutos" em paisagens sonoras compostas por estalos digitais, ruídos microscópicos e micro-ritmos fragmentados, culminando em faixas como “data.adaplex”, que introduz intencionalmente falhas de reprodução em certos leitores de CD como elemento conceitual. A estética de Dataplex é de um micro-minimalismo técnico e de precisão cerebral onde pequenos glitches e micro-ruídos criam uma arte sonora que não pode ser definida pela simples noção de pulsos no tempo. Interessante frisar, também, que a série Datamatics se estende muito além do álbum, englobando performances audiovisuais, instalações, publicações e gravações —— sempre centradas na materialidade dos dados como linguagem artística. A sequência audiovisual desse projeto Datamatics, estreou em 2008 como expansão dessa versão protótipo de 2005, incorporando uma segunda parte que reconstrói elementos originais —— som, arte-visual e até mesmo códigos-fonte —— numa abordagem meta-datamatics, com taxas de quadros extremamente elevadas, profundidades de bits variáveis e uma lógica de desconstrução sensorial que desafia o limite da percepção humana. Ao longo dos anos, o projeto se desdobrou em diversas obras complementares como data.tron e data.spectra, data.scan, data.film, explorando quesitos como números, aleatoriedade, escalas imensuráveis e abstrações físicas, criando uma estética contínua que combina arte sonora, matemática, dados computacionais e audiovisual numa imersiva experiência. Em síntese, este álbum chamado Dataplex inaugura com maestria a série Datamatics, condensando dados em um conjunto de hipnóticas e microscópicas esculturas sonoras, demarcando uma tratativa inovadora no universo eletrônico do glitch e do ultra-minimalismo, onde essas arquiteturas de ruídos se tornam uma espécie desafio sensorial ante os limites da percepção auditiva ao mesmo tempo em que expande-se para várias performances de audiovisual e instalações subsequentes. Em seu site, Ryoji Ikeda explica que Datamatics é um projeto artístico que explora o potencial de perceber a multissubstância invisível dos dados que permeiam o nosso mundo. Eis aqui, então, o registro que inaugura essa abordagem multi-arte.

Toshinori Kondo - Blow the Earth Project. O trompetista Toshinori Kondo (1948–2020), natural de Ehime, Japão, se inspirou na fase fusionista e experimental de Miles Davis e construiu uma carreira que permeou do jazz fusion ao free jazz e outras estéticas de avant-garde, destacando-se por conduzir uma carreira solo marcada por inovação e experimentação eletrônica. Dessa forma, Kondo lançou diversos registros inovadores e colaborou com seu trompete plugado a recursos elétrico-eletrônicos em álbuns de vários artistas ambientados em várias estéticas da arte da música tais como Bill Laswell, John Zorn, Peter Brötzmann e Ryuichi Sakamoto. Em seu início de carreira, já em meados dos anos 1980, após fundar a banda Kondo IMA em 1984 e alcançar sucesso comercial no Japão, Kondo mudou-se para Amsterdã, onde em 1993 iniciou o ambicioso projeto conceitual Blow the Earth, uma série de performances ao ar livre em ambientes naturais pelo mundo, misturando seu trompete plugado em recursos elétrico-eletrônicos com paisagens sonoras de desertos, montanhas e outras paisagens inóspitas, buscando uma fusão entre som, natureza e espaço físico e eletrônica. Esse ciclo continuou com as sessões documentadas em Blow the Earth in Japan (2007–2011), realizadas em locais emblemáticos do território japonês e que também recebeu versão em formato audiovisual.E acima vos trago Blow the Earth (India), registro que encerra a série. As faixas foram gravadas em locais da India e o álbum foi lançado em 2019 pela gravadora indiana Subcontinental Records, pouco antes do falecimento do trompetista, sendo posteriormente editado em vinil no Japão em 2021 pela Jet Set Records. Esse registro reúne nove faixas todas compostas, executadas e mixadas pelo próprio trompetista no seu estúdio Kondo Sound Body Laboratory e navega por ambientações sonoras que fundem jazz experimental e elementos de música eletrônica tais como dub, drum'n'bass e downtempo, muitas das vezes configurando-se numa eletrônica abstrata com influências da música clubber, assim construindo paisagens sonoras de híbrida simbiose com peças como "Dub Deep Inside", "Introspection", "Tunnel Vision" e a faixa-título "Blow the Earth (India)". Se é que podemos traçar um comparativo, com essa série Toshinori Kondo realiza um trabalho que traça um range entre ecos da eletrônica ultra-inovadora de On The Corner de Miles Davis e a estética "fourth world" de Jon Hassell, sempre de forma abstrata, experimental e híbrida.

