
Portrait in Seven Shades (JLCO, 2010). Aqui estamos diante de um dos melhores registros de big band das últimas décadas -- e, consequentemente, da história do jazz. Portrait in Seven Shades é uma peça em sete movimentos escrita e arranjada para big band pelo saxofonista Ted Nash e comissionada pela Lincoln Center Jazz Orchestra, liderada por Wynton Marsalis. Cada movimento é dedicado a um grande mestre da pintura. São eles: Picasso, Van Gogh, Monet, Matisse, Chagall, Dalí e Pollock. Ted Nash, membro estelar da Jazz at Lincoln Center Orchestra, é um amante inveterado da pintura moderna e um profundo conhecedor das obras de vários pintores, concretizando aqui um projeto tão original quanto ousado. Nash conta que para desenvolver os temas e arranjos, teve que pedir para que Wynton Marsalis, junto à presidência do Jazz at Lincoln Center, contatasse o Museu de Arte Moderna de NY, o MoMA, para que ele tivesse acesso total ao acervo e aos registros dos quatros, onde poderia estudar mais a fundo as características de cada pintor. Envolto na extrema dificuldade de escolher alguns poucos pintores, Ted Nash limitou sua escolha em sete artistas principais que viveram num período de cem anos, fazendo uma alusão aos cem anos de idade do jazz: ou seja, do fim do período impressionista com Monet, passando pelo surrealismo de Dalí até o expressionismo abstrato dos anos 50 e 60 com Jackson Pollock – Nash acredita, enfim, que é possível fazer uma alusão desse período com o período entre o nascimento e desenvolvimento do jazz, no qual esse gênero musical sofreu transformações idiomáticas e estéticas similares às das artes plásticas. Ou seja, há muito da tradição do jazz e da cultura do americana aqui, mas também há muitos momentos com efeitos impressionistas, tortuosidades cubistas, deformidades abstratas, e etc, os quais o compositor musicalmente consegue exprimir nos temas, arranjos e improvisos. Com essa peça genial o compositor tenta captar, portanto, todo o universo sentimental e lúdico de cada um desses pintores, transformando essas impressões em música no âmbito do jazz. No movimento Van Gogh, Ted Nash expressa, através de uma balada convencional, na voz de Yola Nash, a tristeza de um pintor genial não reconhecido que vendeu apenas um quadro em vida e era apaixonado por uma prostituta. No movimento Monet, Nash imprime uma harmonia impressionista com solos divididos entre alguns membros da big band, tentando captar as pinceladas luminosas do mestre francês. Em Pollock, Nash mostra uma conexão entre o bebop, da época “beatnik” do início da carreira do pintor, com o free jazz, gênero que se associa tão bem com os elementos criativos da sua fase expressionista e abstrata através de arranjos e improvisos livres que tentam captar os jorros e espirros de tinta que Pollock aplicava sobre suas telas -- é um dos pontos altos da álbum, com Nash mostrando essas impressões através de frases e improvisos fragmentados, onde se destacam os improvisos de Wicliffe Gordon ao trombone e Bill Schimmell ao acordeão. Já em Chagall, Nash compôs uma peça que capta um pouco da música erudita e da klezmer music (música judaica), fazendo alusão à influência judaica na vida e obra enigmática de Marc Chagall -- destaque para Wicliffe Gordon na tuba, Natalie Bonin no violino, Bill Schimmel no acordeão e o próprio Ted Nash na clarineta (conjunto que, aliás, lembra a sua banda Odeon presente no disco La Espada de La Noche). No movimento Dalí, outro ponto alto do álbum, Nash capta bem o surrealismo do pintor através de um groove um tanto inusual e solos de sax e trompetes sobrepostos que criam efeitos até então inimagináveis (aí só ouvindo mesmo pra se ter uma ideia). Já em Matisse, Nash expressa o blues, a dança e o swing com melodias e harmonias que imprimem bem o tons de cores puras característico da pintura do mestre fauvista. Por fim, o movimento denominado Picasso tenta expressar a origem espanhola do pintor cubista através de uma levada de “flamenco” no início do tema, seguido de “arpejos quadrados” sobrepostos, um desenvolvimento em um bebop suingante -- com Wycliffe Gordon, ao trombone, e Wynton Marsalis, ao trompete, aplicando solos no mínimo estonteantes --, para, depois finalizar com o clima espanhol mencionado no início do tema.
