★★★★ - Johnathan Blake - Passage (Blue Note, 2023).
Filho do violinista de jazz John Blake Jr., falecido em 15 de agosto de 2014 aos 67 anos, Johnathan Blake é um dos grandes nomes da bateria das últimas décadas: ele frequentemente é visto atuando com o plantel da gravadora Criss Cross e com figuras como Chris Potter e Bill Frisell. Recorrentemente ambientado nas estéticas do neo-bop e post-bop contemporâneo, o baterista segue agora com este seu segundo álbum pela Blue Note, que é um continuum do álbum Homeward Bound (2021). Para este álbum, o baterista e compositor novamente reune sua dinâmica banda Pentad, aqui formada com o sax-altoísta Immanuel Wilkins, o vibrafonista Joel Ross, o pianista David Virelles e o contrabaixista Dezron Douglas —— uma banda de peso, portanto! Johnathan Blake diz que Passage é um álbum que captura sua evolução pessoal e a evolução coletiva da sua banda, misturando arte musical e celebração à vida, e tendo como temática central o legado musical e familiar deixado por seu pai, que deixou sua marca em dezenas de gravações como líder e como sideman nos anos 70, 80 e 90. O álbum apresenta composições suas e do seu pai, além de peças dos sidemans da banda e uma peça do falecido baterista e compositor Ralph Peterson —— uma das grandes influências para os bateristas de neo-bop e post-bop nas últimas décadas. A peça central é a vibrante faixa-título "Passage", que foi composta por seu pai e foi aqui repaginada para representar seu legado familiar. O compêndio, regado a harmonias modais e pitadas neolatinas, inflexionado sob rítmicas e grooves variados, é um excelente exemplo das abordagens mais contemporâneas trajadas pelo neo-bop dos últimos tempos. Um dos grandes álbuns de 2023!
★★★★★ - Steve Lehman & Orchestre National de Jazz - Ex Machina (Pi Recordings).
O saxofonista-alto Steve Lehman —— professor de música no California Institute of the Arts em Valencia, Califórnia —— é um dos nomes que está no olimpo do avant-garde jazz contemporâneo. Tendo passado pela estética do m-base, tendo sido influenciado por vanguardistas tais como Anthony Braxton e George Lewis e tendo inflexionado seu intrincado fraseado através das acentuações assíncronas da música hindustani —— algo que ele desenvolveu juntamente com seu amigo, também altoísta, Rudresh Mahantappa ——, Steve Lehman também é fanaticamente aficionado pelas inovações da música experimental, da eletroacústica e da música erudita moderna serial e pós-serial, especialmente por figuras como Stockausen, Ianni Xenákis, Tristan Murail, Gérard Grisey e gênios correlatos. Não é nenhuma surpresa quando lembramos que nas últimas duas décadas, de vez em quando, Lehman tenha nos impactado com um álbum de criativa experimentação: isso ocorreu, por exemplo, quando ouvimos os álbuns lançados com seu poderoso octeto, vide os álbuns Travail, Transformation and Flow (Pi Recordings, 2009) e Mise en Abîme (Pi Recordings, 2014), considerados pela crítica especializada dois dos álbuns mais superlativos das décadas de 2000 e 2010. Aqui mesmo no blog temos acompanhado as peripécias hiper criativas do gajo: em 2022, por exemplo, resenhamos aqui seu interessantíssimo álbum Xaybu: The Unseen (Pi Recordings), onde o saxofonista lançou um experimental continuum com seu coletivo Sélébéyone, formado com o saxofonista Maciek Lasserre e os DJ's e MC's HPrizm e Gaston Bandimic, por meio do qual explorou misturas intrincadas de jazz contemporâneo próximo à estética m-base, elementos de avant-garde, fragmentos de textos em rap style, batidas de hip hop e efeitos e beats de eletrônica dentro de um conceito ancorado no misticismo islâmico de Al-Ghaib. Já neste álbum acima, estamos diante de um projeto ambicioso que Lehman há muito tempo sonhava e esperava concretizar: a junção elementar de uma big band de jazz com esses elementos modernistas e experimentais que ele já vinha explorando com bandas e coletivos menores. Mas ele vai ainda mais além! Neste álbum acima, Lehman explora a inserção de elementos da música espectral —— uma estética evolutiva e decorrente da eletroacústica e do serialismo do século XX —— dentro de estruturadas peças compostas para big band. Sabe-se, aliás, que um dos professores de Lehman, em sua fase de estudante de composição na Columbia University, foi o compositor de música espectral Tristan Murail, uma aproximação que deve ter lhe influenciado sobremaneira rumo à estética espectral. Neste álbum acima, então, Lehman se inspira na emblemática peça "Tempus Ex Machina" para seis percussionistas (1981) do compositor espectral Gérard Grisey e empreende uma engenhosa fusão de contrapontos, acordes atonais, camadas reverberantes de clusters microtonais e sons eletrônicos espectrais produzidos por computador com os arranjos e a instrumentação acústica de uma big band de jazz, sempre com peças muito bem elaboradas e estruturadas, por vezes recheando todo esse espectro com batidas de hip hop, linhas intrincadas de solos e improvisos e curiosas sobreposições entre os naipes. O projeto foi desenvolvido junto ao diretor artístico da Orchestre National de Jazz, Frédéric Maurin, e fez uso das harmonias espectrais produzidas pelos softwares e computadores do renomado IRCAM (Institut de Coordination Acoustique Musique), centro de música eletroacústica fundada por Pierre Boulez no final dos anos de 1970. Sem dúvidas, este é um dos álbuns mais criativos de 2023!!!
★★★★ - Alva Noto - HYbr:ID II (Noton Records, 2023).
