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Entrevista com Romulo Alexis - Trompetista: uma experimentação que mistura estéticas e exorciza os preconceitos...

O trompetista, improvisador, pesquisador e artista multifacetado Romulo Alexis é mais um que se achega para um instigante bate-papo aqui no blog Instrumental Verves. Construindo visões e experiências próprias de grande relevância nos circuitos undergrounds em São Paulo, Bahia, Rio de Janeiro e outros locais do Brasil, Alexis se refere como um músico "(des)compositor", improvisador e performer, mas também atua como artista visual, produtor cultural, arte-educador e autor de trilhas sonoras em videoarte e cinema experimental. Desde 2008, Romulo Alexis estuda criação musical em tempo real e processos multidisciplinares em artes, sendo um dos principais músicos e agitadores culturais nas searas da livre improvisação e músicas experimentais afins. Assim, quem entra em contato com o universo particular de Alexis e seu duo Radio Diaspora, empreendido com o baterista e manipulador de eletrônicos Wagner Ramos  -- os quais já abordamos aqui no blog --, logo percebe um diálogo artístico muito interessante de ideias, poéticas, estéticas, signos e linguagens, ingredientes os quais enriquecem sua música, suas pesquisas e suas reflexões. Nos últimos tempos, Romulo Alexis e o Radio Diaspora tem empreendido diversas pesquisas e reflexões sobre as questões raciais e as diásporas africana e afro-brasileira, criando uma música impactante, provocativa e mais realista possível quanto aos signos e preconceitos que marcam -- implícita e explicitamente -- as relações raciais nos âmbitos sociais e culturais, incluindo nos próprios circuitos da música. Rômulo já colaborou com mais de 250 artistas nacionais e internacionais, incluindo participações como improvisador em festivais e mostras de música como ZJFT - Zomer Jazz Festival (Holanda 2011), FIME - Experimental Music Festival (SP 2015), Glanular Fest (Lisboa 2016), Novas Frequências (RJ 2016 e 2020), Llegamos ( Marselha 2018), KlangKeller ( Berlim 2018), Improfest Solstice (SP 2018), Digitália (Salvador 2019), CHIII (SP 2019), Dobra (RJ 2019), Dystopie Festival (Berlim 2020), Sesc Jazz (São Paulo 2021), Música Estranha (São Paulo 2022), entre outros. Em 2011, o trompetista foi um dos fundadores do Circuito Livre de Improvisação de São Paulo (por onde passaram mais de 150 músicos, brasileiros e estrangeiros), e desde então seguiu criando e dando vazão em projetos seus como o Membrana Experimental Fiat Lux (cinema e performance), o Radio Diaspora (free jazz e eletrônica) e o Máquina Vocal (improvisação coral sob regência). Abaixo, o trompetista expõe seus ricos pontos de vistas, suas pesquisas sonoras e nos felicita com uma pá de indicações:


Acompanho sua trajetória desde o início da década de 2010, quando começou a eclodir por aqui um cenário mais propício para o free jazz, música experimental, livre improvisação e etc. De lá para cá, quais os horizontes você tem explorado? 

RA: Saudações, Pitta. Primeiro agradeço o convite para esta troca que se iniciou lá em 2011 no workshop de Chefa Alonso no CCSP, que foi realmente um divisor de águas para a cena da música improvisada em São Paulo. Lá que nos conhecemos, e lá que conheci também Márcio Gibson, Rubens Akira, Luiz Galvão, Thiago Salas, Cadós Sanches, entre muitas outras pessoas com as quais desenvolvi e ainda hoje desenvolvo muitas das atividades às quais me dedico e que tratam quase que exclusivamente da criação musical em tempo real, ou seja, improvisação livre. Meu horizonte criativo segue especulando essas abordagens, que pra mim são inesgotáveis. Além do Radio Diaspora, meu duo com Wagner Ramos (sobre o qual vou falar mais adiante), eu tenho investigado as relações entre música e dança/performance com um coletivo que se chama Som & Movimento. Já desenvolvo essa investigação desde 2008, com a Membrana Fiat Lux, grupo experimental de performance colaborativa e audiovisual gerido por mim e pela artista Leila Monsegur, e também com o Díade desde 2017, duo que desenvolvo com a artista do corpo Thaís Ponzoni. 