Jazz and Art (Blue Engine, 2019). Fruto de uma temporada de shows e apresentações que se iniciaram em 2010, onde Wynton Marsalis e os músicos da sua big band focaram em apresentar temas e arranjos com sinestesias entre o jazz e as artes plásticas, este registro traz inspirações das obras de alguns dos principais pintores americanos tais como Stuart Davis, Sam Gilliam, Romare Bearden, Wifredo Lam, Winslow Homer e Norman Lewis. Porém a maioria dos temas exprimem apenas algumas inspirações subjetivas em relação a esses mestres. Não fosse alguns momentos de linhas abstratas -- aliás, quase que totalmente impressionistas, com mostras mínimas de sons expressionistas -- elaboradas para imitar musicalmente as abstrações e fluidez das pinturas, poderíamos dizer que este registro trata de apenas reviver as tradições do latin jazz, do blues, do swing, do gospel e doutros elementos tradicionais da gênese americana -- ou seja, Wynton Marsalis e seus músicos parecem querer inflexionar suas composições através dos traços, das formas disformes e das matizes de cores dissonantes das estéticas de arte moderna sem abrir mão dos padrões e das formas musicais tradicionais. Contudo, o projeto aqui não deixa de ser interessante ao tentar inflexionar essa identidade revisionista da JLCO e seus músicos através dos traços modernos desses pintores: a faixa "Blue Twirl", por exemplo, começa com sons abstratos para se basear no estilo color field de Sam Gilliam antes de se desembocar em um tema delineável; enquanto a faixa "The Repose in All Things" se baseia em Piet Mondrian através de alguns acordes bem modernos no início do tema antes de enxertar grooves de um latin jazz que reveza-se a todo momento com um bop suingante, fazendo uma alusão entre as cores geométricas da pintura "Composition in Red, Blue and Yellow". Cada faixa foi composta e arranjada por um membro da big band. Lançado apenas no formato digital, este álbum vem com as informações em arquivo PHP de cada faixa composta e arranjada, mais as pinturas usadas como inspiração. As linner notes são escritas por Ted Nash.
Artist In Residence (Blue Note, 2006). Jason Moran, desde sempre um aficionado nas artes moderna e contemporânea -- sendo frequentemente convidado para apresentar performances musicais em galerias e museus de arte moderna, e tendo uma aproximação bem interessante com artistas plásticos contemporâneos --, registrou aqui um dos seus mais inovadores projetos -- e um dos mais inovadores álbuns das últimas décadas! Artist in Residence apresenta composições próprias de Jason Moran que foram comissionadas por centros e fundações de arte como o Walker Art Center, Dia Art Foundation e o Jazz at Lincoln Center (do então conservador diretor artístico Wynton Marsalis). Curiosamente -- e apesar de se tratar de peças comissionadas por instituições onde o conservadorismo musical poderia ser um entrave --, Jason moran apresenta neste álbum alguns dos temas com ideias e facetas mais híbridas e distintas da sua carreira: usando tênues efeitos eletrônicos, ele apresenta peças que foram compostas através de linhas melódicas enxertadas por cima de fitas com vozes sampleadas (uma ideia que ele tirou do álbum "Festa dos Deuses", do compositor brasileiro Hermeto Pascoal); ele convoca a cantora lírica (e sua esposa) Alicia Hall Moran para compor e interpretar a pós-modernística canção "Milestone"; ele apresenta uma versão contemporânea da histórica canção "Lift Every Voice and Sing" do compositor negro do movimento Harlem Renaissance John Rosamond Johnson; e, por fim, ele deixa claro as influências que sua música traz dos ecos do hip hop -- na faixa "Rain" encomendada pelo Jazz at Lincoln Center, por exemplo, ele deixa claro uma ponte entre os funk beats de New Orleans e o hip hop. Para apresentar seus arranjos pós-modernos diante desse hibridismo, Moran conta com uma instrumentação mais ampla em relação à maioria dos outros registros da sua discografia, tendo a colaboração dos seguintes sidemans: Marvin Sewell (guitarra), Tarus Mateen (contrabaixo), Nasheet Waits (bateria), Ralph Alessi (trompete na faixa 8), Abdou M'Boup (djembe, kora, percussão na faixa 8), Alicia Hall Moran (canto lírico-soprano na faixa 2) e Adrian Piper (samplers, toca fitas, vozes sampleadas nas faixas 1 & 5). A renomada performer e artista audio-visual Joan Jonas, com a qual Moran inicia uma parceria na época, também participa empunhando sinos, objetos, brinquedos e claves na faixa 6.
