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Ethan Iverson - Fase Blue Note: o jazz em 360º numa confluência de inspirações, elementos idiomáticos & pop songs


O último álbum do pianista Ethan Iverson, ex-membro do célebre The Bad Plus —— piano-trio que nos anos 2000 e 2010 uniu pop, rock, jazz e avant-garde com tanto aprimoramento quanto jovialidade ——, já é o segundo tento pela Blue Note e evoca a feliz sensação de não apontar para direção alguma. Sim e essa parece ser mesmo a ideia: não apontar para nenhuma direção cristalizada. Anunciado já quase na queima de fogos do findar de 2023 e lançado agora já neste início de 2024, o álbum chama-se modestamente "Technically Acceptable" e é um continuum expandido do tento anterior, intitulado Every Note Is True (Blue Note, 2022). A expansão, em si, é singela e não pretende lançar nenhum vulto ou avulto de radicalização ou inovação na time line do jazz, como Iverson fez com o explosivo The Bad Plus nos anos 2000. Mas traz resquícios dos seus tempos com o The Bad Plus e imerge-se numa confluência com diversas outras inspirações, sendo um exemplo contumaz do quão variavelmente eclético traja-se o jazz deste início de século 21, sem que, para tanto, haja perda de essência e organicidade. A tradição do jazz, inclusive, é uma sólida base ante aos outros diversos sedimentos que inspiram Iverson: não por acaso, ele se inspira no saudoso Jaki Byard (1922-1999), eclético pianista que conseguiu unir, em seus registros e álbuns lançados a partir dos anos de 1960, tradição com avant-garde, modernismo erudito com releituras de pop songs, blues e stride piano com improvisos livres. Ao incorporar essa diretriz eclética de não se cristalizar em nenhuma direção efetiva, Iverson praticamente circunda um amplo alcance intergêneros de 360 graus numa circunferência em que seu jazz possa amalgamar diversas inspirações. Enquanto o primeiro álbum, Every Note Is True, é uma reunião de canções e temas recheados de motivos melódicos, tendo sido destilado no solitário divã da pandemia entre 2020 e 2021, o álbum Technically Acceptable é praticamente um aviso de que a vida agora continua a partir de uma confluência de inspirações, formas, elementos, canções e resquícios idiomáticos. E esses anos pandêmicos provocaram mesmo esse processo de aprofundamento de temáticas, reflexões e inspirações em muitos músicos. Não foram poucos os instrumentistas que, na tentativa de preencher a ociosidade do lockdown, recorreram a canções e a temas de alentos mais melódicos, bem como a uma maior flexibilidade e/ou um maior aprofundamento em seu conhecimento e reconhecimento da história e tradição, talvez numa tentativa de desacelerar os ânimos —— de conter a ansiedade e o pânico desses tempos distópicos  —— e de estabelecer um novo ponto de partida para suas carreiras. Quem acompanha a carreira de Ethan Iverson, aliás, já deve ter percebido que o pianista vem passando por um processo semelhante desde os tempos do seu desligamento do trio The Bad Plus.
   