Recém ingresso no mestrado em sonologia na USP, estou investigando mais formalmente as relações entre música e temporalidade no universo sonoro afro-diaspórico. Com isso, estou começando a amadurecer uns experimentos audiovisuais que envolvem a repetição e o tempo ritual como parâmetros para a criação musical, além de aspectos de energia sonora como os que explorei no álbum solo AEVUM, que lancei em 2021.

Na sua visão, o que é música experimental? Como tem rolado o desenvolvimento da música e da cena experimental no Brasil? 

RA:  A cena experimental e exploratória no Brasil está a meu ver cada vez menos hermética. Aos poucos, parece que aquilo que afastava e assustava a maioria das pessoas está deixando de soar tão ameaçador assim. Esta cena ainda reflete várias questões de recortes sociais, assim como toda manifestação cultural. Ainda é um "nicho" distante do interesse da grande massa de pessoas, e é fruido por um público com maior acesso a artefatos culturais que a cultura de massa não distribui em grande medida. 

Todas estas percepções estão em transformação no nosso tempo. O meu entendimento sobre o que é o experimentalismo mudou bastante nos últimos anos. Tradicionalmente, parece que esta etiqueta se refere apenas a uma produção desenvolvida sob os parâmetros do hemisfério norte global: com a ideia de uma vanguarda de alta cultura que se sobrepõe aos modelos clássicos e populares; com a tara modernista que se apropria de padrões seculares afim de investir em um processo de inovação, desconstrução ou negação do passado; com um engajamento na visão do tecnológico ligado apenas a máquinas eletrônicas e softwares randômicos de manipulação de parâmetros... Enfim, essa ideia do experimental como algo extremamente branco ocidental é algo que em grande medida faz dessas investigações algo pouco próspero e muito limitado, cultivado como uma torre de marfim da alta cultura com artefatos destinados apenas à iniciadas e iniciados no círculo dourado do conhecimento acadêmico, muito semelhante aos discursos e práticas sociais da arte contemporânea com afirmações do tipo “se você não entende, é porque você não tem repertório cultural para isso.” Esse modo de classificar e avaliar é muito branco.

Tenho entendido que não há nada de extraordinário nas práticas experimentais, pelo contrário, elas são ordinárias e estão na ordem de todos os processos criativos, só que muitas vezes como meio e não como fim em si mesmo. Todos os procedimentos utilizados na criação do hip hop, por exemplo, são extremamente experimentais. Desde a utilização dos samplers como objetos sonoros, até a elaboração de rimas rítmicas onde semântica e som são articulados com o fim de fixar um ethos, uma ética totalmente conectada com a vida comunal, valores compartilhados e etc. O sonho de muitas vanguardas europeias era a integração entre arte e vida e isso ocorre ordinariamente nas linguagens afro-diaspóricas: veja-se o samba, reggae, o afrobeat nigeriano, que são mais que estilos musicais, são modos de vida organizados pela cultura musical. Outro exemplo, é a contracultura do chamado funk brasileiro, hiper popular e constantemente criminalizada. Para falar de padrões sonoros experimentais, o funk brasileiro atual tem operado uma inversão sonora na relação entre as batidas graves e agudas. Onde anteriormente era o grave a fixar a batida que alicerça o ritmo, o agudo está agora cumprindo esse papel em algumas vertentes desse funk, um detalhe experimental portanto. O pesquisador GG Albuquerque do site👉 O Volume Morto tem apresentado muitas investigações sobre as revoluções sonoras nessa dimensão paralela da cultura do funk, que independente de gostarmos ou não articula procedimentos experimentais o tempo todo.

Como você tem sentido o retorno da free impro e da música experimental pós os períodos de isolamentos da Covid-19? Podemos dizer que tivemos um prejuízo irreparável com os locais e palcos parados? Quais foram as novidades (no Brasil e exterior) que você tem presenciado nessa seara? 