O DJ, compositor e artista multimídia alemão Alva Noto é um dos nomes centrais da música eletrônica minimalista, da ambient music contemporânea, tendo se especializado nas estéticas dos micro sounds e das texturas aliadas a instalações, áudio visual, artes cênicas, exposições e trilhas sonoras. Venerado nos circuitos da arte contemporânea desde os anos 90, foi partir dos anos 2000 que Alva Noto expandiu ainda mais sua influência ao formar uma dupla com Ryuichi Sakamoto, parceria que deu luz à conceituada série V.I.R.U.S., um marco para a estética da ambient music. Neste álbum acima, Alva Noto nos traz a segunda parte de sua série HYbr:ID, uma série de peças incidentais e texturais criadas para a performance de dança ECTOPIA do coreógrafo Richard Siegal, fundador da companhia Ballet of Difference, em Colônia, Alemanha, com a qual segue difundido um projeto chamado "ectopia dance productions": o projeto é conceitual e tem a missão trazer uma nova abordagem experimental para o ballet no século 21. Neste segundo álbum da série HYbr:ID, então, Alva Noto mescla-se entre peças cheias de ruídos brancos relaxantes, camadas etéreas de drone music, glitches sutis e gélidas névoas e camadas texturais —— evocando um tanto das estéticas da drone music e do glitch, muito em voga na eletrônica das últimas décadas —— e outras peças com pulsos eletrônicos espaçados e pontilhismos sutilmente ritmados, chegado a evocar até uma certa aproximação mais "clubber" com a estética chill-out combinada com uma certa áurea atmosférica próxima à estética lo-fi. Relaxante!
★★★★¹/2 - Koma Saxo - Post Koma (We Jazz Records, 2023).
Este álbum acima pode soar estranhamente interessante com as ideias fragmentadas, picotadas e sem coesão que nos são propostas. Mas essa é realmente a intenção. Formada com a liderança do contrabaixista sueco-alemão Petter Eldh (que também assume os teclados, synths e sampler) e com as colaborações de músicos suecos como a vocalista Sofia Jernberg e os saxofonistas (flautistas e multipalhetistas) Jonas Kullhammar, Otis Sandsjö, Mikko Innanen e Maciej Obara, além do baterista alemão Christian Lillinger, a banda Koma Saxo parece ter sido fundada justamente para explorar todo o espectro do jazz e seu entorno sob a ótica do desconstrutivismo pós-moderno desses músicos europeus, que já são músicos das gerações mais jovens, surgidos nos anos 2000 e 2010. E este álbum é um fiel resultado do trânsito e desenvoltura com os quais esses músicos passam por várias bandas de várias estéticas, indo do folk ao hip hop, da livre improvisação à eletrônica, explorando de passagens acústicas e melódicas à colagem e enxertos de samplers, e vão até o resgatede aspectos elementares do jazz, explorando do fraseado bebop ao free jazz mais cru. E o álbum Post Koma foi lançado em novembro de 2023 como um álbum-continuum a dar vazão nesse conceito pós-moderno que a Koma Saxo vem desenvolvendo. Petter Eldh conta que ao longo dos três álbuns anteriores —— o álbum homônimo de 2019, LIVE de 2020 e Koma West de 2022 —— o Koma Saxo desenvolveu um conceito onde muitas vezes soou "líquido" e "pós-produzido", às vezes também soando cru e livre, outras vezes soando com uma acústica um tanto "old school, e outras vezes, e ao mesmo tempo, soando estranhamente eletrônico, mesmo com um formação majoritariamente feita de instrumentos acústicos..., então esse álbum nasce como uma sedimentação pós-evolução desse conceito cheio de amostragens de samplers, improvisos fragmentados, solos picotados, ideias dispersas que se atraem e se conflituam, excertos e colagens sequenciadas e ao mesmo tempo sobrepostas, entre outras formas de amostragens. O próprio título denota esse continuum. A ideia aqui é fazer conflitar a introspecção dos solos e improvisos com a intervenção crua e direta da eletrônica e dos samplers pré gravados, é criar e amassar, recortar e colar, construir e descontruir, enxertar e esculpir, tudo ao mesmo tempo.
★★★★ - Avram Fefer Quartet - Juba Lee (Clean Feed, 2022).
O título deste álbum me fez lembrar do clássico LP Juba Lee, lançado pelo saxofonista Marion Brown em 1966, clássico álbum que conflui evocações ao tortuoso melodismo ornettiano, ao primitivismo ayleriano sob novos tons —— inclusive tendo o ressonante piano de Dave Burrell como um poderoso aditivo —— e foi gestado no limiar entre a latência implícita da ancestralidade afro-americana a La Archie Shepp e o espiritualismo modal a La Coltrane. O saxofonista americano Avram Fefer não faz, entretanto, referência direta a essas épicas abordagens e muito menos ao clássico álbum de Marion Brown, mas suas conexões indicam que um tanto da gênese daquele free jazz de teor espiritual e primitivista está intrinsecamente incutido no seu DNA musical. Aliás, Fefer não é, propriamente, um revivalista nostálgico em relação aqueles rompantes primeiros do free jazz. Trata-se de um músico original que mantém em dia certa fluência na linguagem bop e certo tom sedoso de sax tenor e clarinete-baixo, mas, ao mesmo tempo, ele não deixa de temperar seus fraseados e esse seu tom quente e sedoso com um pouco daquela crueza mais folk e primitivista do free-bop sessentista. Só para se ter uma ideia, Avram Fefer tocou e gravou com Sunny Murray, Steve Lacy, Denis Charles, The Last Poets e Archie Shepp, mas também liderou grupos e bandas imergidos em outras estéticas distantes do jazz avant-garde tais como acid-jazz, drum'n'bass e electro-dance, além de ter colaborado com conjuntos africanos, tais como o Gnawa e o Manding, sem mencionar suas colaborações com diretores de cinema e teatro tais como Melvin Van Peebles e Ivo Van Hove. Este álbum acima, pois, parece diluir subjetivamente essas e outras influências, sem deixar nada tão saliente, indo da linguagem bebop à forma livre, passando pelo world jazz —— vide a faixa "Brother Ibrahim", dedicada ao pianista sul-africano Abdullah Ibrahim —— e desembarcando num folk dotado de calmaria e serenidade, sem qualquer apelação. A banda, uma das pratas da Clean Feed, é um quarteto formado com o guitarrista Marc Ribot, o contrabaixista Eric Revis e o baterista Chad Taylor e é uma evolução do seu sax-trio de abordagem crua que ele manteve de 2009 até 2018: em 2019 Marc Ribot e sua guitarra de som eletric-folk chegam, então, para temperar o som da banda que já contava com Eric Revis e Chad Taylor. Este álbum, pois, é o segundo registro do quarteto e surge num momento em que, após o falecimento do seu grande amigo, o músico e influente crítico e escritor Greg Tate, Avram Fefer precisava de um despertar espiritual e primitivista, porém ambientado no hoje.
