Arquivo do Blog

Anjos e Dragões: As paráfrases bíblicas de Brad Mehldau em sua inovadora fusão de eletrônica, vozes, cordas e sopros


Nos anos 80 e 90 o mundo da música assistiu a uma fervorosa releitura contemporânea das tradições e valores semeados por mestres do jazz, do período da fase acústica desse gênero: ou seja, do nascimento do jazz até o post-bop e o free jazz sessentista, tudo foi resgatado, relido, reconsiderado, analisado e destilado em versões contemporâneas pelos músicos dos anos 80 e 90. Foi como se essa nova geração de jovens músicos olhasse para o passado e dissesse: "Ok. O pop, o fusion, a discoteca, o rock, o funk, o hip hop...tudo isso é muito moderno, dançante e cativante, mas nossa história e nossas origens estão lá atrás em Louis Armstrong, Duke Ellington, Charlie Parker, Miles Davis, Thelonious Monk, Charles Mingus, Bill Evans, Ornette Coleman...". E Brad Mehldau estava no meio da troupe. Ele inicia a carreira justamente como uma das promessas do novo neo-bop empreendido pelos chamados "young lions" com os irmãos Jorge Rossy e Mario Rossy, e com o saxofonista Joshua Redman e o contrabaixista Christian McBride, e começa seus primeiros álbuns com essa mentalidade de valorizar as essências semeadas pelos grandes jazz masters. Mas quem já esteve antenado com essa fase inicial e ouviu Brad Mehdau improvisando sobre o tema "Antropology" (de Charlie Parker) no álbum When I Fall In Love (Fresh Sound, 1993), com o Rossy Trio, já pôde constatar que o jovem pianista destilava estilo próprio e já poderia imaginar que ele voaria para além da faceta do músico especialista apenas em releituras de standards. Sim -- seguindo as trilhas abertas por pianistas como Bill Evans, Larry Goldings e Fred Hersch -- ele se especializou em dar releituras próprias e inovadoras à standards manjados do songbook do jazz, mas ele também criou sua própria sonoridade, sua própria concepção de dinâmica para piano-trio e seu próprio repertório. Com improvisos idiossincráticos, com novos rubatos e com sobreposições contrapontísticas inovadoras entre piano, contrabaixo e bateria, Mehldau empreendeu uma influente série de álbuns chamada The Art of the Trio onde praticamente redefiniu o neo-bop e post-bop  e criou um novo songbook ao trazer para o repertório do jazz novos temas e novas canções de Radiohead, Nick Drake, Chico Buarque, Paul Simon, Joni Mitchell, Noel Gallagher, entre outros nomes do pop, rock e folk até então impensáveis. No início dos anos 2000, a influência que Mehldau passou a exercer e a representar com essa nova abordagem, com essa nova dinâmica de banda e com esse novo songbook, foi gigantesca: não apenas os pianistas e os piano-trios passaram a se inspirar em suas abordagens, mas boa parte dos instrumentistas em geral. Mas novamente, Brad Mehldau já estaria prestes e expandir sua música para ainda mais além dos rótulos. Abaixo, tentamos entender esse processo a partir dos principais álbuns onde o pianista segue sua linha evolutiva. Clique nos álbuns para ouvi-los.



Seu álbum Largo (Warner Bros.,2002), por exemplo, já sinalizava uma certa mesclagem entre os improvisos cristalinos do seu piano solo e piano-trio -- formado com o contrabaixista Larry Grenadier e os bateristas Jorge Rossy e Jeff Ballard revezando nas baquetas -- com os sons eletrônicos, música de câmera e as batidas de hip hop e drum'n'bass: era o jazz, o clássico e a eletrônica todos juntos e misturados numa mui elaborada edição com overdubs e com faixas que se revezam com arranjos de piano-trio, chamber music com instrumentos de sopros, piano preparado, vibrafone e kits de percussão contrastando com efeitos sintetizadores e beats eletrônicos. Esse registro de Mehldau -- um dos pontos altos nessa sua fase da carreira com suas versões inovadoras para temas da banda de rock alternativo Radiohead, por exemplo -- praticamente sinaliza que o jazz contemporâneo já tinha destilado em muito as inovações acústicas dos jazz masters do passado, e que boa parte dos músicos estariam agora interessados em analisar as possibilidades rítmicas, harmônicas e texturais do fusion, do funk, do rock, da eletrônica, do hip hop e da neo-soul e empreenderem-se em misturas cada vez mais inclassificáveis. Brad Mehldau mesmo continuaria a lançar aclamados álbuns com seu piano trio, mas este álbum acima já sinaliza que ele também tinha a pretensão de começar a se enviesar para uma nova faceta fusionista em sua carreira. É o que aconteceria nos discos abaixo, os quais são gestados a partir de quando Mehldau faz uma parceria muito frutífera com o baterista Mark Guiliana: seu piano passaria a dividir espaço com variados modelos de sintetizadores e eletrônicos em busca de elaborar efeitos transcendentais, angelicais e espirituais.