RA: Em São Paulo a cena ainda está em reconfiguração. Novos espaços surgiram acolhendo essas propostas sonoras. As instituições e seus programadores ainda seguem bastante apáticos e despreparados com relação a essas sonoridades, mas às vezes acontecem algumas aberturas. Acho que a falta de comunicação entre os diversos "nichos" dessa cena underground contribui muito para a falta de uma articulação mais potente, mas isso é algo característico do meio musical no Brasil, não se limita à essa cena específica.

Não diria que tivemos um prejuízo nesta seara musical pois muita coisa aconteceu remotamente. Vários festivais fizeram suas edições online e a produção exploratória dialogou com artistas e festivais de outros países intensamente no período, independente dos palcos. Acho que ainda estamos no processo de entender todas essas possibilidades e movimentações. Sinto que as pessoas ainda estão se reconfigurando e entendendo esses movimentos, mas as coisas estão acontecendo de um modo menos intenso do que em 2019.

Confesso não ter presenciado ou fruído de muitas novidades nesta seara, mas destacaria duas percepções novas. A nível nacional é algo muito positivo a manutenção e continuidade de festivais dedicados a música exploratória (Chiii Festival, Novas Frequências, Música Estranha). É lamentável que isto se dê exclusivamente no Sudeste. Em outras capitais e estados este fenômeno não está fluindo como alguns anos atrás parecia apontar, com cenas em Porto Alegre, Recife, Olinda e Bahia. 

Um segundo ponto é um entendimento meu, fruto da análise das listas de “melhores do ano”, tais como essa lista 👉do site El Intruso, onde fica perceptível como a produção sonora fora dos cenários norte-americanos e europeus é completamente ignorada pela crítica musical internacional. Ano a ano são sempre os mesmos artistas que aparecem nessas enquetes internacionais. Os críticos musicais manifestam uma completa ignorância do que ocorre fora do radar cultural hegemônico (Brasil, América Latina, África, e etc). Essa ignorância pode ser tanto uma falta de divulgação nossa quanto falta de interesse deles. Minha desconfiança aponta para um preconceito cultural com um lastro histórico muito bem cristalizado, tanto quanto para uma reserva de mercado exclusiva para protagonistas euro-americanos, algo historicamente delineado na relação que se desenvolveu entre o Free Jazz e a Improvisação Livre nos anos 70 e 80 do Séc XX.

Lembro que desde sempre você foi ligado à outras poéticas, estéticas e linguagens. Em seus álbuns mais recentes, sobretudo com o Radio Diaspora, recursos ligados aos vários tipos de oralidade, signos e uma confluência de estilos e estéticas ficam bem evidentes. Fale-nos de como essas influências se acoplaram em sua música. Como se deu esse processo?

RA: A minha formação artística se deu fora da academia. Me constituí artisticamente em cursos livres e tive experiências fundamentais com teatro, com coral, com dança, artes visuais, performance e em bandas com rock, black music, spoken word, jazz experimental e improvisação livre. Então esse lugar de cruzamento com outras estéticas é uma área de conforto para mim. 

Fica evidente que esses recursos orais, poéticos e semióticos – aliados aos sons desferidos – formam um poderoso veículo de protesto na música do Radio Diaspora, sobretudo quando atua na seara diaspórica e racial. Como você enxerga o preconceito racial no Brasil? Quais os signos e sinais de exclusão e preconceito que você enxerga nos meios sociais e culturais?

RA: O racismo no Brasil e no mundo é um fenômeno estrutural e estruturante das relações sociais em todos os níveis, seja político, econômico, cultural, jurídico ou afetivo. Acho que o racismo é uma "tecnologia" muito sofisticada, pois ele é capaz de se esconder camaleônicamente e inviabilizar as igualdades através dos gestos mais sutis. É aquilo conhecido como racismo cordial, prática mais corriqueira no Brasil, o que torna esse processo de limitação social e psíquica muito eficiente para a manutenção do privilégio branco e extremamente prejudicial para a população negra, que está secularmente desenraizada e excluída de suas raízes culturais, de seus repertórios éticos e poéticos, de suas histórias de luta contra a exploração dos escravocratas. Os dois signos mais evidentes para mim são: 