★★★★★ - Tim Berne & Matt Mitchell - One More Please (Intakt Records, 2022).
O dueto de saxofone e piano é um combo refrescante e expõe o saxofonista de jazz diante de novos desafios e novas viagens, possivelmente fazendo-o explorar novos cantos e linhas de melodias por onde os fraseios do saxofone não costuma trafegar quando ele está inserido no formato de sax trio ou quarteto. Lembro que, nas últimas décadas, Branford Marsalis gravou algo parecido em seu dueto com o pianista Joey Calderazzo, vide o álbum Songs of Mirth and Melancholy (Marsalis Music, 2011), e Ivo Perelman também tem explorado esse formato junto ao pianista Matthew Shipp e em sua recente série de duetos variados. É, também, o caso deste álbum acima, onde o influentíssimo saxofonista Tim Berne explora as nuances desse formato ao lado do conceituado pianista Matt Mitchell, que é dotado de um senso de cores harmônicas fora do comum. Tim Berne é aquele saxofonista de tom rasante e fraseado intrincado que claramente —— e assustadoramente! —— foi responsável pela evolução de um certo fraseado "free-bop" no seio da Downtown nova-iorquina, sendo dotado de influências, relações e correlações que vão de Julius Hemphill à John Zorn, passando por ornettianas linhas harmolódicas e segue firme rumo ao futuro, sendo um dos "fouding fathers" desse "modern creative" vigente nas últimas décadas, desse free jazz mais contemporâneo que consegue ser, ao mesmo tempo, livre e composicional, caótico e estruturado, intrincado e melódico. Nos últimos tempos, mais ainda, o fórceps pandêmico e a natural direção rumo à maturidade levaram Tim Berne a se deparar com novos desafios em novos formatos: na pandemia ele gravou um álbum a solo, tocando sozinho, e agora temos esse em duo, sem mencionar outros duetos que o saxofonista segue empreendendo. A melodiosidade que Tim Berne tem alcançado nesses formatos diminutos é notável, mesmo nas frases mais sinuosas! E o colorido que o pianista Matt Mitchell proporciona é um plano de fundo que ora envolve as linhas melódicas do sax alto em uma aurora boreal harmolódica e outrora salpica as linhas de improvisos com notas e acordes cintilantes. As linner notes do encarte são de autoria do emblemático músico e compositor inglês Django Bates. Fantástico!!!
★★★★ - Matt McBane & Sandbox Percussion - Bathymetry (Cantaloupe, 2022).
Matt McBane é outro dos novos compositores a surpreender. Compositor, violinista e produtor, a obra de Matt McBane tem sido baseada em peças que abordam aspectos do avant-pop e do minimalismo contemporâneo americano, tendo escrito peças tanto para cordas, orquestras e conjuntos de câmeras convencionais como também para formações não-convencionais com sintetizadores, percussão e objetos inusitados. Este álbum acima, Bathymetry, registra uma composição para percussão, objetos e sintetizador analógico em oito movimentos que foi registrada pelo Sandbox Percussion e foi lançado em álbum em novembro de 2022 pela Cantaloupe Music, com o álbum sendo prontamente indicado para concorrer ao Grammy 2023 em três categorias: Best Chamber Music/ Small Ensemble Performance, pela atuação do ensemble Sandbox Percussion junto ao próprio Matt McBane no sintetizador; Best Contemporary Classical Composition; e também na categoria Best Engineered Album Classical, com o trabalho dos engenheiros de som Joseph Branciforte e Paul Gold sendo reconhecidos. Também foi selecionado como um dos álbuns do mês na plataforma do Bandcamp e foi resenhado em muitas plataformas, jornais e sites especializados. A peça percorre 40 minutos em oito movimentos protagonizados pela percussão e por um sintetizador analógico monofônico Moog Slim Phatty e baseia-se em aspectos e paletas minimalistas —— com drone music, estética ambient, padrões repetitivos e etc ——, também fazendo uso de texturas, de sons ASMR coletados no YouTube e de um verdadeiro playground de objetos (tijelas, bolas de pingue-pongue, garrafas de vidro e etc), além de kits de bateria e instrumentos usados na percussão sinfônica convencional (blocos, pratos, vibrafone, tam tam e etc). Interessante notar que a percussão aqui é abordada de forma elegante e sutil, ganhando uma conotação mais textural do que rítmica mesmo em momentos onde há pulsações rítmicas repetitivas, enquanto a função do sintetizador é soar como um plano de fundo subaquático, abaixo das notas emitidas pela percussão: "The synth most often functions in a bass role... as a kind of ocean floor to the more trebly sounds of the percussion ensemble. The idea of bathymetry is sometimes more literal, sometimes more poetic. In some movements, the synth in the bass determines the behavior of the percussion sounds above it, so it's shaping and refracting rhythms in the same way the ocean floor shapes the waves passing above it. In other movements, we're creating more of a dark, underwater, mysterious world" —— é como conceitualmente explica o próprio McBane. Eis aqui um projeto em que mesmo os ouvintes não adeptos à monotonia da ambient music deverão reconhecer seu alto nível de elaboração e criatividade.