Em 2013 é lançado o registro do seu duo com o baterista Mark Guiliana em Mehliana: Taming the Dragon (Nonesuch, 2014), um surpreendente álbum de eletrônica inspirado nas pinturas bíblicas do poeta e artista plástico inglês William Blake (1757-1827) que claramente que lhe impulsionou a seguir adiante com o álbum Finding Gabriel (Nonesuch, 2019), que nos traz uma sonoridade transcendental e estendida com sintetizadores, vozes, arranjos de cordas e instrumentos de sopro numa construção imagética de uma outra inspiração bíblica: a história da visita do Anjo Gabriel ao profeta Daniel e aos profetas do fim do Velho Testamento. Esses registros evidenciam Brad Mehldau numa crescente que mostra claramente uma busca por uma nova transcendência musical, e uma transcendência de assinatura própria: não é jazz fusion nos moldes setentistas -- de Miles, Corea, Hancock, Zawinul e companhia --, e nem tem algo haver, por exemplo, com as mais contemporâneas aplicações da eletrônica nos cenários do jazz britânico, mas trata-se de um novo jazz com uma nova eletrônica, com novas combinações e novas temáticas. Quer dizer: ultimamente os músicos de jazz mais criativos vem se inspirando tanto as possibilidades semeadas pelos jazz masters quanto nas novas possibilidades da eletrônica contemporânea de DJ's e sound designers como Carl Graig, J Dilla, Squarepusher, Amon Tobin e Aphex Twin, por exemplo; mas quando essas influências caem nas mãos de músicos hiper criativos como Brad Mehldau e Mark Guiliana, a amálgama que se cria através da criatividade jazzística -- com harmonias inovadoras, tons e arranjos sinestésicos e variadas formas de improvisos e contrapontos rítmicos -- dá luz à uma transcendência sem precedentes e com poucos paralelos na história do jazz e na atual contemporaneidade da música em geral. 

Gravado ao longo de um período de 18 meses entre 2017 e 2018, o álbum Finding Gabriel foi lançado pela Nonesuch Records em 2019 e alcançou considerável repercussão na mídia especializada, com direito às primeiras posições nos ranking charts, além de ganhar dois prêmios Grammy -- numa clara demonstração de um álbum de jazz que consegue combinar grande personalidade criativa e inovadora com aclamação comercial e midiática. Neste disco -- onde claramente há uma influência direta do baterista Mark Guiliana, que com sua banda de jazztronica Beat Music! costuma dizer que se inspira tanto nas baterias dos mestres Elvin Jones e Art Blakey quanto nas novas possibilidades eletrônicas de Squarepusher --, Brad Mehldau amplia ainda mais suas explorações de teclados e efeitos eletrônicos para criar os efeitos transcendentais relacionados às passagens bíblicas e toda carga de imaginação e espiritualidade que essas passagens lhes provocam. Mas a originalidade criativa de Mehldau também consiste em combinar os efeitos eletrônicos com efeitos vocais, vocalises e instrumentos de cordas e sopros para enriquecer e dar densidade aos arranjos. Além disso, o desenvolvimento imagético com base em uma temática bíblica passa a ser um diferencial tão rico em termos de inspirações sonoras quanto em termos de posicionamento e manifesto. Brad Mehldau elabora, então, uma idiossincrática paráfrase musical das suas leituras bíblicas baseadas nas proféticas passagens dos livros de Oséias e Daniel, onde anjos, arcanjos e querubins vinham dos céus para trazer esperança, consolação e mensagens de uma nova era para estes profetas judeus que estavam sob o cativo da Babilônia -- no Livro de Daniel, por exemplo, é o próprio Arcanjo Gabriel quem desce dos céus para conversar com o profeta. Mas não se trata de evocar um espiritualismo no campo místico ou algum tipo de fundamentalismo religioso como muitos fanáticos fizeram com a spiritual music de John Coltrane, por exemplo. Os intuitos de Mehldau com essa abordagem tratam-se apenas de situar sua espiritualidade e seu próprio espírito criativo dentro de uma evolução musical, e de provocar uma reflexão instantânea onde essa temática espiritual venha nortear as incompreensões do homem na atual sociedade. Brad Mehldau explica, em seu site, que em suas recentes leituras da Bíblia essas passagens foram algumas das que lhe trouxeram as mais inspiradoras imagens musicais em sua mente criativa e o fez enxergar o quanto que essas e outras passagens bíblicas fazem uma alusão perfeita com atualidade da nossa sociedade aprisionada e sem esperanças. Imageticamente e sinestesicamente, Brad Mehldau usa, então, os efeitos eletrônicos, os arranjos de cordas, os efeitos vocais (muitas das vezes sintetizados), os vocalises e até efeitos sintetizados de celestas e sons inebriantes do gamelão justamente para retratar as imagens angelicais e os acontecimentos divinos destas histórias bíblicas -- e tudo isso expresso através do seu estilo inconfundível de dedilhado e com suas inconfundíveis linhas melódicas e harmônicas. Ademais, neste mesmo álbum Brad Mehldau também se inspira em outros pontos da Bíblia como na sabedoria de e de Salomão, explícita no Livro de Eclesiastes: mostrando, nestes casos, faixas mais viscerais e menos contemplativas. Finding Gabriel é, enfim, uma das obras autorais mais criativas e interessantes do nosso tempo.