1º - A desumanização de pessoas a partir do seu fenótipo. Quanto mais próximo do fenótipo afro menos humana a pessoa é considerada, ao ponto de estar suscetivelmente apta para receber uma violência extrema, seja das forças policiais, seja de pessoas em situação de poder como patrões e empregadores. Essas pessoas pretas são consideradas menos inteligentes, menos confiáveis, menos equilibradas, menos esforçadas, menos dignas de receber afetos como amor, atenção, carinho, empatia. Como aponta o filósofo Muniz Sodré, o racismo foi desclassificado como conceito pela ciência e pela justiça, mas não como imaginário social. Isso se dá pela sua utilização nas relações de poder. O pensador estadunidense Frank B. Wilderson III defende que a ideia de humano foi desenvolvida em oposição a ideia de tudo aquilo que é não branco. Quanto mais parecido com o branco mais humana a pessoa se torna. Ainda que os escritos bíblicos cristãos preguem o amor, o pensamento branco judaico-cristão-cartesiano euro-ocidental padronizado opera nas pessoas de um modo parasitário onde para algo ser bom é preciso que se oponha dicotomicamente a algo ruim, e socialmente esse algo ruim somos nós, pessoas não brancas. 

2º - O trabalho no Brasil é algo que não tem valor, pois aqui trabalhar é coisa de escravizado, coisa de negro. Isso manifesta outra característica do pensamento branco hegemônico que é a desvalorização de tudo que possui conexão com o corpo, essa máquina a serviço da mente. Quanto mais manual um trabalho for, menos valia ele possui. O trabalho do engenheiro possui mais valor social do que o do pedreiro, o trabalho do estilista possui mais valor social do que o da costureira, e essas distinções são abismais em termos materiais. O mesmo se dá na música com a ideia do compositor erudito acessando bolsas, premiações e recursos financeiros institucionais e os mestres de cultura popular morando em favelas e cortiços longe de qualquer investimento público para a manutenção de suas contribuições artísticas. Essa organização reflete uma articulação ainda colonial em plena eficiência depois de séculos.

Mesmo no jazz e na música improvisada há preconceitos e signos racistas para se analisar. Estou amadurecendo a reflexão de que a improvisação livre europeia foi um processo de desafricanização do free jazz, semelhante ao que tivemos na relação entre o samba e bossa nova. Este artigo do genial trombonista e catedrático👉 George E. Lewis inicia uma reflexão crítica sobre essa relação entre músicos europeus brancos e estadunidenses negros no fim dos anos 60 do Séc XX. Não seria nada estranho, pois as questões raciais permeiam todas essas relações. Estranho é fingir que isso não acontece.  

Acredito que na periferia e dentre a população marginalizada, onde nós negros somos maioria, há ainda muitas crenças limitantes e muitas objeções que corroboram tanto para uma mentalidade de inferioridade (de um lado) quanto para essa situação de exclusão institucionalizada alimentada pelas elites (do outro lado). Vocês conseguem levar essa mensagem semiótica-musical para esse público de maioria afrodescendente? Há espaço para apresentar esse tipo de música em centros culturais da periferia?

RA: Essa é uma questão bem pertinente para refletirmos. A proposta do Radio Diaspora não dialoga com nenhum aspecto do que é entendido como música popular, e, desse modo, não possuímos a menor expectativa ou idealização de um público específico. Na origem dos nossos processos criativos, eu e Wagner entendemos que, por não estarmos acoplados em nenhuma caixinha na prateleira das expectativas (nem do jazz, nem da improvisação livre de engajamento europeu, nem do instrumental brasileiro de salão com seus cacoetes tradicionais com baião, choro e etc), o nosso processo é de total liberdade e parte de um ponto zero de criatividade. Como diz a filósofa brasileira Denise Ferreira da Silva: o valor humano da pessoa negra equivale a zero e o zero é o nada. E o que é o nada? O nada é um campo de possibilidades infinitas, o nada é o tudo. Começamos nosso processo a partir desse nada em 2015, criando a partir das nossas experiências acumuladas e nos manifestando de um modo que foi fazendo sentido para nós. Até que em 2020, quando participamos de uma conversa com alunos de composição na USP, eu me dei conta de que nunca havia pensado a respeito do público da Radio Diaspora, se este público era ou deveria ser afro ou não. 