★★★¹/2 - Derek Bailey & Paul Motian - Duo in Concert (Frozen Reeds, 90/ 91/ 2023).
O selo finlandês Frozen Reeds acaba de lançar este conjunto de performances em duo com o guitarrista inglês Derek Bailey, um dos ases da música improvisada europeia, e o baterista americano Paul Motian, uma das figuras legendárias do jazz. Os dois músicos se encontraram brevemente em duas ocasiões no início dos anos 90: uma no festival JazzMarathon de Groningen, na Holanda, a outra no New Music Cafe, em Nova York. As fitas dessas gravações, desses dois encontros, foram encontradas no rico arquivo da Incus Records, seminal gravadora —— atualmente inoperante, mas com um catálogo sempre revisitado por fãs de improvisação livre —— fundada em 1970 pelo próprio Derek Bailey em coparticipação com Tony Oxley e Evan Parker. O show de Groningen (1990) foi lançado em vinil, enquanto o registro de Nova York (1991) está disponível no formato de download digital gratuitamente para todos os compradores. Bill Frisell, versátil guitarrista que vai do experimental ao mainstream do jazz, foi convidado a colaborar com as liner notes e suas declarações também enriquecem o compêndio. Para quem adquirir o formato físico, o encarte vem com uma conversa entre Bill Frisell e Henry Kaiser falando sobre Derek Bailey e Paul Motian, sobre suas origens, bem como sobre esse encontro de ambos e considerações musicais afins. Interessante notar que Paul Motian nunca foi propriamente um baterista de improvisação livre —— não era ambientado, por exemplo, na espontaneidade dos improvisadores europeus ——, da mesma forma que Derek Bailey não era propriamente um guitarrista apegado ao jazz. Contudo, aqui, a bateria melódica, poética e textural de Motian se faz desafiar por trilhas mais ruidosas e alia-se, então, com contornos não menos que propícios aos sons crus e experimentais emitidos pela guitarra de Bailey. E, assim, os dois músicos rumam juntos em viagens que vão das ruidagens mais reducionistas até livres improvisações repletas de pontilhismos timbrísticos. A qualidade de audição da fita não é das melhores, mas trata-se do registro de um encontro épico e deveras incomum!
★★★¹/2 - Sam Gendel & Marcella Cytrynowicz - Audiobook (Psychic Hotline, 2023).
Sam Gendel, saxofonista e produtor seminal de Los Angeles —— já abordado aqui em outras resenhas ——, tem explorado eletrônica e ambient music em uma série de amostragens e registros que soam diferentes de tudo o que já se conhece, muitas das vezes usando sons de sintetizadores pouco ou nada usuais, quando não explorando instrumentos de sopros sintetizados. Em seus últimos registros, ao menos nos registros mais eletrônicos, a intenção de Gendel não é desenvolver uma trilha idiomática de solos, fraseios e arranjos bem talhados. Nesses seus últimos registros, a ideia é criar texturas e organismos sonoros disformes e totalmente diferentes de quaisquer padrões de música eletrônica que conhecemos: seja comparando com a eletroacústica erudita, com a eletrônica usada no jazz fusion, com o techno-house ou electro-pop, ou com o minimalismo eletrônico da drone music..., as explorações de Sam Gendel soam totalmente distintas em relação aos padrões já dantes encontrados nesses gêneros. Neste álbum acima, mais uma vez Sam Gendel se junta à sua parceira, a artista visual e cineasta Marcella Cytrynowicz, para criar 13 peças baseadas em 13 ilustrações compostas por inanimadas figuras coloridas entremeadas na capa e no encarte do álbum. Dessa forma, a arte de Marcella Cytrynowicz funciona como uma espécie de partitura gráfica a guiar a inspiração espontânea de Gendel, que tenta viajar entremeado por entre as frestas dessas figuras para captar musicalmente seus contornos e cores. As peças soam curiosamente disformes, mas as sonoridades sintéticas atraem. Gendel usa seu sax-alto de forma sintetizada e também usa um distinto sintetizador Suzuki Waraku III, entre outros recursos.
★★★★ - Palm Sweat: Marc Ducret Plays the Music of Tim Berne (Screwgun, 2023).