E agora em 2022 Brad Mehldau lança este disco acima Jacob's Ladder, uma natural extensão dessa sua busca transcendental. Se Finding Gabriel foca na figura do Anjo Gabriel e suas visitas aos profetas do fim do Velho Testamento, com uma nova anunciação de um novo mundo com um Novo Testamento que Deus estava prestes a criar com o envio do seu Filho Jesus, este novo álbum já foca na história de Jacó no início dos povos judeus, quando o patriarca teve um sonho com uma escada que ligava a Terra aos Céus, com anjos subindo e descendo por essa escada, com um total acesso do homem ao Deus e seu habitat celestial. Este disco, pois, é um continuum que Mehldau dá para essa abordagem que comunga transcendências sonoras com um certo imagetismo bíblico e espiritual, procurando sempre provocar uma reflexão pessoal e social com isso tudo. A capa do álbum traz uma alusão e um comparativo interessante entre os signos e estatísticas da vida humana -- um cardiograma, uma meta de vida, uma meta empresarial, números, dinheiro... e coisas do tipo -- e a temática da Escada de Jacó como um caminho para o homem chegar até Deus -- coisas que, sem a devida espiritualidade e o devido equilíbrio, são incompatíveis. Em termos de conceito sonoro, o álbum Jacob's Ladder também se difere um tanto de Finding Gabriel -- mas segue na mesma linha de transcendência musical. O pianista inspira-se nas bandas e músicas do rock progressivo que ele amava quando jovem adolescente. Mehldau conta que o rock progressivo foi sua porta de entrada para o fusion, o que acabou levando-o à descoberta do jazz acústico. Desenvolvendo a mesma ideia de transcender e destilar essas influências psicodélicas em arranjos com sintetizadores, vozes e arranjos instrumentais, Brad Mehldau convida para essa nova empreitada seus companheiros da gravadora Nonesuch Chris Thile (bandolim) e Cécile McLorin Salvant (vocais), Mark Guiliana (bateria, eletrônicos), Becca Stevens (vocais), Joel Frahm (saxofones) e o emergente cantor e instrumentista brasileiro Pedro Martins (vocais, violão), dentre outros convidados. No demais, só nos resta viajar por esses sons proféticos e esperar que esse novo direcionamento estético de Mehldau não fique estático apenas nessa trilogia com Mehliana: Taming the Dragon (Nonesuch, 2014), Finding Gabriel (2019) e Jacob's Ladder (2022). Que venham mais álbuns com essas temáticas e fusões inovadoras!




CULTURA | LAZER | SHOWS | CONCERTOS | EXPOSIÇÕES | OFICINAS——————————————————————————————————————