A verdade, contudo, é que a musicalidade de Mary Halvorson sempre evidenciou uma visão ampla no horizonte da música como um todo, e -- apesar de trazer a paixão pelo ruido e pela experimentação em seu âmago -- ela não raramente evidencia uma intrigante delicadeza na forma como experimenta, cria e manipula em torno da sua free music e ruidosidades afins: ela inicia se inspirando no free jazz conceitual e erudito de Anthony Braxton; faz parte da trupe de jovens improvisadores que se inspiram no rock e folk mais "indies" e alternativos; passa a evidenciar suas próprias ideias composicionais mais complexas e elaboradas; desenvolve uma sonoridade singular e uma determinada linguagem própria na forma como manipula o material escrito junto aos improvisos livres; e, com esse seu estilo próprio, agora segue conquistando o público e a crítica com álbuns mais composicionais e ao mesmo tempo mais “acessíveis”, mais sedimentados, mais elásticos e ecléticos -- incluindo canções, releituras singelas e temas próprios com um alcance harmônico-melódico mais amplo e colorido. É com essa sequência bem reputada que a guitarrista chega em 2022 como a mais nova estrela a ser contratada pela gravadora Nonesuch Records, uma subsidiária da Warner Music Group. Caso mantenha sua música sendo distribuída por essa grande major do mercado fonográfico, Mary Halvorson alcança o que poucos instrumentistas singulares ligados ao jazz avant-garde conseguiram: criar uma linguagem própria a partir do espectro experimental, e estabelecer-se com essa linguagem em uma gravadora major de maiores tiragens e audiências -- algo que a Columbia Records não conseguiu com Tim Berne nos anos 80, também não conseguiu com David S. Ware nos anos 90, e a própria Nonesuch não conseguiu com John Zorn entre o final dos anos 80 e início dos anos 90, quando o saxofonista teve de se desligar da gravadora para manter seus conceitos e sua liberdade criativa. Quer dizer: agora, em plena terceira década do século 21, onde a livre improvisação já não é mais o "patinho feio" da música contemporânea, pode ser que a Nonesuch e Mary Halvorson consigam equilibrar melhor a relação entre música criativa e experimental com a viabilidade comercial necessária para se manter um contrato. Vamos torcer pra isso!

★★★★★
"Amaryllis" (for jazz sextet and strings) & "Belladona" (for guitar and strings)
Depois de passar por gravadoras e selos ambientados no jazz de verve underground -- tais como Firehouse 12, Thirsty Ear, Cuneiform Records, Tzadik e Intakt -- Mary Halvorson chega à Nonesuch Records logo com dois petardos que já seguem muito bem elogiados pela crítica: os álbuns Amarilis e Belladonna. Apesar de não mais soar tão rústica e tão ruidosa como antes, e conferir maior "elasticidade" ao seu estilo singular de compor e improvisar, podemos considerar que a música de Mary Halvorson segue irretocável, e agora alcança até uma maior sofisticação no colorido melódico-harmônico, nos ponteios rítmicos mais divertidos a que se propõe e nos arranjos, que aqui incluirá até um inédito uso de quarteto de cordas. Amarilis e Belladonna foram lançados recentemente em dois sets lists separados, mas trata-se um só par de registros complementares entre si. Amaryllis é uma suíte de seis peças interpretadas -- em desenvolvimentos e improvisos -- por um sexteto com Mary Halvorson (composição, arranjos, guitarra, efeitos), Patricia Brennan (vibrafone), Nick Dunston (baixo), Tomas Fujiwara (bateria), Jacob Garchik (trombone) e Adam O'Farrill (trompete). A primeira faixa "Night Shift" é um tema contraponteado numa irregular rítmica compassada em 10/8, com um riff que se repete e depois abre as portas para improvisos e acompanhamentos próximos a um post-bop mais polirrítmico, onde os contrapontos entre bateria e contrabaixo ditam a intrincância dessa rítmica inusual em 10/8 enquanto guitarra, trombone, trompete e vibrafone se delineiam entrelaçados em torno desse riff marcante. O álbum segue com "Anesthesia", que inicia de forma melódica até desembocar numa introspectiva livre improvisação de ruídos tênues antes de voltar a melodia principal. E depois temos a faixa-título, "Amaryllis", que nos faz lembrar do riff em rítmica 10/8 do tema que abre o álbum, mas agora segue de uma forma mais ligeira, com o contrabaixo iniciando sozinho o tema veloz e a bateria entrando em seguida com uma marcação rítmica mais próxima às rítmicas velozes do rock alternativo, enquanto os outros instrumentos mais ratificam o tema do que improvisam sobre ele. O álbum "Amaryllis" segue e termina com as três faixas onde o quarteto de cordas, Mivos Quartet (foto acima), entra em cena para encorpar os arranjos junto ao sexteto de jazz: nessas faixas, as rítmicas e contrapontos ainda são ratificados e os motivos harmônico-melódicos das três primeiras faixas ainda ecoam, mas a guitarra de Mary Halvorson tende a cumprir uma função mais harmônica com acordes, efeitos, ruídos e timbrísticas, e os arranjos tendem a trazer uma identificação mais próxima às peças eruditas pós-minimalistas que caracterizam a "new music" americana (também classificada como "indie classical music"), o que surte efeito numa amálgama -- de jazz misturado ao erudito -- não menos que interessante. Já o set list de Belladona é -- esse sim! -- totalmente ambientado numa escrita erudita e soa como uma peça de concerto para guitarra e quarteto de cordas. Belladona é, afinal, uma extensão em cinco partes desse projeto composicional, mas surpreende não apenas em termos da escrita erudita criativa e intrincada que Mary Halvorson revela, mas principalmente por sua atuação cheia de efeitos ao lado do Mivos Quartet.