Nosso trabalho reflete em forma e conteúdo sobre poéticas afro-diaspóricas e essa é nossa afiliação e contribuição artística e até mesmo social para estas questões, mas de fato não expectamos nada intencionalmente nesse processo. No entanto, inevitavelmente nos vimos tecendo diálogos e contatos com diversas pessoas desse público afro que em várias ocasiões chegam por vias menos populares, como, por exemplo, ouvintes, estudantes, curiosos e pesquisadores negros que conheceram nosso trabalho através de blogs, sites e artigos acadêmicos 👉 (vide este artigo). 

Já tocamos inúmeras vezes em espaços periféricos em bairros como Brasilândia, Grajaú, Jardim Boa Vista e cidades como Mauá na Grande ABCD e sempre encontramos um público interessado e interessante -- branco e afrodescendente -- que se anima a compartilhar as impressões que a nossa música gera. Mas também existe uma certa idealização do que é o público, muito semelhante com a idealização sobre o gênero humano a que me referi acima numa pergunta anterior. A expressão “sucesso de público” atualmente implica sempre a ideia de que pessoas com poder econômico validam um artefato cultural. O público idealizado de qualquer artista são pessoas brancas, as grandes massas que vemos nas plateias de qualquer festival com poder econômico para o gozo do entretenimento são quase que exclusivamente caucasianas. Onde estão as pessoas negras? Colonialmente servindo e trabalhando nestes eventos. Fazendo a segurança desta população privilegiada. Tudo isso é encarado com muita naturalidade pelo ecossistema cultural.

E como essa música de conscientização mais provocativa do Radio Diaspora tem sido recebida pelo público, que é de maioria branco?

RA: Não arriscaria dizer que fazemos uma música de conscientização. A conscientização se dá num nível muito incontrolável na recepção para termos este tipo de pretensão. Nossa intenção está mais num lugar de exorcizarmos as questões que atravessam a racialidade do que a pretensão de fazer algum tipo de letramento racial para um pseudo público sedento por este tipo de informação. Não somos entertainers. Como dissemos recentemente no Sesc Jazz, não estamos em cena para divertir ninguém. Mas nossa música tem sido recebida com interesse e com respeito sempre.

WAGNER RAMOS
Outro recurso que Wagner Ramos também usa com maestria, além de um poderoso drum set, são os efeitos de uma eletrônica mais contemporânea e mais sensorial. O processo de integrar a eletrônica às peças foi naturalmente cogitado desde o início do duo Radio Diaspora ou foi um processo gradativo de descobertas em que o duo foi imergindo? Em quais influências que vocês se inspiram para alcançar colagens tão únicas?

RA: A atitude para integrar os samplers e as vozes na nossa performance musical veio de Wagner já em nossos primeiros encontros em 2015, e a influência principal dele nessa investigação foi o hip hop. Como falei lá no início, o rap é uma prática experimental e explora, desde os seus primórdios, as manipulações eletrônicas dos objetos sonoros. Conhecemos e ouvimos muitas outras coisas que nos influenciam, mas o gatilho original da nossa pesquisa sonora, e que inclusive deu nome ao projeto,  foram as experimentações de samplers no universo do hip hop.

Quais as conexões e parcerias com outros projetos, bandas, improvisadores e artistas que tem rolado? Cite alguns nomes com os quais tem trabalhado – você e o Radio Diaspora --, ou mesmo projetos de amigos músicos os quais tem acompanhado...projetos e nomes que todo o interessado em free music e música experimental deveria procurar para ver e ouvir.

RA: O RD permitiu com que iniciássemos um processo intenso de colaborações e de investimento em outras parcerias com outros artistas improvisadoras/res. O processo colaborativo sempre fez parte da minha natureza. Com o RD começamos intencionalmente a tecer colaborações com artistas e músicos negros. Esse processo culminou, por exemplo, no Ensemble Cachaça! com o qual gravamos o álbum Cachaça! em 2018 e nos apresentamos no Festival Sesc Jazz em 2021. Também tenho colaborado intensamente com artistas da seara eletrônica que se organizam no coletivo Modulação Preta, organizados por Raiany Sinara e Marcos Felinto. 