Tim Berne é um dos músicos da nossa contemporaneidade que, nascido do avant-garde e sendo uma das figuras centrais do cenário Downtown de N.Y.C, construiu e continua a construir uma obra repleta de peças intricadas dotadas de fraseios únicos, linhas harmolódicas angulares, timbres cheios de arranhaduras punk-psicodélicas e cheios de contrapontos farpados. Pode-se dizer, aliás, que Tim Berne é um dos ases do que nas últimas décadas se cogitou a chamar de "modern creative", que é um novo jazz que parte da liberdade da "forma livre", do free jazz propriamente dito, mas o faz dentro de certas estruturas de organização e composição elaboradas. Fato é que essas peças composicionalmente estruturadas são dotadas de efeitos de contrapontos e sobreposições atonais e assíncronas que soam tão outsider quanto o resultado das interações em peças que são livremente improvisadas sem nenhum arcabouço composicional. Mas, o fato concreto é que essa direção composicional em "estruturar o caos" representou, nas últimas décadas, uma evolução inconteste a influenciar o contínuo desenvolvimento idiomático do jazz contemporâneo. Pode-se considerar que Tim Berne é, ele próprio, o músico que fez a concepção harmolódica de Ornette Coleman evoluir para patamares ainda mais avançados, considerando que, no meio dessa evolução, outros traços —— próprios e adquiridos —— também foram incorporados em sua linguagem pessoal no decorrer destes anos todos: além de Ornette Coleman, influências como Julius Hemphill, John Zorn, Roscoe Mitchel, Anthony Braxon e suas próprias idiossincrasias são ingredientes listados pelo músico quando ele tenta explicar seu estilo em entrevistas. A partir daí, Tim Berne forjou estruturas composicionais próprias, adquiriu uma sonoridade incomparável, bem como forjou um estilo próprio de criar frases intrincadas e distorcidas, traços esses que o credenciam a atualmente ser um dos músicos mais influentes e originais do jazz contemporâneo. E este álbum acima atesta isso. Neste álbum, temos ninguém menos que o guitarrista Marc Ducret, ele próprio um dos responsáveis pela sonoridade punk-psicodélica em muitos álbuns de Berne, dando sua versão para algumas peças desse importante sax-altoísta e compositor da nossa contemporaneidade. E Ducret deixa claro que, por mais que tenha tido contato constante com as peças de Berne nos últimos trinta anos, houve muitos desafios em lidar com esse material: houve tanto um desafio natural em esmiuçar os traços idiossincráticos dessas peças, bem como houve o desafio de trabalhar esse material único à sua maneira e sem deixar de enaltecer os traços característicos de Berne, muitas das vezes tendo que ir gravando os arranjos por partes, de forma quebradiça, para depois juntá-los como num quebra-cabeça. Marc Ducret explora essas peças com uma pá de guitarras hiper eletrificadas, deixando bem saliente sua psicodelia idiossincrática, e também fazendo o uso entremeado de timbres de guitarras acústicas, contrabaixos fretless e outras cordas dedilhadas, além de daxophone, palmas, percussões (daf turco, correntes e etc) e também contando com um ensemble formado por trompete, flugelhorn, tuba, flauta, trombone e cello em algumas peças.
★★★★ - Art Hirahara - Verdant Valley (Posi-Tone Records, 2022).
Aqui temos um quarteto de peso, uma banda de grande expressão no âmbito do neo-bop e post-bop contemporâneo. O pianista Art Hirahara, uma das pratas da Posi-Tone Records, segue revezando-se nesses últimos anos entre álbuns com piano solo, piano-trio e quarteto: seu piano-trio é formado sempre com contrabaixistas excepcionais tais como Linda May Han Oh e Boris Kozlov e quase sempre com o versátil baterista Rudy Royston, aos quais se juntam saxtenoristas de peso tais como Melissa Aldana e Donny McCaslin para formar este seu quarteto regular —— músicos, de fato, excepcionais! Neste álbum acima, Art Hirahara e seu quarteto explora um range que vai do straigt-ahead mais purista —— marcado pelo convencional walking bass em 4/4 —— aos grooves em métricas ímpares, da balada mais melodiosa às rítmicas brasileiras em 2/4 inflexionadas à maneira do post-bop americano, do neo-bop mais idiomático aos tons mais líricos e paisagísticos. No geral, Art Hirahara adota tons mais líricos e paisagísticos na composição deste álbum, com melodias e harmonias dotadas de cores frescas e cristalinas em linhas de improvisos claros e bem ponteados. Mas há, também, outros momentos onde o pianista e seu quarteto adotam tons, timbres e levadas rítmicas variadas: como no tema "Sphere Of The Muses", onde ele faz uso da ambiência de um órgão Hammond B3; como também no tema "Escherian Steps", onde atestamos a fluência dos músicos sob as formas de um ligeiro neo-bop; bem como na última faixa, "I Used To Love Her", onde o saxofonista Donny McCaslin deixa seu sax-tenor de lado para explorar a doce melodia de uma flauta. Art Hirahara nos traz, neste álbum acima, um ótimo exemplo de como o jazz atual tem inflexionado elementos como o swing, a finesse harmônica e a beleza melódica das baladas em linhas amalgamadas de improvisos e em tons de frescor contemporâneo.
★★★★ - Mario Laginha - Jangada (Edition Records, 2022).
Há uns anos atrás, Mario Laginha gravou um excelente dueto de pianos com o pianista brasileiro André Mehmari, vide o álbum André Mehmari e Mario Laginha ao Vivo no Auditório Ibirapuera: e foi aí que tive contato mais próximo com o dedilhado do gajo. O melodismo de Mehmari deve ter influenciado um tanto o gajo, e vice-versa. Mario Laginha é um dos maiores pianistas portugueses e agora, mais recentemente, ele vem sendo lançado pelo requintado selo britânico Edition Records. Neste álbum acima, Laginha e seu piano são acompanhados pelo contrabaixista Bernardo Moreira e pelo baterista Alexandre Frazão em uma saga de aventuras que vai de impressionistas baladas bem melodiosas até improvisos livres mais abstratos, passando por temas desenvolvidos sob improvisos mais ritmados ambientados no neo-bop e post-bop contemporâneo. Laginha e seu trio, aliás, mostram uma excelente fluência na linguagem bop, alçando voos sincronizados que são verdadeiramente aventurosos, como bem se pode atestar na peça "Disquiet", quarta faixa do álbum. Mas as temáticas reveladas nos títulos e nas intenções melódico-rítmico-harmônicas em todo o compêndio do álbum revelam uma inspiração claramente fincada na fluidez com que vários estilos implicitamente se desaguam numa só amálgama contemporânea, como rios de diferentes trópicos que se desaguam em um mar amalgamado de melodias, harmonias e ritmos: é como se Laginha e seu trio, então, fizessem uma jangada para explorar esses afluentes e esse mar de possibilidades. Ao todo temos um conjunto de onze faixas originais nas quais o ouvinte imergirá da balada mais impressionista e meditativa até os improvisos mais viscerais: vide, por exemplo, a faixa "The Stone Raft (A jangada de pedra)", uma peça de 17 minutos composta na forma de uma suíte em quatro partes (Lowlands, Raft, Crossroads, South), que vai do desenvolvimento de um tema lírico até o livre improviso. Com uma capa de ilustração tribal, este álbum traz, então, intersecções e encontros de várias influências implícitas na organicidade com a qual o pianista português e seu trio abordam todo o range do jazz contemporâneo, incluindo ao meio um encontro fluído com as influências da música erudita e da música africana, bem como com as paletas melódicas advindas do fado, das cantigas portuguesas e das melodias brasileiras, tendo até alguma pitada de canção pop aqui e ali..., tudo muito bem trabalhado melódica e harmonicamente. Em tempo, um dos melhores álbuns de 2022!