É em 2017, então, que o The Bad Plus anuncia que Ethan Iverson estaria deixando o banda permanentemente. Iverson agora dedicaria seus esforços em seus projetos, a começar pela sua contratação, em 2016, junto ao corpo docente do New England Conservatory. Essa nova fase como professor também comungava com seu interesse em se aprofundar cada vez mais no ofício de pesquisador dos fundamentos do jazz e numa nova imersão nos estudos da composição erudita. Desde 2004, Iverson também mantinha seu blog DO THE M@TH, e esse veículo de comunicação se manteve importante no expressar das suas observâncias sobre os clássicos —— muitas vezes expondo pontos de vistas um tanto clínicos e cirúrgicos, outras vezes resgatando verdadeiras pérolas esquecidas... —— e para que ele publicasse, então, resenhas, opiniões, artigos e entrevistas: nesse seu blog, além dos artigos e resenhas, há mais de 40 entrevistas com figuras importantíssimas do jazz e da música erudita tais como Django Bates, Gavin Briars, George Walker, Carla Bley, Wynton Marsalis, Jason Moran, Keith Jarret, Stanley Crouch, Tim Berne, Oliver Lake e Bill Frisell. Além da sua atuação como pianista e professor, Ethan Iverson agora emergia, pois, como uma nova e interessante voz enquanto escritor e crítico de música, sendo requisitado para participar de palestras, conversações e congressos, e publicando seus textos em diversos jornais, plataformas e magazines como The New Yorker, NPR e The Nation. Paralelamente, Iverson já vinha se conectando ainda mais com os mestres veteranos e com outros músicos da sua geração que trafegavam pelas trilhas do post-bop e neo-bop, também passando pelos estúdios de importantes gravadoras como a HighNote, a Sunnyside e a Criss Cross Records, e tocando e gravando com mestres como Billy Hart, Lee Konitz, Ron Carter e Albert 'Tootie' Heath. São dessa estirpe os álbuns: Costumes Are Mandatory (HighNote, 2012), onde ele atua com Larry Grenadier (contrabaixo) e Jorge Rossy (bateria), e conta com a participação especial do mestre Lee Konitz (sax alto); e The Purity of the Turf (Criss Cross, 2016), onde ele está em trio com Ron Carter (contrabaixo) e Nasheet Waits (bateria). Em 2017, o célebre produtor alemão Manfred Eicher também o convida para os estúdios da ECM e a empreitada resulta em dois requintados álbuns: Temporary Kings, projeto autoral lançado em duo com o saxtenorista Mark Turner; e Common Practice, projeto de releituras lançado em quarteto com Tom Harrell (trompete), Ben Street (contrabaixo) e Eric McPherson (bateria). Essa fase também gestou seu ousado projeto orquestral Bud Powell in the 21st Century (Sunnyside, 2018), uma leitura contemporânea do legado do grande Bud Powell, mestre que sofisticou a aplicação do piano dentro da linguagem do bebop.

★★★¹/2 - Ethan Iverson - Every Note Is True (Blue Note Records, 2022). 
Essa trajetória pessoal de Ethan Iverson pelo professorado, pela escrita, pela crítica musical e pelos estudos e pesquisas dos clássicos, influenciou enormemente no seu processo de maturação e na homogeneidade dessa sua fase atual que agora apresenta um síntese mais holística do jazz. Sua conexão com os mestres pelas trilhas do post-bop e do straight-ahead —— trilhas pelas quais paralelamente ele já começava a se interessar mesmo na época das intensas turnês com o The Bad Plus, que vinha evidenciando aquela revolucionaria mistura de jazz e avant-garde com pop e rock ——, sedimentou muito do aprofundamento e da essência que hoje ele nos apresenta nesses dois espécimes sonoros lançados pela Blue Note. Nas notas do site da Blue Note sobre o álbum "Every Note Is True" está dito o seguinte: "... com um trio magistral com o contrabaixista Larry Grenadier e o lendário baterista Jack DeJohnette, este álbum é uma oportunidade para Iverson olhar para trás e expandir sua própria história musical enquanto revisita o estilo de jazz influenciado pelo pop/rock do The Bad Plus, o influente trio que o pianista co-fundou em 2000". Mas agora Iverson vai além da mera revisitação, pois ele consegue diluir inúmeros outros elementos temáticos e estéticos dentro do seu estilo ecleticista, alcançando uma homogeneidade essencialmente pós-moderna. Indo além de outros pianistas da sua geração, Ethan Iverson segue destilando, então, um estilo pessoal onde o jazz tenha uma visão de 360 graus ante aos seus limites estéticos com outros gêneros: ele faz uso de vocais, canto coral, standards, baladas, blues, canções do pop e do rock, se inspira no post-bop, usa reminiscências do avant-garde, música erudita... tudo é válido e tudo isso é diluído na sua atual concepção. O que Iverson tem nos mostrado, então, é um encontro da sua maturação adquirida dentro da finesse do straigt-ahead —— depois de muitos anos de experiência tocando com mestres, veteranos e pioneiros adeptos da tradição do jazz —— com resquícios da marcante liga juvenil que deu substância ao explosivo The Bad Plus nos anos 2000. O fato é que Iverson agora amalgama essas influências de forma suavemente diluída para não deixar arestas e para não mais provocar os arroubos que ele provocava com o The Bad Plus. E chega a ser surpreendente como que o pianista atua com esse eclético alcance de 360 graus de forma tão equilibrada, singela e bem polida. Ademais, nem é preciso frisar que a aposta da Blue Note em Iverson foi uma ótima escolha de um nome forte para enriquecer seu plantel. Todos sabemos que essa importante gravadora de jazz —— vendida em 1965, desativada nos 70, reativada em 1985 e diversas vezes envolvida em transações com majors como Liberty Records, United Artists, EMI, Capitol e Universal Music Group —— perdeu muito daquele seu protagonismo dos anos 40, 50 e 60 ante aos inúmeros selos e gravadoras independentes que surgiram nas últimas décadas. Mas nesses últimos tempos a Blue Note, capitaneada pelo músico e produtor Don Was, tem agido ativamente para enriquecer seu plantel com músicos de primeira linha do jazz contemporâneo. Que Ethan Iverson possa, então, fazer história dentro da gravadora!