O projeto paulistano Orquestra Laboratório Bastet é um que tenho acompanhado de perto e envolve um dream team de artistas afros daqui de Sampa. É liderado pelo baterista Serginho Machado. O trabalho do guitarrista Lello Bezerra, que inclusive toca na Orquestra Laboratório Bastet, é também algo bem potente em andamento na cena. E as improvisadoras vocais Inès Terra e Paola Ribeiro são literalmente duas vozes potentes neste universo investigativo da música exploratória. Nosso duo Radio Diaspora colabora intensamente com Paola no formato de power trio. Internacionalmente, tenho acompanhado a produção de Chicago através dos lançamentos do selo International Anthem. E em fevereiro de 2020 colaborei numa track da multi-instrumentista americana Angel Bat Dawid, gravada em Salvador, Bahia. 

Outra via de expressão sua é atuar em solo com trompete e outros sopros com boquilhas. Conte-nos mais sobre esse fascínio em desferir ruídos, notas e frases a partir desses vários sopros. Como você enxerga a improvisação: uma forma abstrata de se expressar a partir desses sopros, uma forma de organizar esses sopros em frases e efeitos sensoriais, ou as duas coisas?

RA: Eu sou uma pessoa que já sofreu de muitos problemas respiratórios. Asma e bronquite fizeram parte da minha infância e adolescência de um modo muito presente e as medicações que ingeri em decorrência disto me geraram questões que administro até hoje, de modo que soprar para mim é um aspecto realmente vital e muito importante. Embora tenha começado no trompete tardiamente com mais de 25 anos, encontrei neste veículo de expressão algo muito benéfico para minha saúde e auspicioso para minha criatividade. A exploração sonora do trompete foi o gatilho inicial de minhas abordagens. Mas muito inspirado pelas sonoridades afro-orientais, comecei a colecionar flautas e outros instrumentos de sopro e incorporei dois deles na minha sonoridade, que são o shehnai (indiano) e a gaita marroquina, ambos instrumentos de palheta primos ancestrais do oboé sinfônico.  Em 2011 comecei a fazer umas experimentações com a boquilha de saxofone acoplada ao trompete, o que transforma completamente a tessitura do instrumento possibilitando graves e sub graves impossíveis de realizar com o bocal tradicional, além de timbres e ruidosidades multifônicas, comuns nos saxofones. A incorporação do ruído e a utilização não convencional dos instrumentos são aspectos que remontam a criatividade afro-diaspórica e esses processos fizeram e fazem parte da minha relação criativa com o som. Imagino que a distância segura que mantive dos conservatórios, e a minha inserção em um ambiente criativo de improvisação livre, permitiu que explorasse com ampla liberdade todas as possibilidades que se descortinaram. Acredito muito nisso, de sermos capazes de criar nossos próprios mundos. A prática artística autoral que desenvolvo trata exatamente disto.

Sinto que improvisar musicalmente é um processo dadivoso em sua essência. Você apresenta nesse ato sua expressão mais crua e genuína. É sua personalidade que se manifesta nua e em essência neste abismo da improvisação sem parâmetros pré-determinados. Há vários tipos de improvisação. Há processos de improvisação que são extremamente contornados seja por uma rítmica, uma harmonia, uma modulação, um ethos comunal, mas em todos esses ambientes ou idiomas (como dizem os ingleses), é o momento em que a pessoa que improvisa é protagonista e tem algo de si para oferecer. Em todas as linguagens/idiomas vamos encontrar cacoetes estilísticos. Se no jazz vamos ouvir os patterns melódicos e rítmicos inaugurados por Bird e Dizzy mesmo passados 70 anos, na improvisação livre vamos ouvir ruídos corriqueiros, as sempre presentes raspadinhas premiadas em pratos e cordas, e tá tudo OK. Não há nisso nenhum problema desde que conectado com a verdade de cada artista. O problema começa quando achamos que existe alguma superioridade nesse tipo de arte sonora em relação a outros modos de se fazer música, ou vice-versa. Não há. Não somos tão importantes assim. Acredito também que só podemos dar aquilo que temos. Como disse numa postagem/reflexão no Instagram ano passado: “Improvisar é dizer sim. É colocar-se em estado de reticências e abrir mão das próprias intenções. É perceber o tempo como espaço e a instabilidade como convite para acessar a própria virtualidade, que é ao mesmo tempo a própria vulnerabilidade e a própria potência. É também um processo de investigação de transformar ar e movimento em som e energia, e energia em sons e movimentos. É articulação de estase intempestiva, e às vezes de êxtase criativo. Jogo de mutação e excesso, de memória e esquecimento. Convite para inventar-se no encontro com o agora.”