Otomo Yoshihide (w/ Bill Laswell & Tatsuya Yoshida) - Episome (Tzadik, 2006). Otomo Yoshihide é um compositor, bandleader, multi-instrumentista e figura altamente respeitada nos circuitos do avant-garde, tendo formado vários grupos e ensembles —— vide a banda de noise Ground Zero, a Otomo Yoshihide's New Jazz Quintet (ONJQ) e sua variante Otomo Yoshihide's New Jazz Ensemble —— e sendo um dos grandes pioneiros no cenário do japanoise e da improvisação livre, tendo atuado principalmente com guitarra, eletrônicos e toca-discos. Neste álbum, Episome, lançado em 2006 pela Tzadik Records, Yoshihide forma um trio de tirar o fôleg acompanhado do renomado contrabaixista/produtor Bill Laswell e do explosivo e metronômico baterista Tatsuya Yoshida. O power-trio registra, aqui, uma sessão gravada em dezembro de 2005 no próprio estúdio de Bill Laswell, o sempre muito reconhecido Orange Music, situado em West Orange, New Jersey. Com produção assinada por Laswell, temos aqui a gravação de cinco composições extensas —— "Fudge" (13:23), "Layout" (14:29), "Substantiality" (7:08), "Spin" (9:44) e "Hedge" (14:18) —— que totalizam 59 minutos de plena exploração sonora nos territórios limítrofes entre improvisação livre, psicodelia densa, dub sombrio, noise e sonoridade de "free-rock-noise" marcada pelo hibridismo de estilos e por sonoridades por vezes extremas e guturais, quando não texturais. Além da sua guitarra elétrica abrasiva, Yoshihide também atua com vocais interventivos, enquanto Laswell imprime drones graves e guturais para exprimir suas linhas de baixo subversivas de alta densidade no seu melhor estilo de dub experimental, tendo Tatsuya sustentando a bateria com suas baquetas explosivas em métricas quebradas, beats imprevisíveis e energia bruta. Este é mais um dos ótimos álbuns da série New Japan, pela qual John Zorn, por meio da sua gravadora Tzadik, empreendeu um considerável mostra de álbuns de músicos experimentais japoneses.

Kyoto Jazz Sextet - Unity (Universal Music, 2017). O excelente Kyoto Jazz Sextet é um projeto de pura nostalgia fundado em 2015 por Shuya Okino, conhecido por seu trabalho no duo de jazz eletrônico Kyoto Jazz Massive, do qual falamos numa das resenhas acima. O sexteto foi formado para comemorar o 20º aniversário do Kyoto Jazz Massive e tem se firmado como uma banda de grande expressão nos circuitos dos clubes de jazz japoneses, reunindo músicos altamente qualificados para explorar uma vibe que combine sonoridade acústico-orgânica com frescor contemporâneo, diferente do Kyoto Jazz Massive que explora uma vibe de jazz mais eletrônica. O álbum Unity, lançado em 14 de junho de 2017, é o segundo trabalho do grupo e destaca-se por sua fusão de estilos do jazz moderno, incluindo influências de spiritual jazz, jazz-funky, harmonias modais e atmosfera soulful dos anos de 1960 e 1970, sendo gravado e editado de forma totalmente analógica, sem edição digital, o que confere ao álbum uma sonoridade orgânica e autêntica. A formação do sexteto aqui inclui Shinpei Ruike (trompete), Takeshi Kurihara (saxofone tenor), Yusuke Hirado (piano), Yoshihito "P" Koizumi (contrabaixo), Masanori Amakura (bateria) e Shuya Okino (efeitos sonoros), com participações especiais de Tomoki Sanders (filho de Pharoah Sanders, no sax), de Tabu Zombie (trompete) e Navasha Daya (vocal ao estilo soul-jazz). O álbum, com aproximadamente 68 minutos de duração, centra-se em temas autorais e explora grooves e climas não menos que envolventes, num atmosfera que, como já denotado, remete-se ao calor do "jazz clássico" ao "estilo Blue Note" —— com ecos naquele range que vai do hard bop ao jazz-funk ——, mas com envolvente e rejuvenescida contemporaneidade. Sempre presentes nos maiores clubes de jazz no Japão e tendo alcançado reconhecimento internacional, Kyoto Jazz Sextet é registrado aqui pela Universal Classics & Jazz, subsidiária da Universal Music Group no Japão. Agora em 2025, a banda lançou o EP Dosojin No Uta, em comemoração aos seus 10 anos de formação e estrada. Banda de finesse admirável.