★★★★ - Binker & Moses - Feeding the Machine (Gearbox Records, 2022).
Este foi um dos ótimos álbuns que nos passou despercebido aqui no Instrumental Verves em 2022. O registro foi captado em janeiro de 2022 pela dupla Binker Golding e Moses Boyd, uma dupla de saxofone e bateria da cena londrina: ambos os músicos são ambientados no free jazz, mas são influenciados, também, pelos cenários dub e clubber de Londres, incluindo em suas abordagens elementos de estilos tais como o grime, o hip hop, os vários estilos de música eletrônica e os vários estilos de jazz, abordando um range que vai dos estilos convencionais ao livre improviso mais abstrato. Junto a Binker Golding (saxofones) e Moses Boyd (bateria) achega-se Max Luthert (loops de fita magnética e efeitos eletrônicos) para gravar, então, este "Feeding The Machine", que é o primeiro álbum de estúdio da dupla em cinco anos. Gravado no Real World Studios de Peter Gabriel pelo lendário produtor Hugh Padgham —— várias vezes vencedor do GRAMMY em produções com Sting, The Police e Phill Collins ——, o novo disco apresenta uma intersecção de estilos que vai do jazz —— em suas formas variadas e livres —— aos territórios eletrônicos experimentais. Para tanto, além dos saxofones e da bateria, os músicos usam sintetizadores modulares e samples, evidenciando um rico mosaico de interligadas possibilidades estilísticas.
★★★★¹/2 - Tomas Fujiwara & Triple Double - March & March On (Firehouse 12, 22/ 23)
Uma das principais inovações do jazz contemporâneo no âmbito do que pode-se chamar de "modern creative" —— uma corrente contemporânea do avant-jazz que faz uso de elementos do free jazz e improvisação livre dentro de certas estruturas elaboradas de organização e composição, com influencias da música erudita moderna, entre outras influências... —— é o fato de se prezar por bandas com combinações e formações instrumentais diferentes dos padrões de trios-quartetos-quintetos-sextetos-septetos estabelecidos pelo jazz moderno. Essa diretriz já começa a se variabilizar desde os anos de 1960 —— quando Cecil Taylor e John Coltrane usaram formações inusuais com dois contrabaixos em suas bandas e ensembles —— e passou a ser ainda mais corriqueira com as bandas e ensembles formados por figuras do movimento "creative black music" da AACM, tais como Anthony Braxton e Henry Threadgill, dois gênios que expandiram enormemente as possibilidades composicionais do âmbito do avant-garde jazz. É nessa diretriz que se ambienta ocompositor e baterista Tomas Fujiwara, outra figura onipresente do Brooklyn. Fazendo parte de várias das mais importantes bandas e dos mais inovadores ensembles de Nova Iorque —— ao lado de figuras tais como Taylor Ho Bynum, Mary Halvorson, Matana Roberts, Nicole Mitchell, Tomeka Reid, o próprio Anthony Braxton, John Zorn, Michael Formanek e etc ——, Tomas Fujiwara é considerado um baterista de equilíbrio único, sendo dotado de um amplo arsenal de recursos improvisacionais e composicionais sem soar por demais incompreensível: sua bateria é mais textural do que explosiva e tende a preencher e fundir-se perfeitamente aos contornos da composição, sempre com rítmicas que podem ser livremente improvisadas, sim, mas sempre oferecendo contrapontos que preenchem bem os espaços em cada peça. Para os ouvintes ambientados em jazz contemporâneo, essa destreza improvisacional e composicional de Fujiwara já pôde ser ouvida, por exemplo, nos álbuns do trio-coletivo Thumbscrew, com a guitarrista Mary Halvorson e o contrabaixista Michael Formanek. Mas essa sua banda Triple Double (com Gerald Cleaver, Mary Halvorson, Brandon Seabrook, Ralph Alessi e Taylor Ho Bynum), um double trio inusitado, também é um ensemble que agora se torna um dos notórios ases do jazz atual.