MASS {Howl, eon} (Yes Records, 2017). Jason Moran é um dos pianistas de dedilhados mais híbridos, únicos e pós-modernos do jazz contemporâneo -- e quando ele associa suas teclas às deformidades da arte moderna e contemporânea, seu estilo impressionista sobe ainda mais ao alto nível. Como se pode ver no álbum Artist In Residence, mencionado acima, mesmo na época em que era um músico da Blue Note -- uma major que, logicamente, sempre prezou algum retorno financeiro em suas produções --, ele já pôde expressar suas preferências e inclinações em relação a esse lado mais remoto da alta cultura, das artes plásticas, audiovisuais e performáticas. Nos últimos anos, ainda mais, Jason Moran continua lançando álbuns pelos grandes selos e gravadoras -- inclusive, colaborando com diversos outros músicos, em parcerias ou como sideman --, mas também funda seu próprio selo junto à sua talentosa esposa (a vocalista Alicia Hall Moran), o Yes Records, selo por onde tem lançado seus trabalhos autorais mais investigativos nestas searas das misturas entre música improvisada, eletrônica e o universo das artes. É o caso deste projeto MASS {Howl, eon}, que documenta sua colaboração com a artista Julie Mehretu em pinturas e instalações no San Francisco Museum of Modern Art (SFMOMA) e na Church of St. Thomas the Apostle, no Harlem, num processo de fruição e criatividade onde o pianista e sua banda servem de atmosfera e inspiração para a pintora, e as pinturas mutuamente servem de inspiração para o pianista e sua banda no ato de ambas as performances. As peças, aliás, foram compostas nos exatos momentos enquanto Julie Mehretu pintava, na Church of St. Thomas the Apostle, onde também ocorreu a gravação, processo criativo que foi documentado no canal Art:21. A banda é composta por Moran no piano, Fender Rhodes e percussão, Graham Haynes no cornet e eletrônica, e Jamire Williams na bateria. O diferencial neste projeto é o hibridismo que se forma da contemporaneidade acústico-orgânica do piano e Fender Rhodes com a bateria polirítmica em junção com a contemporaneidade "digital" da eletrônica de Graham Haynes -- um hibridismo denso e colorido que é visível nas pinturas de Julie Mehretu. Dessa forma, as pinturas de Mehretu -- que mostra um colorido de visual "digital", como se fossem pixels, acrescido de rabiscos, traços e sombreamentos -- funcionam como verdadeiras partituras ideográficas para Jason Moran, que nos mostra ser um intérprete da mais aguçada leitura e criatividade em suas transcrições sonoras desses traços, sombreamentos e cores híbridas.