★★★ - Ethan Iverson - Technically Acceptable (Blue Note Records, 2024).
Se o álbum Every Note Is True (2022) é preponderantemente calcado em canções, começando com o penetrante cântico "The More It Changes" entoado por um coral de 44 vozes com adultos e crianças e seguindo com temas destilados por tons irônicos e singelas linhas melódicas que amalgamam temáticas e melodismos de baladas pop, blues, estórias nonsenses e hinos americanos, tudo isso como uma forma autoral de responder aquela fase pandêmica, já neste álbum acima Technically Acceptable Iverson foca menos na forma-canção para evocar uma ecleticidade mais arraigada com inflexões levemente mais abstratas. Como já foi dito, podemos entender este álbum acima como um continuum autoral onde Ethan Iverson amalgama inspirações advindas de várias direções num círculo holístico de 360 graus antes aos limites do jazz. Um ponto de partida são as inspirações advindas do icônico pianista Jaki Byard (1922-1999), que podia ir do stride piano e da mais doce balada à mais abstrata livre improvisação freejazzística. Outras inspirações advém dos tempos do The Bad Plus, que explorou a densidade e energia do pop e rock imerso num certo avant-garde dentro de um piano-trio de jazz. E outro ramo de influência é a composição erudita e o toque pianístico clássico. Ethan Iverson amalgama e destila tudo isso a partir de um post-bop agora mais maduro e homogêneo. De forma singela e praticamente diluída, Iverson vai de uma leitura modernista da canção soul-pop "Killing Me Softly With His Song" de Roberta Flack até sua Primeira Sonata para Piano, passando por blues trabalhados de forma mais abstrata nas faixas "Victory is Assured" e "It's Fine To Decline", passando por uma leitura modernista do standard "Round Midnight?" (de Thelonious Monk) com o timbre penetrante de um teremim, e indo até o ludismo de faixas como "Conundrum", na qual o compositor se inspira em um "game show imaginário", e "Killing Me Softly", baseada num balé produzido pelo Mark Morris Dance Group com arranjos criados pelo próprio Iverson com base em temas e canções de Burt Bacharach e Hal David. A maioria dessas faixas são exploradas no formato de piano-trio com os contrabaixistas Simón Wilson e Thomas Morgan e os bateristas Kush Abadey e Vinnie Sperrazza se revezando. Apenas a faixa "Round Midnight?" se destoa por apresentar um duo com Iverson ao piano sendo acompanhado pelo penetrante teremim do seu amigo Rob Schwimmer —— teremim que foi um dos primeiros instrumentos eletrônicos usados pela vanguarda erudita do início do século 20. E, então, o álbum finaliza com Iverson interpretando sua Primeira Sonata para piano solo em três movimentos, peça elaborada sob a amálgama do idioma erudito com o idioma do piano jazz, com citações, elementos e inspirações advindos tanto de compositores eruditos americanos como de pianistas legendários do jazz, incluindo resquícios do stride, swing e bebop. Com um título modesto onde Iverson se diz um pianista "tecnicamente aceitável", este álbum funciona então como uma síntese e um passeio pela sua trajetória eclética. Como pudemos atestar, o pianista agora atinge uma maturidade onde os vultos e avultos enérgicos dos seus tempos com o The Bad Plus são destilados em temas e peças mais singelas e homogêneas onde elementos do pop e rock, do post-bop, da tradição do jazz e da composição erudita são misturados sem as radicais arestas de outrora. Por outro lado, ao mergulharmos nas inspirações e no detalhismo desse seu tom singelo, verificamos que esse pós-moderno alcance holístico em 360 graus que o pianista dá para sua obra não deixa de ser um conceito ousado e inovador dentro da time line do jazz contemporâneo.





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