JOÃO NEPOMUCENO (GUITARRA), RODRIGO GOBBET (BAIXO), RODRIGO OLIVEIRA (FLAUTA), EDU VARALLO (BATERIA), MATIAS VIOLA (TROMPA), ROMULO ALEXIS (TROMPETE)

Em sua visão, qual a diferença entre improvisar sozinho e a prática de improvisação livre em grupo?

RA: Sobre improvisar sozinho, vou usar outro trecho desta mesma reflexão de novembro passado: 
“Improvisar solo não existe. A gente nunca está só. Além da presença de outras pessoas, carregamos conosco julgamentos e fixações que às vezes são como encostos que nos fazem reféns da linguagem. A linguagem busca sentido. O sentido gera formas e toda forma resulta de uma redução, de uma captura, de uma dominação, de um dizer não a outros possíveis. (Nietzsche quem diz. Reclame com ele).”

Já a improvisação em grupo reflete para mim a mesma fluência de uma conversação. Quando você improvisa em duo, em trio até em quarteto, você possui uma qualidade comunicativa e um espaço de manifestação sonora mais equilibrado, como uma conversa entre quatro pessoas numa mesa de bar.

Quando você se encontra num grupo maior o processo se dinamiza e a exigência de escuta e de silêncio por parte de todas as pessoas se torna maior, o que nem sempre acontece. Moral da história, é um processo muito mais difícil a improvisação livre em grupos grandes. Exatamente por isso prefiro tocar em duo e grupos menores.

Fale-nos das gravações e projetos vindouros e/ou que estão em curso. O que o ouvinte deve esperar?

RA: Estou envolvido em alguns projetos que vão pintar nos próximos meses:

Vou lançar um álbum de piano, voz e trompete com o amigo Francisco Jalala pelo selo Música Insólita. Gravamos remotamente uma série de improvisos ao longo de 2020 e início de 2021 em um processo bem experimental;
Estou envolvido em uma residência artística mediada pelo British Council e o Instituto Feira Preta com a guitarrista britânica Jelly Cleaver, e estamos criando remotamente um EP e um show que realizaremos em novembro deste ano, período no qual ela virá ao Brasil;
Junto com as bandas do ABC paulista Otis Trio e o Conde Favela, o Radio Diaspora está gestando um projeto de big band de free energy music que promete intensidades sonoras;
O Radio Diaspora vai lançar em vinil o álbum NEGRO HUMOR de 2021 e está planejando um álbum em trio com a performer vocal Paola Ribeiro;
Além disso estou preparando dois álbuns solo explorando ideias e decomposições bem antigas e coisas que lancei em suporte audiovisual, mas que sinto que possam funcionar apenas como fonograma. 

Enquete Rápida:
Três músicos da história do jazz/ free improv que mais te impactaram e seus álbuns:

RA: Eric Dolphy pela sua maestria, lirismo e ousadia sonoras. Às vezes sonho que estou fazendo um rolê com Dolphy e sempre damos muita risada (rs). Destacaria o álbum “Outward Bound” com Freddie Hubbard ao trompete.
Ornette Coleman Quartet com Charlie Haden, Don Cherry e Billiy Higgins. O que dizer dessa banda? O disco “The Shape Of Jazz To Come” diz tudo.
Mongezy Feza é um trompetista sul-africano que tem uma sonoridade que me impacta muito. Ele é um discípulo confesso de Clifford Brown e Don Cherry, dois trompetistas dos quais eu sou completamente devoto. O álbum “Music For Xaba Volume Two” com Johnny Dyani no baixo e Okay Temiz na percussão e bateria é puro fluxo de maravilhas.