Com essa banda, pois, Tomas Fujiwara faz uso de uma inusual combinação de sexteto com duas baterias (fazendo dupla com Gerald Cleaver), duas guitarras (com Mary Halvorson e Brandon Seabrook) e dois trompetes (com Ralph Alessi e Taylor Ho Bynum), oferecendo ao ouvinte de ouvidos aventureiros novas possibilidades interacionais e novas cores timbrísticas. Estes dois referidos álbuns acima, lançados nos meses de março de 2022 e 2023, são o segundo e terceiro álbuns de Fujiwara com o Triple Double. O primeiro tento foi gravado em 2017: vide o homônimo Triple Double (Firehouse 12 Records). Esse segundo álbum alça voos mais freejazzísticos, com a improvisação sendo mais preponderante do que a composição em si: trata-se de um conjunto de sete peças que variam entre quatro a 8 minutos, onde as dinâmicas, improvisos e efeitos incluem os ruídos ultra eletrificados das guitarras, baterias ensandecidas e trompetes rasantes, e na última faixa há uma peça protagonizada apenas pelas duas baterias em explorações de contrastes rítmicos e timbrísticos. Já no terceiro álbum o baterista e sua banda evoluem para uma maior sofisticação composicional, com o livre improviso sendo abordado mais como uma ferramenta dentro de um certo senso de organização mais apurado: esse terceiro álbum é constituído de três breves peças protagonizadas por duplas, pelas três duplas (de guitarras, trompetes e baterias), sendo que essas peças breves funcionam como espécies de prelúdio, interlúdio e pósludio a contornar a peça central de 31 minutos chamada "March On". Em termos de temáticas, esses dois álbuns baseiam-se nas marchas de protestos que ocorreram entre os anos de 2020 e 2022 em decorrência do movimento Black Lives Matter, com o primeiro se inspirando mais na revolta e na inquietude popular e o segundo sendo uma espécie de consciência no sentido de que devemos seguir em frente, pois "a vida e a luta continuam". Acima, relaciono e indico ao ouvinte-leitor esses dois álbuns de Tomas Fujiwara e seu Double Triple como um projeto uno, que devem ser ouvidos um sequencialmente ao outro —— como de fato o é! Para além da alta qualidade do plantel de músicos, o compêndio é totalmente merecedor da atenção do fã de jazz contemporâneo mais apegado a esse conceito "modern creative" de livre improvisação inserida dentro de estruturas composicionais incomuns
★★★★ - Devin Gray - Most Definitely (Rataplan Records, 2023).
O baterista americano Devin Gray, proprietário do selo Rataplan Records e uma das figuras onipresentes do cenário do Brooklyn, lançou neste ano de 2023 o interessantíssimo álbum de bateria a solo, sem acompanhamento. Só para se ter uma ideia do nível no qual o baterista transita, vale lembrar que nos álbuns anteriores, lançados pela Rataplan, Devin Gray esteve ao lado de alguns dos maiores músicos do post-bop e avant-garde jazz nova-iorquino tais como o saxofonista Ellery Eskelin, os trompetistas Dave Ballou e Ralph Alessi, a pianista Angelica Sanchez e o contrabaixista Michael Formanek, entre outros. Agora num projeto a solo, Devin Gray dá um tratamento improvisacional mais do que especial para seu drum kit, no qual o detalhismo de possibilidades rítmicas, timbrísticas e até texturais passam a ser evidenciados com esmero a cada faixa, de forma que nenhuma peça soa igual à outra peça anterior. É possível dar um tratamento timbrístico e textural mais especial à bateria acima das abordagens e níveis rítmicos aos quais estamos acostumados? Resposta: sim é possível, e os bateristas mais experientes do jazz moderno e, agora, os bateristas mais aventureiros do jazz contemporâneo, todos eles buscaram e buscam abordagens nas quais a bateria não apenas soe como um instrumento rítmico, mas também como um motor de texturas e cintilâncias melódicas. Gray conta que, de certa forma, este projeto levou cerca de 40 anos para ser elaborado, abordando aspectos e influências de toda sua vida. Mas Gray deixa claro que, como já insinuado, esse detalhismo não está relacionado a explorar estruturas rítmicas convencionais ou padrões rítmicos tradicionais. Quer dizer: ele até se inspira em alguns padrões aqui e ali, mas sempre os inflexiona de forma idiossincrática e imaginativa. Seu detalhismo de ideias e possibilidades está situado, mesmo, em estruturas fora do senso comum, está situado pura e simplesmente na sua própria "zona mágica meditativa" com a qual ele aborda a arte da improvisação livre, uma zona da sua subjetividade que ele acessou tantas vezes quanto possível durante as mais de 6 horas de gravação desse registro, tentando obter "resultados de levitação" que o levasse para longe do senso rítmico comum.
Interessante também é a amplitude da visão humanista que o baterista deixa explícito nas liner notes do álbum no Bandcamp: ele relaciona os vários olhares que as pessoas podem ter em relação aos aspectos da vida e as várias formas das pessoas se comunicar e compartilhar conhecimento com a arte da música e com a escuta musical, de forma que não estaríamos num mundo tão desastroso e desigual se as pessoas, assim como é possível educarem seus ouvidos para ouvir diferentes detalhes de uma peça musical, ouvissem mais atentamente umas às outras para entender e respeitar suas as diferenças e complexidades. É parafraseando a amplitude desse entendimento humanista que o baterista usa seus 40 anos de experiencia para abordar toda a amplitude de possibilidades que sua bateria possa emitir ao entrar nessa sua "zona mágica meditativa". Para registrar este projeto, Gray fez uma lista minuciosa dos componentes que imaginava explorar e experimentar, bem como também listou alguns ritmos e abordagens a partir dos quais ele iniciaria algumas trilhas rumo ao desconhecido, criando, a partir daí, peças curtas de livre improvisação onde cada uma delas fossem revelando detalhes variados: tais como os trejeitos de Max Roach, uma certa vibe punk-thrash, interface com recursos eletrônicos, uso variado de pincéis, texturas novas e ruídos curiosos, solos quase silenciosos usando apenas dedos e mãos, algo no estilo binaural ASMR (abordagem experimental de ruídos em todo o drum kit), explorações de rufos abertos e intensos na tarola, solos explorando apenas os mallets, explorações incomuns de blocos de madeiras, explorações incomuns das baquetas nos pratos, solos apenas de pratos, uso de objetos acoplados ao drum kit e etc... Devin Gray ainda salienta que esse seu entendimento de amplitude humanista e artística não seria possível sem as trilhas deixadas pelos grandes mestres da bateria e por seus colegas bateristas contemporâneos que o influenciam tais como Milford Graves, Ronald Shannon Jackson, Marilyn Mazur, Ed Blackwell, Baby Dodds, Nasheet Waits, Evelyn Glennie, Gerald Cleaver, Gerry Hemingway, Dave King, Eli Kessler, Jamire Williams, Dan Weiss, Ches Smith, Michael Zerang, Max Jaffee, Jason Nazary, Booker Stardrum, Warren Smith, Pierre Favre, Susie Ibarra e Tatsuta Nakatani, entre outros muitos. Ao todo são 23 peças, sendo 22 peças curtas e um mais extensa, de quase 19 minutos. Para nós, ouvintes afeitos a sons e ruídos, é um grande exercício de escuta!