Sight To Sound (Criss Cross, 2003). Aqui o saxofonista Walt Weiskopf, um dos grandes nomes do sax tenor do nosso tempo, nos traz um formidável espécime do neo-bop e contemporary post-bop que tanto caracterizou a gravadora Criss Cross, uma das principais gravadoras do jazz contemporâneo nessas últimas décadas. Sendo uma espécie de suíte em 10 movimentos, cada faixa já vem nomeada com o respectivo nome ou sobrenome do artista plástico homenageado: o disco começa com a faixa de abertura Sight e vai se desenvolvendo em temas inspirados em cada pintor -- Miro, Pablo (Picasso), Camille (Pissaro), Claude (Monet), Salvador (Dali), Canvas, Toulouse, Vincent (Van Gogh) -- até finalizar com a faixa Sound. Não se trata de um registro sinestésico que tenta captar fielmente as tortuosidades e abstrações desses pintores tais como elas são enxergadas em suas respectivas telas: ou seja, percebemos, sim, algumas inflexões peculiares nas estruturas e arranjos dos temas, mas aqui temos uma espécie de jazz que preza-se mais pelas formas contemporâneas da linguagem bebop e das baladas, com tons mais impressionistas do que expressionistas. Walt Weiskopf conta com um sexteto formado por Andy Fusco (sax alto), John Mosca (trombone), Joel Weiskopf (piano), Doug Weiss (contrabaixo) e Billy Drummond (bateria).
Study - Witch Gong Game II/ 10 (Maya Recordings, 1994). A música do contrabaixista inglês Barry Guy deve ser objeto de estudo e apreciação de todo o aficionado por música improvisada! Barry Guy, contrabaixista-improvisador dos mais expansivos e compositor dos mais criativos -- vide suas performances e composições em ensembles e orquestras de improvisação livre --, foi um amigo pessoal e um parceiro íntimo, em termos de fruição artística, do célebre pintor escocês Alan Davie, um dos maiores nomes do expressionismo abstrato a nível mundial. Além do ofício da pintura, é sabido que Alan Davie também tocava piano, violoncelo e clarinete baixo, e no início dos anos de 1970 seu interesse pela improvisação livre o levou à uma estreita associação com Tony Oxley e com ele, Barry Guy, que dedicaria peças e gravações inteiras às suas pinturas. E este álbum é um exemplo perfeito. Aqui Barry Guy registra a composição Witch Gong Game II / 10, uma extensa peça de 50 minutos baseada na série de pinturas que Alan Davie intitulou de Bird Gong. A partir dessa série de pinturas, Guy elabora uma série de partituras ideográficas a partir do jogo de imagens, símbolos, ideias e signos dispostos nas telas do artista escocês, transcrevendo também esses elementos em curiosos flash cards que seriam usados para sinalizar, de uma forma mais subjetiva do que objetiva, a livre improvisação no ato da performance. Esse processo é discorrido, inclusive, em um artigo que o próprio Barry Guy escreveu para a magazine-journal Point of Departure, e no site do selo Maya Recordings, por onde o contrabaixista lançou e ainda lança diversos dos seus projetos -- incluindo outros álbuns onde se inspira em outros nomes das artes plásticas. Recebendo diferentes jorradas de cores e diferentes emaranhados disformes à cada performance, conta-se que essa peça já havia sido abordada com large ensembles europeus tais como a London Improvisers Orchestra e a Glasgow Improvisers Orchestra. Porém a gravação mais acessível da peça se dá por meio deste registro documentado pelo selo Maya Recordings. Aqui, Guy reproduz essas suas subjetivas sinestesias da série Bird Gong de Alan Davie à frente da New Orchestra Workshop (NOW Orchestra), com a colaboração de alguns dos principais improvisadores e músicos de jazz do Canadá. Posteriormente, Guy também registraria essa peça no álbum Falkirk (2006) à frente da Glasgow Improvisers Orchestra -- ficando, aqui, essa segunda gravação como uma indicação direta para quem quiser ouvir uma segunda versão da peça.
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