Três músicos/ bandas contemporâneas do jazz/ free improv que mais te impactaram e seus álbuns:

RA: Matana Roberts é uma das artistas mais inspiradoras deste século. O álbum “Coin Coin Chapter One” é soberbo e tece um inventário fantástico da música negra norte americana. Inspira muito.
The Art Ensemble of Chicago é a minha banda preferida de todas no Universo. O que eles conseguiram criar em termos artísticos, históricos, poéticos e espirituais ainda está por ser compreendido. “Fanfarre For The Warriors” é o álbum da seleta.
Mostly Other People Do The Killing que é um quarteto nova-iorquino de jazz contemporâneo liderado pelo baixista Moppa Elliott com os gênios Peter Evans ao trompete e Jon Irabagon nos saxes e Kevin Shea na bateria. Os álbuns de estúdio eu não acho tão interessantes, mas as performances ao vivo são alucinantes. O “The Coimbra Concert” de 2011 é o meu disco preferido do grupo.

Três músicos/ bandas de música brasileira que mais te impactaram e seus álbuns:

RA: Naná Vasconcelos é pura liberdade criativa sonora sem precedentes no Brasil. Inventor de mundos. “Africadeus” é um disco seminal.
Jards Macalé é outro neste nível de inventividades. Seu disco de estreia  de 1972 é arrebatador. 
Milton Nascimento eu acho que é o artista que eu escuto de forma litúrgica a mais tempo e embora não o considere uma influência presente na minha expressão, me sinto intensamente atravessado por sua obra dos anos 1970. Um álbum? “Clube da Esquina 1”

Três músicos/ bandas de outros gêneros que mais te impactaram e seus álbuns:

RA: James Brown é um artista que salvou minha vida. Recuperei a minha auto-imagem de homem negro assistindo e revisitando suas performances musicais. Essencial. Um disco? “Hell”, acho que é seu álbum mais agressivo.
Funkadelic é a minha banda preferida de Rock. Sim, o Rock é negro, tão negro quanto George Clinton que conduziu esta usina criativa e fábrica psicodélica de clones que se tornou um dos grupos mais influentes da história da música. Um album? “Free Your MInd And Your Ass Will Follow”.
Lily Greenham é umas das precursoras do uso experimental da voz e possui uma compilação de seus trabalhos radiofônicos no álbum “Lingual Music”. São obras de invenção e manipulação eletrônica do material vocal com farto uso de paisagens sonoras e multi-trackings em composições de música concreta. 

Três indicações de livros, seus autores e seus assuntos:

RA: “Um Defeito de Cor” de Ana Maria Gonçalves é mais que um livro, é um tratado histórico filosófico sobre as relações raciais no Brasil. Toda a história que envolve a escrita dess livro daria um outro livro. Completamente genial e necessário.
“Pensar Nagô” de um dos nossos maiores intelectuais vivos, Muniz Sodré, é uma obra incrível onde o autor apresenta uma revisão filosófica do pensamento ocidental e apresenta os referenciais da filosofia afro-diaspórica gestada na cultura afro brasileira Nagô, onde a esfera do sensível comunal é um dos principais fatores de coesão do pensamento.
“A Dívida Impagável” de Denise Ferreira da Silva é um livro que desafia a estrutura do pensamento ocidental e propõe a destruição da arquitetura do mundo como conhecemos. Essencial e necessário.

Três indicações de filmes/ documentários que envolvam música ou artes:

RA: Vou propor aqui o clássico de Luis Buñuel “O Anjo Exterminador” de 1962. Não envolve exatamente música, mas é pura arte para refletirmos sobre o processo que vivemos durante a pandemia.
O clássico de Glauber Rocha “Deus e o Diabo na Terra na do Sol” é uma obra prima do cinema mundial. Recentemente o Radio Diaspora na companhia do guitarrista Luiz Galvão e do percussionista Leonardo Rocha realizou uma trilha  ao vivo em cima deste filme, e pude perceber o qual genial e cheio de detalhes é essa obra. A trilha original de Sérgio Ricardo é super experimental.
“Negro Em Mim” é um documentário do diretor Macca Ramos para o qual Radio Diaspora criou uma trilha original. Traça um panorama da cena negra contemporânea em arte e política.





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