★★★★ - Joe Acheson & Hidden Orchestra - To Dream Is to Forget (2023).
A Hidden Orchestra é um projeto de orquestra imaginária tocada por uma banda de músicos reais. O projeto é liderado pelo pianista, multi-instrumentista, compositor, DJ e produtor do Reino Unido Joe Acheson. Fascinado pela sonoplastia e pelo conceito contemporâneo de sound design, Acheson utiliza uma gama de possibilidades nas tratativas e edições dos sons gravados e pré gravados. Como bem salientado em trabalhos anteriores, Acheson utiliza-se muito de sons pré gravados em pesquisas de campo —— sejas ruídos urbanos ou sons da natureza, bem como sons previamente produzidos em amostragens eletrônicas —— para dar vida à um sound design arrojado e inovador, assim como faz uso de recursos de Inteligência Artificial (IA) para compor suas paletas e trilhas sonoras. O interessante de Acheson é que ele sustenta a nobre premissa de, muitas vezes, "criar música eletrônica com meios acústicos" ou "criar música acústica com meios eletrônicos", sempre salientando o som quente, natural, orgânico e elegante dos instrumentos acústicos, inclusive usando instrumentos acústicos não convencionais para criar combinações de timbres inovadoras. É a premissa que rege as peças dispostas neste álbum acima. Para as gravações deste álbum, Joe Acheson toca instrumentos como piano, contrabaixo, cítaras, synths analógicos, dulcimer, tambor HAPI, glockenchimes, uma espécie de harpa que ele chama de egg-slicer harp, gravações coletadas em pesquisas de campo, pratos e fagote. Para rechear sua orquestra imaginária ele também escala outros colaboradores tais como Jamie Graham (bateria), Tim Lane (bateria), Poppy Ackroyd (violino), Jack McNeill (clarinete) e Rebecca Knight (violoncelo) e George Gillespie (fujara eslovaca). O título do álbum foi tirado de um poema do poeta português Fernando Pessoa: "No one tires of dreaming, because to dream is to forget, and forgetting does not weigh on us, it is a dreamless sleep throughout which we remain awake" —— é como diz os versos. O álbum foi lançado pelo recém-formado selo Lone Figures de propriedade do próprio Joe Acheson.
★★★★ - Gerald Cleaver, Kevin Ray, Scott Robinson & Matthew Shipp - East Axis -
No Subject (Mack Avenue Records, 2023).
Atenção para este quarteto chamado East Axis. Formado por Gerald Cleaver (bateria), Kevin Ray (contrabaixo), Scott Robinson (sax e sopros) e Matthew Shipp (piano), o quarteto chega agora neste seu segundo álbum, No Subject, lançado pela Mack Avenue Music. Anteriormente, no período pandêmico, eles lançaram o álbum Cool With That, pela ESP Disk: na ocasião o quarteto também contava Shipp, Cleaver e Ray, mas nos saxofones quem atuou foi Allen Lowe. Trata-se de um quarteto ancorado na arte da improvisação livre onde o único intuito é se reunir para criar as peças ao vivo, no real momento da performance, sem pré-elaborações, uma forma de arte que tem sido bem absorvida pelo público de ouvidos aventureiros. Porém, o que torna o encontro desses músicos um acontecimento nobre e distinto é a mistura dos elementos que, na hora da performance, emana subconscientemente das suas experiências pessoais há décadas destiladas. Uma frase do baterista Gerald Cleaver chama a atenção e, se ele estiver certo, resolveria um tanto do problema conceitual que envolve a definição contemporânea da arte do livre improviso nos meandros do free jazz: "My take on free jazz is that it’s not free at all, rather (in my mind) many, many contexts and frames of reference held at once". Sendo assim, a forma que esse quarteto atua não pode ser resumida apenas pelo fato de se juntarem quatro instrumentistas para improvisar notas livres, a esmo, de forma inexplicavelmente abstrata... —— como bem se ancorou, anarquicamente, muitos trios e quartetos de free jazz desde os anos de 1960 em diante. Mas deve ser entendida como uma arte onde cada músico é livre para contribuir —— improvisacional ou composicionalmente —— com suas experiências já sedimentadas e destiladas há anos nas estradas do jazz e da música improvisada, com o quarteto sendo um condensador de cores, frases, formas, elementos advindos tanto do jazz como da música erudita, elementos advindos de outros gêneros... Ou seja, quaisquer elementos de quaisquer gêneros que cada músico, ali na hora da performance, ache necessário agregar à improvisação coletiva passa a ser um recurso válido. Esse conceito de liberdade ainda mais amplo, que se expande para além daquele free jazz primeiro que queria deformar e/ou libertar o jazz ante as formas do swing e do bebop, é muito interessante e parece concernir com o conceito de liberdade mais atual em termos de música improvisada!
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